Que viva Moçambique! – Parte I

Uma reavaliação do socialismo africano

 

 

Ângelo Novo (*)

 

 

 

Como filho acidental do grande continente negro sempre procurei manter-me a par dos assuntos da África sub-sahariana. Ao contrário da de muitos observadores qualificados, a minha visão não é pessimista. As estatísticas económicas podem ser deprimentes, mas a vida continua o brotar exuberantemente. Os índices sócio-económicos sugerem um cenário de catástrofe iminente, mas a população africana está em franca expansão. Em 1970 os africanos eram 10,9% da população mundial. Eles são agora 18,2% e está projetado serem 26,3% em 2050. Sujeitadas a séculos da mais brutal agressão colonial-imperialista, as populações africanas demonstraram uma notável resistência vital. África tem a energia (e o desajeitamento) daquilo que é jovem, abundante e auspicioso. É claro que isto será escassa consolação para quem vive presentemente em condições de extremo sofrimento e destituição. Retenho, porém, a esperança e albergo a encorajadora expectativa de que, neste caso, alguma justiça poética histórica acabará por ser feita. O que é tanto mais de assinalar quanto, não sendo religioso nem crente na providência, não tenho por necessário que a justiça se faça a final em todas as aventuras humanas. E o estupro da América conta-nos uma história muito diferente.

 

Para os que (como eu) acreditam na via de passagem ao comunismo exposta por Marx nos seus projectos de resposta à carta de Vera Zassúlitch (1), a África negra é uma terra de promissão, pois que as estruturas sociais comunitárias e de parentesco aí dominam ainda muito do seu interior rural. Vou construir este ensaio em volta da falhada experiência socialista de Moçambique (1975-1986) e das lições que dela podem ser tiradas, em geral, para a luta africana pelo progresso e dignidade dos seus povos. Começo por abordar alguns episódios da história recente (e não tão recente) deste país, esperando encontrar algumas pistas de aclaração e contextualização do problema da sua conflitualidade larvar, que já deu causa a uma guerra civil de uma enorme e devastadora brutalidade, pondo ainda hoje extremas dificuldades à consolidação do seu projecto nacional.

 

As questões teóricas abordadas ao longo deste estudo – nomeadamente sobre a arrumação de certos conceitos do materialismo histórico – têm, porém, um alcance que transcende a problemática específica do continente africano, ou até a do “Terceiro Mundo” em geral. O “caso” moçambicano é também um dos últimos episódios do longo ciclo de revoluções socialistas do século XX, no qual se operou como que um desvio em relação às predições da ortodoxia “marxista”. A toupeira da revolução afastou-se dos países capitalistas mais desenvolvidos e, sempre na busca dos elos mais fracos do sistema, emergiu lá nos países da periferia retardatária, dominada e dependente, aos quais procurou depois elevar até à vanguarda do progresso universal, à custa tão só de voluntarismo histórico e de um fero otimismo antropológico. A revolução moçambicana será porventura aí mesmo um caso extremo, mas talvez por isso mesmo tanto mais revelador.

 

Por fim, se está ainda por provar que o sistema imperialista se possa romper quebrando-se o seu elo mais fraco (ou até o mais forte), do que não tenho dúvidas é que a grande causa da emancipação da humanidade laboriosa vale o que valerem os seus elos mais frágeis. Nesse sentido, pela minha parte (e independentemente de circunstâncias pessoais), peço licença para divergir de um, em seu tempo, famoso editorial filo-imperialista (2) e diria que, face ao terrorismo global do “consenso de Washington”, somos todos moçambicanos.

 

Uma nação toma forma

 

A terra que é hoje Moçambique foi ocupada por populações de caçadores recolectores desde tempos muito recuados, provavelmente remontando às primeiras migrações do homo sapiens. Foi depois colonizada por povos negros da grande família bantu, provavelmente a partir dos séculos III-IV, no âmbito das últimas vagas de um grande movimento migratório continental que teve origem na região dos atuais Camarões, por volta de 2000 a.c.. Estes povos trouxeram consigo agricultura, a pastorícia, a olaria e a cultura do ferro, acabando por expulsar ou assimilar totalmente os primeiros ocupantes (khoisan e hotentotes, conhecidos na tradição oral local como “anões”). A história destes povos em toda a época anterior à chegada das “gentes vindas do mar”, está em grande parte ainda por estabelecer com exatidão. Em todo o caso, o primeiro desses povos embarcadiços terá sido da família dos austronésios, vindo da atual Indonésia e estabelecido em Madagáscar, provavelmente, por meados do primeiro milénio da nossa era. A partir desta grande ilha, estas gentes estabeleceram-se também na costa oriental africana situada defronte. Verosimilmente, deve-se-lhes a introdução aí feita da cultura do arroz e da árvore bananeira, bem como do xilofone. Populações bantas foram por elas levadas para povoar Madagáscar a partir do século IX, miscigenando-se com elas para formar o atual povo malgaxe. Parece que não foram mantidos mais contatos regulares com as terras de origem asiáticas destes extraordinários e misteriosos navegadores. O viajante árabe Al-Masudi, no ano de 916, dá já conta da existência, para sul de Sofala, deste estranho povo Waq-Waq, bem como, para o interior, de um grande reino produtor de ouro e marfim que, com toda a verosimilhança, será um percursor do reino de Mapungubwe, da mesma linhagem cultural que será depois responsável pelas monumentais construções em pedra do Grande Zimbabué. Os comerciantes persas estão presentes nestas costas desde, pelo menos, o século VIII, mas possivelmente desde os finais do império Sassânida (224–651).

 

Na viragem para o segundo milénio da nossa era, os dados arqueológicos dão conta de uma evolução que leva os historiadores a falar de uma segunda fase da idade do ferro nestas terras. Há modificações sensíveis no fabrico, formato e decoração da olaria. Intensificou-se o fabrico de objetos em ferro, cobre, estanho e ouro. A localização das povoações passou dos vales dos rios para as colinas. Incrementou-se a presença relativa do gado bovino em relação ao ovino e caprino. Segundo alguns antropólogos, esta evolução, em particular, com a imobilização patrimonial por ela implicada, esteve na origem da passagem a regimes de parentesco de linhagem patrilinear, o que se verificou sobretudo a sul do rio Zambeze (3). Todos estes fenómenos de evolução cultural devem-se, por um lado, a uma nova vaga de migrações bantas (o que é confirmado pelos dados linguísticos), mas também à intensificação dos contatos com os comerciantes persas, a que se juntaram árabes e indianos. Os persas shirazis, já islamizados, estabeleceram no século XI um grande entreposto em Quíloa, a partir do qual derivaram outros, na ilha de Moçambique, em Angoche, em Quelimane e em Sofala. O comércio externo permitia acumulação, elevação da autoridade política e complexificação nas relações sociais.

 

A sul do rio Zambeze, até ao Save, os povos autóctones bantas surgiram aos olhos dos seus visitantes divididos entre diversos estados pastorícios chonas (Barué, Quiteve, Manica, Sedanda, Butua…) e múltiplas sociedades agrícolas menos organizadas, os tongas. A exemplo do que sucede noutros povos bantas, esta sobreposição estratificada resultou possivelmente de uma conquista (4). Com origem remota no Grande Zimbabué, a aristocracia caranga, dominante entre os chonas, dispersou-se, ao sabor de lutas dinásticas recorrentes, submetendo pelo caminho muitas aldeias tongas. Havia, porém, entidades tongas livre, no Baixo Zambeze, que resistiram a estas invasões e a muitas outras posteriores. Os carangas mantinham entre si laços de vassalagem e tributo algo ténues e incertos. No grau máximo de integração, formaram um império, sujeito a um único soberano, o Muenemutapa (Senhor da Terra). Há hoje razões para crer que foram algo exagerados a extensão e o grau de consistência atribuídos a esse império, que os portugueses deram a conhecer ao mundo sob o nome de Monomotapa. As metrópoles carangas, tinham uma estratificação social de certa complexidade, compreendendo mineiros, metalúrgicos (ouro, ferro, cobre e estanho), tecelões (algodão), artesãos, militares, comerciantes e funcionários do rei. Havia ainda um clero mediúnico, os mhondoro, que desempenhavam também a função de historiadores. Numa grande parte em resultado da sua articulação com o constante comércio externo intermediado por agentes islamizados, esta sociedade criava um excedente e mantinha, no seu seio, relações estabilizadas de exploração de classe (5). A sua cultura arquitetónica e urbanística manteve a tradição da pedra talhada, oriunda do Grande Zimbabué.

 

Para norte do rio Zambeze, com máxima concentração na atual província de Nampula, espraiavam-se então as pequenas comunidades aldeãs dos macuas, animistas, de linhagem matrilinear e costumes um pouco matriarcais (6). Mais para sul e para o interior, viviam os seus aparentados lomué. Os macua-lomué eram agricultores e caçadores, praticando a arte metalúrgica do ferro com que fabricavam os seus instrumentos de trabalho. Dedicavam-se também ao comércio desde antes da era colonial, trocando artefactos metálicos e produtos alimentares por sal e têxteis. Viriam a ser as principais vítimas, nesta área geográfica, do tráfico esclavagista, por meio do qual foram sujeitos a uma diáspora global. A norte, junto ao Lago Niassa, estavam os ajauas, agricultores e criadores de gado (nos planaltos), praticantes da uxorilocalidade e de linhagem matrilinear. Organizados em chefias de aldeia militarizadas, em diversas épocas reuniram-se sob poderosas monarquias. Ao tempo da sua entrada em contacto com os portugueses, eram já detentores de armas de fogo, traficavam escravos e marfim, estando parcialmente islamizados. No nordeste do atual Moçambique, em especial dos planaltos de Mueda, Macomia e Muidumbe até à costa índica, viviam os macondes, agricultores, matrilineares, escultores exímios e inspirados, animistas, ferozmente independentes, quase acratas (7). Os macondes eram bastante agressivos entre si e para com os seus vizinhos ajauas e macuas, vivendo em aldeamentos fortificados, armadilhados e bem dissimulados pela vegetação. Praticavam a poliginia e, para esse efeito, não era incomum praticarem razias externas tendo com alvo principal as mulheres.

 

Para sul do rio Save, em especial no estuário do rio Limpopo e na zona da baía do Maputo (que os ingleses chamariam de Delagoa), viviam vários povos praticantes da agricultura e da pastorícia que constituíam a cultura tsonga, resultante de diversas migrações anteriores. Rapazes e raparigas tsonga tinham complexos ritos de iniciação sexual, após o que os primeiros se dedicavam ao cuidado dos animais domesticados, enquanto as segundas tomavam a seu encargo a maior parte do cultivo da terra. A poligamia era comum, sendo pago um preço (o lobolo) por noiva. Descendência, sucessão e herança eram patrilineares. O padrão de povoamento era caraterizado por aldeias dispersas com organização patriarcal. Os tsonga cobravam tributo de passagem pelos seus territórios e, por vezes, forneciam serviços mercenários ao exterior. Na zona sul da atual província de Inhambane, viviam também os chopes e os bitongas, estes últimos, por alguns, considerados como um mero subgrupo dos primeiros. Os chopes eram agricultores proficientes, conhecendo também as artes da metalurgia e da tecelagem. Notabilizaram-se, sobretudo, como extraordinários músicos. Com base no seu caraterístico instrumento de percussão mbila, criaram grandes espetáculos – sempre dirigidos pelo seu compositor, com orquestra de vários naipes, canto poético e dança - que já encantaram o padre André Fernandes em 1560. Resistiriam aos portugueses de forma um tanto desorganizada e seriam depois as grandes vítimas dos conquistadores angunes, a que também se opuseram. As numerosas outras formações etno-linguísticas existentes hoje em dia nesta região constituíram-se posteriormente, por aculturação divergente, ao sabor de invasões e assimilações políticas.

 

A maioria das comunidades bantas do atual território moçambicano tinha como suprema autoridade político-religiosa os “chefes de terra”. Como direto descendente da linhagem fundadora ou conquistadora, o chefe era o detentor e guardião espiritual da terra. Como tal, a ele cabia atribuir aos seus subordinados direitos de usufruto sempre precários sobre parcelas delimitadas de terreno agrícola ou mata. Pela concessão destes direitos, o chefe recebia um tributo anual em produtos acabados, trabalho ou presentes simbólicos. Tais direitos de usufruto sobre a terra não se podiam transmitir por qualquer modo e extinguiam-se por morte do seu titular, conferindo assim ao chefe oportunidade para os reatribuir (ou não) à sua vontade. Esta estrutura jurídico-política elementar podia complexificar-se e desdobrar-se hierarquicamente no caso de comunidades mais vastas ou mesmo de certos proto-estados. O chefe podia ser assistido por um conselho de ansiãos ou uma pequena corte, podendo também, no caso de ser senhor de domínios muito extensos, nomear chefes territoriais locais seus subordinados de entre os seus parentes ou confidentes.

 

As terras que hoje pertencem à nação moçambicana foram sempre propensas a grandes desastres naturais (inundações, secas, epidemias, pragas) que se traduziram, com frequência, em catástrofes sociais. As populações deviam estar preparadas para enfrentar situações insustentáveis, o que implicava mobilidade e, potencialmente, conflito. Eram comuns as incursões e razias, com captura de gado e de pessoas, em especial mulheres e crianças. A penúria, a desordem e a deriva eram situações historicamente recorrentes. Bandos errantes de homens armados movidos pelo desespero a uma crueldade extrema são um déja vu, remontando até diversas eras no passado. Em quase todas as comunidades havia sempre elementos de origem externa, por adesão voluntária ou cativeiro. Por vezes, emergiam senhores da guerra carismáticos, que federavam ou submetiam extensos aglomerados populacionais. Em épocas dadas, ocorreram algumas grandes invasões. Em resultado destas movimentações e cruzamentos, todas as identidades étnicas acima referidas são fluidas, não podendo ser essencializadas. Na verdade, quando e em que circunstâncias elas surgiram é incerto, na grande maioria dos casos.

 

O comércio árabe, persa e indiano faz-se sentir na costa oriental africana desde o século IX, dando origem à fundação de uma linha de cidades costeiras islamizadas até Inhambane, onde chegava a monção. Aí se desenvolveu a cultura suaíli, responsável pela introdução em África do cultivo da mangueira, dos citrinos e do algodão. Na costa moçambicana, este povoamento suaíli resultou já de migrações secundárias a partir de Quíloa, Zanzibar e ilhas Comores. Era uma “civilização de escalas”, que vivia essencialmente do comércio, da pesca, da cultura do coqueiro e da criação de gado bovino zebu. O vestuário, as práticas religiosas islâmicas, bem como a cultura escrita arábica eram exclusivos das classes superiores (os “muinhes”), tipicamente constituídas por homens muçulmanos casados com mulheres aparentadas com as chefias locais. Abaixo na escala social havia artesãos e outros trabalhadores manuais e, por fim, negros escravizados. As práticas religiosas e de sociabilidade nestes estratos inferiores eram muito mais sincréticas. Urbanisticamente, estas distinções sociais traduziam-se numa dicotomia centro-periferia, predominando no primeiro as edificações em pedra, rebocadas e caiadas. Mas não havia qualquer separador nem nenhum tipo de fortificação nestas urbes, que era suposto viverem em paz com os seus vizinhos. Os veleiros suaílis, denominados pangaios, para navegação, costeira, fluvial e de longo curso, foram o principal meio de transporte nesta região até bem dentro do século XX.

 

O grande cronista Ibn Battuta dá-nos vívidas descrições da vida nesta região quando em 1331 visitou o país dos zinj (os negros). O faustoso sultanato de Quíloa era então a grande placa giratória comercial, de onde navegadores indianos e do Golfo Pérsico levavam os produtos africanos (ouro, cobre, tecidos, sal e artefactos em ferro) até à Índia, Ceilão, Indochina e China. Como resultado desses contactos, o grande almirante chinês Cheng Ho aportou às costas orientais africanas, em 1417, com a sua imponente frota de navios de oito a nove mastros e cento e cinquenta metros de comprido. O xerifado de Sofala era, por então, um importante entreposto comercial suaíli, como o eram Pemba, as ilhas Quirimbas, a ilha de Moçambique, Angoche, Quelimane, a ilha grande de Bazaruto e Inhambane. Ao longo do rio Zambeze, havia ainda Luabo, Sena e Tete. Estradas comerciais cruzavam depois o interior, pontuadas por aldeias que se constituíam em feiras.

 

Em busca do caminho marítimo para a Índia pela rota do Cabo, a esquadra de Vasco da Gama aportou nestas paragens em 1498. Teve um desembarque feliz em “terra de boa gente”, um pouco a norte do Maputo, e logo descarregou os seus canhões sobre a illha de Moçambique. Na viragem para o seculo XVI, os portugueses começaram a estabelecer pontos de apoio na costa oriental africana para o trânsito constante. À falta de meios de financiamento e produtos para troca, decidiram-se por uma estratégia de utilização do seu poder militar para impor o domínio político sobre as principais cidades comerciais do Índico. Na primeira década de quinhentos, foram ocupadas Quíloa, Sofala e a própria ilha de Moçambique. Esta última, ao que parece, tomou a sua denominação de um influente comerciante árabe aí residente, Musa Al Bik. Os portugueses extraíram destas praças tributo e saque com uma incontinência que indispôs os locais. Sucederam-se as razias e as expedições punitivas a Socotorá, Mafia, Zanzibar, Pemba, Angoche e à grande ilha de S. Lourenço (Madagáscar).

 

A capitania portuguesa de Sofala foi criada em 1505, no local do entreposto comercial muçulmano aí existente. Dois anos depois iniciou-se a construção do seu Forte de São Caetano, em alvenaria de pedra e cal. Aí se estabeleceria uma guarnição permanente. Passou a fazer-se também alguma construção e reparação naval. Tentou impor-se, a partir daí, um monopólio real do comércio aurífero. Mas o que resultou foi uma expansão do tráfico privado (sobretudo de marfim) e o estabelecimento de laços familiares e políticos entre muitos sertanejos portugueses - que se espalham ao longo da costa e penetram pelas feiras e campos mineiros do interior - e as chefaturas africanas.

 

A coroa não desarmou e, na viragem para a década de 1570, mandou organizar uma grande expedição de conquista do Monomotapa, vingando simultaneamente um missionário jesuíta martirizado na sua corte. A armada partiu, comandada por Francisco Barreto (anterior governador da Índia Portuguesa), visando a conquista de todo o planalto interior caranga, perseguindo o sonho de um eldorado africano. Embora os recontros armados tivessem decorrido satisfatoriamente, o empreendimento acabou por fracassar de forma catastrófica, sobretudo por motivos logísticos e sanitários. Assim se deu início a um longo rosário de desastres militares portugueses nesta região. Missões jesuítas e dominicanas tiveram também resultados evangelizadores dececionantes. Incapazes de se imporem pela espada ou pela cruz, os portugueses (clérigos inclusive) foram-se infiltrando pelo tráfico, fazendo apelo à cobiça e ao nepotismo, explorando dissídios políticos autóctones, muitas vezes selando acordos com arranjos matrimoniais (8). O ouro foi uma desilusão, mas manteve, ainda assim, um fluxo regular. O marfim foi a mercadoria de eleição, a par de seres humanos, muitas vezes os próprios transportadores.

