O Socialismo (*)

 

 

Fernando Piteira Santos

 

 

1. Reacção contra o individualismo

 

As várias correntes socialistas representam, no seu conjunto, uma reacção anti-individualista. À margem da doutrinação da escola clássica, ou directamentre em oposição às concepções teóricas do capitalismo liberal, surgem autores que condenam a livre concorrência, a não intervenção do Estado na vida económica, o salariato e a propriedade privada. Estes autores formam uma corrente doutrinária que combate o liberalismo económico e se propõe estabelecer quer simplesmente a fundamentação doutrinal da intervenção do Estado na vida económica, quer uma estrutura igualitária de produção e repartição. Combatem também a propriedade privada ou prentendem restringi-Ia. Sob certos aspectos, trata-se de uma corrente doutrinária muito antiga, que se pode filiar na República, de Platão, e que, através dos tempos, teve diversos representantes: Thomas Morus (1478-1535), o autor da Utopia; Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785), que denuncia os defeitos da propriedade e tenta demonstrar a possibilidade de existência de estados comunitários; William Godwin (1756-1836), que, no seu romance Caleb Williams e no Inquérito sobre a Justiça Humana, defende a ideia de que a necessidade deve ser o único critério da repartição; Babeuf (1764-1797), que afirma não ser suficiente «essa igualdade transcrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão» e preconiza uma igualdade real. Representam, todos eles, uma atitude de protesto contra o regime de propriedade e a situação das classes inferiores, que os socialistas do século XIX reassumem e à qual dão uma completa elaboração teórica.

 

Foi atribuída a Robert Owen a paternidade da palavra socialismo. O termo teria aparecido pela primeira vez no opúsculo What is Socialism? (1841), deste autor. Não é possível manter esta afirmação. A palavra fora usada por Reybaud (1836), Pierre Leroux (1831), Fourier (1833) e pelo próprio Robert Owen em 1822. Segundo Arthur E. Beston Jr. (in Journal of the History of Ideas), a palavra socialista (e não socialismo) teria sido utilizada no jornal Co-Operative News (Novembro de 1827). Alain Rey (v. Revue d'Histoire Economique et Sociale, Abril de 1957) indica que a palavra socialista teria sido usada em data anterior por um discípulo de Owen, Joseph Applegath, que teria forjado o termo em 1821 ou 1822. Mas é o jornal de Owen, The Crisis, que emprega as duas palavras, socialista e socialismo, frequentemente, por volta de 1834. L. Grünberg («L'Origine des mots socialisme et socialiste», in Revue d'Histoire des Doctrines Economiques) afirma que o italiano Giacomo Giuliani usou o termo em 1803. Um erudito italiano, Franco Venturi, encontrou a palavra socialismo num livro escrito em 1766. Mas neste escrito do monge Ferdinand Facchinei, na obra de Appiano Buonafede, em 1786, na carta de Drouet, em 1797, e no próprio texto O Anti-Socialismo Refutado, de Giacomo Giuliani (1803), a palavra aparece usada com sentidos diferentes de texto para texto e diferentes do seu exacto significado na teoria económica. Como sublinhou Godechot (carta publicada no jornal francês Le Monde, de 5 de Fevereiro de 1965), é por volta de 1820, segundo estabeleceu Alain Rey (rev. cit.), que as palavras socialista e socialismo adquiriram o seu actual significado.

 

2 – Saint-Simon

 

O aristocrata francês Claude-Henry de Rouvray, conde de Saint-Simon (1760-1825), teve uma vida agitada e aventurosa. Aos 16 anos combate, na América do Norte, na Guerra da Independência. Percorre depois a América Central. Durante a Revolução Francesa, já então em França, deixa de usar o seu título nobiliárquico e enriquece especulando com os bens nacionais. Preso por motivos políticos, é posto em liberdade quando dos acontecimentos do 9 Termidor. Dedica-se a negócios que nem sempre são frutuosos, a viagens, ao estudo. Considera-se fadado para dotar o mundo com uma moral renovadora de base científica e uma nova organização económica e social. As suas ideias visam uma construção grandiosa que substitua a estrutura social que se desmorona ante seus olhos. Desenvolveu uma acção pessoal ainda maior que a influência dos seus escritos, conseguindo agrupar à sua volta numerosos discípulos. Em 1805, novamente arruinado, é recolhido por um dos seus antigos criados. Desmoralizado pela situação de miséria material que atravessa, tenta suicidar-se (1823). A tentativa falhou e o banqueiro O. Rodrigues protege-o, proporcionando-lhe uma vida confortável até 1825, ano da sua morte. De 1814 a 1825, Saint-Simon publica as obras em que pretende oferecer ao século XIX uma doutrina. Em 1814 publica, de colaboração com o seu discípulo A. Thierry, De la réorganisation de la Société européenne; em 1817 e 1818, os quatro volumes de L'Industrie, obra em que colaborou o seu discípulo Auguste Comte; em 1819, o volume Politique; em 1821, o Système Industriel; em 1823 e 1824, o Cathéchisme des industriels, cujo terceiro caderno é de Auguste Comte; em 1825, o Nouveau Christianisme.

 

As suas ideias podem talvez sintetizar-se numa exaltação da função social da indústria, considerada a palavra como sinónimo de trabalho. No célebre texto conhecido por «Parábola de Saint-Simon», o autor coloca o leitor perante a conclusão de que, em cada país, o governo e a burocracia oficial são apenas uma fachada. A sociedade poderia viver perfeitamente sem essa fachada, poderia dispensar-se o luxo de um rei, de uma família real, dos nobres, dos altos dignitários civis e militares, desde que mantivesse os seus industriais e homens dos ofícios, os seus agricultores, os seus negociantes, os seus banqueiros, porque o verdadeiro poder, o verdadeiro governo da nação, está nas mãos dos homens que conduzem a sua vida económica.

 

3 - O industrialismo de Saint-Simon

 

A base da vida social, o facto capital da civilização do seu tempo, é, para Saint-Simon, a indústria. As preocupações políticas dos seus contemporâneos merecem-lhe um grande desdém. Para Saint-Simon os conceitos liberais de «soberania do povo», de «liberdade» e de «igualdade» não têm sentido. Compreende o seu significado como concepções abstractas dos legistas que criaram a ideologia do combate ao feudalismo, mas Saint-Simon só aceita o parlamentarismo como um regime de transição entre o passado feudal e o futuro, e para ele o futuro pertence ao industrialismo, porque a indústria é a «única fonte de todas as riquezas e de todas as prosperidades».

 

A organização social do futuro, o industrialismo, implica, em primeiro lugar, o desaparecimento das classes. Não haverá nobres, nem burgueses, nem clérigos. Apenas existirão duas categorias de pessoas: os trabalhadores e os ociosos. Na classe dos trabalhadores Saint-Simon engloba não só os operários manuais, como os artífices, os industriais, os agricultores, os negociantes, os banqueiros, os homens de ciência, os artistas. Estas pessoas devem viver sem outras diferenças que as que naturalmente resultem das suas diferentes capacidades. Diz Saint-Simon: «A igualdade industrial consiste em cada um receber da sociedade benefícios exactamente proporcionados à sua posição social, isto é, à sua capacidade positiva, ao emprego que faz dos seus meios, entre os quais se devem compreender, bem entendido, os seus capitais».

