A Catedral

 

Manuel Ribeiro

Manuel Ribeiro (*)

 

 

(...)

 

IX

 

(...)

O calor tinha descido. O sol encobria-se já por trás da grande mole granítica, e da alta parede do transepto vertia uma sombra fresca, penetrante e fina. Aproximava se a hora de largar. Lá em baixo o tic- tac dos canteiros esmorecia, tinha lentidões e largas síncopes exânimes no afrouxamento do trabalho, que começava em toda a Sé. Dois operários que se encostavam ao parapeito do claustro recolheram-se discretamente, notando que os observavam do terraço do Capítulo.

 

O beneficiado Tiago, que reparára no gesto, voltou-se bruscamente para o arquitecto, impulsionado por uma idéa.

 

- A propósito, já que evocámos o passado falemos um pouco do presente. Que tal se dá com os seus homens? Isto de dirigir operários nos tempos que correm é tarefa muito ingrata!

 

- Ah, certamente, replicou o arquitecto. E então os que tenho aqui!... São todos sindicalistas!

 

- Hein? exclamou o cónego num movimento de horror, esbugalhando os olhos. Sindicalistas? Pois é gente dessa que trabalha na Sé?

 

- Confesso, replicou Luciano sorrindo do espanto cómico do cónego, que foi uma das minhas grandes preocupações esta questão do pessoal. Meter operários de Lisboa numa igreja com o serviço religioso intensivo da Sé, ombro a ombro com os padres e uma legião de serventuários, era expôr-me a conflitos graves que malograriam a minha empresa. Mas que fazer? Recrutar operários fóra d'aqui? Impossível. De mais são êles já cá. Tomaram os govêrnos desembaraçar-se dos que por aí andam em bandos batendo à porta dos ministérios. Tive, portanto, que resignar-me com o que me mandaram da obra pública. Mas declaro lhes que não sofri, até hoje, o menor desacato e quanto à sua conduta na Sé...

 

- Lá isso, atalhou padre Anselmo, justo é dizer que não há a menor razão de queixa. São irreverentes e incrédulos e não se portam como cristãos; ninguêm o lamenta mais do que eu. Que outra coisa há a esperar de gente desta, educada sem religião na atmosfera ímpia das cidades? Mas, não senhor, não contendem conosco, não perturbam as cerimónias, não se intrometem no culto. Numa palavra, não teem o intolerante facciosismo dos demagogos.

 

- Mas então que sindicalistas são êsses, ou o que é isso de sindicalismo? exclamou o cónego.

 

- É doutrina que não conheço e que nem me interessa absolutamente nada, retorquiu o arquitecto; mas, segundo oiço ao João Coutinho, que às-vezes me fala nestas coisas, creio que é uma teoria de renovação social tendo por base as organizações profissionais.

 

- Uma utopia a acrescentar a tantas outras, notou padre Anselmo.

 

-Mais um rebento do liberalismo sanguinário, está bem de vêr... Mas quem diabo é êsse João Coutinho? inquiriu o cónego.

 

- É um dos principaes cabeças dêles, o secretário geral das associações, creio eu, esclareceu Luciano. Hoje deve êle aparecer. Devia mesmo ter já subido. É o meu melhor canteiro. E com aquêle ar de operário modesto, bem educado e cortez, é capaz de desencadear uma revolução!

 

- Faço idéa, rosnou o cónego. E vive aqui um demónio dêsses afrontando a divindade! Os crimes que êle não terá premeditado sob êstes muros sagrados! Senhor, Senhor, está o mundo perdido!

 

- Mas esperem é êsse canteiro dos capiteis, ao fundo do claustro, exclamou padre Anselmo admirado. Tão boas maneiras, não parece?

 

