O quarto estado

 

Jose Fontana

José Fontana (*)

 

 

 

O famoso principio: A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos mesmos trabalhadores, proclamado em varios congressos operarios, tem levantado objecções de diversa natureza, que não julgamos fundadas; antes filhas de uma imperfeita comprehensão do mundo social.

 

Enquanto a muitos parece chimerico que a classe obreira, só por si entregue aos seus recursos e iniciativa, possa realisar os progresso e reformas que são a sua aspiração e que o espirito do epoca indica, julgam outros que ha nestas pretensões a autonomia e independencia do movimento operario uma como quebra da união e da solidariedade entre as classes da sociedade, uma scisão, senão perigosa, pelo menos desnecessaria.

 

A nós parece-nos coisa muito diferente, e muito outro é o nosso juizo.

 

O principio acima enunciado que resume, por assim dizer, a philosophia do movimento obreiro, é por um lado o reconhecimento e consagração da dignidade humana, que só se affirma pela responsabilidade e pelo trabalho e que não reconhece como meritorio e justo o beneficio que não provenha do esforço e dedicação do beneficiado; é, por outro lado, um elemento de ordem, uma garantia de paz e segurança para a sociedade no meio das impreteriveis transformações por que vae passando e tem que passar.

 

Expliquemos melhor o nosso pensamento.

 

Dada a existencia social do mundo operario como uma classe, o que é evidente, porque as condições economicas em que vive a extremam e especialisam na sociedade, segue-se que os seus progressos como classe só serão effectivos quando realisados pelo seu esforço, á sua custa e sob a sua responsabilidade. Fóra d'isto, esses progressos, tendo fóra da classe operaria a sua origem e rasão de ser, poderão ser contestados com toda a justiça, serão por assim dizer progressos postiços e de emprestimo, sem merito, destituidos de garantia séria.

 

Para que se possa dizer: a classe trabalhadora conquistou no seculo XIX taes e taes melhoramentos, é necessario que ella os conquiste effectivamente, ella e não outrem por ella, pela sua propria actividade e correndo-lhe os riscos. D'outro modo, esses melhoramentos serão como os do mendigo, precários, transitorios, exteriores, e a sociedade não póde rasoavelmente contar com elles como elementos reaes de força e vida.

 

É pois não só justo, mas necessario, que a emancipação dos trabalhadores seja obra dos mesmos trabalhadores. E não se deve confundir esta digna independencia com o exclusivo hostil e o espirito fanatico de seita, porque o movimento operario não exclue a cooperação das outras classes, sómente quer que essa cooperação se faça no seu ponto de vista, subordinada a elle, n'uma palavra, quer ter a responsabilidade e direcção do movimento, muito embora entrem n'elle elementos estranhos.

 

Isto por um lado; por outro lado, o principio «a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos mesmos trabalhadores», e a sua comprehensão e pratica verdadeira, é um precioso indicio de que as questões sociaes entram afinal n'um periodo organico, e que está achado um unico methodo de as resolver pacificamente, por uma serena evolução, de tal sorte que o progresso se realise sem involver na sua realisação a violação de direitos anteriores e a ruina immediata de interesses creados, se não absolutamente legitimos, ao menos respeitaveis até um certo ponto.

 

Com effeito, emquanto os interessados na resolução das questões sociaes esperarem pelo Estado, isto é, por uma rapida e completa inversão dos princípios e das instituições executada por um governo seu, a resolução d'essas questões, todas n'um dia e de uma maneira radical, é claro que a sociedade corria um perigo eminente, visto que todas as relações humanas podiam de um momento para o outro soffrer uma inversão total, e por conseguinte o progresso pacifico e a ordem (que não é a immobilidade, mas o movimento regular) se tornavam extremamente precarios.

 

A revolução de 1848 em França é uma prova formidavel da realidade d'este perigo.

 

Quando o receio de uma dictadura indeterminada, que podia tanto ser communista, como phalansteriana ou jacobina, tornava incerto e temeroso o dia de ámanhã, todos os interesses se assustavam, dava-se de barato a legalidade e a liberdade, com tanto que se assegurasse e ordem, e a esperança d'um progresso regular desapparecia no meio do pavor geral.

 

É d'este susto, e como que pesadelo, que o novo espirito que anima as classes trabalhadoras vem finalmente livrar a sociedade oppressa. O trabalhador já não espera do Estado, da iniciativa imperiosa d'um governo revolucionario, a melhoria das suas condições sociaes, mas só da sua livre iniciativa, exercendo-se fóra da esphera governamental, por meio de criações particulares, que se desenvolvem ao lado das instituições existentes, sem as ameaçarem de morte, mas luctando apenas pacificamente com ellas pela concorrencia economica, pelo trabalho e pela virtude.