 

Pelo final deste século de quinhentos, a capitania portuguesa de Moçambique e Sofala – dependente do Vice-Rei da Índia – tinha, enfim, conseguido consolidar o seu domínio por todo o vale do Zambeze, no eixo Quelimane – Sena - Tete. Na ilha de Moçambique iniciou-se em 1558 a construção da grande fortaleza de S. Sebastião, com pedras que serviram de balastro aos navios. Enquanto D. Francisco Barreto peleava de arcabuz, entre Sena e as estepes de Manica, vegetava miseravelmente por esta pequena ilha o seu destestado vate Luís Vaz de Camões, aí se tendo mantido por dois longos anos, até que, por encontro de acaso, a mão amiga de Diogo do Couto lhe custeou finalmente o prosseguimento da viagem de regresso a Lisboa. Aí chegou em abril de 1570, portador do manuscrito revisto de Os Lusíadas e deuma obra de ensaísmo filosófico que lhe foi furtada e se perdeu.

 

No século seguinte faziam-se já viagens de cabotagem, anuais ou bianuais, entre esta mesma ilha (que centralizava o comércio externo da colónia) e os portos subalternos de Inhambane, Sofala, Rios de Cuama, Quelimane, Angoche, ilhas Quirimbas (com destaque para o Ibo) e Madagáscar. A partir destes portos, “viageiros” (coloniais ou africanos, estes denominados muçambazes) internavam-se regularmente em caravanas para o interior, em missões comerciais. As próprias chefaturas bantas (ou seus emissários) vinham, por vezes, aos portos, propor e concluir transações. Todo este conjunto disperso de possessões e facilidades acabou por adotar o nome da ilha a partir da qual emanava a precária autoridade sobre toda a presença portuguesa nesta região do mundo. Comparativamente a outros visitantes anteriores, a chegada dos portugueses trouxe relativamente poucas novidades culturais aos povos locais. Foram introduzidos a mandioca (cassava), o milho indiano, bem como o tabaco e o ananás, vindos do Brasil (9).

 

Nos anos de quinhentos, Changamira, um antigo pastor, criou um novo potentado caranga, a dinastia rozvi que se apossou do reino butua. Depois matou o Monomotapa e usurpou o seu trono, por alguns anos, antes de ser, por sua vez, derrotado em batalha e massacrado. O império decaiu então, atingido por tendências centrífugas. Ao longo do século XVII os portugueses tentaram, com sortes variáveis, estender o seu domínio aos estados carangas dos planaltos (Quiteve, Barué) e ao próprio Monomotapa, tirando proveito de quezílias dinásticas. Nas feiras do interior foram erguidas paliçadas portuguesas com igrejas católicas. Todos estes forasteiros de pele branca acabariam por ser expulsos em 1695 pelos exércitos rozvi do reino butua, vindos do sul. Durante todo o século XVIII os butua-rozvi dominaram todo o planalto interior a sul do Zambeze. Foi sob a sua proteção que, onde aquele grande rio recebe o caudal do seu afluente Aruângua, se manteve a única feira de ouro portuguesa de alguma dimensão que então subsistiu, o Zumbo.

 

Pelos finais do século XVI, em vagas sucessivas, povos guerreiros e antropofágicos (ou a isso levados pela fome) vieram da zona do Katanga e instalaram-se a norte do Zambeze, até à costa, submetendo os macuas e os lomué. Ficaram conhecidos como maraves (ou malawis), tendo constituído diversos reinos, de que se destacam Undi, Kaphwiti, Makanga, Lundu, Manganja e, sobretudo, Kalonga. Tiveram uma importante atividade mercenária ao serviço dos portugueses e interveniente nas lutas carangas. A classe dominante, nos Estados maraves, era composta pelos soberanos e sua casta administrativa e militar, enquanto a classe dominada era constituída por camponeses, caçadores, pescadores, artesãos, ferreiros e escravos. As organizações políticas maraves acabaram por decair, por meados do século XVII, sendo os descendentes dos seus clãs régios (bandas, phiris, etc.) assimilados pelas populações dominadas, nos respetivos territórios. A língua e identidade cultural nianja é um produto residual destas invasões, muito presente no leste da província do Niassa e no norte da província de Tete.

 

Quando começou a ser frequentada pelos portugueses, nos inícios de quinhentos, baía de Maputo era habitada por diversos clãs da etnia tsonga, com destaque para os Inhaca, os Zembe, os Fumo, os Libombo e os Manhiça. Foi explorada em profundidade pelo comerciante Lourenço Marques em 1545, que daí extraiu grandes quantidades de marfim. Pouco depois seria percorrida pelo bando já muito destroçado dos sobreviventes do naufrágio do galeão grande de Manoel de Sousa Sepúlveda, imortalizado por um tocante relato de cordel da época (10). Esta apetecível enseada seria alvo, ao longo dos próximos séculos, das atenções e de uma atividade comercial regular e estabelecida por parte de portugueses, holandeses, ingleses, austríacos, franceses e boers. Esta foi, essencialmente, uma história de piratas, embora envolvesse companhias de alvará régio, tratados, notas diplomáticas e concessões monopolistas. Só em 1782-84, os portugueses fundaram aí um assentamento permanente, sob a forma de um presídio, com um reduto em estacaria (logo devorado por um incêndio), dotado com uma pequena guarnição (11). Ficou sujeito, porém, ao assédio de zulus, suazis, angunes, e, sobretudo, do enorme potentado colonial inglês, que manteve uma disputa armada muito acesa sobre toda esta zona, até bem dentro da década de 1870.

 

Mais a Norte, Inhambane era um entreposto comercial fundado pelos suaílis, que contou com uma presença portuguesa intermitente desde o século XVI. Aí se construiu uma pequena feitoria fortificada em 1546, mas a ocupação definitiva deu-se só no século XVIII. A construção do Forte de Nossa Senhora da Conceição data de 1763. Instalou-se lá uma importante comunidade comercial de origem indiana. O mesmo sucedeu na ilha de Moçambique, que resistiu a um fortíssimo assédio armado dos holandeses em 1607-8. Pelo final do século XVIII, os ricos homens indianos constituíam, juntamente com as famílias afro-portuguesas - os muzungos - a classe dominante na colónia, explorando as crescentes fendas abertas no sistema de monopólio imposto pela capitania, onde uma nobreza intolerante e de uma cupidez sem freio se ia sucedendo, em concessões régias de três anos.

 

A tentativa de colonização portuguesa – a começar pelo vale do Zambeze, então conhecido como Rios de Cuama - fez-se, a partir do século XVII, por intermédio de alguns aventureiros, senhores de hordas de escravos armados (os achicunda), com os quais se assenhoreavam de grandes extensões territoriais. Ficaram famosos nomes como Diogo Simões Madeira, Lourenço de Mattos (Maponda), Sisnando Bayão (Massuampaca), António Lobo da Silva (Nhema) e Manoel Paes de Pinha. A institucionalização destes potentados e sua integração ao serviço do poder soberano de Lisboa fez-se por meio dos Prazos da Coroa, uma figura jurídica já costumeira na expansão portuguesa, mas que nestas paragens adquiriu, na prática, caraterísticas muito originais.

 

O Prazo era uma instituição de recorte tipicamente feudal que consistia numa concessão régia de terras, devidamente delimitadas, em regime enfitêutico, por três gerações, com um conjunto de prerrogativas políticas, tributárias e jurisdicionais. O senhor do Prazo ficava por sua vez obrigado a garantir à coroa e à capitania um conjunto de serviços de guia, navegação e também militares. Visto do lado africano, porém, o Prazo era encarado como sendo nada mais que uma chefatura tradicional (12). Política e juridicamente tinha um carácter sincrético, o que era além do mais adequado ao facto de que a maioria dos seus detentores eram muzungos ou afro-indianos, dependendo por vezes de alianças com os poderes autóctones tradicionais. Um Prazo abrangia terras de cultivo (por vezes de grande extensão), aldeias tributáveis, colonos livres e servis, artífices, mineiros e comerciantes. Cultivava-se o trigo e o arroz, produzindo-se ferro e tecidos de algodão. Um senhor ou uma dona de prazo tinha também tipicamente, junto a si, uma vasta corte de clientes, dependentes e escravos (13). Como produto desta cultura zambeziana, com influência da colonização de iniciativa portuguesa, formaram-se novas identidades étnicas africanas, como os Sena, em torno da vila homónima, os Nhungué, à volta de Tete, e os Chuabos, nos arredores de Quelimane.

 

As diversas tentativas de colonização com casais portugueses fracassaram. A alternativa foi o recurso a casais canarins de Goa. Mulheres portuguesas europeias, residentes nestas partes do mundo, foi coisa que se viu só muito ocasionalmente, até pleno século XIX. Todavia, foram enviadas de Portugal numerosas órfãs internas, para aí “tomarem estado”. Seriam dotadas com um Prazo, desde que contraíssem matrimónio com um português. Com a passagem das gerações, esta preferência dada ao senhorio no feminino, em conjugação com a matrilinearidade tradicional dos povos tonga, foi ganhando uma expressão pessoal cada vez mais negra. Nos séculos XVII e XVIII, a típica “Dona” na Zambézia era uma mulher de traços e costumes distintamente africanos, de porte altivo, ostentando nomes como Dona Ignez Pessoa de Almeida Castellbranco ou Dona Francisca Josefa de Moura e Menezes. Abaixo das Donas, havia ainda as sinharas e as nhanhas. Este regime tendencialmente matriarcal, todavia, em nada adoçava os costumes políticos vigentes nestes latifúndios belicosos, que se mantiveram sempre de grande arbítrio e brutalidade.

 

Os Prazos da Coroa eram tipicamente sedeados em aldeamentos fortificados por cercas de matéria vegetal, denominados aringas. Numa grande parte, estas estacas espetadas na terra criavam raíz, acabando por formar uma muralha natural. Para além de um certo número de colonos rendeiros, a população de um Prazo era constituída essencialmente de gente escravizada, de estatuto variável mas não livre. Em parte, adaptava-se assim um estatuto de servidão já pré-existente na sociedade autóctone, sob a forma forçada ou voluntária (a chamada “venda de corpo”). O maioral de todos os escravos de uma unidade era designado por “mucazambo grande”, assistido por um “bazo”. Os diversos agrupamentos funcionais de escravos eram denominados como “ensacas”. Havia ensacas para o trabalho nos campos, para o artesanato, para o tratamento dos coqueiros, para o serviço doméstico. Mulheres escravizadas faziam o pão, cozinhavam, lavavam a roupa. As ensacas mais prestigiantes – dedicadas à caça, ao policiamento e à guerra - conferiam aos seus membros a prerrogativa de porte de armas e, por vezes, o direito de escravizar outros. Eram os “chicunda” (plural: “achicunda”). Em toda a sociedade colonial havia entre sete a vinte escravos por cada pessoa livre. Os senhores de Prazo – Muzungos ou Donas - deslocavam-se, ostensiva e langorosamente, em liteiras de pano abertas, denominadas machilas. Os machileiros eram também escravos relativamente considerados.

 

Em 1752, a colónia portuguesa de Moçambique deixou de depender do Vice-Reinado da Índia, passando à tutela direta de Lisboa (14). Os indianos foram e continuaram a ser uma componente central na formação da nação moçambicana. Já os havia nestas costas antes da chegada dos portugueses. Eram provenientes do então sultanato de Gujarate, sobretudo do porto de Cambaia. A partir do século XVI, começaram a afluir, primeiro ao vale do Zambeze, depois mais disseminadamente, pequenos comerciantes, também gujaratis, mas oriundos da possessão portuguesa de Diu. Viriam a constituir uma vasta rede económica (os “cantineiros”) estruturante do espaço protonacional moçambicano, malgrado todas as incompreensões e ressentimentos de que viriam a ser alvo (com alguma justificação, dado que repatriavam para as suas terras de origem a maior parte dos lucros acumulados em ouro e prata). Eram os “baneanes”. Estabeleceram também algumas casas comerciais e prestamistas de média e grande dimensão. Os goeses marcaram também desde cedo presença no clero, no funcionalismo, no exército e na atividade privada, inclusive como senhores de Prazos da Coroa. Durante séculos sucessivos, a presença mais visível da soberania portuguesa nestas paragens teve rosto indiano. Os portugueses distintamente europeus eram conhecidos como “reinós”. Há ainda uma outra marca asiática a assinalar, mais tardia e de bem menor expressão. Na segunda metade do século XIX começaram a ser importados artesãos chineses para as obras públicas, a exemplo do que faziam outras potências coloniais, que acabariam por se fixar sobretudo na Beira e Lourenço Marques.

 

Na viragem do século XVII para o século XVIII, uma grande ofensiva árabe omanita veio revigorar a presença muçulmana nos centros costeiros suaílis, arrebatando alguns deles à soberania portuguesa. Contudo, durante os três primeiros quartéis do século XVIII, foram boas e cooperantes as relações entre os portugueses e as grandes autoridades de expressão islâmica da costa norte – o sultanato de Angoche e os xeicados de Sancul, Quitangonha e Sengage. A questão pendente era então a dos assaltos que certos grandes chefes macuas – os reinos Mori-Muno e Maurussa, entre outros - insistiam em manter às caravanas ajauas que desciam pelo seu território até à costa, transportando marfim. Por outro lado, davam abrigo a escravos fugitivos, o que indispunha sobremaneira os portugueses. Durante décadas, sucederam-se as expedições luso-suaílis contra os macuas rebeldes, num ambiente em começavam a proliferar as armas de fogo. Sem alianças fortes, os portugueses não podiam progredir neste território inóspito. No início do século XIX, formou-se o reino Namarral nas terras firmes situadas defronte à ilha de Moçambique, aparentemente a partir de refugiados lomué vindos dos montes Namuli.

 

A entrada da costa oriental africana na rota europeia do tráfico de escravos deu-se por meados do século XVIII. Este tráfico já se fazia antes dos portugueses, de forma acessória. Na Arábia e no Golfo Pérsico eram procurados como criados, soldados ou marinheiros. Na era colonial, fez-se algum tráfico para a Índia e daí para Portugal e o Brasil. A partir desta data, far-se-á sistematicamente, como uma empresa especializada, dotada de uma marinha que a ela se dedicava em exclusividade, para alimentar grandes exércitos laborais no exterior longínquo. Os primeiros demandantes foram as plantações francesas das ilhas do Índico, sendo depois as remessas alargadas para as Antilhas, o Brasil e os E. U. A.. Os entrepostos principais eram as ilhas de Moçambique e do Ibo, Angoche, Inhambane e, em especial, o porto de Quelimane (15).

 

O tráfico esclavagista permitiu a primeiro surto significativo de acumulação capitalista e a criação, nestas terras, de uma burguesia endinheirada, de raiz luso-indiana, cosmopolita, ilustrada e até praticante de rituais maçónicos. Tão lucrativo era este comércio que os suaílis quiseram empreendê-lo também por sua conta, distanciando-se dos portugueses. As razias dos caçadores de escravos e também as invasões angunes fizeram com que os macondes abandonassem as regiões costeiras de Cabo Delgado, refugiando-se nos planaltos interiores. De início, o negócio fazia-se de forma aberta e oficial, sendo taxado, envolvendo armadores privados, governadores e oficiais públicos. Mesmo depois de proibido, continuou a fazer-se de forma ostensiva durante muito tempo. O processo da independência de Brasil, na década de 1820, foi seguido com muita atenção e interesse, sendo estabelecidas relações comerciais e políticas intensas com o Rio de Janeiro. O trato negreiro era, naturalmente, o primeiro ponto da agenda.

 

A colónia e as próprias chefaturas bantas dispunham dos seus escravos e cativos, mas não eram estes, por norma, que eram objeto de exportação. Para esse efeito, eram adquiridos ou raptados à mão armada os denominados “caporros”, destinados especificamente à mercantilização. Alguns eram elementos ostracizados nas suas comunidades de origem, condenados por tribunais costumeiros. Eram todos conduzidos a grandes distâncias, em fila, apeados, de mãos atadas, enlaçados ou acorrentados pelo pescoço. Sujeitos à marcação a ferro pelo seu captor e também pelo seu feliz adquirente (ou com o R da Fazenda Real), eram, finalmente, embarcados nos porões dos navios para o seu destino final. As viagens faziam-se em condições extremas, com uma taxa de mortalidade terrível. No destino, os moribundos, não encontrando comprador, eram, por vezes, adquiridos por pequenos comerciantes, como escravatura de refugo. Depois de tratados e alimentados em suas casas, eram revendidos com uma bela margem de lucro. A prática do bem podia assim garantir a aquisição de um bom pecúlio. Mas a mortandade dos escravizados começava ainda antes do próprio embarque, nos armazéns portuários, sendo os corpos atirados ao mar, acabando por vir juncar as praias pela manhã.

 

Os escravos, por vezes, rebelavam-se coletivamente e escapavam aos seus captores. Constituíam, então, bandos de salteadores ou fundavam comunidades que podemos considerar autênticos quilombos. Há casos bem referenciados destes últimos na costa defronte à ilha de Moçambique – a aringa de Ampapa –, na margem sul do Zambeze e nas cercanias de Inhambane. Os escravos fugitivos, por vezes, acolhiam-se nos Prazos da Coroa. Aí se misturavam com os colonos ou passavam a integrar a respetiva guarnição, como achicunda. Uma bem conhecida organização política autónoma de escravos, que perdurou por décadas, na segunda metade do século XIX, foi a chamada República Militar de Maganja da Costa, para norte de Quelimane. Neste caso, porém, não eram escravos fugitivos, mas achicunda de um senhor falecido, que estabeleceram, nos termos do prazo, um poder autónomo colegial (16).

 

As grandes secas e pragas de gafanhotos de 1794-1802 e de 1817-31 provocaram a fome, êxodo populacional e a desarticulação de todas as estruturas socio-políticas do continente. Os prazos arruinaram-se, capitanias e feiras do interior foram abandonadas. As grandes chefias carangas e maraves foram sensivelmente enfraquecidas. O caos que se lhes seguiu foi propício ao banditismo e ao recrudescimento do tráfico esclavagista, que começou a atingir e depauperar os domínios coloniais, agravando a crise agrícola. Seguiram-se as invasões das hostes guerreiras dos angunes, que irromperam a partir do sul, por meados dos anos 1820, afugentadas pelas grandes campanhas conquistadoras do rei zulu Chaka. Foi o período de grandes convulsões e derivas populacionais em toda a região da África Austral que ficou denominado como Mfecane.

 

Os angunes invadiram praticamente todo o atual território moçambicano, estabelecendo diversos Estados (Mpezeni, Maseko, Mbelwa), com base nas suas linhagens militares, na cultura do gado e na tributação das populações submetidas. O produto político mais acabado e consolidado destas invasões seria o império de Gaza, sedeado junto ao vale do Limpopo. Foi fundado pelo guerreiro Soshangane, que ao assumir realeza mudou o seu nome para Manicusse. Pelo seu auge, no início dos anos 1850, Gaza dominava, com diversos níveis de intensidade, praticamente toda a extensão entre o Zambeze e a baía do Maputo, incluindo partes dos atuais Transval e Zimbabué. À morte de Manicusse, em 1858, seguiu-se uma terrível guerra civil de sucessão, que durou quatro anos, causando enorme devastação. Por fim, emergiu vitorioso Muzila, que transferiu a sede do seu debilitado império para os montes Chimanimani, no interior paralelo a Sofala. Muitos homens jovens a sul do rio Save ganharam desde esta época o hábito de emigrar para a região do Natal, de início para as plantações de cana-do-açúcar. Regressavam depois com armas, dinheiro e novas ideias, transformando os hábitos locais (17). A dissolução das entidades políticas resultantes das invasões angunes deixou, como resquício, alguns grupos étnico-linguísticos espalhados um pouco por todo o território hoje moçambicano, como os ngoni, no extremo norte, os vandau em Manica e Sofala ou os tsuas, os rongas e os changana, a sul.