- Êsse mesmo, corroborou Luciano. Um artista a valer e esperto como um letrado. Mas não se admirem; nos meios operários de hoje são frequentes êstes meneurs, muito hábeis e instruídos. Lá fóra chegam a ser deputados e até ministros. Compreende-se. O operário moderno das cidades, é relativamente bem pago. Com um horário de trabalho reduzido - a maioria das indústrias alcançou jà as oito horas - folga-lhe tempo para descansar, e lê, instrue-se, puxa por si; e se é inteligente, distingue-se, faz figura. Sei um pouco destas coisas porque privo com êles. Esta Construção Civil, que passa por ser, justamente, uma das classes mais subversivas e melhor organizadas, é em toda a parte o pesadêlo dos govêrnos. Cá por mim, é claro, não os receio nem tenho motivos para me indispôr com êles, e ainda bem, porque as suas reclamações não sou eu que lhas resolvo nem tinham que apresentar mas. O Estado é que é o patrão, pois com o Estado se entendam. Nas gréves da classe, que são frequentes limito-me a participar oficialmente quando abandonam o trabalho e depois quando o retomam. Nada mais. No primeiro caso dêsses que aqui tive, uma gréve de protesto, de solidariedade:ou não sei quê, recusei me bríosamente, por questão de disciplina, a readmitir o pessoal sem uma ordem superior. Compreendem, isto não me pertencia nem era eu que lhes pagava. Pois não calculam a maçada! Nas instâncias superiores ninguêm queria saber do caso. Uns acolhiam-me com evasivas, outros que fizesse o que era costume, e parece me que todos me acharam tolo. Afinal, faço o que vejo fazer. Fecho as portas quando êles se vão, reabro lhas quando regressam. Assim não ha dissabores e damo-nos todos admiravelmente.

 

- Aí está o grande mal, berrou o cónego ameaçador, condescender com a desordem, transigir com a anarquia! E não hão de êles impar de orgulho, cada vez mais exigentes, com tais provas de fraqueza! Quem lhes tem mão por esse andar?

 

- Mas que queria que eu fizesse? senhor cónego Rocha, preguntou o artista admirado.

 

- Não, o senhor não é culpado. Fez o que poucos fazem; cumpriu o seu dever, não é a mais obrigado. A culpa toda é do poder, é dos governos que não teem força nem prestígio para manter a discipuna e meter na ordem quem fóra dela sai. Mas que é que eu digo? Que autoridade póde haver hoje nestes governos saídos das sedições que atacam Deus e os seus altares e baralham os quadros sociais? Governos que são solidários com os díscolos e que fazem deles catapulta para derrubarem realezas e assentarem nos seus destroços a democracia igualitária? A democracia! Só isto, senhores! Há lá maior absurdo que este nivelamento de valôres sociais, que outra coisa não é o conceder os mesmos direitos ao patrão e ao servo, ao sábio e ao ignorante, ao proprietário e ao cavador! A igualdade de classes! Pois não veem que é lançar uma seara à terra e deixá la crescer e não a mondar? Se não catam as ervas e não estirpam os escalrachos, se não fazem uma selecção daquilo que é bom do que não presta a seara morre e não dá nada, o mal não deixa vingar o bem. A sociedade de hoje é uma seara assim. E cada vez será pior. Se o absurdo da democracia despojou as classes superiores de certos direitos e privilégios, Porque não hade ámanhã a anarquia expropriá-la dos seus haveres? E ela virá, oh se hade vir! Não tenham ilusões a este respeito. A democracia já cá está e a outra já range os dentes preparando o salto na sombra. Abyssus abyssum invocat... E será o fim do fim!

 

- O senhor cónego Rocha está pessimista, disse padre Anselmo muito sério. Eu creio que mais uma vez o cristianismo salvará o mundo. Se é inevitável o socialismo, Nosso Senhor não nos faltará com o seu socorro na hora grave da tormenta, e o que êle quizer é que hade ser.

 

O cónego Rocha mergulhou o olhar penetrante nas pupilas cândidas do capelão cantor e viu-lhes espelhado na transparência ingénua o lago tranquilo da alma que jámais encrespára o vento áspero da dúvida.

 

- Pois seja então como Deus quizer, murmurou o cónego num acento cómico de falsa beatitude, que fez sorrir os padres.

 

- Parece me que sobe alguem, notou padre Bruno inclinando-se no parapeito. O beneficiado Tiago debruçou-se tambêm com uma certa impaciência.

 

- Deve ser João Coutinho, disse o arquitecto.

 

Dali a pouco, um vulto assomava no alto da escada e saltava ligeiramente no terraço.

 

Era, de facto, o canteiro.

 

Padre Tiago devorava-o com o olhar.

 

O operário ficou um momento indeciso notando fixada nêle a curiosidade insistente dos eclesiásticos e, crendo-se indiscreto, ia voltar-se e descer quando o artista lhe bradou:

 

- Anda cá, João Coulinho, anda cá, não te vás embora!

 

O canteiro dirigiu-se para o -grupo.

 

- Vens em boa ocasião. Discutiamos a tua política, a política da classe. operária.

 

O artista sorriu.

 

- Política, política.. não me sôa lá bem a palavra.

