História contemporânea do povo português (*)

 

Flausino Torres

Flausino Torres

 

 

Preâmbulo

 

Uma História Contemporânea do Povo Portuguésim é difícil de escrever. E por várias razões:

 

Primeiro, porque o contemporâneo se estende pelos nossos dias, como a própria palavra o indica. Tempo ainda enevoado, obscuro. Não na sua totalidade, mas para um dos lados. Quando uma manhã nos levantamos e olhamos em redor, acontece que, para uma banda, o céu está completamente limpo; mas para o outro há uma neblina que nos tapa a vista. E por vezes quando tentamos penetrar nas nuvens, ou porque subimos a montanha ou porque marchamos para o lado onde elas parecem nascer - quanto mais avançamos menos vemos e mais arriscados estamos a perder-nos; a ponto de não sabermos de onde partimos.

 

Ora, exactamente o hemisfério mais encoberto é aquele de onde vêm os acontecimentos, as correntes, as forças que hão-de suceder-se no pequeno mundo português, aquelas que hoje o espezinham.

 

Isto não está bem dito. Nós sabemos, toda a gente sabe perfeitamente o que será o dia de amanhã. O que ignoramos é como vai desenvolver-se o processo que nos conduzirá ao futuro. Sim! Nós conhecemos inteiramente, nas suas linhas gerais, como vai estar organizado, como vai viver o povo português. Sabemos que o seu futuro vai, sem dúvida, ser radioso. Que a alegria penetrará em todos os cantos; que o trabalho será executado nas melhores condições; que as riquezas do nosso País - as que hoje nos são negadas, mas entregues a estrangeiros - serão um dia dos Portugueses; e todos as verão; todos as poderão gozar, todos quererão contribiuir para que elas continuem sempre a aumentar.

 

Mas há uma segunda razão mais forte que torna difícil escrever uma história contemporânea do nosso Povo. É que só pode escrevê-la aquele que contribui para a ir erguendo, para ir alterando as condições em que se encontra. E parece que o mexer-se nas coisas no sentido de as modificar profundamente é fase que ainda não começou.

 

Há várias maneiras de adoçar o chá, mas uma só de o açúcar ficar completamente dissolvido. E essa, só se verifica, se a temperatura do líquido for suficientemente elevada e se, com a colher, se chegar bem ao fundo. De outra forma, ficará sempre um restinho, que certas pessoas gostam de comer com a colher.

 

Ora hoje não se está a mexer o chá senão nas camadas superiores. E desde o afastamento do Marquês de Pombal - que marca, para nós, o fim do mundo moderno -, ninguém agiu de forma a adoçar o chá, tocando no fundo da chávena; nenhuns indivíduos, nenhuma classe se agarrou ainda, com unhas e dentes, de modo a transformar as estruturas sociais e económicas do nosso país.

 

Quando das Invasões Francesas, em que, sem governo, sem classe dirigente organizada, se verificaram algumas das condições para que um movimento revolucionário pudesse processar-se, quando as condições pareciam e eram favoráveis, faltou quem pegasse na rabiça do arado, revolvesse a terra, lançasse a semente e fizesse a cultura necessária para que a colheita fosse compensadora. Faltou a classe com a capacidade suficiente para a fazer.

 

O que se fez alguns anos depois, em 1820, não passou de uma pequena agitação à superfície, tal como estas sementeiras em que o lavrador se limita a esgaravatar a terra, não a deixando com a profundidade devida para que reservas de humidade e de matéria orgânica sejam bastantes para acompanhar o desenvolvimento da planta.

 

Escrever é agir. Mas só pode agir aquele que conhece o ambiente e que é capaz, dentro dele, de nadar como peixe na água. Poderá escrever uma história da Física quem não conheça as leis do pêndulo ou os processos de medir a velocidade da luz ou a matemática necessária para compreender alguma coisa das relações entre o espaço, o tempo e a velocidade? E quem pode ser físico senão aquele que trabalhe nos laboratórios e saiba servir-se do cálculo de forma eficiente e prática?

 

Ora o escritor é como o físico. Um Balzac poderia ter falado da mulher de 30 anos, ou do amor se tivesse vivido numa sociedade imaginária, em vez da realíssima sociedade do período em que lhe decorreu a vida?

 

Aquele que pretende escrever a história da sua época, embora limitada a um pequenino sector da vida da humanidade, tem de ser um activista como foi Herculano. Ora - voltamos ao mesmo - como ser activista numa época em que a actividade se limita a um pequenino estrebuchar, dentro duma pequenina piscina, cheia de uma água morna e suja sem quaisquer condições para que ali se nade realmente, ali se salte, ali se pratique o desporto?

 

Mas - insistimos ainda - escrever é agir e agir é refazer, é fazer, é destruir, é construir. Portanto, compete-nos a nós, que notamos o limitado da piscina, o sujo das águas, o insignificante de tudo, compete-nos ampliar-lhe as dimensões, despejá-la, mudar-lhe a água, pô-la em condições de ela se renovar permanentemente; arranjar mestres de natação; criar, para todos, as condições de eficiência desportiva.

 

Há assim dois aspectos que têm de ser focados, ao escrever a história do nosso tempo:

 

Um deles é o da organização das coisas pela classe que se encontra no sentido do volante e que vai conduzindo o veículo no sentido que melhor entende. Quando depois dos meados do século XIX a Alta Burguesia portuguesa se assonhoreou dos comandos, estabeleceu ligações cada vez mais apertadas com a Alta Finança francesa, inglesa e alemã. Podemos acompanhar com toda a facilidade os seus passos, suas manobras, suas danças e contradanças, por esses anos fora, e então sem dificuldade, desvendar segredos, descobrir negociações. Podemos até, quase sem dificuldade, denunciar os escândalos praticados por essa gentalha.

 

Mas já é mais difícil voltar atrás, de vez em quando, e ver como é que a grande massa da nação se foi comportando e reagindo a toda essa orientação da classe dirigente. Já é mais difícil estudar o funcionamento das armas de que se foram servindo os explorados, os ofendidos, os esmagados, na sua reacção. E muito mais difícil ainda, encontrar o fiozinho, o Mondeguinho que mais tarde se tornará no rio do futuro.

 

Numa sociedade qualquer e em qualquer tempo, se encontra uma classe que aproveita todos os benefícios da situação presente, tal como dentro duma cidade há meia dúzia, mas só meia dúzia de edifícios, de cujos terraços se domina todo o casario. Em baixo fica a grande massa da população que, para aquele que a vê dos altos terraços, não tem história - chega-se a escrever que não tem história - porque não tem vontade, porque não tem cultura, porque não tem as condições necessárias para governar. Mas aquele que se mete no elevador, carrega no botão e sai para a rua, logo vê as coisas de uma outra maneira: aquele tumulto tem as suas leis; aquele rumor longínquo - que se confunde com o ruído do mar ou o ruído da floresta, desdobra-se em mil e uma conversas de mil e uma pessoas, de mil e uma vozes. Aquela massa em que tudo se interpenetra é afinal constituída por pequenos grupos, por interesses antagónicos ou confluentes, por ideologias que se chocam ou se aproximam, por ódio, por cooperação...

 

Aquele que pretenda descobrir para onde se dirige toda esta massa de pequenos atritos, de pequenas colaborações, terá a mesma dificuldade que aquele que, dentro de um grande transatlântico apinhado de passageiros, procura o que há de comum, o que guia todos os que, nele viajam.

 

Há portanto duas coisas a fazer para quem pretenda orientar-se no meio de tudo isto: uma é ver em que sentido e por que processos a camada dirigente vai seguindo o seu rumo; a outra consiste não só em saber desvendar as particularidades da vida diária, os pequeninos nadas, o que constitui o dia a dia da grande vaga constante, mas também em agarrar o fio condutor que, dentro deste labirinto, não poderá ser abandonado se se quiser compreender para que ponto cardeal se encaminha o futuro.

 

Conta um escritor grego que o Senhor do Labirinto de Creta lançou uma vez, numa daquelas salas, numa daquelas mil salas, um cento de homens para, entre eles, escolher quem, favorecido pela sorte ou ajudado pela sua inteligência, fosse capaz de evadir-se do emaranhado imenso. Dentro da sala havia centos de fios, milhares de fios, mas só um deles conduzia ao salão do trono, onde o Rei premiaria aquele que lá chegasse. Só a sorte poderia servir de condutora! Só os deuses poderiam guiar o homem vitorioso!

 

Só os deuses? Só os deuses, não! O rei tinha pensado que a inteligência podia servir de guia. O Rei tinha razão.

 

Na verdade, era necessário analisar a qualidade do fio, porque se exigia um fio suficientemente resistente para ser estendido pelos quilómetros e quilómetros de corredores; um fio que não fosse vulnerável à acção dos ratos e das traças. Era preciso, portanto, raciocinar um pouco, para poder escolher.

 

Mas não foi nenhum dos que raciocinou quem chegou junto do Rei e recebeu a coroa de louros; foi aquele... que tinha sido encarregado de estender os fios pelas autoridades do Palácio!

 

Para se fazer a história dos tempos que correm não basta raciocinar abstratamente como aqueles que procuravam o fio condutor ao Trono da Glória. Para se fazer a história do nosso povo é indispensável ser-se povo, é indispensável, dentro do povo, pertencer aquela subcamada que vê os pôdres dos dirigentes contemporâneos e que tudo faz para deles limpar a sociedade.

 

Porque só na luta se vai descobrindo o caminho do futuro e o próprio futuro se vai construindo. E se hoje é difícil escrever acerca do presente - do fim do século XVIII até aos nossos dias - é exactamente porque a luta ainda não começou; o calor ambiente não é portanto suficientemente criador.

 

Numa palavra, descortina-se o Futuro, mas não se vêem os caminhos que lá conduzem. Em certos dias de nevoeiro, dos píncaros do Caramulo, vê-se ao longe a imensa massa da Serra da Estrela. Mas toda a planície ondulada, que fica entre as duas serras está sob um manto de núvens. Quem pudesse lá chegar dum salto!...

 

Não se pode! O caminho tem de ser percorrido, passo a passo, de bússola na mão esquerda, de roçadoira na mão direita, para abrir a vereda que nos há-de conduzir ao termo da viagem.