 

Os Prazos do Zambeze transformaram-se em zonas de influência de várias chefias que ostentavam nomes portugueses (Caetano Pereira, da Cruz, Alves da Silva, Vaz dos Anjos, Ferrão) mas que se davam guerra entre si e, por vezes, ao governo português (18), dedicando-se à pilhagem, tráfico negreiro e comércio de marfim. Eram “Estados secundários” de fidelidade muito duvidosa aos projetos coloniais portugueses. Até que, de entre eles, por finais da década de 1850, começou a emergir o império do leal goês capitão-mor Manuel António de Sousa (também conhecido como “Gouveia”), com sede na Gorongosa. Das guerras da Zambézia resultou a submissão temporária do sultanato de Angoche, do aventureiro e empreendedor Mussa Quanto. Este, porém, regressaria mais tarde, após muitos episódios rocambolescos, para fundar um grande empório suaíli. À data da sua morte, em 1877, comandava um exército de 30.000 homens e controlava toda o litoral entre Moginqual e Maganja da Costa. Desde a década de 1840, toda a costa moçambicana era policiada pelas esquadras inglesas encarregadas de reprimir o tráfico de escravos. É animado desse mesmo espírito que, em 1857-9, o popular missionário calvinista escocês David Livingstone explora, num navio a vapor, o Zambeze, o Shire e o lago Niassa, espalhando a boa nova vitoriana da ciência, da compaixão cristã e, naturalmente, do comércio dito livre. A missão escocesa acabaria por retirar-se, deixando, porém, na região, a semente de futuros conflitos entre as coroas britânica e portuguesa.

 

O liberalismo era a ideologia oficial em Portugal desde a revolução de 1820, logo replicada por um golpe militar em Moçambique, a 25 de junho de 1821. Em 1853 foi abolida a centralização das formalidades aduaneiras da província na ilha de Moçambique. Os Prazos da Coroa foram oficialmente abolidos, nada menos que por duas vezes, em 1832 e em 1854. Na realidade tratou-se de um processo demorado, que só pelo quartel final do século começou a ter expressão económica efetiva, com a transição para um regime de plantação, mineração e de transformação industrial de recorte nitidamente capitalista. Essa transição não deixou de ser marcada por algumas convulsões sociais (19). A escravatura teve também uma longa agonia. Os grandes traficantes esclavagistas moçambicanos foram, aliás, apoiantes da primeira hora da causa liberal. Um decreto do então Visconde de Sá da Bandeira, de 10 de dezembro de 1836, proíbe o trafico de escravos nas colónias portuguesas a sul do Equador. Esta determinação foi letra morta em Moçambique por muitas décadas mais, torneada por variados subterfúgios, com a cumplicidade e participação ativa de toda a classe dirigente da colónia. A situação continuou a evoluir muito lentamente mesmo após a própria escravidão ter sido legalmente abolida, em todas as possessões ultramarinas portuguesas, em 1869. Nos finais de oitocentos o tráfico fazia-se já de forma clandestina, sob intensa perseguição militar, acabando de todo já bem dentro do século XX (20). À volta de um milhão de escravos foram expatriados a partir do atual território moçambicano, ao longo de um pouco mais de cento e cinquenta anos.

 

No último quartel do século XIX assistiu-se a um grande acréscimo e diversificação da atividade económica de Moçambique, fruto das políticas liberais do governo português de Fontes Pereira de Melo (ministro Andrade Corvo) e de um grande afluxo de imigração indiana, agora, sobretudo, de fé muçulmana e proveniente da Índia britânica. As exportações moçambicanas – que incluíam agora produção agrícola dos camponeses – chegavam a Lisboa, mas também a Zanzibar, Bombaim, Londres e Marselha (beneficiando aqui da abertura do canal do Suez). Movimentavam-se couros, oleaginosas, urzela e borracha. A chamada da expedição de Obras Públicas de 1877 promoveu medidas de fomento económico e cultural de grande alcance, em especial em Lourenço Marques. Fundaram-se as primeiras companhias capitalistas de exploração agrícola, com capitais internacionais. Uma das pioneiras dedicou-se ao cultivo do ópio e gerou um grande movimento de revolta no Massingir, em 1884. Esta insurreição negra, englobada num bem mais amplo movimento de agitação social, já foi interpretada como um fenómeno de transição entre o senhorio esclavagista dos velhos Prazos da Coroa e o nascente capitalismo de plantações para o livre mercado (21).

 

Por outro lado, foi nestas décadas finais do século XIX que, fruto de sucessivas disputas e compromissos entre Portugal e a Grã-Bretanha (mas também a Alemanha e a república boer do Transval), se começaram a traçar as fronteiras definitivas do que viria a ser a nação moçambicana. Primeiro foi a questão da baía de Maputo/Delagoa, resolvida em 1875 a favor de Portugal pela arbitragem do presidente francês Mac-Mahon. A demarcação na região central foi bem mais contenciosa, agora já no âmbito da corrida à ocupação colonial de África lançada pela conferência de Berlim de 1884-1885. O critério para o reconhecimento da soberania no continente negro fixado por esta conferência internacional desvalorizava o fator histórico em favor da ocupação efetiva do terreno, o que criava dificuldades especiais a um país pequeno e destituído como era Portugal.

 

Em 1875 foi fundada a Sociedade de Geografia de Lisboa, com o propósito de promover a exploração e a sujeição do interior africano. Financiadas por subscrição pública, realizaram-se viagens científicas por Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, Augusto Cardoso, Serpa Pinto, António Maria Cardoso e Vítor Cordon, mapeando o território, celebrando tratados com chefes africanos e procurando disseminar “estações civilizadoras” portuguesas. O propósito nacional, expresso no denominado Mapa Côr-de-Rosa, era unir Angola e Moçambique, com criação de uma continuidade da soberania lusitana da costa atlântica à índica. Isto chocava frontalmente com os planos britânicos de sujeitar África num eixo sul-norte indo da Cidade do Cabo à foz do Nilo, com ligação ferroviária. Por fim, nenhum destes projetos foi concluído

 

Na prossecução dos seus intentos, em janeiro de 1890, uma expedição militar portuguesa progredia a partir do Bié, enquanto outra, junto ao lago Niassa, arreava bandeiras britânicas ostentadas pelos Macololo, um povo catequizado pelos seguidores de Livingstone. O primeiro-ministro britânico, Lord Salisbury, numa nota diplomática crispada, intimou Portugal a retirar de todas as posições tomadas entre Angola e Moçambique, sob pena de corte de relações, com ameaça velada de ação militar, com possível bloqueio do porto de Lisboa. Foi o episódio conhecido como o Ultimato Britânico de 11 de janeiro de 1890. Portugal cedeu, o que provocou uma grande comoção nacional de dignidade patriótica ofendida, que derrubou o governo e acabaria por selar o fim da monarquia da casa de Bragança, alguns anos depois.

 

Na sequência imediata do ultimatum, destacamentos armados da British South African Company, de Cecil Rhodes, invadiram as terras de Manica. Aí capturaram Manuel António de Sousa e o explorador e empresário Joaquim Paiva de Andrada, que foram conduzidos sob prisão para a Cidade do Cabo. Era evidente a sua intenção de conquistar o novíssimo porto da Beira, na foz do rio Pungué. Portugal procurou atabalhoadamente dar uma resposta militar, com duas expedições diferentes. Finalmente, a 11 de maio de 1891, ocorreu um confronto, em Macequece, dos proto-rodesianos com uma coluna portuguesa capitaneada por Alfredo Caldas Xavier. O recontro parece não ter corrido nada bem para a parte portuguesa, mas a coroa britânica pressionou os seus súbditos a retirar. Finalmente, o tratado luso-britânico de 28 de maio de 1891 pôs fim à disputa. Os ingleses ficaram com as terras altas do Shire e Portugal pôde conservar o Zambeze até ao Zumbo e os planaltos de Manica e Sofala (22). Com isto ficaram praticamente fechadas as fronteiras atuais do Estado moçambicano.

 

Impunha-se agora a construção de uma moderna administração colonial, o que não constituía tarefa fácil em tempo de crise financeira aguda em Lisboa e com escassos recursos humanos disponíveis no local para o efeito. Entretanto, as chancelarias de Londres e Berlim conspiravam abertamente para partilhar os despojos coloniais portugueses. O plano geral e uma boa parte da sua direcção de execução coube ao positivista António Enes, primeiro como secretário de Estado para a Marinha e Colónias e depois como comissário-régio em Moçambique (23). A ocupação territorial efetiva ficou a cargo de um escol militar animado do espírito regenerador pós-ultimato, conhecido como a “geração de 95” ou “os centuriões”, no qual avultavam nomes como Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Eduardo Costa, Aires de Ornelas, Alfredo Freire de Andrade e João de Azevedo Coutinho. A política de Enes e dos centuriões centrava-se na conquista metódica, na administração branca, na importação de capitais estrangeiros, enfim, na tributação universal e no trabalho forçado para o nativo. Era uma política de modernização desapiedada e profundamente racista, avessa à miscigenação e descrente na capacidade de colonização desenvolvimentista do povo português. Era, por assim dizer, uma antítese do lusotropicalismo.

 

Bem representativa desta política foi a criação da Companhia de Moçambique, em fevereiro de 1891, com capitais da Alemanha, Reino Unido e África do Sul. Sedeada na Beira, esta corporação majestática era concessionária das terras das atuais províncias de Manica e Sofala, onde tinha poderes tributários e da administração pública muito amplos. Era um projeto acarinhado há algum tempo por Paiva de Andrada, que foi um dos seus primeiros administradores, na sequência da sua libertação pelos sul-africanos, ainda nesse mesmo ano. Libertado simultaneamente, Manuel António de Sousa tentou de imediato reapossar-se dos seus domínios, mas foi então derrotado em batalha e assassinado pelas hostes de Hanga, soberano rebelde do Barué. Este reino manteve-se um centro de atividades contra os portugueses e contra a Companhia de Moçambique até ser submetido, em 1902, por meio de uma metódica campanha militar conduzida por João de Azevedo Coutinho, com um exército esmagadoramente africano (24). A submissão dos moçambicanos foi, em grande parte, obras dos próprios moçambicanos. Hanga partiu pelo seu próprio pé para o exílio na África britânica. O Barué teria ainda um último assomo de rebelião, por ocasião da Primeira Grande Guerra.

 

O desafio mais ingente à esforçada afirmação da soberania de Lisboa nestas terras, num contexto de constante assédio britânico, era o trono angune de Gaza, onde pontificava, desde 1884, um neto de Soshangane, de nome Ngungunyane, conhecido dos portugueses como Gungunhana (25). O seu reinado foi caraterizado por uma grande arbitrariedade tributária e pela sanguinária agressão contra os chopes. A sede do império foi transferida novamente para a zona do estuário do Limpopo, em 1889. Aí residia permanentemente um representante da coroa portuguesa. Embora se reconhecesse, formal e simbolicamente, como súbito de Portugal, a soberania gazense personificada por Gungunhana apresentava, ainda assim, amplas margens para potencial contencioso, que não deixaram de ser exploradas pela potência rival, em especial o sempre atento Cecil Rhodes. A ambiguidade do comportamento político e diplomático do imperador justificava plenamente esses receios. A autoridade colonial queria também dispor diretamente da mão-de-obra nativa, para sua exportação.

 

Gaza podia fazer alinhar enormes massas de homens armados (impis), temíveis num contexto de lutas entre povos bantas. Todavia, o seu equipamento e doutrina militar eram completamente desadequados para fazer face às metralhadoras, canhões e cavalaria dos portugueses, que souberam manter um quadrado firme nas batalhas de Marracuene, Magul e Coolela. Desmoralizado, Gungunhana recolheu à capital ancestral de Chaimite, onde foi aprisionado por Mouzinho da Albuquerque, em dezembro de 1895, num movimento algo temerário. A guerra prosseguiria ainda, por mais dois anos, contra o irredutível comandante Maguiguana. Gungunhana, depois de espancado nos embarques, foi exibido nas ruas de Lisboa, em carruagem aberta, para gáudio da multidão. Fixou, por fim, o seu exílio nos Açores, com sete das suas esposas e algum séquito. A mão-de-obra sujeita à soberania portuguesa, a sul do rido Save, foi posta à disposição da África do Sul, agora para as minas do Transval. Era zona demarcada de recrutamento da

 

A pacificação e consolidação da soberania colonial no extremo norte moçambicano, entre os rios Rovuma e Lúrio, foi entregue à responsabilidade de uma outra sociedade majestática, participadas por capitais internacionais, a Companhia do Niassa. Esta sociedade teve uma vida atribulada e nunca conheceu grande viabilidade. A conquista efetiva do território acabaria por ser assumida pelo exército português, em sucessivas campanhas, de sortes diversas, contra os ajauas (chefe Mataka) e os macondes, concluídas já bem dentro do século XX. Nas terras situadas defronte à ilha de Moçambique, deu-se a chamada campanha dos Namarrais, em que os portugueses defrontaram, com grandes dificuldades, algumas chefaturas macuas rebeldes aliadas a diversos potentados suaílis, como Angoche, Sancul e Quitangonha. Mouzinho de Albuquerque notabilizou-se aí, sobretudo, por uma retirada bastante apertada, em outubro de 1896. A guerra podia ser bem mais complicada contra povos sem Estado, dotados de armas de fogo, numa paisagem densamente arborizada. As hostilidades mantiveram-se até 1910, granjeando uma áurea patriótica lendária, porventura imerecida, a figuras como os xeiques Farelay e Ibrahimo, que eram, na verdade, déspotas esclavagistas.

 

A Grã-Bretanha e a Alemanha assinaram em 1898 um pacto (reafirmado depois em 1913) para dividir entre si as colónias portuguesas em África, em caso de sobrevirem graves dificuldades financeiras em Lisboa. Nesse mesmo ano, a capital administrativa da colónia portuguesa da costa oriental africana transferiu-se para o extremo sul do território. Instalou-se no antigo presídio crismado com o nome do explorador quinhentista Lourenço Marques, que estivera a ponto de ser assolado por invasões suazis e chopes, poucas décadas antes. Toda esta área fora objeto de disputa internacional. Assegurada a soberania portuguesa, o porto ganhou altíssima importância estratégica com a construção da linha ferroviária até Pretoria, que garantia o abastecimento e o escoamento do Transval.

 

Em Lourenço Marques se criou, na viragem para o século XX, uma comunidade crioula com significativa expressão cultural, de que se destacam os nomes dos irmãos João e José Albasini, fundadores do Grémio Africano de Lourenço Marques e diretores dos jornais semanários O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974), dirigidos a um público negro ou mestiço e parcialmente escritos em língua ronga (26). Foi nas páginas deste último periódico que se revelou, como contista, Rui de Noronha (1909-1943), por muitos considerado o fundador da moderna literatura moçambicana. Eram os primeiros “assimilados”, uma categoria que se criaria depois para designar os africanos ou mestiços que tinham meios de vida, se vestiam e expressavam ao modo ocidental. Passaram a ser contemplados com um estatuto legal de não-indígena. A política de assimilação praticada pela autoridade colonial era restrita, incompleta e reversível, tendo passado por diversas justificações doutrinais (27). Ainda assim, os piores receios dos seus criadores acabaram por se confirmar. Foi no seio destes meios assimilados que se formularam as primeiras aspirações emancipatórias e os primórdios de uma consciência nacional. Nos alvores do século XX, a questão teve sobretudo a ver com o agravo sentido pelas elites crioulas (tradicionais depositárias de uma parcela importante da autoridade local) perante a sua marginalização e humilhação face ao afluxo de uma vaga de colonização europeia.

 

A administração das áreas controladas diretamente pelo Alto Comissariado de Lourenço Marques – excluída a concessionada às companhias majestáticas - financiava-se, sobretudo, com os rendimentos provenientes do acordo firmado com a República Sul Africana para a cedência de mão de obra (magaíças) para as minas do Rand. Segundo este acordo, que vigorou até 1978, nos seus traços essenciais, o pagamento de uma grande parte dos salários dos mineiros moçambicanos era diferido, sendo entregue em ouro à autoridade colonial portuguesa (depois, por um breve período, à própria república moçambicana). Esta autoridade podia então vender o precioso metal no mercado internacional, com grande lucro, pagando depois em moeda portuguesa aos mineiros, entretanto regressados, a parte em falta dos seus salários.

 

Na zona da Zambézia e Tete, a nova ordem colonial demorou a consolidar-se, passando-se por um período caótico, com a revolta dos barué e de muitos caciques muzungos. Os prazos, reformados, vigorariam aí até 1930, sendo, porém, uma grande parte deles arrendados em bloco por sociedades como a poderosa Sena Sugar (britânica) ou a parasitária Companhia da Zambézia (que se dedicava essencialmente a cobrar impostos e angariar mão-de-obra para exportação). A viabilidade geral da empresa colonial dependia da implementação de sistemas de grandes plantações e da realização de obras públicas, sobretudo estradas, portos e caminhos de ferro. Esta infraestruturação, os cultivos, transportes, policiamento e o próprio aparato administrativo colonial sustentaram-se, essencialmente, por meio da imposição aos indígenas do trabalho forçado (chibalo) e de impostos arbitrários. Destes últimos, havia-os que tomavam por base tributária a família - o chamado mussoco - ou a habitação - o imposto de palhota. Os africanos foram coagidos, à mão armada, pelos sipais, a entrar na economia monetária do colonizador. Foi o clássico processo de separação dos produtores dos seus meios de produção. Em troca, foram envenenados com vinhos de péssima qualidade, produzidos na metrópole em especial para este mercado cativo (28). Cecil Rhodes tirou meia desforra das suas ambições de soberania frustradas com a construção do caminho-de-ferro até à Beira, que proporcionou um parapeito sobre o Índico à colónia britânica do que seria depois a Rodésia do Sul.

 

A economia de plantações começou a florescer na viragem do século, com produtos de exportação como o açúcar, o chá, a borracha selvagem, o amendoim e a copra. Eram importados de Portugal vinhos e têxteis. Os camponeses africanos eram extorquidos, por diversas vias, ao arbítrio dos regulamentos e da polícia, do governo, das companhias ou dos prazos. A fuga às exacções coloniais e o aliciamento dos agentes engajadores de mão-de-obra causaram fortes correntes migratórias, para as minas sul-africanas mas também para as Rodésias, o Alto Shire (Niassalândia) e até a distante ilha de S. Tomé. Alguns grupos populacionais retiraram-se para as montanhas, em exílio interno. Ocorreram fenómenos de banditismo social e também verdadeiras rebeliões anticoloniais que, após a derrota, se prolongaram por lutas de guerrilhas. Em todas estas movimentações de dissidência, particularmente no vale do Zambeze, foi importante o papel profético desempenhado pelos medium espiritistas (svikiro). Apesar de uma ou outra história capitalista de sucesso, o desenvolvimento económico foi escasso. Tanto o Estado colonial como as companhias viviam sobretudo do tributo e das comissões por exportação de mão-de-obra. Outras receitas coloniais importantes provinham da venda de serviços portuários e ferroviários à África britânica. O aparelho administrativo era rudimentar e com uma forte presença militar.