 

- Política social, bem entendido, ou se te agrada mais, a questão social. Dizia aqui o senhor cónego Rocha que se um dia vocês, operários, fizessem vingar as suas doutrinas, era a dispersão das sociedades, o fim do mundo.

 

- Do mundo burguês também concordo. E está talvez mais perto do que imaginam.

 

- Ora diga-me com franqueza, interveio cónego Rocha com um ar provocador, crê o senhor deveras no que diz ou não nos está mistificando? Supõe acaso que governar um país é dirigir uma associação? Faz porventura idéa desta coisa complexa que é - um Estado?

 

- Ignorá-lo é ainda a melhor garantia de que nada dêle ficará de pé, respondeu o operário muito calmo.

 

Cónego Rocha perdeu a cabeça e tornou se lívido de cólera.

 

- Ora deixe-se de histórias. O que você não tem é os miolos no seu lugar. Pois entra lá na cabeça sã de alguém que é possível um estado social sem ordem, sem autoridade, sem um regime coercitivo de leis severas e inflexíveis para o meter a você na ordem e aos doidos como você? E sem tais meios de defeza quem é que podia viver?

 

João  Coutinho ficára indiferente às grosseris do padre e tolerante, sem perder a serenidade, replicou:

 

- As famosas leis de repressão! O que vale é que a vida tem mais força e o regime da compressão vê-se forçado a ceder e a alargar, como uma espécie de cinto elástico, à medida que os povos crescem. A marcha das sociedades, senhor cónego Rocha, para quem saiba vêr as coisas, é um incessante recuo desse aparelho coercitivo, uma contínua transigência com o espírito revolucionário de renovação e de progresso. Ora o cinto tanto alarga, tanto estica, que um dia estala.

 

- Mas é o instinto rebelde, a ferocidade nativa que as leis subjugam nos povos! Sem esta subordinação às leis corno é que havia sociedade?

 

- Creio que se engana, senhor cónego Rocha. Não são os povos que se adaptam às leis, mas as leis que se amoldam aos povos.

 

Houve um silêncio. Mais calmo, noutro tom, cónego Rocha prosseguiu:

 

- Não sei, não compreendo êste horrôr à sociedade que tão solícita se mostra, afinal, para os deserdados e desvalidos. O que não se tem feito em matéria de previdência social! Se há quem não tenha razão de queixa é, precisamente, o operariado. Que as outras classes o digam. Que o diga o clero, expoliado, perseguido!

 

- Os benefícios que disfrutamos são, em geral, conquistas nossas.

 

- Mas aos govêrnos os devem, aos parlamentos que lhos votam! Negam isto?

 

- Desengane-se, senhor cónego Rocha, nenhum govêrno cede espontaneamente. As medidas legislativas que nos oferecem como brinde não são mais que a sanção jurídica de factos cujas manifestações não podem já evitar-se. Quer dizer, o direito de gréve, o direito de reùnião e de associação, as oito horas, etc., não são dádivas de mão beijada nem, de resto, os trabalhadores esperaram que fôssem leis para usarem de tais direitos. Muito antes que se legislasse sobre gréves e associações já os artífices se concertavam para abandonar o trabalho, já êles se reuniam pala tratar dos seus interêsses. E tão naturais são êstes factos que os govêrnos, não os podendo já contrariar, fôram obrigados a sancioná-los, reconhecendo os, legalizando os.

 

Cónego Rocha estava confuso. Ele esperava os impropérios banais, as apóstrofes declamatórias e deparava se lhe, com grande espanto, urna hermeneutica subtil que lhe corroía a argumentação como um ácido correndo numa placa de metal. E condescendente, insinuou:

 

- Admitamos então que era possível conciliar os interêsses contraditórios sem a intervenção jurídica, por mútuo acôrdo, por uma entente. Sempre era preciso um orientador, um guia, um govêrno. Um povo não pode prescindir de govêrno para se amparar e dirigir. Um povo que não tem govêrno é um rebanho sem pastor.

 

A frase caíu bem. Um murmúrio d'aprovação percorreu a assistência. João Coutinho não se desconcertou.