 

Saint–Simon concebe cada nação como uma grande manufactura. E afirma: «Ora os trabalhos mais importantes nas manufacturas consistem, em primeiro lugar, em estabelecer os processos de fabricação; em seguida, em harmonizar os interesses dos empresários com os dos trabalhadores, por um lado, e, por outro, com os dos consumidores». Assim, em cada nação não há lugar para um governo político, para um governo dos homens, mas sim para um governo de uma natureza especial, para uma administração das coisas. A política deve transformar–se, deve tornar-se «a ciência da produção, isto é, a ciência que tem por objecto a ordem de coisas mais favorável a todos os ramos da produção». Não há lugar, no sistema de Saint-Simon, para a opressão de uma classe pelas outras; a sociedade deve ser organizada de modo a assegurar a melhor maneira de dar satisfação às necessidades de todos os seus membros. Substituído o governo político pelo governo económico, substituída a administração dos homens pela administração das coisas, a nova organização social, decalcada da organização das unidades industriais transformará as nações em verdadeiras associações de produtores.

 

4 - Os discípulos de Saint-Simon

 

A influência de Saint-Simon excedeu largamente o círculo dos leitores das suas obras. Alguns dos homens de maior valor do seu tempo foram os seus discípulos: Augustin Thierry foi seu secretário de 1814 a 1817 e de 1817 a 1824 a mesma função foi desempenhada por Auguste Comte. Entre os seus discípulos figuram Eugène e Olinde Rodrigues, Enfantin, Bazard. Foram estes os fundadores do jornal Le Producteur, que, com o objectivo de divulgar as ideias do mestre, apareceu após a sua morte. O jornal publicou-se durante um ano e são de Enfantin a maior parte dos artigos sobre temas económicos. Mas os discípulos de Saint-Simon não se sentiam só animados de preocupações políticas e económicas: a doutrina do mestre estava, no seu entender, destinada a substituir tanto os ideais do liberalismo como os preceitos religiosos do catolicismo. Não lhes pareceu suficiente a identidade doutrinária que procedia de seguirem o mestre comum, entenderam que era necessária a constituição de uma seita organizada, com uma certa hierarquia e cujos membros adoptassem o tratamento de «irmãos».

 

Uma vez organizados, os saint-simonistas encarregaram Bazard de expor, em conferências públicas, a doutrina do mestre. Lesseps, Carrel, Carnot, os irmãos Péreire, Duverger, Michel Chevalier ouviram essas exposições, posteriormente publicadas na compilação em dois volumes Doctrine de Saint-Simon, Exposition. No primeiro volume expunha-se a doutrina social de Saint-Simon, no segundo as suas concepções filosóficas e morais. Por influência de Enfantin, o aspecto filosófico e místico da doutrina saint-sirnonista suplantou a teoria socialista e o saint-simonismo tornou-se uma seita religiosa. Os chefes do novo culto foram Enfantin e Bazard. E quando as autoridades francesas condenaram a um ano de prisão Enfantin, Duverger e Michel Chevalier, acusados de terem formado uma associação ilícita, fecharam também o retiro de Ménilmontant, onde Enfantin e quarenta discípulos viviam em regime conventual.

 

A parte económica do volume Doutrina de Saint-Simon contém uma crítica rigorosa da propriedade privada, crítica que Saint-Simon formulava em termos mais científicos e menos polémicos do que Proudhon, argumentando que a propriedade era urna instituição social sujeita a evolução. A condenação da propriedade privada e da exploração dos trabalhadores coincide nos saint-simonistas com a defesa do empresário capitalista, do industrial empreendedor,

a quem consideram que é legitimamente devido o prémio das suas iniciativas, a paga correspondente ao seu trabalho de direcção.

 

5 - O socialismo associacionista

 

Os socialistas associacionistas consideram que a livre concorrência é a causa principal dos vícios e contradições do estado económico da sociedade. Procuram, por conseguinte, remediar as consequências de uma produção insuficiente, de uma repartição injusta através da livre associação. Pensam que o indivíduo isolado, à mercê de todas as ameaças e de todas as dificuldades, encontra na associação a protecção e a defesa de que necessita. Eles crêem firmemente na força atractiva e aglutinante da associação, crêem na espontaneidade da adesão individual, e, por isso, são partidários da livre associação em grupos autónomos, que livremente podem unir-se ou federar-se.

 

Ao contrário dos liberais, não aceitam a ideia de uma «ordem natural», espontânea e harmónica. Por intermédio das associações procuram oferecer aos homens um novo meio, embora em certos trechos dos autores associacionistas esse novo meio (a associação, a cooperativa, a comuna) seja apenas um processo de «colocar a sociedade de harmonia com a natureza» (Owen).

 

Este espírito associacionista entrou em conflito com as doutrinas individualistas da Revolução de 1789, particularmente no que se refere ao direito de associação. Impressionados pelo fenómeno da concorrência e pelo antagonismo de interesses entre patrões e operários, como aliás já se mostrara Sismondi, os associacionistas sem desejarem restabelecer as extintas corporações, lutam por um novo tipo de associação – a associação cooperativa.

 

Os autores mais representativos desta escola socialista são o inglês Robert Owen (1771-1858) e o francês Charles Fourier (1772-1837); referir-nos-emos também a Louis Blanc, que introduz no sistema uma propensão autoritária.

 

6 - Robert Owen

 

O socialista Robert Owen (1771-1858) era um homem de negócios bastante rico e um industrial importante. Nas suas fábricas de New-Lanark criou para os seus operários todas as instituições e regalias que viriam a ser, posteriormente, objecto de uma larga campanha de propaganda: casas com jardim, refeitórios, caixas económicas, escolas laicas para os filhos dos operários. Antecipando-se à chamada legislação operária, reduziu o dia de trabalho dos adultos de dezassete horas para dez, não dava trabalho a crianças com menos de 10 anos de idade e suprimiu o uso de multas. Mas Owen não foi apenas um patrão filantropo. A grande crise de 1815 fê-lo compreender as terríveis contradições da ordem económica liberal e marca, na sua longa vida (Owen morreu com 87 anos), o início de uma nova fase: a fase das experiências cooperativas e colectivistas.

 

Não se pense, contudo, que Owen era um revolucionário militante, na acepção corrente das palavras. Robert Owen recusou-se a participar no movimento cartista, cuja mais radical reinvindicação era a do sufrágio universal. Robert Owen nunca aconselhou os operários a expropriarem os capitalistas; indicou-lhes, sim, a vantagem da criação de novos capitais e ensinou-lhes o caminho da cooperação.

 

A ideia fundamental que guiava Owen era a da criação de um meio social. É isso que ele aconselha aos outros patrões, que ele pede ao Estado e que, finalmente, se propõe atingir pela cooperação. Owen pensava que o homem dependia estreitamente do meio. Modificar o meio e preparar aos trabalhadores melhores condições de existência e de trabalho é o seu primeiro objectivo. E a primeira coisa que se lhe afigurava necessária para a modificação do meio económico era a supressão do lucro. O lucro, paraRobert Owen, era aquilo que excedia o preço do custo. O que, em sua opinião, representava uma injustiça, porque considerava que o preço do custo era o justo preço. Além de injusto, o lucro era a causa das crises económicas de superprodução, ou, melhor, de subconsumo, porque, devido ao lucro, o trabalhador vê-se na impossibilidade de comprar o produto do seu trabalho e, portanto, de consumir o equivalente do que produziu.

 

Owen sente a necessidade de encontrar um processo de suprimir o lucro. Partiu do princípio de que, sendo sempre o lucro expresso em dinheiro, era por meio do dinheiro, da moeda, que o lucro se realizava. Consequentemente, concluiu que era necessário substituir a moeda por labour notes (senhas de trabalho). Estas senhas de trabalho teriam grande vantagem sobre a moeda, como padrões de valor, dado que representavam o trabalho exacto gasto a produzir cada mercadoria. O trabalhador receberia pelo seu trabalho, em labour notes, o equivalente das horas de trabalho.