 

Escrever a História é fazer a História. Não se pode hoje escrevê-la - referimo-nos sobretudo à História dos nossos dias - simplesmente alimentados com o pó dos arquivos. O bom correspondente de guerra não é aquele que recebe, do gabinete de informações do Quartel General, os dados com que há-de construir as suas crónicas. O bom correspondente de guerra é aquele que vai para a frente, que se enquadra nos pequeninos grupos de guerrilheiros, que se confunde com eles, que combate ao seu lado ou à sua frente.

 

Mas, apesar de tudo, é difícil escrever a História dos nossos dias. Pois como poderá aquele que combate no seu posto, ter a visão do conjunto dos acontecimentos? Como pode ele - se a história é combate - combatendo num só ponto, relatar o que se passou em todos os outros? Mais: será possível ter uma visão do conjunto, envolvido em estrondo, fumo, sangue?

 

O historiador de escol, o historiador da visão superior dos acontecimentos, terá de ver as coisas de cima para baixo, tal como deus; e os deuses vêem tudo sub specie aeternitatis.

 

Sem dúvida, o historiador (desculpe-se a expressão !) o historiador burguês é realmente assim que procede. Também noutros tempos o Grande Senhor marchava à frente das suas tropas, montado no mais alto dos cavalos, no mais branco dos cavalos. Mas hoje, o general comandante dum exército, numa batalha de tanques, não se distingue nem pela cor do seu veículo nem pelo lugar que ocupa na frente de batalha. E contudo o comando exerce-se.

 

A prática diz-nos que pode puxar-se o gatilho dentro de um entrincheiramentozito e ter a visão do conjunto.

 

Seja como for, procure-se o que se procurar, o que é preciso é realmente intervir, porque só a intervenção permite descortinar os caminhos que conduzem ao amanhã.

 

Mas enquanto a luta não começa, que remédio senão ir seguindo as fórmulas tradicionais: a poeira dos arquivos, a máquina de escrever, a edição, a publicidade. Sobretudo a publicidade! É com ela, sempre com ela, que se fazem e desfazem os talentos. E é ela também quem permite escolher, entre os mil fios do labirinto contemporâneo, a linha de rumo.

 

De tudo o que acaba de dizer-se, um coisa pelo menos tem de concluir-se: o escritor, e também o cronista dos acontecimentos, deve tomar posição na barricada, seja qual for a época em que viva. E a nossa não é uma excepção.

 

Se o não fizer, não poderá escrever a História do Povo. Fará a da Nobreza ou a da Burguesia, ou a de um simples compartimento da Burguesia.

 

Mesmo que insista e recorra a todas as atitude para se afirmar objectivo, científico... não o conseguirá; tão pouco será um historiador.

 

Não o será porque a mais forte das verdades objectivas e científicas é a de que as instituições, os regimes, as doutrinas, as teorias - e portanto os homens - se encontram e encontrarão sempre enquadrados em classes. E foi com a óptica que lhes corresponde, que sempre apreciaram o correr dos acontecimentos. O historiador que se diz e julga objectivo, hoje, é-o tanto como foi o Herculano – não falando já nos Herculanos menores e nos anti-Herculanos - que escavou essa portentosa HISTÓRIA DE PORTUGAL... que afinal mais não é que a história dos insucessos e das vitórias da burguesia medieval, na luta pela sua libertação duma nobreza opressora e expoliadora.

 

Uma história foi sempre uma arma de combate para um partido. Desde Tucídides que isso é sabido. E o nosso frágil ESBOÇO será sòmente uma picareta, a picareta que serve para derrubar velhos e corroídos edifícios, mas com que se cavam também os alicerces para as paredes de um edifício novo, morada do homem novo.

 

Apenas uma picareta entre muitas outras.

 

[…]

 

 

Terceira parte

1820 - seus problemas e figuras até à Regeneração

 

 

ESBOÇO DE LUTA DE CLASSES

 

A nova classe esteve à beira da vitória. Se a tivesse alcançado, ter-se-ia processado uma revolução social, uma transferência da propriedade da terra, um novo cadastro da sua distribuição, uma nova mudança de processos na exploração das riquezas.

 

Mas, não se tendo conseguido a reforma ou a série de reformas da propriedade rústica que dariam bases sólidas, porque económicas, à constituição duma nova classe e, por outro lado, não conseguindo evitar que a Alta Finança estrangeira e seus satélites nacionais sugassem o sangue das artérias e veias da economia nacional, não se tendo levado a cabo estes dois objectivos fundamentais, uma nova classe pequeno-burguesa rural não chegou mesmo a formar-se, ou foi-se formando tão lentamente que nenhum poder chegou jamais a possuir.

 

Mas, se se verificaram muitas das condições necessárias, como foi possível o insucesso? Como se compreende tal desvio nos rectos caminhos? Como se justifica tal quebra de continuidade?

 

Talvez não seja errado, para ficarmos com o conjunto das coisas na frente, passarmos os olhos pelo decorrer dos acontecimentos políticos, desde aquele dia de Novembro de 1807, em que a Corte, embarcando para o Brasil, decidiu travar batalha com os invasores, a muitos milhares de quilómetros de distância, enquanto as populações ocupariam as primeiras linhas, que se situavam dentro das fronteiras! Talvez se encontre a explicação para a condição notada.

 

É claro que não era toda a população que iria travar a luta com os invasores, porque não é com mendigos que se tomam as grandes decisões e Lisboa, segundo relatos de viajantes do tempo, como Linck, estava enxameada de mendigos. Nem é, tão pouco, com aquela espécie de aristocracia que ficava no reino, por não ter lugar nos barcos ou possibilidades económicas de embarcar, aquela de quem José de Arriaga diz:

 

«...A maioria de seus filhos não sabia ler nem escrever. Montavam muito bem a cavalo, caçavam com destreza, guiavam um carro como o mais insigne cocheiro e pegavam bois de cara, de cernelha e de rabo, com arte e valentia. Com isto se reduzia a sua educação» (H. da REVOLUÇÃO DE 1820, I, p. 585).

 

Com gente desta prepara-se sim o futuro miguelismo, não uma classe de gente activa e com a iniciativa que tem de possuir quando se alcandora pela primeira vez às cadeiras do poder.

 

É da burguesia que frequentava a universidade, que se reunia secretamente nas lojas maçónicas, do género daquelas que orientaram Gomes Freire logo que viera para o reino, que hão-de sair os revolucionários, aqueles em cujo «coração reinava a fraternidade e o amor da pátria em que se abrasavam», como diz Sepulveda. (i.c. 704).

 

Parece portanto que os que aspiram à constituição e consolidação da nova classe estão em boas condições, porque a desorganização dos serviços e a desorientação das autoridades, provocadas pela Invasão permite reuniões e preparativos que não poderiam ser feitos numa situação normal.

 

A Corte, embora a muitos mil quilómetros de distância, sabe captar, tanto quanto possível, os que ficaram, continua a conceder títulos e comendas, .a negociar empréstimos, mesmo depois de o não poder fazer sem autorização das Cortes que saíram da Revolução de 1820.

 

O clero, a começar pelo Patriarca, levanta todas as dificuldades ao novo regime vintista, que pretendia abolir os previlégios da Igreja, e proceder à reforma e à redução do número dos conventos; simultâneamente cria-se um clima de ansiedade e de reprimenda, com as aparições milagrosasque serviam para incitar um povo religioso contra os pedreiros livres dominantes; fundam-se, em várias cidades, Lisboa, Coimbra, Braga..., clubs secretos anti-revolucionários.

 

A reacção organiza-se, e apesar de vencida imprevistamente em 1820, não desiste de seus intentos de conservar o domínio e o prestígio.

 

Por outro lado, o apoio internacional das contra-revoluções de França, Nápoles, etc., onde a pouco e pouco se foram impondo os realistas e os terroristas brancos; o exemplo da contra-revolução em Espanha; são sentidos cá dentro e exercem enorme influência na constituição do que irá chamar-se, dentro em breve, o Miguelismo.

 

Surgem, com o novo governo, conflitos diplomáticos com a Espanha, Nápoles, Sardenha, Prússia, Áustria, Rússia, a seguir a 1820, potências estas, umas mais que outras, neste momento, feudos da Santa Aliança. E a própria Inglaterra burguesa que põe acima de tudo seus negócios e a necessária expansão pelo continente africano e Brasil, não admite quaisquer limitações ao tratado de 1810 que tanto prejudicava a economia nacional. Impõe mesmo normas quanto à escravatura! Chega ao desplante de pedir satisfações pelo que se diz nas Sessões das Cortes!

 

Quer dizer: feita a Revolução de 24 de Agosto de 1820, o grito da élite burguesa portuguesa, a reacção nacional apoiada pela reacção eurqpeia, organiza-se imediatamente. E, o que é mais grave e estranho, a Inglaterra, raiz-mestra da burguesia internacional, não só não apoia a burguesia revolucionária, como lhe cria dificuldades de toda a ordem.

 

Parece assim ser ainda cedo para procurar novos caminhos, os caminhos da Regeneração, como se chamou ao tempo, ao movimento saído de 1820.

 

É que e a própria burguesia inglesa ainda não tinha compreendido bem o seu papel de condutora e impulsionadora de uma burguesia internacional. Admitia com isto, tàcitamente é certo, que sòzinha podia fazer tudo. E desta forma, neste Ocidente extremo da Península Ibérica e da Europa, não parecia destinado a frutificar um movimento mais ou menos isolado.

 

E - assentemos nisto - de forma nenhuma a uma burguesia cosmopolita, como naquele tempo já era a inglesa, podia convir uma reforma da propriedade rural, e portanto a constituição de uma ampla média-burguesia, que, procurando fazer com que o país vivesse das suas próprias forças, o impedisse de ser seu satélite.

 

Mas quem sabe se teria sido realmente assim?! Talvez o significado real do insucesso da nascente burguesia portuguesa estivesse numa burguesia cosmopolita, que não tinha bem a noção das suas condições e necessidades presentes e futuras. Quer dizer, a burguesia internacional não existiria ainda, como o prova a atitude da Inglaterra para com o governo revolucionário saído da Revolução do Porto.