 

- A comparação é velha e já não serve, porque a noção do povo é outra. Dantes sim. Dantes o povo era uma espécie de ser unitário, decalcado no tipo humano, uma síntese de unidades sociais simplificadas, mais estreitamente subordinadas a um chefe do que solidárias entre si. A projecção dum tal sistema dava um homem, necessariamente. Compreende-se, pois, que um chefe, um rei, por urna amplificação possível, representasse virtualmente uma nação inteira e que o povo coubesse todo no poente duma corôa. Desde, porém, que as classes se diferenciaram, o estado social transforma-se, a função do chefe extingue-se e embora persista na ficção constitucional da monarquia ou da rèpública, quem dirige é o parlamento, projecção de unidades sociais já mais complexas.

 

E os padres olhavam embasbacados, esta criatura no ínfimo da escala social, discutindo idéas e sistemas com o entono dum sociólogo.

 

- Compreendo onde te leva o raciocinio, disse Luciano sorrindo.

 

Ora as classes sociais, continuou o operário, cuja coesão é consequência dum equilíbrio momentâneo, vão perdendo a consistência, desagregam-se, dissociam-se pela acção doutras forças em outras fórmas de equilíbrio, e novos núcleos, regidos por outras afinidades, revolucionam os quadros do existente e preparam a estrutura duma nova ordem social.

 

E êsses núcleos existem já? preguntou padre Bruno.

 

Existem, sim senhor; são os nossos sindicatos, as associações profissionais, germens da sociedade futura.

 

- Ele aí está, o famoso sindicalismo, exclamou Luciano.

 

- Supunha eu que uma associação de classe tinha unicamente por fim zelar os interêsses económicos, observou o cónego Rocha.

 

- Sem dúvida, a função sindical é, concretamente, a defeza dos interêsses da classe operária, a conquista do seu maior bem estar. Mas, por detrás dêste objetivo, que é uma simples reivindicação de detalhe, a generalização decorrente da prática decalca o plano da finalidade ideal - que é a emancipação económica dos trabalhadores pela apropriação em comum dos meios de produção.

 

- Não vejo bem isso, atalhou o cónego, agora com certa curiosidade.

 

- O sindicalismo prevê a sociedade como um agregado de grupos corporativos ou associações profissionais elaborando e dirigindo a produção - o fenómeno económico por excelência. Não é, todavia, um movimento exclusivamente corporativo; é, antes, um completo sistema de transformação social. Há um pensamento sindicalista como há uma acção sindicalista. É uma filosofia nova do trabalho, da produção e da técnica que vem alicerçar em sólidas bases especulativas as velhas teorias inconsistentes. É um novo arranjo social, uma nova sinergia sob a forma dum federalismo economico substituindo o odioso regime capitalista baseado na ignomínia do salário, na exploração imoral do homem pelo homem. Podem crê-lo, a organização sindical vem acabar com o normal regime de amorfia e de heterogeneidade de classes que hoje impera e que se mantêm apenas pela força coercitiva do Estado.

 

- Vejo em tudo isso um tão estreito egoismo de corporação... observou padre Anselmo.

 

- Um novo reino de Cabet, ironizou o cónego.

 

- Não, não é uma nova Icária, uma utopia de gabinete, porque as linhas d'esta organização vêmo-las já esboçadas no actual regime económico. É a rêde das asassociações, dos sindicatos, dos núcleos corporativos, os mil afluentes das espécies profissionais, cujos encadeamentos geram essas grandes artérias da produção moderna chamadas federações de indústria. É a Construção civil e a Metalurgia que erguem as cidades, os palácios e os monumentos; rasgam as estradas e os canais e as vias ferreas e nos dão toda a maquinaria fabril; é a Federação dos transportes que movimenta os trâmueis, os expressos, os transatlânticos; a Federação do livro que apreende e fixa o labôr intelectual e reflecte os mil cambiantes do pensamento; a Federação da alimentação, o Textil...

 

- Compreendo, exclamou o cónego. A sociedade ume vasta oficina! Tudo operário! Tudo manual! E crê o senhor que a mentalidade se eleva assim? O seu sindicalismo é, pelo contrário, regressivo. O labor rnaterial, pintem no lá como quizerem, há de ser sempre uma característica plebeia envilecendo a criatura.

 

- Protesto, meu caro senhor, protesto! O trabalho não degrada, dignifica. Que o trabalho deixe de ser urna tara social, o estigma duma classe bestializada pela miséria, por séculos de servidão, e nós veremos corno ele é amado e é melhor e mais belo. Por esta dignificação do labor, de mister servil tornado função nobilitante, o sindicalismo é um movimento de renascença moral. Por outro lado, construindo, edificando, manufacturando, o gesto do artífice, cada vez mais inteligenciado, é uma conquista que, transmigrando na raça, se transforma lentamente na disciplinada aptidão técnica que afeiçôa maravilhas na matéria. O sindicalismo é ainda um movimento de renascença profissional.