 

Estas ideias, destinadas a suprimir a moeda, foram postas à prova no National Equitable Labour Exchange (Armazém de Troca Equitativa do Trabalho) e redundaram num desastre. O processo de abolição ou substituição da moeda deve, de resto, ser considerado como um dos aspectos do esforço de Robert Owen para suprimir o lucro; um outro processo é o da restituição dos lucros que as cooperativas realizariam na proporção das compras de cada um dos seus associados. Foi com essa finalidade que surgiram os armazéns cooperativos. A primeira experiência triunfante é a de Rochdale, na qual Owen não tomou parte, mas à qual o seu nome está indiscutivelmente ligado, não só pela doutrina de que foi o grande impulsionador, como pela circunstância de serem seus discípulos seis dos vinte e oito pioneiros de Rochdale.

 

A associação cooperativa basta para assegurar a glória de Robert Owen e é o aspecto do seu pensamento que tem real actualidade; mas é necessário não esquecer que Owen empreendeu experiências colectivas de verdadeiro carácter comunista. De todas a mais célebre é a colónia Nova Harmonia, criada em 1824, em Indiana, na América do Norte. A experiência durou dois anos. E fracassou. Mas, apesar de todos os fracassos, Owen não deixou de pregar as suas ideias com uma espantosa energia moral.

 

7 - Charles Fourier

 

Contemporâneo de Saint-Simon, Charles Fourier (1772-1837) elabora a sua doutrina no decurso do mesmo período histórico. Não é um aristocrata instruído, é um comerciante e um autodidacta. Há nas suas obras delírios de fantasia, mas nada menos indicado para atemorizar os cidadãos pacíficos do que o falanstério. Estamos muito longe do radicalismo dos utópicos ingleses; o falanstério não se compara à Nova Harmonia, de Robert Owen, nem à Utopia, de Morus. Contudo, na crítica à organização económica e social existente no seu tempo, Fourier mostra maior agudeza que Owen. Para Fourier a concorrência livre é um estado anárquico em que todos os abusos são possíveis, e mais grave ainda que os vícios da repartição considera ele o facto de a produção ser insuficiente.

 

Para justificar a necessidade da criação de um novo meio social, no qual o homem não seja a vítima da «liberdade económica», Fourier cria uma vasta cosmogonia e dá largas à imaginação estabelecendo analogias entre o mundo celeste e o mundo social. No plano económico a associação universal e livre corresponde à identidade que Fourier vislumbra entre o cosmos e a sociedade. Para Fourier não se trata de suprimir a propriedade, mas de transformar o regime de propriedade. A associação transformará a propriedade de individual em societária e a produção de dispersa em unitária. Esta transformação não é obrigatória porque a associação é voluntária e livre.

 

Será no falanstério que se realizará a associação. O falanstério será um grande «hotel cooperativo», de que Fourier traça uma descrição muito pormenorizada. Ali se viverá em comum, substituindo-se a instituição da casa familiar por um grande serviço colectivo. A vida no hotel cooperativo tem também uma finalidade moral: pela convivência diária deseja-se melhorar os sentimentos recíprocos entre os homens, que no regime social liberal, segundo Fourier, «se movem numa escala ascendente de ódios e numa escala descendente de desprezo».

 

O hotel cooperativo de Fourier - o falanstério - pertence a uma associação e só recebe os membros dessa associação. A associação - a falange - não é apenas uma sociedade de consumo; é igualmente uma sociedade de produção. Em volta do edifício onde está instalado o hotel cooperativo, o falanstério compreende um terreno com cerca de 400 ha., com campos de cultura e instalações industriais, de modo a poder fornecer aos seus associados tudo quanto necessitarem. Cada falanstério é um pequeno mundo que se basta a si próprio. A falange era constituída como uma sociedade por acções, e os lucros, que, segundo Fourier, viriam a ser consideráveis, seriam distribuídos como dividendos aos societários, não em proporção ao número das acções que cada um possuísse, mas segundo a seguinte regra distributiva: ao capital, 4/12; ao trabalho, 5/12; ao talento, 3/12. Por talento designava Fourier a direcção, e esta seria eleita.

 

No falanstério o trabalho assalariado convertia-se em trabalho associado, e esta transformação dos assalariados em proprietários co-interessados tomava o trabalho mais atraente e, por esse motivo, mais produtivo, dado que, na opinião de Fourier, «o espírito de propriedade é a mais forte alavanca conhecida para electrizar os civilizados». No falanstério o proprietário de uma acção é co-proprietário de toda a organização e participará nos lucros, não só em relação ao seu trabalho, como em relação ao seu capital, como em relação ao seu talento, porque, se lho reconhecerem, pode ser eleito para a direcção.

 

O sistema Fourier não visava a abolição da propriedade, propunha-se a abolição do salariato pela criação da co-propriedade. Pela associação voluntária a propriedade tornava-se universal. O aspecto utópico da doutrina de Fourier, que o historiador contemporâneo pode considerar criticamente, não a impediu de exercer no seu tempo uma considerável influência no desenvolvimento das ideias socialistas.

 

As principais obras de Charles Fourier são: Théorie des quatre mouvements et des destinées générales (1808); Traité de l'Association domestique et agricole (1822); Nouveau monde industriel et sociétaire (1829); La fausse industrie (1835-1836). O seu discípulo Victor Considérant, além de uma boa exposição do sistema, realizou várias tentativas falansterianas, que não foram coroadas de êxito.

 

8 - Louis Blanc

 

Historiador, jornalista, orador e político, Louis Blanc (1811-1886) conquistou o lugar que ocupa na história do pensamento económico com um pequeno volume, L' Organisation du Travail (1839), reedição de um estudo publicado em La Revue du Progrès Social. Inspirado nas obras de Sismondi e de Fourier, Louis Blanc critica violentamente o regime da livre concorrência e com o seu livro, refundido e escrito nove vezes, deseja provar: «1.º, que a concorrência é para o povo um sistema de extermínio; 2.º, que a concorrência é para a burguesia uma causa incessante de empobrecimento e de ruína.» Ao regime da concorrência gerador de todos os males económicos Louis Blanc opõe o regime da associação. Mas a associação, para Louis Blanc, deve ser fomentada e financiada pelo Estado. Escreve Blanc. «A emancipação dos trabalhadores é um tarefa muito complicada, relaciona-se com muitos problemas, destrói muitos hábitos, contraria, não na realidade, mas na aparência, muitos interesses para que não seja loucura acreditar que ela se pode realizar por uma série de esforços parciais e de tentativas isoladas. É preciso recorrer a toda a força do Estado. O que falta aos proletários para se emanciparem são os instrumentos de trabalho. A função do Estado é fornecer-lhos. Se tivéssemos de definir o Estado segundo a nossa concepção responderíamos: o Estado é o banqueiro dos pobres».

 

Ainda sob outro aspecto difere a associação de Louis Blanc dos projectos associacionistas anteriores É que para Blanc a associação estabelece-se por ramos profissionais; o «atelier» social agrupa operámos do mesmo ofício, é simplesmente uma forma de cooperação na produção enquanto quer Owen, quer Fourier, propuseram a cooperação simultânea na produção e no consumo.

 

Os lucros do «atelier» social seriam divididos em três partes: uma parte para os operámos como melhoria dos salários; outra seria destinada à manutenção dos velhos e dos doentes, e constituiria ainda um fundo de socorro às indústrias em crise; uma terceira destinar se-ia à compra de instrumentos de trabalho para pessoas que quisessem aderir à associação E porque o «atelier» social produziria melhor e mais barato, dado o interesse dos trabalhadores, seria não só uma forma de organização económica, como um instrumento de combate e de concorrência à indústria privada. Blanc afirmava: «Trata-se de utilizar a própia arma da concorrência para fazer desaparecer a concorrência».