 

As desventuras militares portuguesas em Moçambique conheceram novos episódios, por ocasião da Primeira Grande Guerra. O regime republicano de Lisboa enviou para esta colónia um corpo expedicionário de mais de 20.000 homens, em má ordem, mal treinado e equipado, que teve a infelicidade de encontrar pela frente um génio militar, profundo conhecedor de África, o general Paul von Lettow-Vorbeck. As colunas imperiais germânicas, vindas do Tanganica (com 3.000 alemães e 11.000 africanos), internaram-se em profundidade, até chegar aos arredores de Quelimane. Mantiveram-se invictas durante quatro anos, fugindo ardilosamente aos britânicos, muito mais numerosos, enquanto destroçavam e marginalizavam completamente os portugueses na contenda (29). A fraca figura feita pelo senhor colonial encorajou a rebeldia africana, nomeadamente no Barué, que conheceu um novo levantamento, de março de 1917 a outubro de 1918, prolongando-se de forma larvar por mais dois anos. Esta rebelião, pela sua amplitude e grau de organização, pelo amplo leque de grupos étnicos envolvidos (que implicou uma complexa diplomacia), pela participação de mestiços e por certos toques de modernidade, marcou um salto qualitativo em direção à formação de uma consciência nacional, agora em ato. Foi também no rescaldo da Primeira Grande Guerra que o colonizador garantiu, por fim, o domínio sobre os orgulhosos macondes do planalto da Mueda.

 

Apesar da sua participação no conflito do lado vencedor, Portugal salvou-se à justa de ver as suas colónias entregues (juntamente com as alemãs) ao regime de mandatos da Sociedade das Nações. O então muito influente militar e estadista sul-africano Jan Smuts fez intensa campanha nesse sentido. Afonso Costa passou calafrios na chefia da delegação portuguesa à Conferência de Paz de Versalhes, pois que o seu país – que ele tanto pugnara por engrandecer e prestigiar por meio da participação nos grandes campos da matança mundial - era então generalizadamente considerado o “sick man” da África Austral. As suas práticas coloniais eram objeto de lástima e escândalo internacional, naturalmente acicatados pela cobiça. Por fim, Portugal pôde manter as suas colónias. Quanto à de Moçambique, foi ainda acrescida do minúsculo triângulo de Quionga, a sul da foz do Rovuma, que já era objeto de contencioso com os alemães há algumas décadas. Foi este o único prémio territorial concedido ao seu esforço bélico. Foram assim completadas as fronteiras atuais do Estado moçambicano. Segundo o censo de 1928, os habitantes brancos portugueses da colónia somavam 14.162, quase todos residentes em Lourenço Marques e Beira. Dois anos depois, os africanos bantas foram estimados em 3.960.261, dos quais 2.063.282 eram mulheres. As migrações, sem dúvida, eram a fonte deste desequilíbrio.

 

Os objectivos de política africana do Estado Novo do ditador fascista António Oliveira Salazar – plasmados no Acto Colonial de 1930 - passavam pela afirmação da soberania portuguesa, o governo centralizado e uma política económica integrada, rigidamente subordinada às necessidades de desenvolvimento da metrópole (30). As despesas públicas das colónias deviam ser integralmente autofinanciadas e a atividade económica local ser condicionada, com vista a gerar fluxos regulares benéficos à balança comercial portuguesa. Em termos de pensamento económico e antropológico, Salazer entendia-se perfeitamente com Enes e os “centuriões”. Politicamente, era muito mais centralizador. Em particular no que diz respeito a Moçambique, era claro o propósito de pôr cobro à depredação feudal praticada pelos Prazos e pelas companhias avalizadas. Assim o expressou inequivocamente a Carta Orgânica do Império Colonial Português de 1933. Entidades privadas deixariam de ter atributos de soberania e prerrogativas exclusivas da administração pública. Manteve-se, porém, e reforçou-se o trabalho forçado para o Estado e o acordo com a África do Sul sobre a cedência de magaíças. Convenientemente, em 1929-30 tiveram o seu termo os Prazos subsistentes e o contrato da (falida) Companhia do Niassa. A Companhia de Moçambique terminou a sua concessão em 1939. Agraciada com a Grã-Cruz da Ordem do Império Colonial, transformar-se-ia, três anos depois, em sociedade anónima de direito comercial comum.

 

O Alto Comissário, figura criada pela liberal I República (1910-1926), é substituído por um Governador-Geral, com poderes severamente restringidos e sem autonomia financeira. Criou-se uma administração profissionalizada e burocrática. O governador-geral presidia, em Lourenço Marques, ao Conselho de Governo, abaixo do qual havia, a nível local, as províncias, os distritos, os concelhos (ou circunscrições) e, por fim, o famigerado cargo de chefe de posto, que era para a maioria dos camponeses a face visível da autoridade do homem branco, usando com frequência da faculdade de ordenar castigos corporais, com chicote ou palmatória (31). O chefe de posto geralmente cooptava as autoridades tradicionais aldeãs (régulos) como seus auxiliares, podendo substituí-las se elas não lhe merecessem confiança. A sua autoridade era imposta à mão armada por agentes locais, os sipaios, diretamente descendentes dos achicunda.

 

A par de novas culturas de exportação (sisal, caju, tabaco), começou a produzir-se algodão e arroz para a metrópole. A partir dos anos 1930, o chibalo nas plantações começou, paulatinamente, a dar lugar a uma política mais hábil de contratações, por um lado, e à imposição aos camponeses de culturas obrigatórias (para venda, a baixos preços, de produtos destinados à metrópole), tudo por efeito da pressão fiscal e do condicionamento da mobilidade da população por um sistema de livretes. A política de cultura obrigatória do algodão, no norte e centro do país, implicou a procura de uma alternativa alimentar para garantir a subsistência dos camponeses. Esta acabou por fixar-se na mandioca, mas não sem que ocorressem grandes surtos de fome nos anos 1940 (32). Manteve-se, entretanto, o trabalho forçado nas obras públicas. Quando tinha natureza correcional (normalmente por pequenos gestos de rebeldia e inconformismo) era executado sob grilhetas. No Norte, tentou-se uma política de aldeamentos que gerou grande resistência.

 

Nos anos 1950 começou a encorajar-se fortemente a imigração portuguesa, nomeadamente com a criação de colonatos, como o do Vale do Limpopo. Construíram-se novas infra-estruturas rodoviárias, portuárias, ferroviárias e aeronáuticas, nacionalizando-se amigavelmente aquelas que eram propriedade do capital estrangeiro. Deu-se, então, alguma industrialização e substituição de importações, com a transformação de produtos alimentares e a produção de têxteis, fertilizantes e aço. O grande capitalista António Champalimaud entrou em força no setor dos cimentos. Exploraram-se as madeiras. As cidades foram dotadas de alguns equipamentos públicos, inclusive de arquitetura modernista. Fizeram-se barragens e obras de irrigação. Na viragem para os anos 1960 regista-se um pico na emigração de colonos portugueses, que foram ocupar mesmo profissões de escassa qualificação, a que os locais viram vedado o acesso. Encorajou-se também o afluxo de investimento externo (Anglo-American, Nestlé, Firestone, British Leyland, Lonrho, etc.), de modo a interessar as potências ocidentais na sorte do colonialismo português, que estava em vias ou começando mesmo a ser contestado militarmente. Necessidades diplomáticas obrigaram assim a reverter a política salazarista de nacionalização da economia colonial moçambicana. Regista-se um crescimento sustentado do produto, mas o centro polarizador do processo de acumulação capitalista local transferiu-se da metrópole europeia para as potências regionais, em particular a República Sul-Africana. A debilidade do colonizador inviabilizava a opção neocolonialista a que franceses e britânicos recorreram quanto às suas possessões africanas.

 

A nova vaga de colonização branca, provocou, uma vez mais, marginalização e ressentimento entre “assimilados” negros e mestiços, para além dos asiáticos. Por outro lado, o surto de desenvolvimento capitalista criou um certo dinamismo social que, a prazo, se revelaria fatal para o domínio colonial português. Muitos jovens saíram dos meios rurais tradicionais para procurar emprego nas grandes e médias cidades. Estas camadas peri-urbanas pobres, destribalizadas e afetas à vida citadina, em contato com emigrantes retornados ou de passagem e com os assimilados descontentes, criaram o caldo de cultura formador da consciência nacional moçambicana e da revolta emancipadora (33).

 

A rede de cuidados de saúde era praticamente inexistente. Mas o maior fracasso (em grande medida intencional) do colonialismo português registou-se, sem dúvida, no sistema de ensino. Aos “indígenas” foi inicialmente destinado apenas um ensino “rudimentar”, entregue aos cuidados da Igreja Católica. Só após 1964 foi assumida integralmente pelo Estado a educação pré-primária e primária. Por essa altura, só um quinto dos alunos do ensino primário oficial eram negros, o que representava uma percentagem ínfima das crianças nativas. Eram-lhes ensinados os feitos históricos, os rios, as montanhas e as linhas férreas de… Portugal Continental. Outro abismo verificava-se na transição para o ensino secundário. Até 1955 nenhum negro moçambicano completara ainda os sete anos do ensino liceal oficial. O sistema educativo não criava quaisquer oportunidades de progressão social para os autóctones bantos (34). Mesmo a escassa camada citadina dos mestiços e assimilados com educação formal não dispunha de quaisquer esperanças de ascensão social, sendo objecto de um sistema informal, mas sistemático, de discriminação, além da constante e acintosa humilhação, num ambiente doentia e obsessivamente racializado.

 

A população branca lusófona passou os 100.000 no início dos anos 1960 e seria de cerca de 200.000 às vésperas da independência, em grande parte urbana, metade residente em Lourenço Marques e outros 20% na Beira. Por esta altura, os indianos seriam à volta de 20.000, os chineses 2.500, os mestiços 35.000 e os negros assimilados uns 10.000 no máximo. A população negra indígena cresceu lentamente ao longo do século XX, mas teria seguramente já dobrado a marca dos nove milhões em 1975. Em 1980 atingiria mesmo os doze milhões. No censo de 1980 foram identificados dezasseis grupos étnicos e vinte e quatro línguas em todo o território moçambicano. Estas etnias distinguem-se não apenas linguisticamente mas diferem também nos seus sistemas de crenças, usos e hábitos alimentares, organização social e política, produção e distribuição dos bens, organização familiar e direito sucessório, educação dos filhos, ritos de socialização, etc..

 

Os anos da luta

 

Desde os alvores do século XX que se fez sentir uma resistência nacional moçambicana de carácter moderno entre as suas camadas urbanizadas e cultas. Estudantes das colónias portuguesas residentes em Lisboa estavam organizados e participaram nos movimentos pan-africanistas da altura, nomeadamente os inspirados por William E. B. Du Bois e Marcus Garvey. Em Moçambique, os anos 1920 assistiram ao aparecimento de algumas associações recreativas e culturais que desenvolviam uma velada atividade política que se tornou suspeita às autoridades coloniais. Foi o caso da Associação Africana e do Instituto Negrófilo, que seria depois forçado pelo Governo fascista a denominar-se Centro Associativo dos Negros de Moçambique. A Associação era ligada às elites mestiças, enquanto o Centro Associativo era frequentado pelos negros assimilados. Ambos defendiam, porém, uma política emancipatória e anti-racista – na base da reinvindicação de igualdade de direitos - embora a intimidação e a infiltração pelas autoridades as fizessem posteriormente moderar o tom até se tornarem praticamente inócuos.

 

Pouco após o final da II Guerra Mundial, formou-se o Movimento dos Jovens Democratas Moçambicanos (MJDM), com alguma ligação ao PCP e ao MUD-Juvenil. Foi fruto de uma época em que o regime fascista português procurava alardear uma adesão superficial ao liberalismo triunfante. Em 1949, Eduardo Mondlane fundou o Núcleo de Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM) que viria a ser um alfobre de militantes nacionalistas (Joaquim Chissano, Josina Muthemba, Armando Guebuza, Filipe, Albino e Lina Magaia, Mariano Matsinhe, Ângelo Chichava, Graça Simbine, Mário Machungo, Pascoal Mocumbi, etc.). Nessa altura já a independência para as colónias africanas estava claramente na ordem do dia, na sequência do 5.º Congresso Pan-Africano reunido em Manchester após o final da II Grande Guerra (35). Nos anos 1950-60, começou a afirmar-se uma brilhante geração de intelectuais e artistas que incluía José Craveirinha, Rui Knopfli, Noémia de Sousa, Orlando Mendes, Fonseca Amaral, Fernando Couto, Rui Nogar, Ricardo Rangel, Malangatana Valente, Marcelino dos Santos, Ruy Guerra, António Quadros, Fernando Ganhão, Jorge Rebelo, Sérgio Vieira e Luís Bernardo Honwana, entre muitos outros (36). Despontava uma nova sensibilidade estética e cultural – integrante daquilo que noutras latitudes se chamou o movimento da negritude - com a qual se ia alicerçando uma identidade nacional vibrante e orgulhosa de suas raízes. O NESAM sobreviveu legalmente até aos anos 1960 e chegou a publicar uma revista denominada Alvor. A sua rede de contactos passaria praticamente na íntegra para o movimento nacionalista clandestino.

 

A partir da década de 1920, uma maior densidade na rede repressiva dificultava enormemente o aparecimento de surtos ativos de rebelião no mundo rural. Havia, sobretudo, uma resistência de atrito, manha, evasão e pequena sabotagem. No entanto, ocorreram, ainda assim, levantamentos camponeses em Erati, Moquincal, Angoche e Mambone, a sul da Beira. O ativismo laboral, esse sim, teve uma quota parte de grande relevo na pré-história do nacionalismo moçambicano. A União Africana dos Trabalhadores de Lourenço Marques foi fundada em 1911, reunindo empregados assalariados a tempo inteiro, de porteiros a funcionários administrativos. As greves espontâneas nos portos, ferrovias e plantações não eram acontecimentos de todo incomuns durante a I República. Os empregados domésticos tinham redes clandestinas por meio das quais formulavam reivindicações e organizavam boicotes. Em 1933 rebentou a chamada greve Quinhenta, no porto de Lourenço Marques, contra violentos cortes salariais. Em 1947, uma nova série de greves nas docas da capital espalhou-se para plantações vizinhas, culminando, no ano seguinte, numa insurreição abortada. A repressão foi feroz, com centenas de detenções e deportação de alguns participantes para S. Tomé. Em março de 1956, nova greve dos estivadores de Lourenço Marques termina com quarenta e nove mortes. Em 1963 rebentaram greves nos portos de Lourenço Marques, Beira e Nacala, agora já com alguma coordenação clandestina, mas que se saldaram, novamente, pelo fracasso e por uma violenta repressão.

 

Igrejas cristãs independentes (de rito sionista ou etíope), trazidas por imigrantes retornados da África do Sul ou da Rodésia, espalharam uma mensagem de redenção e destruição apocalíptica da opressão racial, sobretudo nas províncias do sul. Outro afluente do nacionalismo moçambicano foi o movimento cooperativo algodoeiro dos planaltos de Cabo Delgado, que nasceu em 1957 sob influência das doutrinas de Julius Nyerere. Formou-se a Sociedade Africana Algodoeira Voluntária de Moçambique (SAAVM) que obteve uma licença e conseguiu prosperar durante três anos, sob a direcção de Lázaro Nkavandame e João Namimba. Todavia, logo começou a atrair a desconfiança e a gerar medidas repressivas por parte das autoridades, que culminariam com a cilada e massacre de 16 de junho de 1960 na Mueda, onde seguramente centenas de camponeses foram ceifadas pela fuzilaria da tropa portuguesa e dos sipais. O movimento ainda sobreviveu algum tempo, mas os seus dirigentes, perseguidos, acabaram por se exilar. Entre eles estava Alberto Chipande que, segundo a história oficial, comandaria a primeira operação da guerra de libertação.

 

As três principais organizações moçambicanas declaradamente independentistas acabaram por nascer todas no estrangeiro, na viragem entre as décadas de 1950 e 1960. Se, por um lado, isso reflete as dificuldades postas internamente pela repressão, foi também um fruto da diáspora dos trabalhadores moçambicanos que, de há muito, vinham procurando nos países vizinhos melhores condições de vida que as que lhe eram oferecidas pelo “colonialismo de lojista” português. Os destinos de emigração eram, naturalmente, diversos, consoante as áreas geográficas e as etnias de origem dos movimentos. A Rodésia do Sul era procurada sobretudo pelos shonas e nyanjas, sendo que estes últimos transitavam também bastante pelo Malawi, para onde se dirigia igualmente uma corrente regular de lomués O Tanganica era procurado sobretudo pelos macondes, que têm povos aparentados residentes do outro lado do rio Rovuma. A África do Sul era procurada sobretudo pelos povos a Sul do Save, sendo que em particular a área a sul do paralelo 22.º funcionou desde 1913 como reserva de recrutamento mineiro da Witwatersrand Native Labour Association (WNLA).

 

A União Nacional Africana de Moçambique (conhecida por MANU, do seu acrónimo em inglês inspirado pela TANU do Tanganica e pela KANU do Quénia) foi fundada em 1959 no Quénia e consolidada depois no Tanganica. Agrupava vários grupos associativos de trabalhadores nas plantações de sisal originários do Norte da província de Cabo Delgado, entre os quais estava a União Maconde. Esta organização seria depois fortalecida pela chegada dos refugiados da Mueda. A União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO) foi fundada em outubro de 1960 em Bulawayo, agrupando trabalhadores originários sobretudo da região centro. O seu presidente era o reverendo Uria Simango, um pastor protestante da região da Beira, filho do grande proto-nacionalista Kamba Simango, fundador do Grémio Negrófilo de Manica e Sofala. Uria em 1953 passara já pelas prisões colonialistas (devido a um movimento de desobediência cívica liderado por seu pai), tendo depois animado várias associações de assistência mútua. Dos quadros da organização faziam ainda parte Adelino Gwambe, Silvério Nungu e Samuel Dlhakama. O poeta exilado Marcelino dos Santos aderiu brevemente, tendo sido o seu representante na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), cujo primeiro congresso se realizou em Casablanca, em abril de 1961. A União Africana de Moçambique Independente (UNAMI) foi fundada em 1961 no Malawi, por exilados da zona de Tete, nunca tendo sido uma organização muito expressiva (37).

 

Após a independência do Tanganica, em dezembro de 1961, as organizações nacionalistas moçambicanas deslocaram-se todas para lá e o presidente Nyerere começou a fazer pressão no sentido da sua unificação, no que era secundado pelo prestigiado presidente do Gana, Kwame Nkrumah, e pela própria CONCP. Simango presidiu ao comité de fusão, que levaria à criação da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), em 25 de junho de 1962. Todavia, na conferência realizado em Dar-es-Salam, de 23 a 28 de setembro seguinte (que funcionou como congresso constituinte da nova “frente”), foi eleito como presidente Eduardo Mondlane. Este era já então professor universitário nos E. U. A. (Syracuse) e funcionário da Organização das Nações Unidas, onde desenvolvia investigação sobre os territórios não-autónomos. Nessa qualidade, conhecia bem e acompanhava de perto a luta nacionalista africana, em particular a das organizações moçambicanas, com as quais tinha contato e por cuja unificação se batia. Simango ficaria com a vice-presidência e Marcelino dos Santos com as relações internacionais (que acumularia com o cargo de secretário-geral da CONCP). Foi criado em Dar-es-Salam uma fundação de âmbito social, denominada Instituto Moçambicano, que geria uma escola secundária para formação de quadros nacionalistas (38). Foram também enviados muitos estudantes com bolsas para o estrangeiro. Em 1963, duzentos e cinquenta quadros foram enviados para receber treino militar na Argélia, União Soviética e República Popular da China.