 

- Tudo isso será muito bonito. Mas d'aí à realidade!... E como contam vocês vencer? Sim, porque os govêrnos com seus exércitos não se deixam levar por trêtas.

 

- Mas há o recurso da revolta, o apêlo à revolução, a greve geral!

 

- Uma revolta contra o Estado não é uma gréve contra o patrão.

 

- A gréve vulgar contra a exploração patronal não é senão um ensaio, uma simples demonstração do grande alcance dessa força. Ela é uma miniatura de gréve geral expropriadora, o grande abalo revolucionário duma extensão mundial que liquidará a burguezia. O mesmo sentimento que hoje mobiliza uma gréve, amplificado, dará àmanhã a revolução social. A gréve corporativa é assim o embrião da gréve geral revolucionária. A noção da gréve geral é a força motriz das reivindicações sociais, é o ideal que arrasta e empolga os militantes e dá ao operariado a consciência do seu poder. Será um mito para a razão? Que importa se é uma esperança nos corações? Não é o ideal o móbil de todas as revoltas? Não é a visão dum mundo novo quiméricamente sonhado que atrai as vagas das multidões nos seus assaltos subversivos? Imaginem então os trabalhadores de todo o mundo organizados em sindicatos e impulsionados tácitamente por êste ideal bem forte, bem profundo e consciente da gréve geral expropriadora e é a queda irremediável, é a derrocada infalível do velho mundo burguês.

 

E havia nestas palavras um tal ardor persuasivo que o auditório, abalado, rendia-se à evidência.

 

- Nada vos deram então já tantas revoluções, pronunciou com amargura padre Anselmo. Não cavaram elas sulcos bastante profundos para os vossos ideais enraízarem, nem derramaram o sangue preciso para as suas raízes beberem! Sangue, mais sangue, sempre sangue!

 

- Alguma coisa nos deram, não o negamos. As diferenciações sociaes baseadas outrora nos privilégios, nos preconceitos de raça, de casta e de religião, essas como que rugas do corpo social, a pouco e pouco as tem apagado o nivelamento igualitário dos séculos, a onda aluvial das revoluções. Mas uma linha divisória - que é um abismo - perdura e mantêm-se separando os homens implacavelmente. Esse abismo é a propriedade privada, o mais forte esteio do poder e da autoridade, e é ela que origina a exploração do homem pelo homem e permite, no século da liberdade de consciência, o privilégio iníquo do capitalismo. Não é por meios legais mas pela organização revolucionária do trabalho - por todo o povo em armas - que poderemos extirpar o grande mal, a funesta sobrevivência, fonte de todos os males. Desenganemo-nos. Só pela Revolução o grande crime cessará. É utopia supôr que resgatamos por meio de leis os nossos braços confiscados e as riquezas que êles criam. Pretender isso das classes dominantes seria o mesmo que declamarmos a urna montanha que se abaixasse para nos deixar passar. O engenheiro, quando traz o caminho de ferro ao pé dum monte, dilacera-o a ferro e a fogo para poder passar. Os cêrros são de natureza escalvados, onde a semente não germina. É na planície - na igualdade económica - que as fecundas sementeiras se desenvolvem, que as doiradas searas frutificam. E só com o bem estar comum, só com a participação de todos nos gozos que a vida e o trabalho oferecem é que será possível manter, tornar fixa e perdurável essa sonhada e idealizada paz estável à qual, por condição humana, - convençam-se disto todos! - só pela violência, só pela guerra em toda a sua desoladora expressão, será possível chegar um dia.

 

Cónego Rocha, estupefacto, levára as mãos à cabeça.

 