 

Talvez fosse assim. O que interessava à Inglaterra, naquele momento, era a resolução dos seus próprios problemas, cuja base era a expansão pela Ásia, pela América e pela África. Sem compreender o auxílio que poderia vir-lhe da instauração, neste canto da Península Ibérica, dum regime que lhe fosse afeiçoado, para não lhe chamar agente da sede instalada em Londres.

 

A Inglaterra andava então inteiramente absorvida pela sua prosperidade industrial e comercial. Desde a vitória sobre Napoleão e até um pouco antes, o seu expansionismo - que atingira grandes êxitos com a independência das colónias espanholas e Brasil - permitira uma política de investimentos no continente americano; conseguira que nunca nas fábricas houvesse armazenagem de produto, porque uma vez fabricados logo se esgotavam; conseguiu que os preços subissem de tal forma que, 40 anos depois do início das guerras da Revolução, o seu nível fosse de 11 por cento mais elevado; etc., etc..

 

E é isto tudo, é todo este conjunto que a desvia - ela, núcleo da difusão burguesa - de se bater pela manutenção e desenvolvimento de pequenos satélites, como aquele que poderia formar-se em Portugal, se os vintistas se tivessem mantido no poder.

 

A verdade é que, com vintista ou sem vintistas, seus. objectivos de criar satélites, ia-os conseguindo; e talvez mais obedientes e submissos, na medida em que não eram dominados pelo Liberalismo do tempo. Tanto mais que a nova élite revolucionária, agora no governo, lhe levantava dificuldades, como foi a da imposição da saída de Beresford e seus colaboradores dos lugares de comando que ocupavam; a da remodelação do tratado de 1810 que pràticamente lhes entregava o Brasil, etc..

 

Foi assim, que os vintistas se encontraram abandonados a todas as contingências políticas e à própria reacção de grande parte da população que não compreendia como a destruição do regime de propriedade feudal e clerical estava na base do seu próprio bem-estar. Não o podia compreender, porque, sobretudo a propriedade de mão-morta revestia-se ainda do aspecto sagrado com que a Igreja conseguira iludir a sua verdadeira essência E os revolucionários eram acusados de heréticos, maçãos, pedreiros-livres e de outros epítetos, perigosos ao tempo. Ia-se-lhes criando um ambiente de tempestade.

 

Foram todas estas circunstâncias favoráveis que a reacção apostólica e anti-burguesa soube aproveitar ainda nos tempos da Regência, mas principalmente após o regresso da Família Real a Lisboa, a de julho de 1821, menos de um ano depois da vitória do movimento do Porto.

 

Carlota Joaquina e o Infante D. Miguel foram as suas bandeiras e, de certo modo, seus teóricos.

 

E, de passo em passo, não pode dizer-se que se tivesse regressado em tudo aos tempos anteriores ao movimento de 1820, mas recuou-se o bastante para se cair no regime do poder pessoal: o Brasil, ou antes a burguesia anglo-portuguesa do Brasil, prejudicada com a saída do governo para Lisboa e de certo modo, pelo regresso à sua condição de colónia, proclama a independência, em 7 de Setembro de 1822..Pouco depois (19 de Novembro de 1822) morre Fernandes Tomás, o pai do sistema liberal e o mais prestigiado dos revolucionários No ano seguinte, em Julho de 1823 a Vilafrancada teve como efeito o regresso do país ao absolutismo, embora a eliminação total da legislação liberal só se consumasse com a Abrilada, movimento militar chefiado por D. Miguel em 30 de Abril de 1824. No princípio de 1826 (10 de Março) morre D. João VI, surgindo, quase que imediatamente, a chamada questão dinástica.

 

Em menos de meia dúzia de anos desencadeia-se uma série de pequenos acontecimentos que contudo são suficientes, como rasteiras, para o derrubamento da fragilíssima força Iiberal. Mas a série continua.

 

Dã-se a seguir revoltas absolutistas no Algarve, Trás-os-Montes, Beira. E em 22 de Janeiro de 1828, D. Miguel, exilado em Viena, desde a Abrilada, entra no Palácio da Ajuda em Lisboa, sob os olhos indiferentes ou complacentes da Inglaterra que não vê nele o apoio que lhe é dado pela Santa Rússia, pela França de Carlos X e pela vizinha Espanha. A burguesia inglesa está absorvida em problemas bem mais importantes, do que a vinda dum personagem de que já se tinha esquecido.

 

Contudo, pouco depois (30 de junho de 1828), D. Miguel é coroado rei absoluto.

 

Parecem ser estas as principais fases do desmantelamento do fraco edifício liberal burguês, começado a erguer em 1820. O que ficou dele?

 

Fica sempre qualquer coisa, de qualquer passo que se dê. Mesmo ideològicamente. D. Miguel e os seus acólitos, apesar do seu absolutismo, são obrigados a convocar os Três Estados do Reino, à maneira antiga, para o proclamarem rei, criando assim uma espécie de base à ilegalidade. As ideias ainda têm alguma força!

 

A subida ao trono de D. Miguel, quer dizer a instauração do regime absolutista em Portugal, é uma vitória da Santa Aliança! Uma derrota para a burguesia inglesa, de que, no entanto, ela apenas parece ter-se apercebido ao abrir as suas portas à emigração liberal e ao conceder honras de rainha à princesa D. Maria da Gloria, filha de D Pedro e futura D Maria II.

 

Durante anos, até 1834, reinou o cacete, a forca, o toureiro, o José Agostinho de Macedo... reinou o absolutismo e seus métodos, em quase todo o território nacional com excepção da Terceira.

 

Mas a segurança do absolutismo não era tão grande como julgavam aqueles que batiam às portas dos liberais e os arrastavam para as masmorras ou para a forca Em Julho de 1830, a monarquia absolutista de Carlos X é substituída pela monarquia liberal burguesa de Luís Filipe de Orléans. Esta viragem da política europeia teve consequências extraordinárias na política portuguesa Era um dos primeiros sinais de que a Burguesia internacional não fora batida pela Santa Aliança e estava despertando.

 

 

A NOVA CLASSE, A SUA IDEOLOGIA E SEU INSUCESSO

 

Com este esquema cronológico vemos melhor o nascer e o morrer das coisas, entre 1820 e 1834.

 

Tudo isto é na verdade imensamente difícil de compreender. Não se percebe bem como aos métodos do Absolutismo, às suas doutrinas formuladas, de forma adequada, pelas grosserias desbragadas de José Agostinho de Macedo, pode chamar-se doutrina. Não se entende como aquelas manifestações de ódio, aquelas baforadas avinhadas, conseguiam adeptos e defensores; e alguns, pelo menos, sinceros. Naquela sociedade de toureiros não foi talvez difícil.

 

Li há pouco, na HISTÓRIA DO REGIME REPULICANO EM PORTUGAL (I, pp. 177, 178), um estudo do professor Joaquim de Carvalho, um pequenino trecho que talvez seja útil pôr em cima da mesa:

 

«As Cortes Constituintes de 1821-22 representam a primeira manifestação pública de tolerância que houve em Portugal. A sua história inunda um dos capítulos mais belos da consciência moral portuguesa, e como poderia ser doutra maneira, se nasciam sob o signo do liberalismo?»

 

Com base na interpretação idealista do ilustre professor, e perante o rumo tomado pelas coisas até à queda do absolutismo, pode perguntar-se como foi possível o esmagamento da nascente ideologia liberal, sob as patas dos cavalos e dos touros, que eram sua quase única razão de viver de toda aquela aristocracia apostólica, estroina, rebentada, sob o ponto de vista económico?

 

O bem sucedido do movimento anti-liberal apenas documenta mais uma vez, que uma ideologia, por mais justos que pareçam e sejam os princípios que a enformam, apenas consegue impor-se, se houver quem se bata por ela e lhe forneça as condições de realização.

 

Uma teoria, seja qual for, só na sua aplicação pode avaliar, se está ou não bem adaptada as circunstâncias do momento. Não basta proclamar-se a Igualdade, a Liberdade, a Tolerância, para a considerar com possibilidades de conquistar adeptos fervorosos. Já se viu atrás, como nas Constituições francesas, das mais variadas tendências, a liberdade é definida da mesma maneira.

 

A Liberdade e a Igualdade preceituadas na Constituição de 22, convinham aos que estavam em situação de inferioridade social e não gozavam do direito de exprimir sem peias o que pensavam. Mas não convinham, da mesma forma, aos que seguravam simultânearnente as rédeas do poder e as dos seus cavalos.

 

Estes, eram em número imensamente menor, e a massa da população, que não gozava dos direitos declarados na Constituição nem chegou a saber, na sua imensa maioria, que certas forças intelectuais se batiam por ela. Muitos não tinham forças para arriscar coisa nenhuma pelas melhores condições de vida com que lhes acenavam.

 

Podemos compreender melhor a situação se a imaginarmos como uma praça forte ocupada por uma guarnição militar. Por mais numerosos que sejam os que vivem na região, por mais aguerrida que seja a força que pretende a sua conquista e destruição, se não se conseguir convencer as massas de que o seu caminho é o do ataque, nada se conseguirá.

 

E não basta a convicção de que o caminho é o ataque: é indispensável saber como ele se processará, o que resultará dele e, principalmente, como se viverá dentro dos moldes duma nova organização. A tudo isto eram alheios os povos, do norte ao sul do país. Como fazer-lhes compreender os princípios da ideologia liberal? Como fazê-los chegar até eles? Como destruir dentro de cada um, as convenções tradicionais, os hábitos arraigados por séculos de submissão? Como lançar dentro de seus espíritos o fermento da nova organização social e económica? Como fazer frente aos que ouviam, ao clero local, agarrado às suas conveniências, a condenação dos novos princípios e a excomunhão dos que a eles aderissem? Como convencer aqueles que já então diziam: «foi sempre assim», «há-de ser sempre assim?».

 

Não esqueçamos que os temps de então não são os do rádio e da televisão; os da imprensa e do livro.

 

Um dos problemas mais graves com que luta qualquer nova ideologia é o da sua propagação imediata. E que fez o grupo liberal, o grupo de intelectuais liberais no sentido de levar a todo o país para aquém e para além das serras, a nova ideologia? Que organização montaram neste sentido?