 

O trabalhador, que já não é communista nem jacobino, não pretende já substituir á sociedade atual uma sociedade nova inteiriça, que n'um só dia destrua a obra de muitas gerações. Mais digno e mais sensato, o que agora pretende é crear para si, dentro do mundo actual, condições mais favoraveis, e ir assim correndo lentamente para a gradual transformação das imperfeitas instituições existentes, transformação cuja forma final é o segredo do futuro.

 

É por isso que o principio «a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos mesmos trabalhadores», ao mesmo tempo que determina o methodo racional para a solução dos problemas que o proletariado offerece ao mundo, é juntamente a mais solida garantia de ordem para todos os interesses preexistentes a esses problemas.

 

D'este principio sae um systema pratico, que não é uma mera utopia philosophica, mas urna realidade provada, e que mais provada se irá tornando de dia para dia: a Cooperação.

 

Associam-se entre si os trabalhadores, sobre as bases da justiça commutativa, isto é, do contrato livre e da igualdade e fraternidade, e por meio d'esta mutua cooperação criam instituições novas, centros já de resistencia, já de consumo, já de producção, que são como o embrião d'um mundo social novo, e que já hoje modificam vantajosamente as condições industriaes do obreiro, lhe dão força, nova alma para crear e esperar um futuro melhor, e preparal-o corajosamente.

 

Entrando n'este caminho, n'esta larga estrada real da emancipação pela energia e solidariedade dos individuos, o movimento operario, ao mesmo tempo encontrou a sua verdadeira direcção, perdeu o caracter ameaçador que apresentava no seu periodo de utopia, e tornou-se em elemento normal de progresso pacifico.

 

Entre nós o movimento operario póde dizer-se iniciado debaixo dos melhores auspicios. Não teve o primeiro e perigoso período de fermentação e utopia sectaria, correspondente a 1848. porque n'essa epoca o problema social não se havia ainda claramente desenhado entre nós: O regimen do capital e da grande industria, com as perturbações e anomalias economicas que o acompanham, só recentemente começou a dar seus fructos em Portugal, e por isso só recentemente também as novas condições do trabalho chamaram a attenção dos operarios para esse conjuncto de factos, que constituem a questão social. Ora, felizmente para nós, quando este movimento começou a tomar certo vulto, já lá fóra, tanto pela critica como pela mais cruel experiencia, haviam perdido o prestigio as utopias sectarias e a crença n'uma renovação subitanea por meio de uma iniciativa governamental. Estava-se já em pleno periodo cooperativo. Entrára-se no caminho da associação solidaria.

 

Entramos nós também n'elle, nem podiamos deixar de entrar, sob pena de retrocesso. Aproveitamos a experiencia dos outros, sem lhe termos corrido os perigosos azares.

 

Assim pois o espirito da classe operaria entre nós é todo pela reforma gradual e espontanea das condições economicas, por meio da livre cooperação.

 

Felicitamo-nos por este beIlo resultado.

 

O movimento, tendo começado pela simples cooperativa de consumo, tomou depois a fórmula mais espansiva das associações de officio, onde a cooperação é mais intima e comprehensiva, tendo por fim a solidariedade na determinação das condições do trabalho e a defeza de seus direitos.

 

O nome da associação de resistencia, que alguns lhe tem dado, é improprio e não as caracterisa convenientemente: o seu verdadeiro nome é o de associação de solidariedade industrial, porque o seu fim é organizar o trabalho nas suas variadas relações com o capital, no ponto de vista dos direitos legitimos de um e de outro. Ambos tem tudo a lucrar com esta organisação; o futuro o irá evidenciando.

 

O terceiro grau e mais sabido da cooperação é a associação cooperativa de producção: É só n'ella que se realisa a plena justiça economica e a emancipação do trabalhador. É este o grande instrumento do progresso social.

 

O regimen do salario é mau. Põe frente a frente dois elementos que por força têem de se hostilisar. Resulta d'elIe necessariamente uma inferioridade na condição do trabalhador, inferioridade economica e moral, com que soffre não só elle mas toda a sociedade.

 

Não culpemos os homens. Os homens, porque são capitalistas e ernprezarios, não são piores do que os outros, e podem ás vezes ser melhores; mas a força das coisas, a fatalidade das leis economicas, é superior ás vontades mais bem intencionadas. No regimen, não do assalariador, mas do salario. Esta é que é a verdade desapaixonada.

 

O que pois, convém, é ir substituindo, sempre que fôr possivel, ao regimen do salario o regimen cooperativo na producção. Não se atacam homens: modificam-se as leis economicas, e o progresso fica d'este modo a todos garantido.

 

É o que os nossos trabalhadores mais inteligentes vão comprehendendo, e é esta hoje a sua grande aspiração: passarem de assalariados a coproprietarios e socios na officina.