 

A revolução de 1848 e a criação das oficinas nacionais que não correspondiam às oficinas sociais descritas no seu livro, deram a Louis Blanc grande notoriedade. O êxito da sua obra deriva mais da sua popularidade como político e do seu renome de historiador do que da originalidade e coerência do seu sistema. Mas L'Organisation du Travail era uma exposição clara, precisa e simples que os trabalhadores leram e compreenderam, e foi mais no volumezinho de Louis Blanc do que nas delirantes visões de Fourier que a classe operária francesa se instruiu na ideia da cooperativa de produção.

 

9 – Pierre-Joseph Proudhon

 

Como Fourier, P.-J. Proudhon (1809-1865) nasceu em Besançon, no Franco-Condado. Pertencia a uma família pobre. Era o mais velho dos cinco filhos de um cervejeiro, homem simples e honesto, cuja dura vida de trabalho Proudhon evoca em muitas das páginas que escreveu. Numa carta a Mdme. d'Agoult, Proudhon pergunta: «Senhora: sabeis quem era meu pai? - Um honesto cervejeiro a quem ninguém conseguiu meter na cabeça que, para ganhar dinheiro, era preciso vender por mais do que o preço do custo. Afirmava sempre que isso seria um bem mal adquirido. «A minha cerveja», repetia ele sempre, «custa-me tanto, incluindo o meu salário; não a posso vender por mais». Que aconteceu? O meu honrado pai viveu pobre, morreu pobre e deixou os filhos pobres». Do ambiente familiar, camponês e artesanal, Proudhon saiu para viver à sua custa e para realizar alguns estudos. Frequentou como externo o colégio de Besançon, e mais tarde, já tipógrafo, candidatou-se à «pensão Suard». É grande a sua vonade de saber e procurará satisfazê-la durante toda a vida, que será difícil e acidentada. Na sua Correspondência escreve: «[...] dormindo nas oficinas, testemunha dos vícios e virtudes populares, comendo pão com o suor do meu rosto, obrigado com o parco ordenado a ajudar a minha família e a contribuir para a educação dos meus irmãos, no meio de tudo isso meditando, filosofando, colhendo nas menores coisas observações imprevistas». Este gosto pela observação e o seu insaciável amor pelo estudo deram-lhe uma apreciável soma de experiência e de conhecimentos, a que não corresponde uma cultura nitidamente elaborada. O seu interesse pela filosofia, e principalmente pela obra de Hegel, que não consegue inteiramente assimilar, leva-o a cultivar as contradições e os paradoxos.

 

Perseguido pela primeira vez quando da publicação das suas Memórias sobre a Propriedade, vai residir para Lyon, onde exerce a profissão de guarda-livros. Após a revolução de 1848 funda, sem sucesso, um Banco do Povo. A publicação da sua obra De la justice dans la Révolution et dans l'Église dá lugar a que seja novamente perseguido, vendo-se obrigado a tomar o caminho do exílio, e fixa residência em Bruxelas, onde morreu em 1865.

 

Proudhon produziu uma obra muito vasta. Vinte e seis volumes na Edição Lacroix. As suas principais obras são as seguintes: Qu'est-ce que la propriété? (1840); De la création de l'ordre dans l'humanité (1843); Système des contradictions économiques (1846); Résurné de Ia question sociale, Banque d'échange (1848); Les confessions d'un révolutionnaire (1849); Idée générale de Ia Revolution au XIX siècle (1851); De la Justice dans la Révolution et dans l'Église (1858); De la capacité politique des classes ouvrières (1865).

 

10 - A crítica de Proudhon

 

É em 1840 que Proudhon publica a sua obra Que é a Propriedade? No título formula uma interrogação a que responde em termos que ficaram célebres: «A propriedade é o roubo». Pensou a grande maioria dos leitores, e o público que o não leu, mas admirou, que Proudhon condenava toda e qualquer propriedade. Não era, todavia, assim. A simples propriedade privada, a livre disposição do produto do trabalho e das economias individuais, é, na opinião deProudhon, um fundamento da liberdade individual. Proudhon limita-se a condenar, quanto à propriedade, o direito que ela confere a certos proprietários de receberem, sem trabalho algum, determinado rendimento. Não é em si a propriedade, mas o direito à sucessão, e a renda, o aluguer, o juro, o lucro, o ágio, os descontos, as comissões, os privilégios, os monopólios, que Proudhon condena veementemente.

 

Como os autores socialistas anteriores, ou contemporâneos, Proudhon considera que o trabalho é a única fonte de valor. Sem o trabalho, a terra ou o capital não são produtivos. O dinheiro que o proprietário exige como paga de capacidade produtiva da sua terra vem a ser um abuso, a obrigação de pagar «alguma coisa por nada», porque, sem o trabalho, a terra nada produz. Este é, segundo Proudhon, o roubo. E, consequentemente, ele dá da propriedade a seguinte definição: «O direito de gozar e de dispor dos bens de outrem, fruto do engenho e do trabalho alheio».

 

A sua crítica à propriedade privada constitui o aspecto fundamental da sua crítica ao liberalismo; ele só aceita a propriedade que é fundamento da liberdade individual, dado que considera uma questão de justiça o facto de o homem possuir as coisas em que incorpora o seu trabalho. Só é legítima, para Proudhon, a propriedade que concilia com o princípio da justiça, ou seja, com a liberdade. Proudhon dirá: «A liberdade, eis todo o meu sistema: liberdade de consciência, liberdade de imprensa, liberdade de trabalho, liberdade de comércio, liberdade de ensino, livre concorrência, livre disposição dos frutos do trabalho e do saber, liberdade até ao infinito, liberdade absoluta, liberdade em toda a parte e sempre».

 

Deste ângulo libertário atacará Proudhon os autores que se pronunciaram a favor do socialismo e da associação. A organização do trabalho e a associação considera-as ele como desfavoráveis à liberdade do trabalhador. Para Proudhon a «perfeição económica reside na independência absoluta dos trabalhadores do mesmo modo que a perfeição política reside na absoluta independência dos cidadãos». Ora a associação, criando uma estreita interdependência dos cidadãos associados, é contrária à liberdade e à justiça. Proudhon afirma peremptoriamente: «A comunidade é desigual, mas no sentido inverso da propriedade. A comunidade é a exploração do forte pelo fraco». E, como pensa que as ideias dos autores socialistas não têm qualquer valor, propõe-se construir o seu sistema «entre a propriedade e a comunidade».

 

A ideia de justiça implica a ideia de igualdade. Os homens devem tratar-se com reciprocidade: a reciprocidade nas relações sociais converte-se em reciprocidade de serviços na vida económica. Do princípio eterno de justiça: «Faz aos outros o que queres que te façam», deriva, como lógica consequência económica, a mutualidade e reciprocidade de serviços: o mutualismo. A teoria da mutualidade representa, segundo Proudhon, «a síntese das duas ideias de propriedade e de comunidade». Foi a esta conclusão, já de carácter positivo, que a crítica do socialismo o conduziu.

 

11 - O mutualismo e o banco de troca

 

Como escreve Ch. Rist no seu conhecido estudo sobre Proudhon: «O princípio fundamental sobre que assenta todo o projecto é o seguinte: entre todos os capitais que permitem aos seus proprietários receber, sob o nome de juro, renda, desconto, etc., um lucro sobre o produto do trabalhador, o mais importante é a moeda, visto que, afinal de contas, é sob a forma de moeda que todos se apresentam no mercado. Se conseguíssemos pois, suprimir o direito de lucro para esta forma universal dos capitais, se, por outras palavras, a moeda se emprestasse sem juro, o lucro desapareceria imediatamente para todos os outros capitais». A supressão do juro do dinheiro permitiria, portanto, obter capitais gratuitos e os detentores dos capitais deixariam de ter lucros sem trabalho. Deste modo, segundo Proudhon, a propriedade ficaria reduzida à posse. E porque o trabalhador recolheria integralmente o produto do seu trabalho, a justiça económica estava assegurada.