 

Foi por falta de tudo isto que, com dois safanões, tudo ruiu e as coisas voltaram ao ponto de partida...

 

Ao ponto de partida, não! Nunca se volta ao ponto de partida, como se nada se tivesse passado. As Constituintes e a sua obra foram um passo decisivo na conquista das liberdades do povo português. Assim, embora gradualmente, ...Vilafrancada, Abrilada... fossem destruindo certos efeitos da Revolução de 1820, esta não foi perdida totalmente, e dela se partiria para novo degrau da grande escalada.

 

Nada é perdido. Os vintistas julgavam, no seu romantisrno, que bastava indicar o caminho e mostrar o alvo a atingir, para que todo o povo, com cânticos e hinos, os seguisse imediatamente e começasse a encaminhar-se para ele. Foi uma triste desilusão para eles, aliás traduzida nalgumas palavras amargas de Manuel FernandesrTomás.

 

Mas na verdade, nem tudo estava errado:

 

Simplesmente, o que se considerava definitivo, e no seu mais elevado grau, não passava duma modesta etapa. Estava incompleto. E o que lhe faltava era urna realização, pelo menos em princípio, do que se indicava como caminho. Porque a realidde nacional era constituída por um tão grande número de obstáculos que não bastava enunciá-los para serem imediatamente: derrubados.

 

Alguma coisa se fez. Houve um pequeno movimento no sentido indicado, embora imediatamente seguido dum recuo que a Vilafrancada iniciou.

 

Os homens de 1820 não podiam nem sabiam ver ainda que a transformação social se faz por pequenos ou grande saltos, consoante se vai constituindo e ampliando a classe que os há-de dar. Faltava aos vintistas perspectiva histórica e também aquilo que representantes duma classe de trabalhadores deviam ter: um princípio básico da «filosofia das nações», não basta indicar o que é preciso fazer, mas fazer mesmo!

 

Até a Herculano faltou a perspectiva histórica suficiente para lhe dar confiança no futuro. Não admira portanto que tivesse faltado àqueles românticos.

 

Começava a ver-se agora um pouco mais claro. Formulada uma teoria, com base numa injustiça social, em aspirações vagas, em sonhos de vida opostos à dura realidade, embora com a ajuda imprevista de um acidente histórico, ou mesmo sem ele, constitui-se um pequeno grupo que lança o grito da revolta e que consegue por várias razões impor-se e vencer.

 

É este o caso de 1820: o acidente historico foi o das Invasões e a saída da Corte para o.-Brasil; também existe um pequeno grupo de intelectuais e burgueses arrojados, que lançam o grito da revolta; e a vitória obtém-se, por fraqueza dos adversários, pela surpresa do ataque, pela convergência de circunstâncias políticas.

 

A vitória de 1820 não resulta dum longo trabalho de preparação anterior, mas principalmente da fraqueza do adversário. E está aqui entre outras a fragilidade deste movimento.

 

Este pequeno grupo é constituído por uma minoria activa e, de certo modo, consciente do evoluir dos acontecimentos; possui simultâneamente uma certa noção do ambiente português.

 

Suponhamos agora que tinha feito os impossíveis para promover a agregação da classe em cujos interesses tinha postos os olhos, imediatamente a seguir ao deflagrar do Movimento. Suponhamos que tinha conseguido chamar a si todos aqueles que estavam nas condições indicadas pelos textos; organizá-los em força social; constituí-los em classe. Nestas condições teria promovido uma revolução que, na melhor das hipóteses, se teria firmado suficientemente.

 

Mas com o liberalismo português nada disto aconteceu nem os promotores da Revolução viram ser indispensável a constituição em classe organizada daquela camada da população que realmente representavam, nem conseguiram eliminar as influências e intervenções, directas ou indirectas, da Santa Aliança dos Reis e dos Povos.

 

Também a Espanha tinha sofrido a intervenção das tropas francesas do Duque de Angoulême em 1823.

 

Uma das razões pela qual a constituição e a agregação duma classe da média-burguesia, uma classe rural e comercial, não foi conseguida, consistiu em os liberais não se terem conservado intimamente unidos. Já na Emigração, resultado da perseguição miguelista, intensificada após o início do reinado de D. Miguel em 1828, a divisão entre Cartistas e Vintistas se manifesta. Mas depois de 34 depois da Convenção de Évora-Monte, que foi o fecho da luta, a cisão abriu-se e cavou-se profundamente Os homens que se tinham batido como leões e tanto tinham sofrido no exílio, não foram capazes de se pôr lado a lado, tal como se tinham mantido nas trincheiras, contra o inimigo comum, a podre sociedade feudal.

 

E vemos assim Herculano, Palmela, Mousinho da Silveira - em parte por razões pessoais que os ligavam a D Pedro - colocarem-se na primeira fila do Cartismo; enquanto que José Estêvão, Almeida Garrett se transformam em porta-vozes do Vintismo que, de Setembro de 1836 em diante, se chama Seternbrismo.

 

A distribuição destes nomes é estranha, sobretudo a inclusão de Mousinho nos meios moderados...

 

Na realidade, se alguém viu a necessidade de criar novas bases económicas a todo o povo, como condição para poder participar nos futuros passos da revolução, se alguém viu a necessidade de se constituir uma nova classe de pequenos e médios-proprietários rurais, livres das peias do antigo regime (com base no que deveria resultar da divisão dos bens do clero rural, da Coroa, dos grandes emigrados absolutistas) esse alguém foi Mousinho da Silveira, como pode verificar quem atente bem no significado profundo da sua legislação!

 

Mas não poderia ter-se constituído essa pequena e média burguesia, para além das previsões de Mousinho, com comerciantes e pequenos industriais, que não faltavam já por esse país abaixo? Ou seria indispensável, desta vez com Mousinho, a remodelação da economia agrária, no sentido de se criarem milhares e milhares de pequenos proprietários, sustentáculos do novo regime?

 

Não podemos estar agora a discutir o que poderia ou deveria ter-se feito, baseados nesta ou naquela hipótese. A experiência histórica mostra-nos que uma classe bastante numerosa de pequenos proprietários, resultado da expropriação dos bens do clero regular teria sido um fermento social suficiente.

 

Os bens dos conventos eram coisa de vulto?

 

Os conventos eram mais de 500; frades e freiras somavam quase 15.000! Havia pontos, contudo, onde a concentração se tinha feito de forma extraordinária. Vila Viçosa e arredores gozavam do benefício de mais de 20 conventos! Seus rendimentos eram em dinheiro e géneros qualquer coisa de fabuloso, porque os mil contos de reis que recolhiam, só em moeda, eram equivalentes a mais de metade dos impostos directos do primeiro ano do reinado de D. Miguel! O rendimento de todo o clero, regular e secular, que está calculado em 6.000 contos, equivalia a mais da terça parte da receita geral do Estado no mesmo ano! Um Estado dentro do Estado, como é costume dizer-se em casos destes.

 

Esta fortuna passou inteirinha das mãos da aristocracia clerical e laica do regime anterior, para as mãos dos vencedores? Faltou realmente o mais importante: a sua distribuição equitativa. E assim, aqui, ali,... por toda a. parte, o que era do antigo convento é agora do novo. senhor, quer esse senhor se chame Palmela, ou Saldanha... ou Companhia das Lesírias...

 

Mousinho tinha visto bem que o pobre rural, por esses campos fora, bem precisava de um pouco de atenção para a sua difícil vida.

 

Piteira Santos, num dos livros hoje fundamentais para o conhecimento deste período, regista uma passagem de um discurso de 10 de Novembro de 1821, de Borges Carneiro - o autor do PORTUGAL REGENERADO EM 1820 - absolutamente elucidativo da situação do camponês que vivia nas terras dos donatários:

 

«Da mesma sorte, nos campos do Reguengo de Alviela, termo de Santarém, pertencentes à casa de Bragança, paga-se, de quanto se recolher pelo primeiro moio, de foral, 30 alqueires, de carreto, de guarda 4, de dízimo 5,5, de sorte que, de cada moio ficam ao lavrador apenas doze alqueires e três oitavos; e dos mais moios, paga-se o mesmo menos o foral. Naquele mesmo reguengo, muitas terras pagam, além dum foro sabido, terça, quarta, dízimo e carreto» (l. c. pág. 34).

 

Fica aqui bem retratada a oposição do grande e do pequeno.

 

Se voltarmos a página encontraremos um outro caso concreto entre os mil que Borges Carneiro poderia ter indicado e em que se baseou o seu discurso:

 

«Uma pobre viúva que colhera 8 alqueires, pagara de direitos 2 alqueires pelo quarto, 3,5 pela eiradega, 5,5 maquias por não levar o tributo ao Mondego e a parte do medidor. Dos dois alqueires que lhe ficariam, ainda tem que pagar o dízimo ao Cabido de Coimbra» (pág. 36) !

 

Como era possível viver assim? Como era possível - e agora volta-se aqui ao nosso problema da constituição duma classe rural - constituir com material destes, uma classe, a classe dos agricultores, destribuída por essas províncias fora, de que a revolução necessitava, para não ser apenas uma cabeça sem corpo como realmente fora? Mais como era possível ao comércio prosperar num regime de previlégios, de nobres, de clero, de corporações - pergunta Borges Carneiro?

 

Na verdade sem uma população agrária noutras condições económicas, sem uma classe agrária com poder de compra, como nós dizemos hoje, como podia manter-se e progredir uma pequena burguesia comercial, que vivesse exactamente dos fornecimentos a esta massa agrária de um país fundamentalmente agrícola?

 

Mousinho, Borges Carneiro e todos os vintistas viram perfeitamente não ser possível trazer para o Liberalismo populações com um nível de vida tão baixo, e no estado de submissão em que se encontravam, relativamente ao frade e ao donatário. Não era num ambiente destes que podia encontrar-se apoio para a revolução.

 

Contudo, todo o norte dá o seu apoio à Revolução, e é também na principal cidade do norte que tem sua origem. Como explicar tal contradição?

 

É que as costas marítimas de entre Douro e Minho são aquelas onde a densidade dos portos é maior, onde é mais forte «o comércio marítimo, a actividade comercial da burguesia urbana, a produção manufactureira, familiar e artesanal, dispersa ou concentrada nos centros urbanos, como factor do desenvolvimento da classe burguesa» (P. Santos, pág 58).