 

Uma primeira tentativa em grande, feita na industria de metaes, vae dando resultados consideraveis. A fabrica Social, do Aterro, que tem de comprehender officinas de fundição, de caldeireiros, torneiros, latoeiros, carpinteiros de moldes, etc., é um pregão que proclama bem alto o serio espirito de iniciativa e unico que começa a desenvolver-se entre os operarios portuguezes: da parte dos fundidores, perseverança, senso pratico e inteligencia; da parte de toda a classe operaria, admiravel impulso de fraternidade, de coadjuvação material e moral, e a comprehensão do que ha de geral para o futuro das classes trabalhadoras n'uma empreza que á primeira vista podia parecer de mero interesse particular.

 

É que aqui, como em todos os commettimentos, a que preside o espirito da justiça e progresso, o interesse geral e particular não estão em lucta, antes se desenvolvem proporcionalmente um com outro. A emancipação de um grupo limitado de trabalhadores, fazendo triumphar o principio sobre que a classe operaria poz as esperanças do seu futuro, é implicitamente o triumpho commum e já como que a preexistencia da emancipação total da classe.

 

Isto comprehenderam os trabalhadores de Lisboa. Para elles a fabrica Social é uma instituição de classe. Criaram-na elles com as suas subscripções e um emprestimo gratuito, em que o poder magico da fraternidade soube transformar o obulo do pobre n'um capital consideravel. Tocante e animador espectaculo! Em certos officios, em que o salario a custo sustenta o trabalhador, a subscripção realisou em poucos dias muitas dezenas de mil réis! Alguns dedicaram a este emprestimo fraternal as suas economias de vinte anos! Não ha interesse usurario n'esemprestimo sem juro, ha, pelo contrario, sacrificio e dedicação. Uma idéa social, superior á que hoje domina ainda universalmente no mundo economico, entreluz n'este exemplo, e é, para quem sabe ver, o penhor de um futuro melhor e mais fraternal.

 

Muitos, a quem o gelo dos tempos presentes tem entorpecido aquella parte mais alta da intelligencia, que só tem actividade em contacto com os mais generosos sentimentos do coração, chamarão sorrindo, ilusão e engano de simples a estes impulsos santos da fraternidade. Pois sorriam embora. A simplicidade, que foi em tempo considerada um dom da graça, é em todos os tempos o condão das vontades leaes e dedicadas, por quem só no mundo se tem levado a cabo as emprezas grandes que nobilitam a humanidade. Urna classe capaz da sancta simplicitas da fraternidade, e que a manifesta pratica e utilmente, póde merecer os sorrisos scepticos dos felizes egoistas do dia de hoje, mas tem por si o futuro. Pertence-lhe o futuro, por que tem em si a materia prima com que elIe será construido: uma idéa nova, e a dedicação a essa idéa.

 

 

 

 

 

Fundacao AIT

Fundação da A.I.T. – José Fontana será um destes homens?

 

 

(*) José Fontana (1840-1876) é justamente considerado o fundador do movimento socialista português, enquanto expressão da autonomia política e social da classe operária. Oriundo da Suíça de expressão italiana, a sua profissão original era relojoeiro. Embora subsistam dúvidas sobre essa parte da sua biografia, terá porventura sido ele o Giuseppe Fontana que, em 1864-65, representou junto da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) os socialistas italianos imigrados em Londres, assinando as actas do respectivo conselho geral. Radicado em Portugal desde pouco depois, desempenhou funções de tipógrafo, encadernador, livreiro e depois gerente da Livraria Bertrand. Testemunhos desse tempo retratam-no como uma pessoa que, embora reservada e cultivando mesmo alguma aura de mistério, se mostrava sempre bem informada sobre o que se passava nos meios revolucionários europeus. Participou nas actividades do Centro Promotor do Melhoramento das Classes Laboriosas (CPMCL), tendo sido fundador da Fraternidade Operária, da Secção Portuguesa da AIT e do Partido Socialista. Foi correspondente de Engels e de Marx. Faleceu prematuramente devido a uma tuberculose, quando ainda se esperava muito das suas bem provadas ponderação e capacidade de iniciativa. Este pequeno ensaio foi escrito em data incerta, mas o seu teor geral parece situá-lo antes do impacto da Comuna de Paris. É sabido que circulou em panfleto, publicado pela Tipografia do Futuro, Lisboa, 1872. O seu texto foi transcrito em ‘O Ecco Socialista’ e reproduzido em César Oliveira, ‘O Socialismo em Portugal 1850-1900’, Afrontamento, Porto, 1973. Não é certo que possamos tê-lo como repositório final e definitivo das ideias de Fontana, que nesse caso seriam uma curiosa mescla de espontaneísmo gradualista no plano social e económico com um total abstencionismo político. Dá a impressão que, neste documento público, Fontana quer sobretudo tranquilizar a burguesia e apaziguar as autoridades públicas, porventura com algum objectivo prático de utilidade imediata para o movimento operário cooperativo.