 

Na primeira das suas Memórias sobre a Propriedade, Proudhon proclama: «Suprimi a propriedade, conservando a posse, e apenas por essa modificação de princípio mudareis tudo nas leis, no governo, na economia, nas instituições: expulsareis o mal da face da Terra». O processo para atingir este objectivo era a criação do crédito gratuito, o qual se obteria organizando um banco pela associação de todos os homens que desejassem usufruir os seus benefícios. O banco de troca não tem necessidade de capitais, emite valores de troca que não são convertíveis em moeda e que os associados receberiam em paga das suas mercadorias e serviços. A confiança mútua dos associados garante a circulação e a geral aceitação dos valores de troca, que representarão sempre mercadorias. Deste modo, os antagonismos entre trabalhadores e operários desapareceriam automática e pacificamente, dado que, eliminada a fonte de rendimentos sem trabalho, só existiriam trabalhadores iguais, que permutariam os seus produtos e serviços pelo preço de custo.

 

No seu livro Ideia Geral da Revolução no Século XIX, Proudhon afirmava: «Os cidadãos franceses têm direito de se entender e, em caso de necessidade, de se quotizar para fundarem padarias, talhos, mercearias, etc., que lhes garantam a venda e a troca, por preços reduzidos, e com boa qualidade, do pão, da carne, de todos os artigos de consumo que a anarquia mercantil lhes entrega com falsos pesos, com falsos rótulos e a preços exorbitantes [...]. Pela mesma razão, os referidos cidadãos têm o direito de fundar no seu interesse comum um banco com o capital que queiram, a fim de obterem por bom preço o numerário indispensável às suas transacções». Esta ideia de crédito mútuo tem, por vezes, sido apresentada como uma das muitas reconsiderações de Proudhon. Mas nesta concepção de um crédito cooperativo, de um crédito mútuo, reflecte-se o sentimento de que a liberdade é o verdadeiro motor da actividade económica.

 

Socialista pela preocupação igualitária e pela crítica vigorosa ao conceito tradicional de propriedade, libertário pelo espírito e pela formação mental, o pensamento de Proudhon influenciou, principalmente em França, as mais diversas correntes de opinião. Desde o sindicalismo revolucionário anti-parlamentar ao cooperativismo radical burguês, ao corporativismo paternalista e ao socialismo reformista todos se reclamam de Proudhon, o pensador romântico que a si próprio se classificava de anarquista, mas amigo da ordem.

 

12 - O socialismo de Estado

 

Proudhon reagiu contra o socialismo associacionista num sentido libertário; Rodbertus e Lassalle reagem num sentido estatista. Verdadeiramente o socialismo de Estado não é um novo sistema económico, um nova teoria, mas uma concepção política prática pela qual manifestam a sua preferência pensadores que visam objectivos sociais e políticos diferentes. O intervencionismo de Sismondi, certas páginas de Stuart Mill, o autoritarismo de Louis Blanc mostram como o papel do Estado na vida económica não se limita já a ser reconhecido, como é até preconizado Um francês contemporâneo de Louis Blanc, e que com ele participa nos sucessos revolucionários de 1848, pede a intervenção do Estado não só para remediar as injustiças da sociedade do seu tempo, mas igualmente para preparar, sem lutas dramáticas e perturbadoras, o advento da sociedade futura. A esta corrente, J. Karl Rodbertus (1805-1875) e Ferdinand Lassalle (1825-1864) trazem não só uma problemática mais elaborada, como uma importante irradiação política. Rodbertus, que é, por assim dizer, o eixo do grupo dos socialistas de Estado alemães, entra em relações com Lassalie por intermédio de Lothar Bucher, um antigo revolucionário de 1848 que se tornou posteriormente íntimo de Bismarck. Diz-se que o próprio Bismark teria tido conversas com Lassalle. E um outro amigo de Rodbertus, o economista Adolf Wagner (1835-1917), figura muito representativa do grupo dos socialistas de Estado alemães, foi muitas vezes consultado por Bismarck. Wagner é o autor de uma obra que estuda os fundamentos teóricos da economia política e que é uma exposição concatenada de um socialismo de Estado bastante moderado (Allgemeine oder theoretische Volkswirtschaftslehre, 1876-1879). Para Wagner, Rodbertus e Schäffle são os autores que se situam mais perto do seu próprio pensamento.

 

Rodbertus, discípulo de Sismondi e dos saint-simonistas, é um socialista intelectual, um grande proprietário rural que os êxitos de Bismark impressionaram e que considerará o socialismo como um movimento puramente económico. A sua influência foi considerável entre os escritores socialistas europeus do final do século XIX. Foi por seu intermédio que as ideias de Sismondi e dos saint-simonistas se transmitiram e propagaram. Nos seus livros Reivindicações das Classes Laboriosas (1837) e Cartas Sociais (1850-1851) defende a ideia de que o pauperismo e as crises têm a mesma origem: o salário não aumentar proporcionalmente à produção. Rodbertus não aceita o conceito liberal de que as sociedades são organismos que automaticamente atingem o equilíbrio pelo livre jogo das leis naturais. «Os Estados não têm a felicidade ou infelicidade», afirma Rodbertus, «de as suas funções vitais se realizarem por si próprias, graças a uma necessidade natural. São organismos históricos que se constituem por si mesmos e devem estabelecer as próprias leis e os próprios órgãos: por consequência, as funções destes órgãos não podem também exercer-se por si: compete ao Estado dirigi-Ias livremente, mantê-las e desenvolvê-las». Rodbertus quer «um sistema de direcção pelo Estado». Era um «monárquico, nacional e social». E, por outro lado, considera que no regime liberal não há possibilidade de afirmar que se procura adaptar a produção à necessidade social, porque a produção se relaciona sempre, e apenas, com a procura efectiva, aquela que é determinada pela posse da moeda, o que significa que só se satisfazem as necessidades dos que já possuem alguma coisa. Rodbertus reconhece, portanto, que é necessária a intervenção do Estado e que há vícios de sistema a corrigir, de modo que se não satisfaz com uma simples legislação humanitária.

 

Lassalle foi sobretudo um agitador, um homem de acção e um organizador político. O seu nome ficou ligado à chamada lei de bronze dos salários, que, numa carta dirigida a um congresso de operários alemães reunido em Leipzig, em 1863, caracteriza nos seguintes termos: «A lei de bronze económica, que, nas condições presentes, sob o reino da oferta e da procura do trabalho, determina o salário, é esta: o salário médio é sempre reduzido à subsistência necessária, indispensável, segundo os hábitos de uma dada nação, para a manutenção da existência e para a reprodução».

 

Tal é o ponto em volta do qual o salário real gravita nas suas oscilações, sem que jamais passe durante muito tempo acima desta média, porque, de outro modo, a situação mais fácil, melhor proporcionada ao trabalhador, suscitaria um aumento da população operária e, sequentemente, da oferta de braços, que reconduziria o salário ao seu antigo nível ou a um nível inferior.