- Mas onde aprendem êles isto, senhores?! Quem lhes ensina estas coisas? Quem lhes préga tais doutrinas? Será também a reacção? Será a herança fradesca? A obra dos jesuitas? Corno a Igreja está bem vingada! O liberalismo deu cabo dela, mas não invejo a sorte dêle. O pior é que a tormenta apanha todos. E que tormenta, que catástrofe! Com tal espírito de rebeldia em milhões e milhões de almas, que não vai ser da sociedade, que não será o dia d'ámanhã! Aí está! Aí está no que veio a dar a guerra à religião. Quebraram o único freio capaz de conter os instintos rebeldes: agora agúentem se e aturem a besta desencabrestada. Que falta de previsão nos tais políticos do liberalismo, que demência, que cegueira! E como esqueceram depressa a história! Na febre de terem tudo, de serem só êles os senhores, ansiando o domínio absoluto, o poder ilimitado - que outra coisa não queriam êles - lá  porque a Igreja também mandava e tinha força e era rica, matam a força da Igreja, o mais forte sustentáculo da ordem social, o mais fiel aliado dos Estados, sem se lembrarem, os dementes, que foi a Igreja que venceu os Bárbaros e salvou a civilização, metendo na ordem e disciplinando as temíveis hordas insociáveis. Pois o perigo que ameaça as sociedades não é menor agora, não! E o que é que teem para lhe opor! Que disciplina que vergue a fúria dos novos Atilas vermelhos? Que doutrina como a de Cristo que toque as almas dos novos vândalos? Onde há uma santa Genoveva que salve outra vez Paris? Se esta gente tivesse crenças, era humilde, resignada, respeitadora da ordem. Mas que há a esperar de multidões para quem já nada tem prestígio, que não guardam temor a Deus, que não acatam os govêrnos, que não reconhecem a autoridade, que voltam as costas à lei e amesquinham o poder? Vejam là se os bons cristãos cometem tais desacatos, se negam Deus e a pátria, se prégam a anarquia social, se fazem gréves e motins ? A gréve, santo Deus! Isto diz tudo. Um regime que assim transige com a desordem é um regime sem prestígio, que ha de morrer nas garras dela. Há lá sintoma mais grave de impotência e cobardia que a violência legalizada? Eu que pago com o meu dinheiro, que sou senhor daquilo que é meu, que tenho direitos reconhecidos sôbre bens que me pertencem, mando menos que os meus criados, estou sujeito aos meus operários, aos meus rendeiros e feitores. Um dia coligam-se todos ao abrigo das pseudo-leis, deixam-me a terra por lavrar, a seara por levantar, a fábrica por laborar, e dizem me: - «É p'r'aqui tanto!» - E há que anuir aos que êles quizerem ou perde-se tudo e é a ruína, porque ninguem nos indemniza. É o caos em perspectiva! A derrocada no horizonte! Aí teem, senhores liberais e democratas, o resultado da sua política, revejam-se na sua obra. E agora venham dizer que são manejos dos jesuítas, que é a reacção clerical!

 

Cónego Rocha calára-se ofegante, Na sua face macilenta assomára um pouco de rubor e os olhos faiscavam concentradas indignações. De repente, no silêncio que se seguira, padre Tiago pronunciou numa voz clara, dominante:

 

- A Igreja perfilha em absoluto as suas doutrinas, senhor João Coutinho.

 

Os padres recuaram horrorisados, como se surgisse diante dêles Satanaz em pessôa. Cónego Rocha, de salto, quiz falar, mas a comoção reteve-lhe a voz. E num mixto de respeito e de terror, encararam todos o beneficiado muito temido na Sé por seu convívio com altas personalidades e misteriosas relações no Patriarcado, onde se lhe abriam todas as portas.

 

- A Igreja não é, como se diz e como se crê, incompatível com o socialismo, começou, imperturbável padre Tiago. É uma falsa insinuação explorada com fins políticos afirmar se que a Igreja é, em princípio, contra as classes trabalhadoras e está ao lado dos poderosos para oprimir os húmildes. Se há quem tenha o direito de reivindicar o título de defensor dos pobres e deserdados é precisamente a Igreja. A caridade, o altruismo, a abnegação e o desinterêsse, todas as sagradas fontes do bem, se não fôram virtudes que a Igreja inventasse, nem disso quer privilégio, foi contudo a Igreja que as sociabilizou e as inscreveu, filtradas e clarificadas das impurezas do paganismo, nos códigos de oiro da moral moderna. Pode negar-se de boa fé que a abolição da escravatura não foi uma obra cristã e que os missionários da Igreja não civilizaram meio mundo ? A região onde o cristianismo se propagou e desenvolveu não foi a que adquiriu a hegemonia política? A Europa seria o que é hoje se não tivesse sido cristã? Quem pode pois afirmar que a Igreja é contra a civilização e inimiga do progresso? E os operários e trabalhadores muito menos que ninguém. A sociologia emancipadora que os senhores apregoam e crêem ter inventado creámo-la nós inteiramente, é um produto do cristianismo. Pois onde foram buscar, senão ao Evangelho, essa igualdade e fraternidade que inscrevem como lema no seu pendão de guerra e que são o desabrochar do principio cristão "Amar o próximo como a nós mesmo”, germinando na terra fecunda das novas idealizações? Não, nada se encontra na ideologia revolucionária que não se contenha no Evangelho. A socialização das riquezas, que é a razão do seu sistema, não a ensaiaram já as primitivas comunidades cristãs? E não foi da Igreja que primeiro partiu a idea do Estado universal, da unificação de todos os povos, da confederação das nações? O catolicismo romano, agremiando os crentes por cima das fronteiras, tem a prioridade no federalismo unitário que forma o eixo das suas doutrinas. E êsse socialismo, que tanto o enche de orgulho, não existiria talvez ainda se há vinte séculos não tivesse nascido um homem que se chamou Jesus Cristo e que disse melhor em algumas parábolas o que KarI Marx mal definiu em indigestos tratados.