 

A base de unidade da nova frente era muito ténue, limitando-se a um genérico propósito anti-colonialista, não havendo acordo quanto à estratégia, formas de luta ou mesmo à definição do inimigo. Todavia, logo no congresso constituinte emergiu uma facção dominante, em torno de uma plataforma política consistente que se manteria unida no essencial ao longo dos anos da luta armada, da independência e da revolução. Uma miríade de pequenos grupos minoritários afastou-se, alguns dos quais viriam em 1965 a reunir-se em Lusaka sob a sigla de COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique). Esta organização teve, ocasionalmente, alguma atividade armada de relevo, mas notabilizou-se, sobretudo, por ter capturado a franquia dos favores diplomáticos chineses, na época do tardo-maoísmo. A FRELIMO, mantendo sempre uma rigorosa equidistância no cisma sino-soviético, nunca perdeu contato com a República Popular da China. Todavia, nas duas visitas que aí fez, em 1968 e 1971, Samora Machel nunca logrou ser recebido por Mao Zedong.

 

Logo após o seu congresso fundador, a FRELIMO começou a fazer trabalho político clandestino nas províncias do extremo Norte – Niassa e Cabo Delgado - lançando as bases organizativas para a insurreição armada que seria declarada a 25 de novembro de 1964:

 

“Moçambicanos e Moçambicanas:

Operários e camponeses, trabalhadores das plantações, das serrações e das concessões, trabalhadores das minas, dos caminhos de ferro, dos portos e das fábricas, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres e jovens patriotas,

Em vosso nome,

A FREL/MO proclama hoje, solenemente, a insurreição geral armada do povo moçambicano, contra o colonialismo português, para a conquista da independência total e completa de Moçambique.

O nosso combate não cessará senão com a liquidação total e completa do colonialismo Português.

Moçambicanos e Moçambicanas:

A revolução moçambicana, obra do povo moçambicano, insere-se no quadro geral da luta dos povos de África e do mundo pela vitória dos ideais da liberdade e da justiça.

A luta armada que nós hoje anunciámos, tendo por objectivo a destruição do colonialismo português e do imperialismo, permitir-nos-á instaurar no nosso País uma nova ordem social popular. Assim, o povo moçambicano dará grande contribuição histórica para a libertação total do nosso continente, para o progresso da África e do mundo.” (39)

 

O começo da luta armada foi marcado por ataques a postos de autoridade colonial, no Chai (Cabo Delgado) e no Cobué (Niassa). A FRELIMO construiu, na orla sul do Tanganica, quatro instalações que permitiam armazenamento e instrução militar, em Songea, Mitomani, Tunduru e, sobretudo, Nachingwea, onde estiveram estacionados instrutores chineses. As suas lições incluíam o essencial da doutrina político-militar de Mao Zedong, com base nas suas Obras Escolhidas. Havia campos disponíveis para treino mais a norte, em Kongwa e Bagamoyo. O movimento teria, por então, pouco mais de duas centenas de homens mal armados. Todavia, contrariando as expetativas dos colonialistas portugueses, a guerra foi instalada quase imediatamente no interior moçambicano, com a construção de uma série de postos armados nas duas províncias setentrionais. As aldeias foram deslocadas para ficar sob a proteção dos guerrilheiros, que participavam nos cultivos e no essencial da vida coletiva. Foi batida uma intrincada rede de trilhos, percorrida por uma infantaria esforçada e frugal, capaz de calcorrear, em ambos os sentidos, centenas de quilómetros, praticamente sem qualquer logística, para além da ajuda popular local. O início da guerra de libertação levou a uma radicalização política da facção maioritária da FRELIMO, ao mesmo tempo que as experiências económicas e político-administrativas nas áreas libertadas agudizaram as contradições latentes no movimento, que viriam a atingir uma tensão insuportável.

 

1964 foi um ano marcado também pelo crescente desentendimento entre a potência colonial britânica e os seus súbditos da Rodésia do Sul, que, entretanto, adotaram para os seus domínios a designação abreviada de Rodésia. A anterior Rodésia do Norte acedera já à independência, sob domínio negro e com a nova designação de Zâmbia. A questão da majority rule, ao menos a prazo, era o pomo da discórdia e a condição prévia posta por Londres para discutir a independência. Para a casta colonial racista de Salisbury isso era absolutamente impensável. Em novembro de 1965, depois de obter garantias pessoais de “suporte máximo” por parte do ditador fascista português, António de Oliveira Salazar, a Rodésia proclamou unilateralmente a sua independência. Assim se inaugurou uma intrincada questão que se discutiria nos areópagos internacionais durante os próximos quinze anos, enquanto, no interior do país, se desenrolava a luta armada pela emancipação da maioria negra. No imediato, para impor o cumprimento de um embargo aos produtos petrolíferos à sua colónia rebelde, um esquadrão da Marinha britânica estacionou ameaçadoramente em frente ao porto da Beira (40).

 

Logo nos primeiros anos da insurreição, a FRELIMO ganhou ascendente nas duas províncias nortenhas, sobretudo no interior. Os colonos brancos, as autoridades administrativas e os comerciantes de origem indiana começaram a abandonar estas áreas, nos finais de 1965. Na província do Niassa, escassamente habitada, houve ainda movimentações populacionais e um abandono generalizado dos cultivos, que criaram um surto de fome. Esses problemas seriam depois suplantados pela nova organização produtiva criada pela insurreição nacionalista (41). Durante cerca de um ano, viveu-se uma espécie de impasse militar, com cada uma das forças em presença a viver como que em mundos paralelos. O mundo rural, por um lado; o mundo das grandes povoações e das estradas, por outro. O primeiro comandante militar da FRELIMO foi o jovem Filipe Magaia, que seria assassinado por um agente infiltrado, em outubro de 1966. Como novo chefe do Departamento de Segurança e Defesa foi então investido Samora Moisés Machel, um azougado enfermeiro que, três anos antes, se evadira ao cerco policial para se juntar, no exterior, à luta nacionalista, tendo feito formação militar na Argélia.

 

Samora nasceu em 1933, em Chilembene, na província de Gaza, no seio de uma família tsonga onde se cultivava a memória da resistência à ocupação portuguesa. O seu avô paterno havia sido um oficial gravemente ferido em campanha às ordens de Maguiguane. Conseguiu fazer a educação elementar numa missão católica, com os encargos à custa da família. Como a todos os jovens negros de então, em Moçambique, para prosseguir estudos secundários, era-lhe facultado apenas a hipótese do seminário. Optou por um curso de enfermagem para indígenas, que concluiu, sendo depois admitido no Hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques. Arranjou mulher e, em rápida sequência, foi pai de quatro filhos. Lia avidamente e frequentava círculos nacionalistas clandestinos. Ficou definitivamente marcado pela polícia política, a partir do momento em que participou nos encontros públicos legais mantidos por Eduardo Mondlane, na capital moçambicana, enquanto funcionário da ONU em visita, em 1961 (42).

 

A partir de setembro de 1967, a FRELIMO sentiu-se suficientemente confiante para atacar com artilharia numerosos aquartelamentos militares da potência ocupante. Chegou mesmo a causar o abandono de alguns deles. Colocou minas em estradas e caminhos (a província do Niassa ficaria conhecida, entre a tropa portuguesa, como o “Estado de Minas Gerais” (43) ), montando emboscadas às colunas militares inimigas em trânsito. Alastrou a sua área de atuação, embrenhando-se mais para o sul. Além dos cerca de 8.000 efetivos militares do movimento, havia também as milícias populares encarregadas da defesa local. A partir de janeiro de 1967, o Destacamento Feminino prestou serviço, com brilho, em ambos estes corpos (44). Em março de 1968, depois de várias tentativas, foi aberta definitivamente uma terceira frente, na província de Tete, a norte do Zambeze. Não se tratava mais um levantamento armado. Era uma autêntica guerra subversiva. A potência colonial dobrou o número de tropas destacadas no terreno – para 70.000 homens – e buscou aconselhamento doutrinal adequado entre os seus parceiros da NATO.

 

A economia rural das zonas libertadas foi organizada num sistema de aldeias rebeldes fortificadas (reavivando-se nelas algumas cooperativas), sendo a recolha e o comércio dos excedentes entregues à responsabilidade de uma hierarquia de comando centralizado, sempre tendo como primeira prioridade o esforço militar. Alguns responsáveis partidários começaram, porém, a acumular lucro privado, gerando ressentimento. Eram os denominados “chairmen”, uma espécie de proto-burguesia autóctone. No que respeita a denominações inglesas havia também a “FRELIMO Youth League”, reunindo os jovens mais ambiciosos e carreiristas. Com a participação do Instituto Moçambicano, implantou-se uma grande rede de educação elementar, assistência social, consciencialização política e de prestação de cuidados primários de saúde. Em 1970 foi instalado um grande centro médico – o Hospital Dr. Américo Boavida – na cidade tanzaniana costeira de Mtwara, ao sul, junto ao Rovuma.

 

Para a grande maioria dos camponeses, esta vida nova de rebeldia foi uma experiência incomparavelmente mais feliz do que o sistema colonialista dos cultivos forçados, fome e castigos corporais. Todavia, alguns régulos e seus acólitos ressentiram-se da perda da sua autoridade tradicional, perante as assembleias aldeãs e o sistema educativo e sanitário enquadrado por militantes nacionalistas. Com os avanços e recuos da luta armada, alguns deles foram sendo desmascarados como espiões e colaboracionistas. Embora se tenha exercido muita paciência e persuasão sobre eles, a um certo ponto começaram os julgamentos populares e as execuções. A certa altura, por necessidades de segurança, foi também criado um sistema de passes para a circulação da população.

 

O racismo, o tribalismo/regionalismo, o capitalismo negro, o tradicionalismo nativista, o elitismo e o sexismo eram tendências emergentes no movimento nacionalista. A fação que se viria a tornar dominante na FRELIMO esforçou-se sempre por combater estas tendências, sem concessões, o que viria a deixar marcas profundas na cultura política do partido. O padre católico Mateus Gwenjere, o “notável” maconde Lázaro Nkavandame e o próprio vice-presidente Uria Simango eram, por então, os mais destacados expoentes de algumas destas tendências nefastas. O primeiro orquestrou uma revolta entre os alunos da escola secundária do Instituto Moçambicano e entre estudantes colocados em universidades estrangeiras, incitando-os contra o reconhecimento de quaisquer obrigações para com o movimento nacionalista. A escola secundária de Dar-es-Salam chegou a ter de fechar, reabrindo mais tarde na cidade de Bagamoyo. Urdiram-se intrigas contra Janet Mondlane e alguns dirigentes da FRELIMO não integralmente bantas. Uma sede da FRELIMO foi saqueada e deram-se tumultos graves na capital tanzaniana entre a comunidade moçambicana, com agressões mortais. Nkavandame era um típico “grande homem” africano, sempre em busca de ganho e autoridade pessoais. Os seus esquemas e lucros abusivos começaram a gerar revolta e desprestígio para o partido, entre as populações. A posição de Simango foi sempre ambígua quanto a estes desvios, num quadro mental geral em que sobressaía a aversão ao socialismo.

 

Estas tendências deletérias para a coerência e unidade do movimento nacionalista seriam isoladas e derrotadas no II Congresso da FRELIMO, realizado numa área libertada da província do Niassa, em julho de 1968. Estiveram presentes cento e setenta delegados de todo o país e vários observadores internacionais, entre os quais Basil Davidson. Triunfou a linha revolucionária de Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos e Joaquim Chissano. Inconformado, Nkavandame começou a desenvolver trabalho abertamente cissionista, com base num projeto nacionalista especificamente maconde, centrado em Cabo Delgado. Pior do que isso, conspirou no assassinato do subchefe do Departamento Militar, Paulo Samuel Kankhomba. Em janeiro de 1969, o comité central da FRELIMO destituiu-o de todas as suas responsabilidades oficiais.

 

Conspirou, novamente, estando seguramente envolvido no assassinato do presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, com uma encomenda armadilhada, ocorrido a 3 de fevereiro de 1969 (45). Em todo o caso, pôs-se imediatamente em fuga, entregando-se às autoridades portuguesas. A partir daí tornou-se um dócil instrumento de propaganda colonialista. Politicamente isolado, Uria Simango dirige então um ataque público ao comité central (46), sendo por isso suspenso do conselho da presidência. O youth leaguer Miguel Murrupa desertou e disponibilizou-se para colaborar com o colonialismo. Em maio de 1970, o comité central elege Samora Machel como o novo presidente da FRELIMO, com Marcelino dos Santos na vice-presidência. Destas lutas no interior da frente nacionalista saiu vencedor um núcleo dirigente de “intelectuais revolucionários” que, tendo embora sofrido posteriormente algumas inflexões políticas bastante acentuadas, se manteria sempre unido e com uma notável coesão.

 

A evolução ideológica da FRELIMO em direção ao marxismo operou-se ainda em vida de Eduardo Mondlane e com a plena participação deste (47). Resultou de um duplo processo, envolvendo componentes externas e internas que se reforçaram mutuamente. Por um lado, os apoios internacionais mais significativos e fiáveis vinham dos países que professavam a via socialista, por outro, as vicissitudes da vida interna nas zonas libertadas também foram conduzindo à adoção de soluções radicais e coletivistas. Algumas das marcas mais salientes e específicas da cultura política da FRELIMO foram o feminismo (48), o assembleísmo popular (49), o experimentalismo científico praticista (50), a multirracialidade (antirracismo), o cultivo da língua portuguesa como instrumento de unidade nacional, a probidade na gestão da coisa pública e o respeito pelos bens e pela integridade física das populações. O espírito de corpo, a abnegação e a responsabilização perante o coletivo, foram produtos longamente temperados na luta, que deixaram um rasto que perdurou. Esta geração de moçambicanos – negros, brancos, indianos e mestiços – permaneceu, no essencial, unida pelo projeto de construção nacional que jurou, entre si, olhos nos olhos, defender até ao fim, evitando dissídios e cisões mesmo quando as áleas da história impuseram a tragédia extrema, viragens dramáticas e, por fim, a desilusão com o socialismo. Do lado negativo, no ambiente da guerra de libertação, criou-se um certo pendor para o voluntarismo, o esquematismo moral ou ideológico, a sobrevalorização de rumores e intrigas e o abuso de soluções violentas e coativas.

 

Desalojados os seus adversários de todos os postos dirigentes na FRELIMO, nem por isso cessou a luta pela afirmação da linha política aprovada pelo II Congresso. Houve que vencer uma oposição tenaz por parte das elites tradicionais da sociedade banta, num processo de grande dilaceração social e cultural que viria a conduzir a resultados trágicos. Era como se os portadores deste novo projeto nacional moçambicano se revoltassem contra os descendentes diretos dos últimos resistentes à ocupação colonial, que os documentos da frente nacionalista sistematicamente caraterizam como tribalistas, feudalistas (?!), supersticiosos, etc. (51). Na verdade, logo no início da luta armada, houve uma tentativa de conciliação, sendo proposta a criação de um Conselho dos Velhos (Baraza la Wazee) como órgão superior do comité central da FRELIMO. As chefias tradicionais do Niassa – Mataca, M’tarica, Catur – pretendiam assim ter uma palavra a dizer nesta nova guerra contra o branco. A proposta foi prontamente rechaçada como antidemocrática (52). Tinha havido como que um corte epistemológico profundo entre estas duas elites, historicamente descompassadas. A aurora do “Homem Novo” despontava agora – de uma forma violenta e sem compromisso – num setor específico, bem doutrinado, do campo dos “assimilados” (53).

 

A FRELIMO mantinha atividade política clandestina em todo o país. Não havia, porém, condições para realizar ações em ambiente urbano. A repressão era terrível, com absoluta e irrestrita liberdade de matar. Na verdade, uma estratégia comum de autodefesa do prisioneiro político, na África colonial portuguesa, era começar logo a falar muito, confessando coisas extraordinárias, exagerando enormemente a sua importância pessoal no movimento subversivo, para conseguir assim, pelo menos, despertar o interesse do captor e ganhar algum tempo extra de vida. Em Moçambique, ficaram célebres, pelas suas condições inumanas, a cadeia da Machava, nos arredores de Lourenço Marques, e o infame presídio do Forte de Ibo (para os macondes). Nestes estabelecimentos, os corpos dos presos estavam sempre em contato uns com os outros e nunca houve camas, nem mesas, nem pratos, nem latrinas. As torturas e os espancamentos eram contínuos. No Ibo, os mortos – por asfixia, doença ou traumatismo - eram recolhidos diariamente (três ou quatro, nos períodos mais calmos), transportados por trator e depositados ao longo do exterior das muralhas, debaixo das pedras, para serem comidos pelas aves, causando protestos da população por causa dos maus cheiros (54). Como típico campo de concentração, a PIDE geria o presídio de Mabalene, numa região desértica 500 Km a norte de Lourenço Marques.

 

Na cidade de Lourenço Marques havia ainda as prisões de Sommerschield e Ponta Mahone, bastante utilizadas para presos políticos. A PIDE tinha também à sua disposição prisões em Nampula, Quelimane, Beira e Tete. Ficou célebre uma onda repressiva em 1964 que levou para a Machava - depois de passagem para interrogatório na Vila Algarve, sede da PIDE - os intelectuais Malangatana Valente, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana e José Craveirinha. Na comunidade branca, os Democratas de Moçambique, ligados à oposição democrática continental, protestavam pelos excessos repressivos mais agudos e prestavam assistência legal às vítimas. Quando a independência irrompeu subitamente na ordem do dia, muitos deles viriam a revelar-se independentistas e mesmo aderentes da FRELIMO, sendo difícil, por vezes, estabelecer desde quando sustentavam efetivamente essas opiniões (55).

 

Na frente militar, as autoridades coloniais, inspiradas na experiência da Malásia e do Vietname, procuraram responder à progressão da guerra subversiva com um plano de deslocações e realojamentos forçados de populações africanas, em “aldeamentos estratégicos”. Para o final da guerra, um milhão e meio de moçambicanos (cerca de 1/6 da população) residia nestes campos cercados a arame farpado, sujeitos à realização de cultivos forçados para o colonizador. Naturalmente, também no seu seio se fazia sentir a presença subversiva da FRELIMO.

 

O ditador fascista Oliveira Salazar foi afastado do poder em Lisboa, por incapacidade, em setembro de 1968. A nomeação para o cargo de primeiro-ministro coube a Marcelo Caetano, que não era homem de ideias fixas e dogmáticas quanto à questão colonial. Era, isso sim, um legalista, mestre da arte da renomeação e das reformas de fachada. Em abril de 1969, fez uma demorada visita a Moçambique, durante a qual ficou muito impressionado com o ambiente de festividade popular com que foi recebido. Tomou-o, erradamente, por adesão ao domínio colonial português. E deixou-se convencer por projetos militares que prometiam uma erradicação total da subversão.

 

Na viragem para a década de 1970, chegou a Moçambique, para comandar as forças armadas coloniais, o iluminado general fascista Kaúlza de Arriaga. Entre os seus projetos queridos estava uma grande operação de contrainsurgência designada “Nó Górdio” (56). Pretendeu-se destruir, por meio do cerco e assalto frontal por forças espaciais (para-quedistas e comandos), as supostas três bases nucleares da FRELIMO em Cabo Delgado, designadas por Gungunhana, Moçambique e Nampula. Esta operação seria depois complementada com uma dispendiosa Operação Fronteira, que pretendia criar um cordão sanitário ao longo do Rio Rovuma, para impedir as infiltrações a partir da Tanzânia. A resposta do exército insurreto foi a esquiva generalizada (as referidas bases foram encontradas em estado de abandono), seguida por uma ousada e bem sucedida manobra de infiltração dos seus destacamentos e bases mais para sul, designadamente para a província de Tete. O comandante Sebastião Mabote esteve muito ativo nestas operações. Certo é que, mesmo em Cabo Delgado, entre os macondes, muito rapidamente se recompôs toda a rede de bases militares rebeldes, com pequenas deslocações. As operações militares insurgentes nunca se interromperam e sofreram mesmo um incremento. Em setembro de 1972, a FRELIMO atacou simultaneamente sete quartéis militares nas províncias do norte, abatendo no solo um número considerável de aviões e helicópteros na base da Mueda. No ano seguinte, é feito um ataque a Mocímboa da Praia com cerca de seiscentos efetivos e uma panóplia impressionante de artilharia.