 

O salário não pode descer de maneira duradoura abaixo dessa subsistência necessária, porque, neste caso, não deixaria de crescer a emigração, o celibato, a abstenção na procriação e, finalmente, diminuiria o número dos operámos em consequência da miséria, a oferta de braços restringir-se-ia e o salário voltaria a subir ao nível anterior». Esta lei, de resto, é simplesmente uma nova formulação da teoria, de Ricardo, do «salário necessário», que o economista inglês definia assim: «O preço do mercado do trabalho é aquele que é efectivamente pago pelo jogo natural da relação da oferta e da procura».

 

Lassalle preconizou a criação de oficinas de produção subvencionadas pelo Estado e atribuiu a este um importante papel intervencionista. Segundo Lassalle, o fim do Estado é «realizar o destino humano, isto é, toda a cultura de que a humanidade é capaz: é a educação e o desenvolvimento humano no sentido da liberdade».

 

Wagner, após a morte de Lassalle, e depois de, no Congresso de Eisenach, em 1872, se ter procurado definir uma doutrina em face dos problemas sociais, pretende na sua obra conciliar a ideia da «intervenção do Estado» de Lassalle com o conceito de «economia nacional» de List. Na obra em que estuda os fundamentos teóricos da economia política (Allgemeine oder theoretische Volkswirtschaftslehre, 1876-1879) afirmava que existe entre os indivíduos e as classes de uma nação uma solidariedade moral muito mais forte do que a solidariedade económica. Wagner entendia que o Estado devia assegurar a justiça na distribuição da riqueza, melhorar as condições de vida da classe operária, criar instituições de interesse público. Bismarck compreendeu a vantagem da difusão das ideias do socialismo de Estado, tanto no combate ao liberalismo como na luta contra o socialismo revolucionário, e, embora tenha adoptado algumas medidas de carácter social, aproveitou-se do prestígio da doutrina para fortalecer o Estado.

 

13 - Socialistas ricardianos ingleses

 

Na Inglaterra da primeira metade do século XIX a indústria tinha já atingido um grande desenvolvimento, as lutas dos operámos industriais eram frequentes e iniciava-se o movimento das trade unions, associações operárias de carácter sindical que só mais tarde apareceriam nos outros países europeus. Estas condições sociais, a divulgação do utilitarismo de Bentham e a lição da escola clássica, principalmente das doutrinas de Ricardo, tornaram possível o aparecimento de um grupo de autores socialistas que tiram conclusões novas e revolucionárias das obras dos clássicos. William Thompson (1785?-1833), John Gray (1799-1850), Thomas Hodgskin (1787-1869), John Francis Bray (1809-1895), diferem sob muitos aspectos, mas revelam um certo número de ideias fundamentais comuns. Todos eles aceitam que o trabalho é a verdadeira medida do valor e todos enunciam já a noção de mais-valia. Aceitam o princípio utilitarista da necessidade de alcançar «a maior felicidade para o maior número» e pensam que a estrutura da sociedade não é imutável e de origem divina.

 

William Thompson publicou An Inquiry into the Principles of the Distribution of Wealth most Conducive to Human Happiness (1824) e é, sob alguns aspectos, um discípulo de Robert Owen. Nas páginas das Investigações sobre os Princípios da Distribuição das Riquezas revela mais densidade científica do que R. Owen nos seus escritos. William Thompson não só é considerado por muitos autores o criador da noção de mais-valia, como pelo seu conhecimento da ciência económica e pela profundidade do seu pensamento é algumas vezes indicado como fundador do socialismo cooperativo.

 

Para estes economistas só o trabalho justifica a propriedade. Nas suas obras, a teoria do valor-trabalho adquire uma significativa importância que não encontramos no próprio Ricardo. A renda, o juro e o lucro não só constituem um rendimento ilegítimo, como geram as contradições sociais. Hodgskin defende as coligações operárias e as lutas por melhores salários; nas suas obras chega inclusivamente a afirmar que o capital não é produtivo.

 

14. Karl Marx

 

O fundador do socialismo científico nasceu em Trier, na Renânia, em 1818. O revolucionário Karl Marx pertencia a uma família burguesa de origem judaica. O pai, Hirschel Marx, era advogado; e o jovem Karl, após os seus estudos liceais, formou-se também em Direito, tendo frequentado as Universidades de Bona e de Berlim. Em 1837, já na Faculdade de Direito de Berlim, com 19 anos, descobre a Filosofia e, pretendendo ordenar as suas ideias jurídicas, chega à conclusão de que «sem um sistema filosófico não se atinge qualquer resultado». É então que se interessa pelo sistema de Hegel, tornando-se hegeliano.

 

Por essa época, sob a influência de Gans, professor de Direito Penal na Faculdade de Direito de Berlim, que Marx frequentava, começavam a surgir entre os jovens hegelianos tendências esquerdistas. A renovação do hegelianismo iniciara-se, em 1835, com a publicação da Vida de Jesus, de David Strauss. Foi extraordinário o sucesso desse livro entre a juventude intelectual alemã. Os jovens hegelianos fundaram um círculo, cujo membro mais influente era Bruno Bauer e no qual Marx ingressou. Tinha 19 anos quando assimilou a filosofia de Hegel e estabeleceu relações com a esquerda hegeliana. Tendo já concluído os seus estudos de Direito, Marx apresenta em lena, em 1841, a sua tese de doutoramento: Diferença entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e de Epicuro. Nesse momento, a grande ambição do jovem doutor era ser professor de Filosofia.

 

Nesse mesmo ano de 1841 a publicação do livro deFeuerbach A Essência do Cristianismo marcará o início de uma nova fase na evolução intelectual de Karl Marx. Ao conhecimento da filosofia materialista de Feuerbach junta-se o facto de Marx ter entrado, em 1842, para a redacção da Gazeta Renana. A actividade jornalística obriga-o a estudar várias questões concretas e a descer da especulação filosófica à realidade política. Foi durante esse período de actividade na Gazeta Renana (Outubro de 1842 - Março de 1843) que ocorreu a ruptura com a esquerda hegeliana. Em 1843 a Gazeta Renana é proibida. Em Junho desse ano Marx casa com Jenny von Westphalen, uma jovem aristocrática cujo irmão virá a ser um ministro conservador. Em fins de 1843 parte para Paris. Mantêm-se em França até 1845, entrando em contacto com os círculos socialistas franceses. Em Paris, Marx relaciona-se com o operário alemão Weitling, com Louis Blanc, Pierre Leroux, Henri Heine, Bakunine e Proudhon, por intermédio do qual entra em contacto como socialismo francês. É igualmente em Paris que se relaciona com aquele que será o seu grande colaborador e o mais íntimo dos seus amigos: Friedrich Engels.

 

Engels residia em Inglaterra desde 1842. Hegeliano da esquerda e socialista, Engels possuía uma experiência social e uma preparação teórica muito diferente da de Marx. Filho de um grande industrial de tecelagem e vivendo na Inglaterra industrializada, Engels tinha um conhecimento directo das condições de vida dos operários, estudara a economia política inglesa, conhecia a doutrina socialista de Owen e possuía já uma visão esquemática da interpretação materialista da história. Embora Engels tenha sempre negado a sua influência sobre Marx, o que é certo é que a colaboração de ambos, a partir do momento em que se conheceram, foi tão estreita que podemos falar com precisão de um pensamento comum. Efectivamente, o marxismo é obra comum de Karl Marx e de Friedrich Engels. Todavia, e apesar de ser Engels quem primeiramente abordou a crítica da economia política (nos Anais Franco-Alemães), as obras económicas fundamentais da escola marxista são da autoria de Karl Marx, E bastaria O Capital (Das Kapital) para lhe conferir, na história do pensamento económico, um lugar de relevo a par de Adam Smith e de Ricardo.