 

Padre Tiago calára se e um silêncio caiu pesadamente no terraço. Começava a anoitecer. Sôbre os telhados fronteiros fosforejavam vagamente as primeiras eslrêlas das guardas do Pégaso, mas ninguêm reparava, ninguêm se mexia, empolgados todos pela dominadora atitude do beneficiado.

 

- Combate-se muito a Igreja por imiscuir-se em política, continuou imperturbável. Infelizmente assim foi em parte. As contingências do meio social é que a levaram a isso. A política é sem dúvida um mal; mas se era a política que detinha o poder, que remédio senão ser se transitóriamente político por simples instinto de defeza? Hoje as coisas mudaram. A Igreja não quere já nada da política, dos partidos, nem faz mesmo questão de regime, como mostrou Leão XIII ao reconhecer oficialmente a república em França. Não, afirmou audaciosamente padre Tiago, a Igreja, que já não faz questão de regimes, não fará àmanhã questão da propriedade numa organização social nova. E entende se. Se o instrumento da Igreja é de natureza espiritual, se ela intervêm unicamente na disciplina das almas, a forma política das sociedades, o sistema de administrar as coisas deve ser-lhe indiferente.

 

Nova pausa cortou a fala do beneficiado, que prescrutou o efeito das suas palavras no rosto impassível do revolucionário. E no silêncio que persistia obstinado, como se à logica de padre Tiago nada pudesse contrapôr-se, o beneficiado continuou:

 

- Afinal, senhor João Coutinho, há menos distância entre nós do que realmente parece. Os nossos ideais ajustam-se, os nossos objectivos conjugam-se no longo percurso através da humanidade e é só ao saír dela, é no extremo da nossa jornada, onde a trajectória material acaba e se abre a grande clareira do infinito, que o senhor pára e se detem porque lhe falta a fé, porque lhe falta a envergadura para ensaiar um vôo mais alto. Hade convir, meu caro amigo, que, por muito generosa e altruista que a sua doutrina seja, ela não pode satisfazer a aspiração insaciável duma alma bem conformada. Analizado imparcialmente, o seu sistema fica ilógico, incompleto, no corte brusco de idealidade que o decepa em certa altura. E não falou desacertado quem quer que foi que chamou já ao socialismo um ideal de «ventre». Em verdade, o que pretendem os senhores? A comunidade dos bens? E depois? Sim, e depois? O que é que encontram no têrmo da sua jornada? O estéril negativismo, a monotonia do nada, a tristeza do fim. É inegável que os senhores planam acima do terra-a-terra vulgar, superiores aos outros homens que refocilam como vermes nos mais abjectos egoisrnos; mas isso é nada, isso é ainda rastejar, comparado a êsse frémito duma alma crente batendo as asas para Deus. Deus, fixe-o bem, é o ponto de referência de toda a marcha. Ir do rei ao povo, ir do palácio à choupana, é seguir sempre a mesma errada via. O que espera o bem do povo das virtudes dum eleito e o que o espera das virtudes do próprio povo, não mergulham talvez a vista a uma distância igual, um avançando mais do que o outro; mas o raio visual que emana de ambos forma, com a realidade chã, um ângulo do mesmo valor... Ora, o que importa no olhar não é o campo que êle alcança, é a elevação de que é capaz... Porque não tenta, pois, o grande vôo? Teme a vertigem? Ofereço-lhe o meu braço, o braço forte da Igreja que não recusa nem se recusou a ninguêm jámais!