 

A partir de agosto de 1970, a FRELIMO passou a atuar novamente na província de Tete, agora em força e em ambas as margens do Zambeze. Tudo precedido por um longo e paciente trabalho de diálogo com as populações, como sempre acontecia quando era aberta uma nova frente militar. Sob as ordens do comandante José Moiane, a FRELIMO em pouco tempo passou a movimentar aqui, com grande à vontade, enormes destacamentos armados, em plena luz do dia. Foram construídas bases militares na Zâmbia e garantidas facilidades de trânsito pelo Malawi. Estava diretamente sob ameaça o faraónico empreendimento multinacional da barragem de Cahora-Bassa. O regime rodesiano racista de Ian Smith sentiu-se também sob ameaça direta, pois que os guerrilheiros da Zimbabwe African National Liberation Army (ZANLA) começaram a infiltrar-se na sua pátria ocupada a partir desta zona. Um avião FIAT português e três rodesianos foram abatidos com mísseis terra-ar Strella, sobre esta província. O enfatuamento e a obstinação de Kaúlza custavam caro ao tesouro português, além de se revelarem uma desgraça de segurança para todo o Ocidente. Ele queria, para si, um comando operacional conjunto com Angola, englobando tendencialmente a Rodésia. Na prática, foram os sul-africanos – criadores do plano militar ALCORA, para defesa do domínio branco em toda a região - a forçar-lhe a mão e, por fim, a imporem ao governo português a sua substituição.

 

Havia um ponto, apenas, dos planos do “general do mapa cor-de-rosa”, que gozava de apoio generalizado entre os regimes minoritários brancos da África Austral: a africanização da guerra. Foram criados três “grupos especiais” (GE, GEP e GEPC) de tropas negras para combater a FRELIMO. Os GEP, que teoricamente seriam “para-quedistas”, notabilizaram-se sobretudo por se disfarçarem de guerrilheiros de FRELIMO para assim praticarem todo o tipo de ações provocatórias. Os GEPC, “pisteiros de combate”, eram uma formalização dos antigos guias. Todos estes GE ficaram instalados no Dondo, a 30 km da Beira. Parcialmente financiados e treinados por Jorge Jardim - agente secreto salazarista, diplomata oficioso, empresário (em parte por conta de António Champalimaud, Manuel Bulhosa e outros) e grande influente local - estavam, em larga medida, à sua disposição operacional. Urdia-se por ali, cada vez mais às claras, um projeto político à revelia de Lisboa. Foram ainda formadas nove companhias de comandos de recrutamento moçambicano, fortemente endoutrinadas no ódio tribalista, para além dos “flechas” ao serviço da PIDE/DGS.

 

O fracasso do “Nó Górdio”, agravado com o acolhimento caloroso de que a FRELIMO gozou, notoriamente, na província de Tete, mereceram uma resposta brutal dos comandos portugueses, assessorados e instruídos pela PIDE/DGS. Eram as chamadas operações de “reconhecimento ofensivo”, que se saldavam pela destruição integral de aldeias nativas, frequentemente dizimando os seus habitantes com requintes de crueldade obscenos. Foi pior a emenda que o soneto. A divulgação especial que tiveram, a nível internacional, os massacres de Chawola, Juwau e Wiriyamu (57), causaram uma enorme onda de repulsa internacional, acentuando-se dramaticamente o isolamento do regime colonial-fascista português. Isso foi visível, em especial, numa desastrosa viagem oficial de Marcelo Caetano a Londres, em julho de 1973. Houve muitos mais massacres deste tipo. Um deles, realizado em Mukumbura, com colaboração rodesiana, foi corajosamente denunciado do púlpito por dois padres católicos da diocese da Beira, o que lhes valeu uma prisão ignominiosa e julgamento por traição à pátria, a pretexto de um incidente fabricado envolvendo a presença de uma bandeira portuguesa dentro da sua igreja, no dia 1 de janeiro de 1972 (58). As missões religiosas – em especial Consolata, Combonianos, Jesuítas, Padres Brancos (expulsos já em 1971), Coração de Jesus, Instituto S. Francisco Xavier de Burgos, Capuchinhos de Trento, Congregação dos Sagrados Corações (Picpus), etc. - eram atentamente vigiadas e tratadas sistematicamente como suspeitas de conluio com a subversão (59).

 

Na frente diplomática e na comunicação social internacional, a FRELIMO averbava assinaláveis êxitos. Procurava garantir-se o apoio dos países socialistas, de ambos os lados do cisma sino-soviético, buscando simultaneamente abrir frechas no seio da NATO. Relações especiais foram cultivadas com os países nórdicos, a Holanda e a Itália, aqui em especial entre círculos comunistas e católicos. Foi por esta última via, aliás, que se conseguiu um triunfo espetacular, com a receção oferecida pelo papa Paulo VI a uma embaixada dos três movimentos armados de luta independentista na colónias africanas portugueses (Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos), a 1 de julho de 1970 (60).

 

Em julho de 1972, foi aberta oficialmente a frente de guerra da província de Manica e Sofala. No ano seguinte, a FRELIMO atuava já em toda a província até às margens do rio Save. A linha férrea Beira-Umtali foi sabotada e uma coluna militar emboscada na estrada paralela. A comunicação rodoviária com Lourenço Marques estava também em perigo. A zona de Cheringona, particularmente em redor de Inhaminga, registou uma forte implantação da FRELIMO e uma intensa atividade guerrilheira. Grupos de militares nacionalistas eram avistados a reconhecer objetivos em plena cidade da Beira, por vezes com a Kalashnikov a tiracolo. Um general espanhol foi morto ao descolar do Parque da Gorongosa no seu avião.

 

A entrada da guerra no teatro de Manica e Sofala, mudou completamente o seu caráter, tal como foi, aliás, previsto desde o início (61). A densidade da colonização aí existente e os grandes interesses económicos aí instalados, assim o impunham. Assistiu-se a uma enorme escalada na instabilidade da vida quotidiana, a um frémito paroxístico de terror e violência à queima-roupa. Foram realizados massacres em grande escala de populações civis, em espacial em torno de Inhaminga (62). A pretexto de condução ao trabalho ou de deslocação habitacional imposta para os aldeamentos, grupos de populares (na maioria homens ou rapazes), arrebanhados ao acaso, foram forçados a entrar em grandes camiões Berliet, fechados ou abertos, para depois serem mortos a tiro e enterrados em valas comuns. Estes episódios foram inúmeros, estendendo-se por vários meses, no ano de 1974, fazendo larguíssimas centenas de vítimas mortais (entre quinhentas a uns milhares). Estes massacres não foram meros crimes de guerra, embora ocorressem num ambiente geral marcado pela guerra. Foram algo de bem mais avançado na escala da infâmia. Eram resultado de uma política civil, bem ponderada, de gestão populacional, por assim dizer. Esquiçada, provavelmente, na PIDE/DGS, foi endossada e acionada por altos responsáveis políticos, administrativos e empresariais, cavalheiros de ar grave e decidido, sem dúvida. Esta política era encarada, enfim, como a verdadeira “solução para o problema do terrorismo”, prescindindo da tropa regular. Algumas destas pessoas estarão ainda vivas. Nenhuma foi, alguma vez, incomodada por causa destes assuntos. A execução destes massacres estava, muitas vezes, a cargo de voluntários civis (da muito oficial Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Moçambique - OPVDCM), no meio de um ambiente geral de histeria coletiva.

 

Em janeiro de 1974, um ataque a uma fazenda, perto de Manica, na altura atribuído à FRELIMO (mais verosimilmente obra dos GEP), resultou na morte da esposa do fazendeiro. A colónia branca de Vila Pery e da Beira entrou em pânico e fúria, manifestando-se ruidosamente contra as Forças Armadas portuguesas e a favor de uma solução política “à rodesiana”. Pior do que isso, começou a fazer patrulhas armadas e a provocar arruaças junto da população negra. E se na Beira se insultava desbragadamente as forças armadas, um pouco mais a norte, em Nampula, bandos incontrolados de colonos injuriaram e agrediram a murro padres católicos portugueses, do séquito do corajoso bispo D. Manuel Vieira Pinto, que foi expulso de Moçambique, sob detenção, mesmo nas vésperas do 25 de abril.

 

Em 1974, a FRELIMO tinha cerca de 10.000 guerrilheiros em atividade, com armas modernas, boa moral, doutrina, organização e comando, tendo realizado 293 acções em fevereiro, 358 em março e 443 em abril. Após a revolução portuguesa, o exército rebelde manteve a pressão e abriu ainda uma nova frente na província de Zambézia. Com um enorme número de efetivos fixados na proteção do empreendimento de Cahora Bassa e suas rotas de abastecimento, tendo perdido a liberdade de movimentos na cobertura aérea das suas operações, a situação do exército ocupante caminhava a passos largos para a insustentabilidade.

 

A transição

 

A partir de finais da década de 1960, a independência política da nação moçambicana era uma inevitabilidade sobre a qual já não havia ilusões da parte de nenhum observador lúcido. A busca de uma solução de transição gradual para o neocolonialismo foi iniciada e prosseguida através dos contatos que Jorge Jardim ia mantendo com as elites dirigentes das vizinhas repúblicas do Malawi e da Zâmbia. Jardim, aparentemente, trabalhou em paralelo com dois planos autonomistas distintos: um de ostensiva dominação branca, com alguns colaboracionistas negros; outro, de dominação negra, para o qual procurou a participação da FRELIMO (ou de alguma fração sua) e o apadrinhamento do presidente zambiano Kenneth Kaunda. A primeira via foi completamente bloqueada pela rigidez cadavérica da classe dirigente fascista em Lisboa. Quanto à segunda via, mesmo que alguma vez a tenha encarado seriamente (o que está inteiramente por provar), deixou também, por completo, de interessar à FRELIMO, a partir do momento em que a perspetiva real de um colapso militar iminente do colonialismo português abriu a hipótese de uma solução política revolucionária, que era a mais desejada.

 

Com o golpe militar de 25 de abril de 1974 e a revolução popular que se lhe seguiu, em Portugal, a equação política da questão colonial alterou-se radicalmente. O movimento dos capitães, que operara na clandestinidade contra o regime fascista e o prosseguimento das diversas guerras coloniais que este mantinha em África, dera lugar ao Movimento das Forças Armadas (MFA). Triunfante em Lisboa, o movimento estava também presente em Moçambique, onde montou uma organização de intervenção e vigilância sobre a administração e a hierarquia militar. O governador-geral foi mesmo preso e substituído. Ao longo do mês de maio, foram sendo libertados os presos políticos. Jorge Jardim tinha urdido preparativos para um golpe “autonomista”, mas o facto é que, antes da revolução, não se decidiu a isso, e, depois dela, nunca chegou a encontrar o tempo e o modo certos para o desferir, deixando que as suas forças se exaurissem em tentativas vãs, amadorísticas e descoordenadas (63). Recusando um cessar-fogo imediato e recolhendo dividendos da desmotivação combatente do exército colonial, bem como da indefinição política reinante em Lisboa e Lourenço Marques, a FRELIMO foi solidificando a sua posição no terreno e os seus trunfos negociais.

 

Em Lisboa, o presidente da República, general Spínola, desdobrava-se em conspirações e tentativas golpistas com o objectivo de retardar e sabotar o processo descolonizador. Uma espécie de federalismo pluricontinental era a solução de recurso favorecida pelos setores dominantes nas novas instituições executivas: Junta de Salvação Nacional e, depois, o I Governo Provisório. A burguesia portuguesa (fosse ela “democrática”) estava conformada com a perda da Guiné-Bissau, mas não com a de Moçambique e, muito menos, com a de Angola. A via processual para tentar conseguir uma solução política deste tipo passava pela pacificação civil e pela criação de condições de liberdade de organização política com vista à realização de um referendo sobre o destino final do território. Ou seja, pretendia fazer-se como se não tivesse havido, como se não estivesse ainda em curso uma guerra. O taciturno general Costa Gomes deslocou-se a Moçambique por uma segunda vez, nesse ano de 1974. A primeira fora antes da revolução, ainda como Chefe-de-Estado-Maior das Forças Armadas, para tentar aplacar a fúria dos colonos. Agora vinha pedir às forças armadas portuguesas um renovado esforço para “desarmar” a FRELIMO, com vista a permitir ao povo moçambicano uma escolha não coagida do seu destino...

 

Em Moçambique, as massas populares africanas nas cidades, sentindo os primeiros sopros da liberdade, começaram a dar largas ao seu apoio entusiástico à FRELIMO. A palavra de ordem desta era então: “Não se pergunta a um escravo se quer ser livre” (64). Entre a colónia branca a situação política era de grande fluidez e nervosismo. O domínio expressivo pertence aos sectores civis antifascistas com uma disposição benévola para com o movimento nacionalista, mas os sectores “federalistas” – que se adivinha serem claramente maioritários - estão ativos e revelam propósitos ameaçadores. Esporadicamente, verificam-se, por todo o país, atentados, motins, atos de banditismo e confrontos raciais. Grande parte dos “cantineiros” de áreas rurais refugiaram-se nas cidades. Entretanto, a FRELIMO mantém uma intensa pressão militar. O exército português retrai-se. Os oficiais democratas do MFA impacientam-se, fazendo pressão sobre Lisboa para que se apressem e simplifiquem as negociações políticas, sob pena de sobrevir um colapso ou uma desagregação, humilhantes para o prestígio das forças armadas portuguesas (65). Extinta a PIDE/DGS, esta transformou-se miraculosamente em serviço de informações militares. Ainda assim, o MFA-Moçambique procedeu, em junho, mediante a “operação zebra”, à prisão de alguns dos seus mais odiosos torcionários.

 

Os novos ventos de liberdade cívica trouxeram, entretanto, consigo uma explosão de siglas e movimentos políticos novos. Mostram-se ativos desertores da luta nacionalista assimilados pelo colonialismo como Nkavandame, Miguel Murrupa, Basílio Banda e Paulo Gumane (ex-COREMO); colaboracionistas de sempre como a “macua” Joana Simeão e o indiano Máximo Dias (que logo após o 25 de abril fundaram o Grupo Unido de Moçambique – GUMO); personalidades relativamente independentes como Uria Simango, Mateus Gwenjere ou Domingos Arouca; tribalistas, assimilados e descontentes variados. A maioria destes personagens e siglas anti-frelimistas seria, finalmente, conglomerada sob a denominação de Partido da Coligação Nacional (PCN). Na colónia branca, para além dos Democratas de Moçambique, aliados do MFA, surgiu uma série de organizações inspiradas pelas teses “federalistas” de Spínola, com destaque para a Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO). Na sombra, baseadas nas velhas milícias da defesa civil, surgiram organizações terroristas de colonos irredutíveis como a Acção Moçambicana Armada e os “Dragões da Morte”. Os Democratas, entretanto, a partir de junho de 1974, tomaram o controlo da generalidade dos órgãos de comunicação social, conferindo-lhe uma orientação pró-FRELIMO (66).

 

As negociações do governo português com a FRELIMO abriram em Lusaka, a 6 de junho de 1974, com um abraço de Mário Soares a Samora Machel. O momento, bem mediatizado, é de emoção. Mas não há acordo possível, nem sequer sobre o princípio da independência. A 1 de julho, a FRELIMO abre a prevista nova frente de guerra na província da Zambézia, sob o comando de Bonifácio Gruveta. A guerra, porém, tem agora caraterísticas muito diferentes. Os guerrilheiros deslocam-se de camião em ambiente de festa. Visitam a cidade de Tete, sob convite de residentes. Fazem comícios e sessões de esclarecimento. Há uma situação quase generalizada de cessar-fogo de facto, embora, ocasionalmente, continuem a verificar-se baixas de ambos os lados.

 

Após uma forte guinada à esquerda do processo político português, o general Spínola admitiu, por fim, publicamente, a 27 de julho, que os povos coloniais tinham, todos eles, direito a aceder imediatamente à independência. Com a tomada de posse do II Governo Provisório, presidido pelo coronel Vasco Gonçalves, passa a haver uma decisão política nacional, legalmente enquadrada, nesse sentido. Os encontros com a FRELIMO prosseguiriam em Dar es Salaam, no final desse mês, com uma maior discrição. Instalado em instâncias governamentais, o MFA passa, em essência, a tomar conta desta ocorrência, sob a condução do major Melo Antunes. O lado português continuava, porém, a considerar a posição da FRELIMO muito dura, quase triunfalista. É então que ocorre um episódio sumamente desagradável para os portugueses. O aquartelamento de Omar (Nametil), na fronteira norte, junto ao Rovuma, é abordado por um grande destacamento de tropas especiais da FRELIMO, bem armado e comandado. O encontro fez-se em tom amigável, mas o certo é que os guerrilheiros tomam o quartel e levam consigo toda a sua guarnição (cento e quarenta homens), desarmada e sob prisão. Posteriormente seriam exibidas gravações de alguns destes soldados, em postura muito pouco marcial. Foi uma demonstração para efeitos negociais, com uma pequena ponta de perfídia.

 

Chegou-se finalmente a um acordo entre o Estado português e a direcção nacionalista insurgente para o cessar-fogo e transferência de soberania para a FRELIMO, como único e legítimo representante do povo moçambicano. Seria assinado em Lusaka, no dia 7 de setembro de 1974. A independência foi aprazada para o dia 25 de junho de 1975, sendo o novo Estado moçambicano livre de escolher o regime político e social que achasse melhor servir os interesses do seu povo. Para assegurar a transição, sob a autoridade formal de um Alto-Comissário português, formar-se-ia de imediato um governo provisório composto por seis ministros da FRELIMO (que apontaria o primeiro-ministro) e três designados pelo governo português. Os assuntos militares seriam resolvidos por uma Comissão Militar Mista, de caráter paritário, que vigiaria o cumprimento do cessar-fogo.

 

O anúncio do acordo de Lusaka desencadeou, nesse mesmo dia 7 de setembro, uma rebelião armada dos “federalistas”, centrada na tomada dos estúdios de Lourenço Marques do Rádio Clube de Moçambique (RCM). Aí proclamaram um Movimento Moçambique Livre (MOLIMO), para o qual contribuíram com a libertação de oitenta agentes graduados da PIDE/DGS que se encontravam na cadeia da Machava. São ocupados os CTT, o aeroporto e barricadas as entradas para a cidade de cimento. Vandalizaram-se diversos edifícios afetos a organizações democráticas. Os revoltosos tentaram, então, convencer a África do Sul e a Rodésia a intervir militarmente. Jorge Jardim, que se encontrava em Joanesburgo, foi sondado para entrar triunfalmente na colónia, mas hesitou. Quem embarcou, lamentavelmente, na aventura foram Uria Simango, Paulo Gumane, Joana Simeão e Basílio Banda, do PCN. Os sediciosos mantiveram-se aos microfones do RCM durante três dias, antes de serem dispersos pela intervenção dos para-quedistas portugueses. Os terroristas dos “Dragões da Morte” realizaram uma expedição punitiva aos bairros negros periféricos (o “caniço”) de Lourenço Marques, da qual resultaram quarenta e sete mortos e centenas de feridos. Uma enorme multidão armada de armas tradicionais juntou-se para vingar este massacre e avançava sobre a cidade do cimento, quando foi dissuadida e desmobilizada por militantes da FRELIMO, face à derrota e fuga dos revoltosos. Ninguém foi responsabilizado criminalmente por estas ações.