 

Durante a sua permanência em França, Marx publica o seu livro Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), no qual é directa a influência de Feuerbach. Partindo de posições análogas às de Feuerbach (confiram-se as Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia, 1842), Marx sublinha a contradição inerente ao Estado hegeliano e os nexos entre o idealismo de Flegel e as suas opiniões reaccionárias. Expulso de França em Janeiro de 1845, Marx parte com Engels para Bruxelas. Aí escrevem, de colaboração, a obra polémica A Santa Família, ou Crítica da Crítica Crítica. Em fins de 1846 Marx principia a escrever uma resposta à obra de Proudhon Filosofia da Miséria (Systéme des contradictions économiques, 1846); intitula esse trabalho Miséria da Filosofia e a sua publicação marca o rompimento definitivo das suas relações com o socialista francês.

 

Marx e Engels prosseguem, simultaneamente com a actividade teórica, uma intensa actividade política. Fundam várias organizações e em 1848 expõem a sua doutrina no opúsculo intitulado Manifesto Comunista. O opúsculo torna-se célebre e popular, sendo Marx expulso da Bélgica. Refugia-se novamente em Paris, seguindo depois para a Alemanha em companhia de Engels, para participar nos acontecimentos revolucionários de 1848. Em 1849 vê-se outra vez a caminho do exílio, e passa a viver em França e em Inglaterra. Em 1864, em Londres, funda a Associação Internacional dos Trabalhadores.

 

É na Inglaterra, onde encontra magníficas fontes de documentação, que se lança no estudo da economia política. As doutrinas da escola clássica, o desenvolvimento industrial do país e as crises cíclicas, que nesse período causavam já grandes apreensões, proporcionam a Marx um vasto campo de estudo. Em 1859 publica a Crítica da Economia Política, que é uma profunda introdução a O Capital, a sua obra decisiva, cujo volume I aparece em 1867. A fusão do movimento operário alemão proporciona-lhe ensejo para uma crítica vigorosa ao socialismo reformista (Crítica do Programa de Gotha).

 

Os restantes volumes de O Capital só foram publicados após a morte de Marx, ocorrida em 1883. Foi Engels quem publicou os volumes II e III de O Capital, respectivamente em 1885 e 1889. Em 1904 Kautsky reuniu as notas que Marx redigira para a elaboração do volume IV de O Capital e publicou-as com o título de Teorias da Mais-Valia.

 

Para o estudo da doutrina de Marx, sob o aspecto político, filosófico (materialismo dialéctico) e histórico (materialismo histórico), importa, necessariamente, considerar o conjunto da sua obra. E se, pelo que respeita à história do pensamento económico, a Crítica da Economia Política, as Teorias da Mais-Valia e, principalmente, O Capital são as obras fundamentais, é forçoso não tirar conclusões dos escritos económicos de Marx sem ter presentes os seus trabalhos de carácter histórico e filosófico.

 

15 - O método de Karl Marx

 

Descrevendo a maneira como pela revisão crítica da obra de Hegel, à qual na juventude aderira entusiasticamente, chegara à definição do seu próprio método, Marx escreveu: «O primeiro trabalho que realizei para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito, de Hegel [...]. As minhas investigações conduziram à conclusão de que as relações jurídicas - assim como as formas do Estado - não podiam ser compreendidas nem em si, nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas que, inversamente, tinham as suas raízes nas condições materiais da existência, que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, engloba no conjunto sob a designação de 'sociedade civil', e que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política [...].O resultado geral ao qual cheguei e que, uma vez atingido, me serviu de fio condutor nos meus estudos pode resumidamente formular-se do seguinte modo: na produção social da sua existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem um dado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura jurídica e política, à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, inversamente, o seu ser social que deterrmina a sua consciência. Num certo estádio de desenvolvimento as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no meio das quais até então tinham evoluído. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações tornam-se obstáculos ao seu desenvolvimento. Então inicia-se uma época de revolução social. A mudança na base económica transforma, mais ou menos lentamente, toda a enorme superstrutura. Quando se consideram tais transformações, é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições de produção económica - que se pode verificar fielmente com a ajuda das ciências da natureza - e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, em suma, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência deste conflito e que o levam às últimas consequências. Do mesmo modo que não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se pode igualmente julgar uma tal época de transformação pela sua própria consciência: é necessário, ao invés, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção [...]».

 

Deste modo, Marx poderá dizer: «O meu método dialéctico não é somente diferente pelos seus fundamentos do método hegeliano; é directamente o contrário».

 

16 - A análise do capital

 

Munido do seu método dialéctico, e tendo estudado profundamente a economia política inglesa, Marx vai analisar a estrutura económica da sociedade capitalista. «O que caracteriza a economia política burguesa», escreve Marx, é o facto de «ver na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas a forma absoluta e definitiva da produção social». Karl Marx fará a demonstração de que as categorias económicas - trabalho, troca, mercadoria, valor, moeda, mercado, lucro, salário - são categorias históricas. Verifica primeiramente que a vida económica na época capitalista consiste num sistema de trocas. E, ao contrário dos clássicos, conclui que essas trocas não podiam constituir um sistema de trocas equivalentes. Se assim fosse, ou não se dariam crises de sobreprodução, ou, mesmo que alguma crise de sobreprodução se verificasse devido a urna causa acidental, as crises não se repetiriam regularmente. É da própria periodicidade das crises que Marx deduz que não existe, conforme os clássicos afirmavam, uma tendência natural para a harmonia e para o equilíbrio económico, mas uma tendência permanente para o desequilíbrio, sendo legítimo concluir pela existência de uma causa normal das crises.

 

A teoria da troca de equivalentes não explica também para Marx a origem do lucro. O lucro apresenta-se-lhe como um «mistério social» que se oculta sob a enganadora aparência da harmonia da vida económica. Para explicar o lucro, a sobreprodução, as crises, é necessário penetrar no seio desse mistério, esclarecer as contradições da vida económica, atingir a essência do capitalismo. O problema das crises e a investigação do verdadeiro carácter do lucro conduzem Marx ao estudo do valor.

 

A teoria do valor de Marx é um elemento fundamental da sua construção teórica, representa urna extensão e um aprofundamento da teoria do valor de David Ricardo. Com a generalidade dos autores socialistas, Marx atribui ao trabalho a origem do valor. Entende que o valor de uma mercadoria é objectivamente determinado pela quantidade de trabalho social médio que essa mercadoria representa. Exemplificando: se um sapateiro leva dez horas a produzir um par de sapatos e um outro sapateiro leva vinte horas para realizar o mesmo trabalho, o par de sapatos valerá quinze horas de trabalho social médio. Os trabalhos de dois sapateiros, ou de dois pedreiros, ou de dois oleiros, são qualitativamente desiguais. Para que os produtos desses trabalhos se troquem basta que os diversos objectos que constituem os resultados materiais de trabalhos diferentes se tornem, sob um certo aspecto, equivalentes. Esse aspecto, que se abstrai nos produtos durante a troca, deverá ser, necessariamente, quantitativo e só poderá ser o ternpo de trabalho. Como escreveu Marx: «O tempo socialmente necessário à produção das mercadorias é o que exige qualquer trabalho, executado com o grau médio de habilidade e de intensidade e em condições que, em relação a um dado meio social, são normais». É sob este aspecto que os produtos se tornam comparáveis. A aparência económica dá-nos a ilusão de que o dinheiro se troca por dinheiro, ou por coisas que valem dinheiro. Enquanto, na realidade, a troca estabelece a passagem de umas mãos para outras de trabalho humano incorporado nos produtos da actividade humana, e isso segundo certas relações históricas e sociais que constituem a estrutura de cada sociedade diferenciada (comunidade tribal, sociedade senhorial, sociedade capitalista, etc.).