 

A toda esta gente faltava porém espírito unificador e construtivo. Vêem a necessidade - sentem mais do que vêem! - de destruir a burocracia e a máquina do absolutismo, e toda aquela orientação económica simplesmente fiscal, que canalizava para a nobreza, clero, e casa real, a totalidade dos sobejos nacionais. Mas não encontram saída para a orientação da vida, no sentido da modernidade comercial e financeira.

 

Dentro destes propósitos ideológicos, aliado à elaboração das linhas arquitectónicas do edifício burguês é que deveria trabalhar o Sinédrio, o grupo secreto de que saiu o movimenta, assim como a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e a Junta Provisional Preparatória das Cortes, que se constitui depois da adesão de Lisboa à revolução. Devia ser esta ainda uma das actividades fundamentais a desenvolver pelas Constituintes.

 

Mas isto era impossível, porque é natural até que alguns dos seus membros, e que tomaram parte na direcção do movimento, ou não compreendessem os objectivos a alcançar ou não os vissem com bons olhos. Realmente, os progressos da burguesia comercial não podiam ser simpáticos a muitos elementos que constituíam a assembleia eleita, como o provam o afastamento de algumas das figuras que inicialmente tomaram parte nela.

 

Eleitas as Constituintes, talvez estas pudessem bater-se por uma ordem social nova - e bateram-se, embora com timidez, como se verifica pela criação de associações comerciais - com a garantia de sucesso que lhes dava a percentagem de magistrados e juristas, negociantes, proprietários e médicos . que é de 53 em 100.

 

Mas o momento destas grandes coisas ainda não tinha chegado, segundo parece. Além de que a criação de organismos económicos, a agremiação destas forças eram um pouco chocantes para o Liberalismo, filho da Revolução Francesa, que abolira as corporações.

 

Para a ideologia do tempo, agremiar era coartar a liberdade e a liberdade do comércio pela qual luta a burguesia comercial é um dos objectivos supremos a alcançar.

 

Esta dificuldade no desenvolvimento das agremiações comerciais foi outro forte impedimento para a constituição das bases sociais daquele movimento político.

 

Parece pelo que temos estado a ver que, tanto ao Sinédrio como às Constituintes, faltou uma ideologia de conjunto, uma ideologia-síntese que comprometesse todas as correntes que as constituíam.

 

Isto poderia ser, de certa forma, compensado pela formação desta ideologia, através dos debates que se foram travando, enquanto as constituintes funcionaram. Mas na verdade, por várias razões e entre elas a falta de experiência política, a falta de experiência parlamentar não permitiu que assim fosse.

 

Por isso, o saldo positivo ideológico não foi tão grande como podia ter sido, dada a facilidade com que esta facção da burguesia se alcandorou ao poder: sem sangue e mesmo sem oposição governamental organizada.

 

Não se conseguiu resolver o problema das facções. E por aí adiante foi sempre assim: os choques e contra-choques das facções e correntes da burguesia continuaram a processar-se:

 

Os vintistas, derrubados em 23, são substituídos pelos cartistas em 26;

 

O cartismo, depois do interregno absolutista, renasce com a vitória de D. Pedro em 34;

 

Em 36, o setembrismo - vintismo radical - domina até 42, em que o cartismo com Costa Cabral, se reconstitui e remodela;

 

Entre 36 e 42 há umas tentativas falhadas de restauração da. Carta, com a Belenzada em 4 de Novembro de 36 e com a revolta dos Marechais Terceira e Saldanha em Julho de 37;

 

Em 42 (de fins de Janeiro a fins de Fevereiro, como acaba de dizer-se, dá-se a restauração da Carta com Costa Cabral;

 

Em Abril de 46, motins populares no Minho, conhecidos pela «Maria da Fonte» obrigam à demissão do governo de Costa Cabral;

 

Entre 46 e Junho de 49, em que se dá o regresso de Costa Cabral ao poder, decorre um período de grande agitação nacional: formam-se Juntas revolucionárias em muitas cidades do pais, há pronunciamentos militares, modificações ministeriais, tumultos vários, assim como duas intervenções estrangeiras, a inglesa em Maio de 47 e a invasão espanhola em junho do mesmo ano;

 

Em Junho de 49, como se disse, início dum curto período de cabralismo;

 

Em Abril de 51, depois dum movimento militar chefiado por Saldanha, começa a Regeneração, constituindo-se o ministério de Fontes Pereira de Melo, o mais conhecido e típico dos regeneradores;

 

Em Julho de 52 publica-se o 1.º Acto Adicional à Carta, que traduz a adaptação jurídica e política às circunstâncias do momento;

 

Em 6 de junho de 56, é costume marcar-se o fim da primeira Regeneração e o início do governo do Partido Histórico, tendo à cabeça o duque de Loulé;

 

Em Março de 59 o Partido Histórico de Loulé é derrubado e principia a 2.ª Regeneração.

 

Que extraordinária sucessão de modificações! Mal havia tempo de respirar e lá se estava a ser dirigido por um outro ministério!

 

Trata-se realmente de modificações profundas, ou de simples pintadelas exteriores na fachada constitucional? Quer dizer: os movimentos revolucionários de que saem essas substituições ministeriais, traduzem qualquer coisa de estrutural, pelo menos novas directrizes políticas, pressão de certos sectores da burguesia comercial ou estrangeira ou são apenas o resultado de questiúnculas pessoais de prestígios feridos, de aspiração ao mando...?

 

Compreende-se que qualquer pronunciamento militar, ou no polo oposto, qualquer tumulto popular, são sempre a face visível de qualquer coisa de concreto, de qualquer. coisa de profundo. Um exemplo: imediatamente a seguir à revolução que levou ao poder o Setembrismo, dá-se o movimento da Belenzada, movimento reaccionário dirigido pela Rainha, o marido, D. Fernando, e um pequeno exército inglês, que desembarcara. Mas Passos Manuel, apoiado pelo Povo, sobretudo por um grupo de populares activistas que ficou conhecido pelos arsenalistas, conseguiu impor-se e evitar que o partido da rainha vencesse. Há aqui duas correntes antagónicas perfeitamente visíveis por detrás dum movimento a que o observador desprevenido não dá outro significado que o de motim, resultado do regime liberal.

 

Mas acontece por vezes, que, por detrás dum tumulto ou duma forte disputa parlamentar, não há mais do que urna manifestação de simples descontentamento ou de mal-estar de um sector mais ou menos extenso. Dá-se o primeiro passo e não se dá o segundo, que consistiria exactamente em se assenhorear do poder ou promover reformas concretas.

 

Portanto, estes movimentos, por vezes, não são mais do que isto que acaba de se ver, movimentos falhados. Quando são considerados um por um, porque, vistos no seu conjunto revelam-nos o estrebuchar duma classe, sem experiência política, sem esqueleto forte, sem unidade perfeita, sem visão de conjunto, mas que quer adaptar-se ao poder.

 

Mas uma coisa é a oposição amachucada em que ela vivera até 1820, outra é o trabalho de segurar o leme, uma vez lançado o barco ao mar; uma coisa é a visão ideal e geral do futuro, outra a necessidade de dar satisfação, dia a dia, aos imprevistos problemas concretos que se vão levantando permanentemente.

 

Agora, já não é fácil resolver as coisas com discursos ou com vagas manifestações de liberdade. Os interesses são constantemente antagónicos, de localidade para localidade, de grupo profissional para grupo profissional, de grupo para indivíduo, etc..

 

Recordemos que o regime é constituído por cidadãos, e que é cidadão, segundo se lê no DIÁRIO DO GOVERNO. (1.° de Dezembro de 1820):

 

«O lavrador honrado, o homem que, vive do seu tráfico lícito, o eclesiástico sem nota..., o advogado, o médico ou o cirurgião hábil, o fabricante acreditado, o oficial mecânico estabelecido Com boa fama...» (P. Santos, 84).

 

É difícil governar em democracia, embora ingénua, como aquela que está dando os primeiros passos em Portugal.

 

É difícil procurar o que há de comum em todos os grupinhos, em todas as profissões, em todas as ideologias, mesmo similares.

 

É difícil governar em democracia burguesa, isto é, em regime de choques permanentes, de interesses e de classes.

 

Toda esta movimentação que acabámos de ver, nos revela essas dificuldades.

 

Mas, vistas as coisas sob um outro aspecto, quando se olha o decorrer de toda essa agitação, uma conclusão se tira: que, em 51, tudo está cançado da luta, menos uma força. Qual e essa força? É aquela que se assenhoreia do poder, e orienta os destinos do país até ao final da monarquia.

 

 

BURGUESIA INGLESA E BURGUESIA NACIONAL

 

Há assuntos que deviam ficar perfeitamente elucidados. Um deles é o do prestígio e do domínio de uma forte burguesia europeia, comandada pela Inglaterra.

 

Que é realmente assim e que essa burguesia está interessada na orientação que as coisas vão tomar e estavam de facto tomando, no decorrer da Revolução Liberal iniciada em 1820, e avançando por aí fora, («aqui cais, ali te levantas»), como temos visto, podemos verificá-lo pelo estudo da história da Inglaterra nas suas relações com o resto do mundo!

 

A política de Canning e de Palrnerston foi uma política de paz com os Estados Unidos com quem a Inglaterra tivera conflitos provocados pela fronteira com o Canadá, mas, com a Santa Aliança, foi de luta embora apenas diplomática. Por outro lado, desde o início das guerras com a França no continente, apodera-se de Malta, da colónia do Cabo e de Ceilão, onde dominavam os Holandeses.

 

Na América do Sul provocou a independência das colónias espanholas, sem perigo de que alguém lhes vá à mão, pois tivera o cuidado de destruir, anteriormente as esquadras holandesa e francesa.

 

Desde então, a Rainha dos Mares segura nas mãos as comunicações com todos os países, que têm assim de se submeter às condições comerciais que lhes queira impor.