 

A insurreição falhada dos colonos reacionários enfureceu Samora Machel, em Lusaka, que suspeitou de uma traição dos portugueses. Devidamente esclarecida a situação, este incidente sangrento teve o condão de criar importantes laços de confiança entre a FRELIMO e o MFA, que se solidificariam depois. Com meios aéreos portugueses ou de outras nações africanas, efetivos militares da FRELIMO são transportados para todas as grandes cidades moçambicanas. Sebastião Mabote, o “turra” n.º 2 de ontem, é um convidado disputadíssimo no quartel-general do exército português em Nampula. Permanecendo na Tanzânia, Samora Machel encarrega-se pessoalmente da libertação dos prisioneiros de guerra do exército colonial, em cumprimento dos acordos. O último Alto-Comissário português chega a Lourenço Marques. É o almirante Victor Crespo, figura destacada do MFA que já granjeara a confiança do seu ramo local em missões desempenhadas anteriormente nesta colónia em transição. Infelizmente, a calorosa reconciliação entre homens em armas não tinha uma correspondência total na sociedade civil.

 

Quando, a 17 de setembro, o Governo de Transição toma posse, sob a presidência de Joaquim Chissano, está já gravemente ferido o clima de confiança e harmonia multirracial que se pretendeu criar. A 20 e 21 de outubro, confrontos provocados por duas companhias portuguesas de “comandos” em Lourenço Marques degeneraram em novos tumultos raciais. Aparentemente, alguns colonos irredutíveis quiseram aproveitar-se da passagem destes militares pela capital para tentar uma última prova de força. Os resultados foram desastrosos para os seus intentos, com quarenta e um mortos e oitenta feridos, 2/3 de uns e outros entre os brancos. As duas companhias de comandos foram evacuadas à força, uma delas depois de ser parcialmente desarmada pela polícia militar. A ordem seria restabelecida por patrulhas conjuntas, militares e policiais, de portugueses lealistas e militantes da FRELIMO. Agora, sim, sabia-se quem mandava. Eram “eles”. Poucos dias passados, um boato lançado sobre uma invasão iminente a partir do caniço provocou o pânico e uma debandada geral na cidade do cimento. De um momento para o outro, toda a gente fugiu dos seus empregos e foi trancar-se em casa. A Lourenço Marques colonial morreu definitivamente nesse dia (67). Muitos portugueses formaram então mentalmente a decisão de partir definitivamente.

 

A FRELIMO mostrou-se sempre firme e intransigente na sua afirmação do princípio não-racialista, mas não o era menos na afirmação das suas convicções socialistas, as quais, aparentemente, foram absolutamente insuportáveis para a grande maioria da colónia portuguesa e assimilada. De nada valerão os acordos firmados para preservação dos interesses portugueses após a independência. Começa a formar-se e a engrossar uma coluna ininterrupta de saída de colonos, de todos os extractos sociais, brancos, asiáticos e mestiços. Até ao final do ano seriam 30.000 a partir, mas o êxodo só terminaria em 1976, quando, de um total de cerca de 250.000 residentes não-negros, apenas cerca de 20.000 permaneciam por fim (68). Entre os que partiram estavam praticamente todos os dirigentes, técnicos, quadros administrativos e operários qualificados de que o país dispunha, os quais não se esqueceram de destruir e sabotar a maior parte do equipamento e património que não puderam levar consigo. A FRELIMO tomou ainda a decisão de não integrar nas suas fileiras, sequer em funções civis, nenhum dos 31.000 militares africanos formados pelas forças armadas portuguesas. A questão, no entanto, foi debatida insistentemente na Comissão Mista Militar. Estes militares acabaram por ser todos desarmados e desmobilizados pelos portugueses, ficando disponíveis para todo o tipo de aventuras ao serviço de quem os quis aliciar posteriormente.

 

Com a aproximação da data fixada para a independência, setores burgueses portugueses tentaram impor a discussão de uns supostos assuntos pendentes económico-financeiros, que tinham nomeadamente a ver com o empreendimento hidroelétrico de Cahora Bassa e com o Banco Nacional Ultramarino. Em finais de março de 1975, realizaram-se reuniões em Dar es Salaam para discutir formas de cooperação futura entre os dois Estados, tendo esses problemas sido aflorados. A FRELIMO negou veementemente que a nóvel república moçambicana tivesse alguma dívida que assumir para com Portugal, por projetos nos quais o povo moçambicano não foi tido nem achado, nem foram concebidos no seu interesse. Se houvesse que iniciar essa discussão, um longo e pesado histórico multissecular de pilhagem e exploração colonial portuguesa teria então de ser chamado à colação neste acerto de contas.

 

A delegação moçambicana propôs então que se discutisse antes o “verdadeiro contencioso luso-moçambicano”, relativo aos prisioneiros de guerra. Em setembro-outubro passado haviam sido libertados os prisioneiros portugueses. A FRELIMO apresentava agora uma lista de quatrocentos prisioneiros de guerra moçambicanos, sobre os quais pedia notícias. O Estado português, porém, era incapaz de fornecê-las. Estes prisioneiros tinham sido entregues todos ao cuidado da PIDE-DGS, tendo desaparecido sem deixar qualquer rasto. Quatrocentos jovens lutadores nacionalistas. Quatrocentas vontades que não vergaram e não traíram, na solidão e sob ameaça extrema. Onde estão? Não só era de presumir que tivessem sido todos assassinados, como era impossível localizar os seus restos mortais. Era um contencioso insanável este, quanto à valorização da vida humana. Em carta enviada, em abril, ao primeiro-ministro português, o agora general Vasco Gonçalves, Samora Machel acrescentava mais trinta e quatro itens a um suposto contencioso económico-financeiro entre os dois países, incluindo o tráfico de escravos, as deportações, a venda de mão-de-obra para o estrangeiro, os danos da guerra colonial, entre muitos outros. Este suposto contencioso foi então julgado definitivamente encerrado.

 

Tendo como objetivo a formação de estruturas mínimas de enquadramento e formação das populações, do ponto de vista cívico e político, a FRELIMO cria por todo o país – em áreas residenciais e locais de trabalho - os Grupos Dinamizadores (GD). Tratava-se de comités de oito a doze “responsáveis” que, respondiam perante a “reunião de massas”. Desempenharam, inicialmente, sobretudo, uma função de prevenção de agressões racialmente motivadas e de manobras de sabotagem económica, ocupando-se depois de desenvolvimento comunitário, saúde, alfabetização, educação política, emancipação feminina e problemas laborais (69). Podiam assumir também funções judiciais. A sua intervenção foi preciosa, nesta conjuntura histórica, embora tenha gerado, inevitavelmente, embriões localizados de oportunismo e autoritarismo.

 

É ainda sob o governo transitório que a FRELIMO decide aproveitar os “aldeamentos estratégicos” construídos pelos militares portugueses para a promoção do cooperativismo agrícola. Também se criaram alguns campos de reeducação para marginais, prostitutas e desviantes de vários tipos. Samora Machel faz visitas à Tanzânia e à Zâmbia, de agradecimento pelo apoio à luta de libertação. A 24 de maio de 1975, inicia então no planalto da Mueda uma viagem ao longo do país, no sentido Norte-Sul, dirigindo-se às populações como só ele sabe fazê-lo e sendo delirantemente aclamado em todo o percurso (70). Algumas cidades são renomeadas e monumentos colonialistas apeados. O presidente da FRELIMO chega a Lourenço Marques a 23 de junho, onde, dois dias depois, é proclamada oficialmente a República Popular de Moçambique, numa cerimónia inesquecível, realizada num Estádio da Machava a abarrotar de povo. O MFA recolheu a bandeira portuguesa e, com ela bem dobrada, debaixo do braço, trouxe a rapaziada para casa, em aprumo e segurança. Cumpriu a sua missão, não lhe competindo evitar que a situação colonial moçambicana tivesse um desenlace revolucionário, que já se desenhava desde o início da década.

 

A chegada da FRELIMO ao poder deveu-se, sem dúvida, a uma conjugação favorável de circunstâncias, criada em primeiro lugar pela luta pugnaz do povo moçambicano e optimizada depois por uma impecável leitura e gestão da situação político-militar por parte da liderança do movimento nacionalista. Mas os desafios que esta agora tinha que enfrentar eram formidáveis. Moçambique não era, de nenhum ponto de vista, uma nação consolidada. No seu território de 799.380 km2 vivia uma população de cerca de 10 milhões de pessoas, 90% da qual rural, dividida em 16 grupos étnicos diferentes. A luta de libertação tinha tocado apenas cerca de 1/5 do país, com os primeiros esforços para a construção de uma consciência nacional e os rudimentos de uma organização política e económica moderna. O analfabetismo andava pelos 95%. Havia 171 médicos ao todo, com 70% da população vivendo fora do alcance de qualquer cuidado de saúde. A mortalidade infantil era de 15%. Não chegavam a mil os moçambicanos negros que haviam completado estudos secundários, de entre os quais se contavam seis economistas, quatro arquitectos, dois agrónomos, nenhum geólogo. Do Maputo (o novo nome da capital) até ao Cabo Delgado são cerca de 2.000 km em linha recta, sendo os meios de comunicação e transporte disponíveis os mais elementares.

 

Sob este pano de fundo de um subdesenvolvimento profundo, a economia moçambicana estava ainda deformada por uma dependência muito acentuada em relação aos seus vizinhos de domínio branco e uma subordinação estrita aos interesses da “metrópole” portuguesa. A crise petrolífera de 1973 tinha já provocado uma recessão profunda. Agora, o êxodo dos colonos portugueses deixava toda a infra-estrutura moderna do país destruída ou sem pessoal qualificado para a manejar. A África do Sul e a Rodésia racistas aguardavam, numa expetativa tensa, prontas para se lançarem às goelas da infante república. A catástrofe era iminente. Uma outra liderança teria facilmente entrado em pânico e deitado logo pela borda fora os seus princípios fundamentais, na ânsia de sobreviver a qualquer custo. Mas a FRELIMO de Machel era de uma outra têmpera. O partido manteve-se unido nas provações mais severas. A catástrofe foi evitada. Com uma gigantesca mobilização popular o país arrancou, num rumo socialista, aguentou-se economicamente e fez mesmo alguns avanços impressionantes até ao final da década de 1970. De passagem conquistou, de armas na mão, a liberdade para o seu vizinho Zimbabwe.

 

A catástrofe acabou efetivamente por atingir o país, de 1982 em diante. Foi causada pela agressão externa, pela inclemência meteorológica, a recessão mundial e também, sem dúvida, pelo efeito acumulado de alguns erros muito graves cometidos na fase eufórica da construção nacional. Uma parte importante desses erros remonta as suas origens até algumas formulações discutíveis no arsenal ideológico do movimento. Mas de modo algum isso deverá servir para obscurecer o facto de que grandes feitos se conseguiram nesses anos, em que uma nação se forjou a si mesma de forma irreversível. Com as suas características muito peculiares, a revolução moçambicana foi uma das últimas do longo ciclo revolucionário do século XX. Profundamente tocada por um ideal de otimismo humanista e perfetibilidade social, é talvez um exemplo extremo do voluntarismo político que caracterizou toda uma era.

 

Com o benefício da experiência (e alguma crueldade), poderá talvez dizer-se que a direcção da FRELIMO tentou elevar o país fazendo-o puxar-se freneticamente a si próprio pelos cabelos, como terá feito o afamado Barão de Münchhausen. Mas dizia um poeta, em parte contemporâneo: “grande e indomável seja / o espírito do homem em suas exigências” (71). A revolução moçambicana é cem vezes mais instrutiva no seu colossal falhanço do que o seria mais uma medíocre e frustre transição neo-colonialista africana. Possamos nós, que vamos agora criticar algumas das bases programáticas deste empreendimento, ter ainda, na vida, uma oportunidade para provar estar à altura dos seus feitos heróicos. A luta continua.

 

 

 

 

 

 

(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica O Comuneiro. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente Vértice, Última Geração e Política Operária. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000 e Outro Mundo, Estratégias Criativas, Porto, 2019 e Lutas Anticapital, Marília-SP, 2021, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.

 

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NOTAS:

 

(1) Marx e Engels, ‘Obras Escolhidas em Três Tomos’, Edições Avante, Lisboa 1985, Tomo III, pág. 169 ss.. Para um excelente e detalhado estudo ensaístico sobre todo este período da obra de Marx e a sua problemática específica, leia-se Teodor Shanin (ed.) ‘Late Marx and the Russian road’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1983.

 

(2) Jean-Marie Colombani, ‘Nous sommes tous Américains’, Le Monde, 13 de setembro de 2001.

 

(3) Leia-se António Rita-Ferreira, Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique, Instituto de Investigação Científica Tropical / Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1982, pp. 41-43. Este autor constitui um caso raríssimo de um funcionário português da administração colonial que, pela sua cultura e sensibilidade, guiadas pela curiosidade e genuíno interesse em conhecer o outro, se tornou uma voz sempre de grande interesse em assuntos moçambicanos. Há uma página na rede a ele dedicada com dados e publicações suas cuja leitura é de grande proveito.

 

(4) Cf. M. Fortes e E. E. Evans-Pritchard, Sistemas Políticos Africanos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981, pp. 38-40.

 

(5) FRELIMO, História de Moçambique, Afrontamento, Porto, S/d, pp. 9-16.

 

(6) Sobre os macuas, pode ler-se um precioso estudo antropológico, com especial incidência no matrimónio e parentesco, em Christian Geffray, Nem pai nem mãe, Caminho, Lisboa, 2000.

 

(7) Já nas vésperas de eclosão da guerra de libertação, de que seriam grandes protagonistas, os macondes foram objeto de um grande projeto de investigação de Antropologia colonial, patrocinado pelo então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, grande defensor da ideia lusotropicalista. A equipa foi chefiada por Jorge Dias, incluindo também sua esposa Margot Dias e Manuel Viegas Guerreiro. Resultou daí uma obra em quatro volumes Os Macondes de Moçambique, Junta de Investigações do Ultramar,Lisboa, 1964-70.

 

(8) Na verdade, segundo um cronista e testemunha presencial de primeira década do século XVII, Frei João dos Santos, «o termo «esposa» era um título que o rei [Monomotapa] concede aos capitães de Manica e Sofala e a todos os portugueses, que muito estima; este título significa o quanto lhes quer bem». Apud Malyn Newitt, História de Moçambique, Europa-América, Lisboa, 1997, p. 57. Há certos cumprimentos diplomáticos que são irrecusáveis. Sobretudo quando, previamente, se havia tentado a conquista pela força armada, com todo o ímpeto e donaire sebastiânicos, com resultados lamentáveis.

 

(9) Cf. Thomas H. Henriksen, Mozambique: A History, Rex Collings, London, 1978, p.17..

 

(10) Este relato, de autor desconhecido (certamente baseado no testemunho de algum sobrevivente), deve ter sido muito popular na época. Luís de Camões refere a história em três estâncias do Canto V de Os Lusíadas. Já no século XVIII encabeçaria uma célebre recolha de aventuras marítimas portuguesas. Leia-se Bernardo Gomes de Brito, História Trágico-Marítima, Publicações Europa-América, Vol. 1, pp. 25-43. O grupo procurava atingir Sofala e deteve-se, por fim, na área do atual distrito de Manhiça. Foi aí que terá ocorrido o emblemático episódio do desnudamento forçado de toda a comitiva, para desespero de D.ª Leonor de Sá. Os seus atormentadores eram seguramente tsongas, que não gostavam de conferir direitos de passagem sem a devida remuneração.

 

(11) Cf. Alexandre Lobato, História da Fundação de Lourenço Marques, Edições da Revista «Lusitânia», Lisboa, 1948.

 

(12) Leia-se Allen F. Isaacman, Mozambique. The Africanization of a European Institution: The Zambezi Prazos 1750-1902, The University of Wisconsin Press, Madison, 1972. Ou, para o final do seu trajeto, Giuseppe Papagno, Colonialismo e feudalismo: a questão dos prazos da coroa em Moçambique no fim do século XIX, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980.

 

(13) Leia-se José Capela, Donas, Senhores e Escravos, Afrontamento, Porto, 2019 (2.ª edição revista).

 

(14) Sobre esta reforma administrativa - decretada por D. José I e possivelmente já, de algum modo, inspirada pelo Marquês de Pombal - suas circunstâncias motivadoras e consequências imediatas, ler Alexandre Lobato, Evolução Administrativa e Económica de Moçambique (1752-1763), Alfa, Lisboa, 1989.

 

(15) Leia-se, de José Capela, o excelente livro O Tráfico de escravos nos portos de Moçambique, Afrontamento, Porto, 2002. Há uma segunda edição, revista e aumentada, de 2016. Não deixar de ler, também, o seu anterior O Escravismo Colonial em Moçambique, Afrontamento, Porto, 1993.

 

(16) Leia-se José Capela, Moçambique pela sua história, Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2010, pp. 71-80.

 

(17) Leia-se Malyn Newitt, Breve História de Moçambique, Dinalivro, Lisboa, 2022, p. 85-86.

 

(18) O Prazo de Massangano, nas margens do Zambeze, não longe de Tete, sob a direção de um senhor chamado António Vicente da Cruz («Bonga»), um negro retinto e analfabeto, entrou em rebelião contra a autoridade colonial portuguesa e derrotou, de forma por vezes catastrófica, não menos de quatro expedições nacionais enviadas para o submeter, entre 1867 e 1869. Leia-se René Pélissier, História de Moçambique, Formação e Oposição 1854-1918, Volume I, Estampa, Lisboa, 1994, pp. 411-448.

 

(19) Leia-se, por exemplo, José Capela (organização e prefácio), Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo de Maganja aquém Chire Moçambique, 1884, Húmus, V. N. Famalicão, 2011.

 

(20) Sobre o movimento mundial anti-esclavagista e seus verdadeiros fatores determinantes, leia-se Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery 1776-1848, Verso Books, 2011. Sobre a experiência portuguesa, ler José Capela, Escravatura. A empresa de saque. O abolicionismo (1810-1875), Afrontamento, Porto, 1974. Sobre a penosa reinvenção do projeto colonial português no período pós-esclavagista, leia-se Valentim Alexandre, Origens do colonialismo moderno português (1822-1891), Sá da Costa, Lisboa, 1979, com os seus preciosos textos ilustrativos da época.

 

(21) Leia-se José Capela, “Conflitos sociais na Zambézia, 1878-1892: A transição do senhorio para a plantação”, Africana Studia.

 

(22) Leia-se René Pélissier, História de Moçambique, Formação e Oposição 1854-1918, Volume II, Estampa, Lisboa, 1994, pp. 59-68.

 

(23) As suas ideias constam de um extenso relatório enviado ao ministro dos Negócios da Marinha e do Ultramar em setembro de 1893, não desprovido de um certo brilho literário. Leia-se António Enes, Moçambique. Relatório apresentado ao Governo, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1971 (4.ª edição).

 

(24) Leia-se Allen Isaacman, The Tradition of Resistance in Mozambique, Heinemann, London, 1976, pp. 49-68.

 

(25) Este anti-heróico soberano africano tem sido um objeto privilegiado para a recriação literária, com destaque para a trilogia «As Areias do Imperador» de Mia Couto, constituída por Mulheres de Cinza, Caminho, Lisboa, 2015, A Espada e a Azagaia, Caminho, Lisboa, 2016 e O Bebedor de Horizontes, Caminho, Lisboa, 2017. Leia-se também Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, Alcance Editores, Maputo, 2008.