 

O beneficiado afastou se e os outros padres seguiram-no. O operário ficou só, encostado à balaustrada. João Coutinho, logo às primeiras palavras de padre Tiago, compreendeu tudo num relance. Quem êle tinha na sua presença, incarnado nêsse padre que não hesitava chanceler com os sêlos da ortodoxia a mais condenável e subversiva das doutrinas era o espírito vivaz e móbil da Igreja numa das suas metamorfoses. João Coutinho, num momento, percebera tudo. Não, padre Tiago não emitia urna opinião pessoal nem procedia expontanearnente. O beneficiado era o executor automático dum plano e transmitia docilmente uma impulsão longínqua.

 

Ah, a vitalidade pasmosa de Roma! Tudo se rendia, mais cedo ou mais tarde. Tudo acabava por ficar para trás. Tudo se esmigalhava e esfarelava no surdo rolamento implacável do tempo. Só a Igreja escapava à falência das idéas e à derrocada dos sistemas, com a sua política sinuosa do «tudo na forma e nada na essência» e essa transigência elástica de invertebrado que a moldava a todos os regimes como um líquido no seu recipiente. Era bem o terrível émulo dos reformadores, êsse espírito católico de dominação, que João Coutinho tinha na frente, não mais intolerante, dogmático e sobranceiro, como quando dispunha do poder coercitivo, mas esgrimindo hoje com outras armas não menos fortes e decisivas as poderosas virtudes da inteligência, da reflexão e do saber.

 

E pela primeira vez, João Coutinho, apreensivo, talvez influência da sombra da noite, sentiu regelar-lhe a alma a ameaça dum poder rival nessa criatura calma, lúcida, insinuante, solidamente arcaboiçada, sem violencias nem sectarismos, que lançava audaciosamente as raízes das suas ambições até os subsolos das estruturas novas.

 

A Igreja, que escapára ao liberalismo, que sobrevivia às rèpúblicas ia ainda surgir, corno um escalracho, nas searas vermelhas da sociedade futura?

 

 

 

 

 

 

(*) Manuel Ribeiro (1878-1941), empregado de escritório nos caminhos de ferro, foi um dos mais destacados militantes operários dos começos do século XX. Colaborou assiduamente na imprensa operária, com destaque para ‘O Sindicalista’ e ‘A Batalha’, onde assinou a célebre coluna “Na linha de fogo”. Traduziu e fez publicar diversos autores, socialistas e não só (Kropotkine, Tolstoi, Gorki, Piere Loti, André Maurois, Mariana Alcoforado, entre muitos outros), preocupando-se sempre muito com as questões doutrinais. Em 1913 foi encarregado pela Comissão Executiva do Congresso Sindicalista de escrever a resposta do operariado a uma célebre conferência de Afonso Costa (‘Socialismo e catolicismo’) e travou também uma polémica doutrinal com Emílio Costa. Foi fundador da Federação Maximalista (1919) e do Partido Comunista Português (1921), participando na direção dos seus periódicos, ‘Bandeira Vermelha’ e ‘O Comunista’, respetivamente. Politicamente foi evoluindo do anarquismo inicial para o puro sindicalismo, foi seduzido pelo bolchevismo para se decidir finalmente pela democracia cristã (‘Novos Horizontes’, Guimarães & C.ª, Lisboa, s/d). Os seus escritos políticos socialistas estão, pela sua maior parte, reunidos em ‘Na linha de fogo – crónicas subversivas’, Emp. Ed. Popular, Lisboa, s/d. A sua conversão ao catolicismo dá-se por ocasião de uma prisão que sofreu aquando da grande greve ferroviária do Verão de 1919, tendo então sofrido a influência espiritual do célebre Padre Cruz. ‘A Catedral’, de que aqui publicamos um excerto do capítulo IX, foi o seu primeiro romance e logo constituíu um enorme sucesso literário e de público leitor. Seguiram-se-lhe ‘O Deserto’ (1922) e ‘Ressurreição’ (1923), com o que se completou a sua “trilogia social”. Seguiu-se-lhe a chamada “trilogia nacional”, com ‘A Colina Sagrada’ (1925), ‘A Planície Heróica’ (1927) e ‘Os Vínculos Eternos’ (1929). Manuel Ribeiro era o romancista mais lido em Portugal nos anos 1920, entrando em abrupto esquecimento a partir dos anos 1940. Para o final da sua vida trabalhou na Biblioteca Nacional e como conservador na Torre do Tombo.

 

Manuel Ribeiro - Bandeira Vermelha     Manuel Ribeiro - A Catedral