 

E como se compreenderia que o mundo português, pequeno na Europa, mas imensamente mais extenso e rico por aí fora, sobretudo no Brasil, ficasse fora das vista ambiciosas da velha aliada que, pelo menos desde Meetwen, estava francamente interessada no evoluir da nossa economia? Como se compreenderia esta exclusão, este respeito pela autonomia nacional, da parte de quem nada respeitava?

 

Possuímos aliás dados concretos acerca das nossas relações económicas com a Inglaterra que nos podem pôr ao facto:

 

Em 1819 entraram e saíram no Porto de Lisboa 2671 navios, incluindo 630 portugueses; pois, de todo estes, 815 eram ingleses!

 

Um ano depois, em 1820, no próprio ano do movimento insurreccional do Porto, o total de entradas e saídas foi de 2.128, entre os quais 770 ingleses e 543 portugueses somente!

 

Este movimento não permite qualquer equívoco: quem dominava os mercados portugueses era então o comércio inglês. Portanto, o movimento de importações e exportações faz-se sobretudo com a Inglaterra, como aliás fica bem visivelmente demonstrado nos quadros que Piteira Santos apresenta a páginas 117 e 173 do seu belo trabalho:

 

Em 14.883 milhões de reis de mercadorias importada pelo Reino de Portugal, 7.466 milhões provinham de Inglaterra! Domínio esmagador indubitàvelrnente!

 

O comércio nacional estava de tal maneira dominado pelas garras estrangeiras sobretudo pelas inglesas - o nosso comércio é extraordinàriamente reduzido, até no número de comerciantes - que de 100 deputados que compõem as Cortes Constituintes de 1821, apenas 3 são comerciantes! Na própria capital, o centro comercial por excelência de todo o Reino, dos 24 eleitores de comarca, de que sairiam os deputados, apenas onze eram proprietários e comerciantes.

 

No mesmo estudo, que temos estado a acompanhar, está bem focada a política desenvolvida pela Inglaterra nos últimos anos em relação a Portugal: caminho para o monopólio das importações e exportações; para o monopólio dos transportes, e, finalmente, para o adormecimento do próprio comércio interno, acima de certo montante. Apenas o pequeno e o pequeníssimo comércio poderiam manter-se. Por consequência, sendo este pequeno comércio insignificante; insignificante seria também sob o ponto de vista polítco.

 

Está assim expressa pelos números a intervenção constante e directa nos negócios internos do país: desembarques de tropas, imposições, ultimatos, etc..

 

Realmente, à Inglaterra convém mais que o país fique reduzido a uma agência dos seus produtos e dos seus bancos, de preferência a uma autonomia e independência que resultariam duma gerência própria, feita de harmonia com os reais interesses do Povo.

 

Aliás não admira que, na senda desta orientação, tenha sido bem sucedida. Para onde se encaminhou a emigração liberal, imediatamente a seguir à aclamação de D. Miguel em 1828? Onde foi, de certo modo, educada, a futura rainha, D Maria da Glória? Onde estanciaram alguns dos políticos de maior relevo do Liberalismo, senão na Inglaterra, predominantemente? De que nacionalidade eram os barcos em que se deslocavam as pessoas mais categorizadas, durante o exílio? De que nacionalidade eram a maior parte dos estrangeiros, com certo peso, que acompanhavam os portugueses saídos de Plymouth, e muitos dos oficiais, alguns com comandos de grande responsabilidade, a começar por Napier, o vencedor da batalha do Cabo de S. Vicente? Quem eram, senão ingleses, alguns dos mais influentes amigos do imperador D. Pedro?

 

A política da Inglaterra, a princípio dúbia, o que aliás está dentro da linha geral da sua orientação, depois da RevoIução de 1830 em França, inclina-se para o apoio, quase oficial aos partidários de D. Maria II em cuja vitória jogaram os seus políticos.

 

Favores com favores se pagam!...

 

 

PEQUENO DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL:

 

O atraso económico do país, ou melhor, económico-político, fica perfeitamente retratado pela esmagadora hegemonia britânica no comércio externo, pela pouquíssima importância que tinha o comércio interno, limitado aliás à actividade de pequenos estabelecimentos; mas não o fica menos se estudarmos o país sob o ponto de vista industrial.

 

No entanto, num Relatório de Dezembro de 1822, já se regista a existência de mais de 1.000 fábricas (rigorosamente 1.031)! Ora este número parece revelar um certo desenvolvimento. Mas talvez o mais sintomático e o mais elucidativo seja a velocidade de crescimento industrial. Desde Agosto de 1820 até Dezembro de 1822, data do referido Relatório, dá-se uma subida de 17 unidades!

 

É evidente que tudo isto são pequenas, mesmo insignificantes coisas, números pouco elevados onde aliás, se incluem grandes, pequenas e pequeníssimas unidades fabris.

 

Mas, por eles, devemos chegar à conclusão de que não deve subestimar-se o progresso das indústrias, promovido pelo conde de Ericeira, e sobretudo de Pombal para cá.

 

Contudo, a essas mais de 1.000 fábricas ou fabriquetas correspondem apenas uns 14.000 operários. Numa população de cerca de 3 milhões de habitantes! Não é muito.

 

Ainda que estivessem concentrados na mesma província e se todos tivessem voto, nem o dobro deste número bastaria para poderem eleger um deputado! Pois, segundo as leis eleitorais preparatórias das eleições para as Cortes Constituintes, a cada 30.000 habitantes correspondia um deputado! Nem assim, porque muitos deles não teriam voto, por não obedecerem às condições exigidas de idade sexo., etc...

 

Pode avaliar-se por aqui a reduzida importância da indústria, no começo da vida nova que prometia iniciar-se em 24 de Agosto Uma vida nova que implicava certo desenvolvimento industrial e comercial!

 

Não pode portanto considerar-se o nosso país, por essa altura, incluído francamente no sector do mundo ocidental que se encaminhava para a industrialização.

 

Contudo, deve atribuir-se às coisas o lugar que elas de facto ocupam. E para isso será necessário fazer certas correcções ao que acaba de dizer-se. Concretizemos: no número de operários não estão incluídos os pescadores, nem os trabalhadores em actividades afins; pois, se assim fosse, o número indicado teria de ser muito aumentado. - Viu-se já a importância que têm as actividades piscatórias, no apoio aos passos iniciais do movimento liberal.

 

Mas continuemos: no recenseamento da população de 1866, da Póvoa de Varzim figuram 7.930 pessoas empregadas na pesca, feitura e concerto de redes, diz-nos Brito Aranha (MEMÓRIAS HISTORICO-ESTATÍSTICAS, pág. 12).

 

Esta gente não está enquadrada na rubrica do operariado, mas é operariado. Haveria que contar também com o que hoje chamamos operários da construção civil; e que têm certamente um enorme peso económico e industrial, numa altura em que a actividade edificadora está a assumir proporções de bastante relevo.

 

Quer dizer, ao falar-se nas condições industriais do país, não podemos apenas considerar o número de máquinas a vapor, de certa altura em diante, nem contar os operários concentrados nos centros fabris. Um barco se não é um centro fabril é um centro de aquisição de riqueza, por vezes com um número de trabalhadores muito maior que um daqueles teares da Covilhã com meia dúzia de operários, ou menos.

 

Mas o desenvolvimento industrial depois da Revolução de 1820 é bastante acentuado, sobretudo em certas indústrias. E o desenvolvimento destas indústrias é, até de certo modo, um índice da nova feição intelectual que as coisas iam tomando dentro do Constitucionalismo. É o caso da indústria do papel, de que depende o jornal e o livro; logo a propaganda e a difusão das ideias.

 

Na Lousã, uma das fábricas que em 1821 emprega 25 operários, em 1838 já tem ao seu serviço 80 e, por 1870, 200! E este crescimento é tanto mais sintomático quanto é sabido que em 1869 está já a funcionar uma outra fábrica, no mesmo concelho com 100 operários! (Brito Aranha, ob. cit., pp. 110-113).

 

Um outro caso: a Fábrica de Vidros da Marinha Grande, cuja criação se deve à iniciativa de Stephens, com o apoio de Pombal:

 

«Em 1813 havia 273 empregados na fábrica; em 1846, 286, incluindo 100 carreiros; em 1847, 264; em 1855, 304; em 1862, 413, não contando os carreiros; e de 1868 a 1870 ocupam-se na fábrica de vidro não menos de 600 pessoas de ambos os sexos» (B. Aranha, ob. cit., p. 177).

 

Sabido como é, que outras fábricas estão a funcionar, não se pode deixar de tirar a conclusão de que as comodidades da vida estão a alargar-se duma forma burguesa.

 

É também isto o que nos mostram os progressos da Fábrica de Porcelanas de Vista Alegre: de 1865 para 1869, o número de operários passa de 155 para 175.

 

Portanto, vai-se processando certo desenvolvimento industrial, embora modesto, durante o primeiro meio século de Liberalismo - é esta a nossa primeira conclusão. Em segundo lugar, há a ver que no progresso das indústrias em Portugal não deve considerar-se apenas a introdução da máquina a vapor, como no-lo mostram as actividades da pesca e afins e a da construção civil.

 

Em terceiro lugar, o aumento do fabrico do papel, de vidros, de louças, revela a transformação que a vida está sofrendo, no sentido do aburguesamento da população, no sentido do aproveitamento dos benefícios da civilização, por um número cada vez maior de pessoas, no sentido da sua consciencialização pela imprensa e pelo livro.

 

É certo depender da máquina a vapor a concentração operária e a construção de grandes fábricas. Mas quando isto acontecer em larga escala, outros problemas terá a burguesia de enfrentar.

 

Finalmente, a modéstia do desenvolvimento industrial, a quantidade insignificante de navios portugueses que se movimentam nos nossos portos, revelam nitidamente o estado de dependência em que se encontrava o país, em relação à burguesia estrangeira.

 

Portugal, para a Inglaterra do tempo, não é de facto mais do que uma pequena colónia e uma posição geográfica que, em caso de guerra, pode ser-lhe extraordinariamente útil. Que dizer da segunda metade do século? Em breve lá chegaremos!

 

 

ALGUNS PROBLEMAS DE POLÍTICA INTERNA:

 

O Liberalismo tem, de facto, dado que fazer! Mas não admira! Aproximamo-nos dos nossos dias e há que esmiuçar e apurar tudo, para que não fiquem escondidos elementos necessários à compreensão da era actual. O século XIX é-nos indispensável para compreendermos o dia de hoje - e este, é a nossa finalidade última.