 

(26) Leia-se Ilídio Rocha, A imprensa de Moçambique, Livros do Brasil, Lisboa, 2000, Mário Pinto de Andrade, Origens do Nacionalismo Africano, Dom Quixote, Lisboa, 1998. Para um estudo mais detalhado, com especial incidência no campo literário, leia-se Pires Laranjeira, A negritude africana de língua portuguesa, Afrontamento, Porto, 1995. Centrado já, especificamente, na geração que daria início à luta armada, leia-se ainda Dalila Cabrita Mateus, A Luta pela Independência – A formação das elites fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC, Inquérito, Lisboa, 1999.

 

(27) Leia-se Lorenzo Macagno, A Invenção do Assimilado. Paradoxos do Colonialismo em Moçambique, Colibri, Lisboa, 2019.

 

(28) Leia-se, de José Capela, O imposto de palhota e a introdução do modo de produção capitalista nas colónias, Afrontamento, Porto, 1977 e O vinho para o preto. Notas e textos sobre a exportação do vinho para África, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2009 [Afrontamento, Porto, 1973].

 

(29) Leia-se, Manuel Carvalho, A guerra que Portugal quis esquecer, Porto Editora, Porto, 2021. Como recriação literária, leia-se João Paulo Borges Coelho, O Olho de Hertzog, Caminho, Lisboa, 2010. E veja-se, também, o excelente filme de João Nuno Pinto, “Mosquito” (2020).

 

(30) Leia-se Fernando Rosas, O Estado Novo nos Anos Trinta, Estampa, Lisboa, 1986, pp. 75-92.

 

(31) Os próprios colonos brancos dispunham de liberdade absoluta para castigar fisicamente, a seu talante, os seus empregados, nomeadamente o pessoal doméstico («mainatos»). Para isso, aliás, eram-lhes delegadas individualizadamente funções próprias da soberania portuguesa, como se estabelecia no Estatuto dos Indígenas (1954) e foi depois teorizado por Adriano Moreira. Quando se não dispunham a isso, bastava-lhes enviar o empregado em causa ao chefe de posto ou autoridade equivalente, portador de uma nota manuscrita em língua portuguesa que detalhava a falta imputada e o castigo pretendido. Na volta, o empregado trazia ao seu patrão a mesma nota, onde fora aposto pelo funcionário público um averbamento informativo da pena que lhe havia sido efetivamente aplicada. Assim laborava sapientemente a deusa Iustitia por estas paragens. Com o começo da luta armada de libertação, este, como alguns outros abusos mais escabrosos de autoridade colonial portuguesa, entraram sorrateiramente em desuso.

 

(32) Leia-se João Mosca, A economia de Moçambique – século XX, Instituto Piaget, Lisboa, 2005, pp. 40-50. Para um estudo aprofundado, ler Allen Isaacman, Cotton is the Mother of Poverty: Peasants, Work and Rural Struggle in Colonial Mozambique 1938-1961, Heinemann, Portsmouth-NH, 2004.

 

(33) Leia-se José Luís Cabaço, Moçambique: identidades, colonialismo e libertação, Tese de Pós-Graduação em Antropologia Social na USP, São Paulo, 2007, pp. 162-209.

 

(34) Leia-se Eduardo Mondlane, The Struggle for Mozambique, Penguin Books, Middlesex, 1969, pp. 58-75. Esta obra foi escrita originalmente em língua inglesa. Só após o derrube da sua ditadura fascista conheceu uma edição em Portugal: Eduardo Mondlane, Lutar por Moçambique, Sá da Costa, Lisboa, 1975. Sobre o autor, verdadeiro fundador do nacionalismo moçambicano, pode ler-se PANAF Great Lives, Eduardo Mondlane, Panaf, London, 1972. Infelizmente, esta pequena obra anónima e panfletária está muito longe de ser uma verdadeira biografia, que está por fazer. O embaixador José Manuel Duarte de Jesus, em Eduardo Mondlane, um homem a abater, Almedina, Coimbra, 2010, estará mais interessado e defender uma tese de oportunidade perdida em relações internacionais. Mondlane terá albergado algumas ilusões sobre a retórica anticolonial de J. F. Kennedy, para além de que não desdenhava apoios (designadamente monetários) para a luta nacionalista moçambicana, viessem de onde viessem. Está, porém, totalmente votada ao fracasso qualquer tentativa de o destacar da galeria do socialismo negro e dos genuínos lutadores pela emancipação africana, enfileirando-o no neocolonialismo pró-ocidental. Se essa tentativa incluir ainda a imputação de um viés de sentimentalismo luso-saudosista, então é simplesmente ridícula.

 

(35) Sobre a ascenção do movimento anticolonialista africano e a reação do governo português, antes do deflagrar das guerras, a obra incontornável é agora Valentim Alexandre, Contra o Vento. Portugal, o Império e a Maré Anticolonial 1945-1960, Temas e Debates – Círculo de Leitores, Lisboa, 2017.

 

(36) Algumas biografias sumárias, das quais se pode reter um pouco do espírito desta época, podem ler-se em Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, Nacionalistas de Moçambique, Texto, Alfragide, 2010.

 

(37) Leia-se Eduardo Mondlane, The Struggle for Mozambique, ob. cit., pp. 107-121 e Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Mozambique. From Colonialism to Revolution, 1900-1982, Westview Press, Boulder (Colorado), 1983, pp. 61-84.

 

(38) Sobre o Instituto Moçambicano, com um justo destaque para a ação da sua diretora, Janet Rae Mondlane, a esposa norte-americana (branca) do fundador e primeiro presidente da FRELIMO, leia-se Catarina A. Costa, Moçambique. O sonho de uma nação, Lua Eléctrica, 2019. O Instituto dedicou-se à ação social, em especial nas áreas educativa, médica e cultural, entre a comunidade moçambicana no exílio e nas zonas libertadas. Formalmente apartado da luta armada, foi uma face do movimento nacionalista que se manteve sempre mais atrativa para a captação de donativos estrangeiros, que conseguiu sempre em abundância, inclusivamente de fontes tão obnóxias como a Fundação Ford e a Fundação Rockefeller.

 

(39) Proclamação da Luta Armada, em João Reis e Armando Pedro Muiuane (org.), ‘Datas e Documentos da História da FRELIMO’, Imprensa Nacional de Moçambique, Maputo, 1975.

 

(40) Sobre a cooperação político-militar entre o regime racista rodesiano e a ditadura colonialista portuguesa, leia-se José Freire Antunes, A Guerra de África 1961-1974, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995, pp. 601-610. Para mais pormenores, ler Ken Flower, Serving secretly: An intelligence chief on record, Rhodesia into Zimbabwe 1964-1981, Alberton: Galago, 1987.

 

(41) Estas circunstâncias, geralmente omitidas na historiografia oficial nacionalista, são referidas por Barry Munslow em Mozambique: the revolution and its origins, Longman, London-New York-Lagos, 1983, pp. 92-95, com base em testemunhos recolhidos localmente.

 

(42) Cf. Iain Christie, Samora. Uma biografia, Ndjira, Maputo, 1996, pp. 25-43. A mais completa biografia do primeiro presidente moçambicano é agora, sem dúvida, Allen e Barbara Isaacman, Samora Machel. Uma biografia (a life cut short, no título original), Outro Modo, Lisboa, 2022.

 

(43) Cf. Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, Porto Editora, Porto, 2020, p. 152.

 

(44) Leia-se Josina Machel, «O papel da mulher na revolução».

 

(45) O assassinato de Mondlane foi uma operação complexa, envolvendo a PIDE, oponentes internos da FRELIMO, Jorge Jardim, mercenários internacionais e agentes dos serviços secretos franceses. Leia-se João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, Afrontamento, Porto, 1994 (2ª edição), pp. 255-257.

 

(46) Leia-se Uria Simango, «Situação sombria na FRELIMO», in Aquino de Bragança e Immanuel Wallerstein, Quem é o Inimigo?, Vol. II Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1978, pp. 205-208.

 

(47) Isso ressalta com particular clareza de uma entrevista gravada em Argel por Aquino Bragança logo após o II Congresso e pouco antes do seu assassinato. Aí se pode ler: «Há uma evolução de pensamento que se operou nos últimos 6 anos que me pode autorizar, que eu me autorizo a mim mesmo concluir, que a FRELIMO é agora, realmente, muito mais socialista, revolucionária e progressista, do que nunca, e a tendência agora é mais e mais em direção ao socialismo do tipo marxista-leninista. Porque as condições de vida em Moçambique, o tipo de inimigo que nós temos, não admite qualquer outra alternativa. É impossível criar-se um Moçambique capitalista, seria ridículo o povo lutar para destruir a estrutura económica do inimigo e reconstruí-la a favor do inimigo. Seria ridículo. Já o dissemos várias vezes. Ora nós não vamos fazer isso. Nós vamos criar um sistema económico socialista e há agora uma riqueza de experiências de vários países socialistas que nós vamos estudar e aprofundar. De maneira que é por isso que a experiência teórica marxista-leninista e a experiência, incluindo os erros, dos países socialistas que desde 1917 trabalharam e viveram a experiência socialista, são muito relevantes para nós». Ver Aquino de Bragança e Immanuel Wallerstein, Quem é o Inimigo?, Vol. II, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1978, 200-201. É justo recordar estas palavras, agora que se tornou dogma considerar Mondlane um dirigente moderado, pró-americano, senão mesmo inclinado à conciliação com o colonizador, que teria certamente poupado Moçambique às asperezas da sua experiência revolucionária. A PIDE, na altura, não era certamente desta opinião. Daí que tivesse escolhido camuflar o explosivo fatal que lhe preparou num livro de Gyorgy Plekhanov, calculando que ele seria acionado, precisamente, naquela altura em que, surpreso, com grata curiosidade intelectual, num gesto íntimo e confiado, o recetor da encomenda abrisse o livro à altura do rosto.

 

(48) Leia-se, por exemplo, Samora Machel, «A Libertação da Mulher é uma Necessidade da Revolução, Garantia da sua Continuidade, Condição do seu Triunfo» in Samora Machel, A Luta Continua, Afrontamento, Porto, 1974, pp. 55-72. Este volume, coligido e prefaciado por José A. Salvador, contém uma excelente antologia dos textos doutrinais de Samora do tempo da luta armada.

 

(49) A estruturação do poder popular nas áreas libertadas partia do círculo (até umas centenas de pessoas), passando pela localidade, o distrito e a província. Na unidade elementar, o círculo, praticava-se a democracia direta. Era em assembleia ou reunião geral que se nomeava o respetivo secretariado e se tomavam as decisões mais importantes. Leia-se Samora M. Machel, O processo da revolução democrática popular em Moçambique, FRELIMO (Coleção «Estudos e Orientações», caderno n.º 8), Lourenço Marques, S/d, pp. 46-48. «São os secretariados de círculos e os comités de localidade que organizam a totalidade das actividades a nível local. Eles impulsionam a formação das cooperativas, organizam a ajuda mútua agrícola, organizam os grupos de transporte de material, as milícias locais, o recrutamento de jovens para o exército, o abastecimento das escolas, hospitais, infantários, bases militares, etc.. São eles ainda, ou os conselhos, que solucionam os diversos litígios locais». Até que ponto as decisões no círculo resultavam de genuína e espontânea deliberação popular ou eram antes resultado sistemático da loquacidade dos militantes, só podemos hoje tentar imaginá-lo. Certo é que, na memória popular posterior, estes tempos de fervor revolucionário da FRELIMO ficaram conhecidos como o tempo do «Abaixo». Eram tempos em que se reuniam povoados inteiros em grandes assembleias que se concluíam invariavelmente com palavras de ordem gritadas como «Abaixo o colonialismo! Abaixo o neocolonialismo! Abaixo o imperialismo! Abaixo o tribalismo! Abaixo o feudalismo! Abaixo o obscurantismo e a superstição!», às quais os populares respondiam em coro ritualmente «Abaixo!», levantando um braço.

 

(50) Leia-se, por exemplo, de Samora Machel, «Produzir é aprender. Aprender para produzir e lutar melhor», in A Nossa Luta, Imprensa Nacional, Maputo, 1975, pp. 11-23 e A Classe Trabalhadora deve Conquistar e Exercer o Poder na Frente da Ciência e da Cultura, Ulmeiro, Lisboa, s/d. Uma expressão literária superiormente inspirada deste espírito pode ser encontrada em Mutimati Barnabé João, Eu, o Povo, Cotovia – Biblioteca Editores Independentes, Lisboa, 2008.

 

(51) Curiosamente, a historiografia oficial da FRELIMO não observou este mesmo distanciamento crítico para com figuras tradicionais da resistência ao colonialismo português – Gungunhana, Bonga, Mataca, etc. - antes as glorificou como antecedentes e afluentes diretos da grande causa nacional. Leia-se, por exemplo, Samora Machel, «Ngungunyane viveu e morreu com grande herói do povo». Nos mortos vêm-se talvez virtudes que não se conseguem vislumbrar nos vivos. É verdade, porém, que este revivalismo glorificador de figuras patriarcais do passado só ganhou livre curso após o IV Congresso da FRELIMO (1983), em que o socialismo foi substituído pelo nacionalismo como orientação estratégica do agora partido do poder.

 

(52) Leia-se Samora Machel, O partido e as classes trabalhadoras moçambicanas na edificação da democracia popular. Relatório do Comité central ao III Congresso da FRELIMO, Avante, Lisboa, 1978, pp. 21-22.

 

(53) Michel Cahen pretende, sem dúvida, avançar uma tese sociológica sobre o marxismo moçambicano, no seu livro Mozambique – la révolution implosée, L’Harmattan, Paris, 1987, pp. 137-167, mas a sua demonstração é tão intrincada que o argumento se perde.

 

(54) Dalila Cabrita Mateus, A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974, Terramar, Lisboa, 2011 (2.ª edição), pp. 136-150. Ler também AAVV, Tortura na Colónia de Moçambique 1963-1974. Depoimentos de presos políticos, Afontamento, Porto, 1977.

 

(55) Sobre a comunidade democrática branca moçambicana, no período colonial, leia-se Fernando Tavares Pimenta, Brancos de Moçambique. Da oposição eleitoral ao salazarismo à descolonização (1945-1975), Afrontamento, Porto, 2021.

 

(56) Recriada ficcionalmente em Carlos Vale Ferraz, Nó Cego, Ed. Notícias, Lisboa, 1995 (3ª edição). Uma boa descrição técnica e doutrinal pode ser encontrada em Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (como é sabido, o nome real do escritor Vale Ferraz), Guerra Colonial, Porto Editora, Porto, 2020, pp. 415-427.

 

(57) Leia-se Adrian Hastings, Wiriyamu, Afrontamento, Porto, 1974. Para um estudo histórico exaustivo, ler Mustafah Dhada, O Massacre Português de Wiriamu - Moçambique, 1972, Tinta da China, Lisboa, 2016.

 

(58) João Afonso dos Santos, Carlos Adrião Rodrigues, António Pereira Leite e Williem Gerard Pott, O Julgamento dos Padres do Macúti, Afrontamento, Porto, 1973. Todo este infeliz episódio não passou de uma soez intriga orquestrada e insuflada por Jorge Jardim, a partir do jornal Notícias da Beira, por si controlado.

 

(59) É justo e oportuno recordar aqui, como personagem histórico de relevo, aquela que foi a primeira e, de algum modo, tutelar figura dissidente na hierarquia catótica de Moçambique, o erudito teólogo e profético primeiro bispo da Beira, D. Sebastião Soares Resende, falecido em 1967. A ele se deve a criação do inconformista Diário de Moçambique (onde fez o seu tirocínio o padre José Soares Martins, um dos autores mais citados neste trabalho, sob o pseudónimo de José Capela), de vários estabelecimentos de ensino, além de grande parte da rede paroquial e missionária presente no interior centro do país, que tantas dores de cabeça traria às autoridades colonialistas.

 

(60) Sobre a política externa da FRELIMO antes da independência, pode ler-se com grande proveito a obra memorialística de um dos seus principais artífices, Óscar Monteiro, De todos se faz um país, Edição do Autor, 2019 (3ª edição), a partir da página 131 até à 258 (final).

 

(61) Samora Machel, «A Luta Armada Começou em Manica e Sofala». É possível que, ao dar este arrojado passo em frente, a FRELIMO antecipasse já a ocorrência de um golpe militar democrático e anticolonialista em Lisboa, pretendendo posicionar-se melhor para essa eventualidade. Pelo menos, é essa a impressão de alguém que viveu esses tempos em posição privilegiada. Ler Jacinto Veloso, Memórias em voo rasante, Papa Letras, Lisboa, 2007, p. 81.

 

(62) Leia-se Jorge Ribeiro, Inhaminga, o último massacre, Afrontamento, Porto, 2015. Esse ambiente foi bem captado, com alguma liberdade ficcional, por Lídia Jorge, no seu romance A Costa dos Murmúrios (1988).

 

(63) Quem tiver interesse em inteirar-se da sua versão dos acontecimentos, de credibilidade muito reduzida, pode ler Jorge Jardim, Moçambique, Terra Queimada, Intervenção, Lisboa, 1976.

 

(64) As manobras do neocolonialimo foram antecipadas desde a primeira hora, após o derrube do fascismo português. Leia-se Samora Machel, «Mensagem aos Militantes da FRELIMO e ao Povo Moçambicano por Ocasião do Golpe de Estado em Portugal». A recusa perentória das pretensões referendárias foi formulada definitivamente na 11ª Conferência de chefes de Estado e de Governo da Organização de Unidade Africana, reunida em Mogadishu em julho de 1974. V. “Não se pergunta a um escravo se quer ser livre”, A Voz da Revolução, n.º 22, maio-julho de 1974.

 

(65) Leia-se Aniceto Afonso, O MFA em Moçambique: do 25 de abril à independência, Edições Colibri, Lisboa, 2019.

 

(66) Leia-se Fernando Amado Couto, Moçambique 1974. O fim do império e o nascimento da nação, Caminho, Lisboa, 2001, pp. 283-312.

 

(67) Os saudosistas poderão ler Francisco José Viegas, Lourenço Marques, Porto Editora, Porto, 2012 ou ouvir, uma vez mais, a canção homónima na voz de Pedro Tudela.

 

(68) Numa perspetiva que realça, sobretudo, as razões de queixa dos colonos, leia-se António Rita-Ferreira, “Moçambique post-25 de Abril: Causas do êxodo da população de origem europeia e asiática, in AAVV, Moçambique: Cultura e História de um País, Instituto de Antropologia, Coimbra, 1988.

 

(69) Os grupos dinamizadores foram inicialmente concebidos como comités locais do partido FRELIMO. Leia-se Samora Machel, Mensagem ao Povo de Moçambique, por ocasião da tomada de posse do Governo de Transição em 20 de Setembro de 1974, Afrontamento, Porto, 1974, pp. 18-19. Na verdade, foram organizações de poder popular formadas ad hoc, cuja efetiva ligação real ao partido era muito variável.

 

(70) Leia-se e aprecie-se a iconografia de Raimundo Domingos Pachinuapa, Do Rovuma ao Maputo: A Marcha Triunfal de Samora Machel, Edição do Autor, Maputo, 2005.

 

(71) Paulo Quintela, Hölderlin, Editorial Inova, Porto, 1971, pág. 160. Trata-se de dois versos da versão métrica do poema Hyperion, em tradução do professor Quintela inserta nesta obra biográfica.