 

A Adam Smith e Ricardo, que tinham compreendido que o trabalho era o verdadeiro fundamento do valor, faltava a visão dialéctica, a compreensão filosófica da natureza e do homem. A simples troca de mercadorias constitui uma operação complexa, iguala o que é desigual, realiza um movimento dialéctico. Essa troca de produtos equivalentes prossegue sem grandes dificuldades num regime de simples produção de mercadorias, como, por exemplo, quando artesãos produzem e vendem os seus produtos. Mas tudo se passa de um modo inteiramente diferente quando o apetrechamento industrial aumenta e entra numa parte importante no valor do produto, o que se passa ao iniciar-se a época do capitalismo industrial, o verdadeiro capitalismo, na opinião de Marx.

 

O desgaste da maquinaria (e consequente amortização) entra no valor do produto, assim como o montante dos salários e o lucro; isto é:

 

e = c + v + pv

 

(designando-se por e o produto global, por c a parte das máquinas, por v a soma dos salários e por pv o lucro). A parte do capital investido na maquinaria, nas instalações industriais e nas matérias-primas, ou seja, aos meios materiais de produção, dá Marx o nome de capital constante. Essa parte entra integralmente no valor do produto. Marx designa-a assim para a distinguir do capital variável, ou seja, daquela parte do capital que o empresário capitalista gasta em salários e da qual lhe provém o lucro, dado que o capital constante, integrando-se no produto, não muda de valor durante o processo de produção.

 

À proporção do capital constante e do capital variável no investimento capitalista dá Marx o nome de composição orgânica do capital. A composição orgânica do capital varia conforme os diferentes ramos de produção. Alguns há que possuem uma elevada composição orgânica, isto é, que carecem de muita maquinaria e de uma mão-de-obra relativamente limitada. Outros há que têm uma baixa composição orgânica, isto é, empregam uma grande mão-de-obra e utilizam meios materiais de produção relativamente limitados. Mas, analisando o processo de produção industrial, Marx chega à conclusão de que, independentemente da diferente composição orgânica do capital nos vários ramos da produção, duas mercadorias que resultem do mesmo tempo de trabalho social não são trocadas com o mesmo valor senão quando, sendo a oferta igual à procura, a composição orgânica dos dois ramos de produção for igual. O que nunca, ou quase nunca, acontece. E, todavia, é o valor que inegavelmente determina o preço; e é o trabalho total - passado e presente - que determina o valor na troca.

 

Deste modo, Marx chega à conclusão de que o lucro não pode resultar do processo de troca. Mas, ao mesmo tempo que refuta que o lucro possa ter a sua origem no processo de troca das mercadorias, compreende que é durante o processo da circulação das mercadorias que o lucro se torna evidente. O que só é possível se no processo de circulação das mercadorias (mercadoria – dinheiro - mercadoria) o possuidor de moeda encontrar à venda alguma mercadoria «cujo valor de uso tenha a qualidade particular de ser fonte de valor de troca». Uma tal mercadoria será susceptível de criar valor de troca, na medida em que for consumida. Para Marx só uma mercadoria tem essa qualidade - a de criar valor de troca na medida em que é consumida -, é a força humana de trabalho.

 

Com efeito, o assalariado não vende ao capitalista «o seu trabalho», mas sim a sua força de trabalho, o seu tempo de trabalho. Alienando o seu tempo de trabalho, o assalariado participa no processo criador do valor de troca e o seu próprio tempo de trabalho adquire um valor de troca determinado. Aparentemente, o tempo de trabalho individual de cada assalariado avalia-se em tempo de trabalho social médio; ele fornece um certo número de horas de trabalho individual, que valem uma certa quantia em dinheiro, que exprime o trabalho social médio. O salário representa, pois, a quantidade de trabalho necessário à sociedade para ela alimentar, vestir, alojar, etc., o trabalhador individual. Ora, necessariamente, este tempo de trabalho social médio preciso para manter o indivíduo é inferior ao tempo de trabalho social médio que representa o seu tempo de trabalho individual. Porque, se assim não fosse, o trabalho de cada indivíduo não seria produtivo; seria o trabalho justamente suficiente para assegurar a sua própria manutenção.

 

O valor criado pelo assalariado, no tempo em que ele presta serviço ao empresário ou em que faz mover o apetrechamento industrial, é, portanto, superior ao que lhe é restituído no salário. O salário, pago em dinheiro, revela, e simultaneamente dissimula, uma operação complexa: a troca da força de trabalho, paga pelo seu valor, pelo valor criado pela força de trabalho. Considera-se que o salário paga o trabalho; na realidade, o capitalista guarda a diferença entre o salário e o valor do produto, entre o valor do tempo de trabalho e o valor criado por esse tempo de trabalho. Submetido à análise de Marx, o lucro deixa de ser um «mistério social»; é simplesmente a mais-valia adquirida pelo capital no decurso do processo de produção. «A exploração do trabalho é um fenómeno social, não resulta de qualquer situação particular, é independente da vontade individual do capitalista ou empresário, insere-se na lógica profunda do sistema capitalista».

 

Os economistas clássicos tinham pensado que o capitalismo se baseava numa imensa troca de serviços e de valores equivalentes. E, em certo sentido, assim era. Mas, sob um outro aspecto, sob o aspecto desvendado pela análise de Marx, o capitalismo surge como uma troca de não equivalentes. E, por isso, em vez de harmonia e equilíbrio, no seu seio manifestam-se sucessivamente forças de desequilíbrio e de rotura. Existe um conflito interno que toma dominantemente o aspecto de a massa dos produtores se encontrarem numa situação económica que não lhes permite consumir a massa dos produtos que produziram. Daí a tendência para a sobreprodução, tendência constante e que, de tempos a tempos, reveste a forma de momentâneas roturas do equilíbrio entre a produção e o consumo.

 

Para Marx a contradição fundamental não é a que existe entre a produção e o consumo, mas a que se verifica entre o carácter socialmente produtivo do trabalho e a apropriação privada dos produtos do trabalho. Desta contradição fundamental decorre uma série de conflitos que Marx estuda pormenorizadamente: conflitos económicos (entre a produção e o consumo), conflitos sociais (entre as várias classes da sociedade), conflitos políticos (luta para o domínio do Estado).

 

As crises periódicas revelam o conflito interno entre as forças de equilíbrio e as forças de rotura. O ciclo económico apresenta uma tendência para a sobreprodução, que, ao atingir a fase aguda, se manifesta pela crise, pela queda das vendas, pelo desemprego, pela destruição dos stocks, destruição de parte do apetrechamento industrial, etc.. Fazendo diminuir a produção, a crise recondu-la ao nível imposto pelas possibilidades de consumo. Vem então o período de equilíbrio, de animação económica, que dura algum tempo, e depois surge uma nova crise. O equilíbrio interno do capitalismo obtém-se por intermédio das crises. É a crise que restabelece o equilíbrio. Aquilo que aparentemente á anormal é, na realidade, necessário para assegurar o funcionamento «normal» do sistema. A crise resolve a contradição entre as forças de equilíbrio as forças de rotura. Tal é a dialéctica interna do sistema capitalista, segundo a análise de Karl Marx.

 

 

 

 

 

(*) Em 1951 Fernando Piteira Santos publicou, sob o pseudónimo de Arthur Taylor, um livro de divulgação intitulado ‘As grandes doutrinas económicas’ que a Europa-América continua a reeditar (vai já na 11ª edição) na sua coleção de bolso Saber. É desse livro que aqui publicamos o Capítulo VI. Não é dos melhores textos deste autor (longe disso), mas é representativo do que, na sua época, se procurava dar a saber em Portugal sobre Marx e o socialismo, ainda que de forma rebuscadamente encapotada.

 

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