 

Para quem se preocupa fundamentalmente com o que está sucedendo no nosso país nos tempos que correm - e quem se não preocupa? - todo o passado, sobretudo o passado próximo, é a lente para uma visão tanto quanto possível ampla. Não é de admirar portanto que a Revolução liberal e os decénios que se seguiram tenha dado que fazer. Tem dado e dará.

 

Procuremos outros aspectos fundamentais. Foquemos agora um pouco a vida política que resultou da reorganização saída do movimento de 24 de Agosto.

 

O primeiro aspecto a focar, quando se trata duma democracia ou duma pré-democracia em que a manifestação da vontade individual é básica, é este: como consultar, como ouvir as opiniões do povo português? Por que processos vai o povo escolher os seus governantes? Quer dizer: como vão os governantes ser eleitos pelos governados?

 

A primeira pergunta a seguir às que acabam de ser feitas é essa: com que consciência vão ser escolhidos os deputados entre os vários candidatos?

 

Não se esqueça que se trata de um povo, na sua quase totalidade, de iletrados; de um país em que não há escolas, onde os únicos encarregados da educação popular são membros do clero, os párocos das paróquias ou os chamados missionários. Não esqueçamos que em 1832, aquando do desembarque do Mindelo, há apenas 740 escolas primárias (o Miguelismo, na sua eficiente política de defesa da aristocracia dirigente em três anos de 1829-321 suprimira 199 escolas!) Ora, para que a escolha seja perfeita será indispensável o conhecimento do que se vai escolher, de quem se vai escolher, e a extensão e consequências que podem resultar da escolha. Possuía-a o nosso povo? Podia possuí-Ia?

 

Quem lhe apresenta os candidatos e seus programas, digamos assim? Quem conduz na luta eleitoral? Em que ambiente são discutidos os assuntos políticos, se é que chegam a ser discutidos? Como está o povo educado para estas disputas? As leis eleitorais, a começar pela que precedeu as Constituintes, dão-nos apenas as fórmulas; mas realmente nada nos dizem acerca da maneira como as coisas correm.

 

Recorramos portanto ao processo do testemunho presencial. Escutem-se algumas notas acerca do ambiente social à volta das eleições. Começando pelas características daqueles a quem está entregue a educação popular. É Júlio Dinis quem fala:

 

«... eu não ouso transcrever para aqui o modelo de eloquência sacra; recitado pelo missionário, naquele dia.

Ainda se eu pudesse transmitir aos leitores o tom rouco de voz, a extravagância de gestos, o descomposto de movimentos com que o orador acompanhava a recitação dos descosidos períodos daquela indigesta prática, talvez me animasse à empresa, para lhe dar um exemplo da vigorosa eloquência, com que se anda atrasando a civilização do povo e prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz é abafada por aquela gritaria.

As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, inúmeras torturas a que o menor delito, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntária falta à missa, uma penitência esquecida, uma oração suprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada pecado venial, uma perspectiva de tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal do Santo Ofício onde os autos-de-fé, os potros e cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença que o poeta florentino esculpiu na porta do Inferno, traçava-a este sobre os umbrais no tribunal do Eterno. Na escultura de Cristo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um acusador, surgindo ali a pedir vingança, e não a do redentor sublime, a implorar e a prometer perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociais, contra a obra do século, contra os descobrimentos, contra a ciência, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favorável à propaganda reacionária.» (MORGADINHA DOS CANAVIAIS, 25.ª ed., II vol., pp. 55-56).

 

Este trecho referia-se a acontecimentos decorridos por voltas de 1860 ou um pouco antes. Mas estão perfeitamente adequados a quaisquer outros, anteriores e posteriores - e ainda aos nossos próprios dias.

 

Não nos admiremos deste ambiente de rancor, de ódio contra a novidade, que eram as instituições liberais. - Não é verdade que 30 anos antes, Lamenais, no seu ESSAI SUR L'INDIFÉRENCE… considera a «tolerância como um novo género de perseguição e de provas… que o cristianismo deve sofrer»? (Introduction, pág. XXX) Que admira que um padre boçal exprimisse na sua linguagem as mesmas ideias?

 

Extintas as Ordens Religiosas, manteve-se o espírito que as orientava, modificado apenas no sentido da luta contra as instituições liberais. Aquilo que diz o historiador brasileiro Oliveira Lima, que o Liberalismo tinha vencido militarmente, mas quem continuava a mandar em todas as províncias, do norte ao sul de Portugal, era o velho clero rniguelista, é profundamente verdade.

 

Um dos objectivos de então, nestas práticas de aldeia era o de mostrar a incompatibilidade do Cristianismo com as novas instituições liberais e, portanto, com as correntes políticas e sociais donde elas provinham, das quais a mais importante brotava exactamente da Revolução Francesa. Aquilo que Sua Santidade o Papa Pio IX há-de dizer, muito mais tarde (1865), da incompatibilidade entre as doutrinas de Cristo, o Liberalismo e a Democracia, já os padres rurais portugueses iam prevendo na sua luta sem tréguas contra o Liberalismo!

 

E para isso, nada melhor no espírito de um povo crendeiro, tradicionalista e inclinado para tudo o que fosse mistério, do que difundir o terror do inferno e atemorizar com o pecado!

 

Vem ainda longe o tempo em que os defensoes da harmonia entre o cristianismo e o progresso, como D. António da Costa, hão-de começar a escrever. Por enquanto é pecado, tudo o que cheire às novas instituições, às ideias vindas de fora, como então se dizia. E, neste sentido, o padre da aldeia era o primeiro, o mais influente dos educadores e, a maior parte das vezes, o único pela vida fora.

 

Como é que com gente educada nesta atmosfera e com educadores deste jaez, num ambiente de metafísica primitiva e de ausência de autonomia mental, se podiam fazer eleitores, não já perfeitamente ao par dos problemas e de seus próprios interesses individuais e de classe, mas com a vaga noção, pelo menos, de que eles existiam?! Com certeza que, por essas aldeias sertanejas, as coisas se passavam desta forma descrita por Júlio Dinis, quando a coisa não se resolvia à cacetada como temos notícia de ter acontecido muitas vezes, sobretudo no Minho cheio de padres brigões e caciques eleitorais.

 

Nas cidades, a convivência, nas tabernas, nos cafés, nas sociedades, permitia e despertava mesmo certos debates, mas, por essas serras fora, no há dúvida de que a reportagem tem fundamento.

 

Vamos ver imediatamente como procediam os «eleitores», guiados ainda pela pena do autor da MORGADINHA.

 

O que refere Júlio Dinis na MORGADINHA é, dentro de um outro ambiente e com modalidade diferente, o que refere Herculano no PÁROCO DE ALDEIA.

 

A narrativa do Historiador é assim de vinte e tal anos antes e reporta-se à sua meninice.

 

O pároco de Herculano não é o pregador inflamado e rancoroso que é o nosso missionário, mas a sua influência é enorme, e isto ressalta da narrativa. Se o personagem de Herculano é bondoso e são, nada impede que vejamos a influência que ele exercia, que era boa ou perniciosa, conforme a mão que dava a beijar ao povo era limpa ou suja.

 

De uma forma ou de outra - bondosamente romântico, como o de Herculano, odiento e anti-liberal como o da MORGADINHA, frade ou simples secular - o padre continuava sendo o astro-rei do sistema rural, o educador único, ou quase; quando não era mesmo o educador oficial, com ordenado do Estado, o padre-mestre.

 

De maneira que os resultados são sempre os mesmos; sob este ponto de vista - e isto é capital, para não dizer decisivo - nada mudou no ambiente da aldeia, a não ser a cor da fachada, que passara de branca para azul e branca.

 

É assim que, com a preparação mental adquirida sòmente na igreja, em que o hábito de obediência é o mais cultivado, a atitude do camponês não poderia ser a da autonomia, a da reflexão. E sem elas não pode haver eleitor, nem eleitorado, nem assembleias legislativas, nem leis, nem constituições.

 

Para que a experiência, para que a acção produza os seus efeitos, é preciso que ela seja acompanhada por uma ideologia que com ela se vá aperfeiçoando.

 

Ora, extintos os conventos, tendo-se apossado das suas propriedades um número restrito de indivíduos, criaram-se as condições para o aparecimento e o aperfeiçoamento do cacique, o cacique que possui os bens do frade e ocupa agora o seu lugar de dirigente.

 

Aqui temos um cacique: o senhor Joãozinho, Morgado, conduzindo a aldeia de Pinchões em peso na direcção da urna, ainda segundo o relato do mesmo repórter, Júlio Dinis:

 

«O Morgado vinha, como já disse, à frente. A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço solto, sem botões o colarinho da camisa, com as mãos metidas no cós das ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de peles, as botas enlameadas até aos joelhos, a ponta do cigarro no canto da boca, o palito atrás da orelha, o chapéu, sobre o occiput, dois galgos adiante de si, e o inseparável Cosme quase a latere. Entrou no adro com ares triunfantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e partidários, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o seguia e a docilidade dos membros dela. Atrás vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com olhar tímido e estúpido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se ele parava, a cumprimentar um amigo, paravam todos com ele; a direcção que tomava, tomavam-na todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que ele dava aos seus; se ria, sorriam; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou à porta da igreja.

O morgado passou revista à sua tropa, à qual deu instruções.

Os homens com os cabelos para diante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se enfileirados, até nova ordem do senhor Joãozinho.

Pareciam envergonhados de serem precisos a alguém.

No bolso de cada um destes havia um oitavo de papel almaço branco dobrado, no qual estava escrito um nome; um nome dum homem que eles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um deles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente»; aproximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquele papel, e retirar-se-ia satisfeito como se descarregasse de um peso que o oprimia» (l. c., pp. 216-217).

 

Com um povo com mais de 2.500.000 camponeses, numa população total de 3.000.000, sem costumes democráticos de igualdade e de autonomia, como era possível uma democracia liberal? Como eram possíveis eleições, sem uma propaganda prévia de programas e de princípios? Como podia funcionar um liberalismo sem caciquismo, quando nada tinha sido feito de decisivo para eliminar os caciques, quer dizer os condutores, os sucessores dos frades, os económicamente mais válidos?

 

Este é o panorama dominante do norte ao sul.

 

Mas não quer dizer que aqui ou ali não tivesse alastrado uma nódoazita democrático-liberal. Há um acentuado movimento urbanístico, mais ou menos paralelo à industrialização, ao desenvolvimento das técnicas, ao desenvolvimento dos transportes.

 

É certo que as coisas não se passaram como na Inglaterra em que, antes dos caminhos de ferro, os transportes se faziam por estradas, e antes de se fazerem por estradas, através de canais que tinham sido rasgados naquelas regiões planas. Mas com a modéstia e com o vagar das nossas coisas, lá se ia andando.

 

Há contudo uma nota que é preciso dar imediatamente: é a de que as populações citadinas onde a cultura política começa a desenvolver-se, em breve começam também a afastar-se do Liberalismo puro para se encaminharem para o associativismo socialista.

 

Depois da revolução de 48, em França, ao mesmo tempo que se dá uma certa consciencialização das massas operárias urbanas - se pode falar-se em massas neste sentido - logo que parecem ir adquirindo melhores condições de cidadania, começam a optar pelo Socialismo.

 

Eis uma das virtudes do Liberalismo, embora uma grande parte dos liberais não possam compreender; ou não queiram, porque afinal só se é liberal na medida em que os outros podem sê-lo também, e optar pela doutrina ou pela teoria que mais esteja de acordo com os seus interesses, mesmo que o seu interesse esteja num Liberalismo reformado, que era o Socialismo.

 

Mas também é verdade que o Socialismo não é o Liberalismo - daí, de certa maneira, a incompreensão e a antipatia de determinados liberais.

 

 

O ASSOCIATIVISMO NAS CIDADES: cafés, redacções de jornais, etc.:

 

A vida das cidades não é a vida socialmente desarticulada dos campos. No campo, cada um convive com os seus vizinhos, e, uma grande parte das vezes, para questionar, para disputar acerca das pequenas coisitas que os cercam. Nos meios rurais, grande parte das vezes, a convivência conduz a rivalidadezinhas e a questões ligadas aos interesses privados. Hoje assim é, embora a rádio e a televisão estejam - involuntàriamente, bem sabemos - a encaminhar a vida para uma convivência dum outro género, diferente da dos pequenos egoísmos familiares.

 

Mas naquele tempo, naquele princípio e meados do século XIX, as coisas eram bem diferentes: os centros de convivência eram as tabernas, os páteos, os cafés; e a leitura dos jornais, feita muitas vezes, em voz alta, numa roda maior ou menor de leitores e dando à vida em comum uma intensidade e uma vivacidade raras.

 

Mas que sabemos nós disto, pelo menos na Lisboa de há cento e tal anos?

 

Alguma coisa sabemos da vida de café, embora pouco, porque os nossos eruditos quase nada se têm dedicado a esse assunto. E também alguma coisa acerca da imprensa, mesmo da local. Porque os jornais ficam e as vozes dos paroladores de botequim levou-as o vento!

 

Havia em Lisboa, na década de 40, ou talvez mesmo antes, dois cafés centros de encontro entre vários com certa categoria: o Marrare e o Suisso.

 

Do Marrare diz Pinto de Carvalho:

 

«Era o príncipe dos botequins que então abundavam desde o Chiado até à rua do Largo do Loreto, era o café de bom tom. Aí se agrupavam alguns dos mais ladinos jogadores do xadrez político, aí se via José Estêvão conspirando contra os Cabrais, e Passos Manuel fazendo a sua propaganda da Maçonaria». (OBRA POLÍTICA DE JOSÉ ESTÊVÃO, I, pp. 343--344)

 

José Tengarrinha teve o cuidado de dar alguns traços desta vida da quarta década do século. E, por seu intermédio, aí vamos encontrar elegantes, políticos e politiqueiros, maledicentes, críticos do teatro lírico, e toda uma roda que passava de uns para os outros e os ia ouvindo.

 

O Suisso, do Largo de Camões era igualmente um ponto de concentração de políticos, conspiradores, revolucionários, tendo chegado as autoridades a responsabilizar os proprietários pelo que se pudesse aí passar, ou preparar, e até por conversas sobre assuntos políticos, evidentemente, em determinados momentos de maior agitação.

 

Era bom que os nossos eruditos - lá vêm outra vez os eruditos! – que às vezes pouco mais fazem além de apresentar e corrigir datas e vírgulas de textos conhecidos, se virassem um pouco para a vida diária, para as pequenas coisas do dia a dia, que tanto ajudam a explicar a situação das várias classes sociais.

 

A vida dos cafés é um aspecto do associativismo que vai desenvolver-se ràpidamente entre nós. O café é uma forma de associação embora não esteja virada inteiramente para a política ou para qualquer ideologia. Espécie de associação sem estatutos e sem programa a realizar, os cafés são locais de encontro com a porta permanentemente aberta. Mas não como hoje. Normalmente a entrada era condicionada a uma apresentação, tal como nas associações, mais ou menos secretas. Foi sempre assim durante todo esse século XIX. Recordemos o Artur da CAPITAL do Eça que pela mão de Damião, tem entrada no clube, de onde, aliás, pouco tempo depois, é corrido.

 

Mas quantas coisas aí se teriam combinado, perdidas para sempre?!

 

De 1848 em diante, depois da Revolução de que saiu a segunda República em França, depois de afastado Luís Filipe, e o que ele representava dentro do reaccionarismo capitalista francês, o movimento associativista sofreu um incremento muito grande. E, tal como aconteceu à ideo logia da Revolução, os costumes políticos, as formas de organização populares correspondentes chegaram a toda a parte.

 

É dessas associações que brota, quase espontâneamente, o Socialismo, um socialismo humanitarista, utópico, de certa forma romântico, um socialismo à Owen, Fourier, Saint Simon... e que nada tem a ver com aquele socialismo concreto que acabaca de ser definido, no mesmo ano, no MANIFESTO COMUNISTA.

 

Foi à explanação, ao desenvolvimento e à aplicação de suas doutrinas, que se consagraram vários jornais de que José Tengarrinha e Vítor de Sá nos dão indicação e mesmo certos estratos. Aí poderão ser procurados.

 

Mas a propósito - e pondo de parte agora esses jornais socialistas ou socializantes - talvez não seja má ideia indicar os jornais que, logo a seguir ao Movimento liberal, foram publicados no Porto, em Lisboa e na Província.

 

No Porto, no fim de 1820, existem o Diário Nacional, Génio Constitucional, Regeneração de Portugal; o primeiro é mesmo o órgão oficial da Junta.

 

Em Lisboa, logo que se deu a adesão da cidade, em 15 de Setembro, ao movimento do Porto, surgiram, quase ao mesmo tempo, 12 jornais políticos:

 

Astro da Lusitânia, Pregoeiro Lusitano, Mnemoine Constitucional, Português Constitucional, O Liberal, Patriota, Lysia Degenerada, Minerva Constitucional, A Nação e o Rei, o Amigo do Povo e Literato.

 

Em 1821 surgem mais:

 

Camião Lisbonense, Independente, Verdadeiro Liberal, Borboleta Constitucional, Abelha Portuguesa, Despertador Nacional, e no Porto, Patriota.

 

Com a vinda do Rei para a Metrópole, como se sabe, constituiram-se dois partidos - o ministerial, apoiando o Rei; e o liberal, partido das Constituintes e dos revolucionários. Cada um deles tem os seus órgãos como defensores. Os do Partido Liberal são: Português Constitucional Regenerado, Campião Português, Analysta Português, Diário Económico, Jornal da Sociedade Literária, Patriótica e Diabo Coxo. Apoiando o Rei e a política do Ministério, oposta à das Constituintes, publicam-se os seguintes: Censor Lusitano, Regulateur, Conciliador Lusitano, e ainda outros menos importantes.

 

Em 1823, entramos no período crítico do movimento revolucionário; não se tendo conseguido a colaboração entre o Ministério e as Constituintes, foi-se criando o clima propício aos movimentos reaccionários que vão eclodir com a Vilafrancada e a Abrilada. Apesar de tudo, continuam a aparecer novos jornais, entre eles: Argus Lusitano, e Amigo do Povo, dos irmãos Passos. E por aqui ficou a imprensa liberal.

 

A Reacção aproveita, contudo, a possibilidade de defender as suas ideias e lançar suas biscas à reputação dos liberais, e cria também sua imprensa; entre os seus jornais salientamos: Gazeta Universal, tendo como redactor o célebre - célebre mais tarde quando colaborador constante da Besta Esfolada - José Agostinho de Macedo.

 

Em 1822, os Realistas ou Corcundas fundam mais as seguintes folhas: Novo Hércules, Trombeta Lusitana, além de algumas humorísticas, com o nome de: Sega-Rega, Gaita, Rabecão, Serpentão; Noticiador Conciso, de Coimbra.

 

Parece, portanto, que uma das condições exigidas para o bom funcionamento de um regime parlamentar, liberal, democrático, começa a verificar-se. Porque, a par dos debates parlamentares, começam a travar-se debates entre os leitores e portanto entre o povo. Estas folhas não deixam de contribuir para formar correntes de opinião, agitá-las, canalizá-las, neste ou naquele sentido. E isto é de extraordinária utilidade para a democratização das instituições e para que todos dêem o seu contributo à transformação do país.

 

O pior é que a população rural continua a viver quase completamente à margem destes debates; assim como dos debates parlamentares. Na verdade, como fazer chegar - já não dizemos às aldeias mais remotas, mas às cidades e vilas do país - o conhecimento do que se ia passando em Lisboa, sem um serviço de correios, de eficiência impossível pela falta de estradas ou quaisquer outros meiosde transporte, a não ser o mar e o curso de alguns rios?

 

Devido ao desconhecimento do que se ia passando, à ignorância da obra que as Constituintes estavam erguendo na «regeneração» do país, se pode explicar em parte o terem brotado movimentos de reacção em regiões afastadas, contra o trabalho que o Liberalismo estava desenvolvendo. Daí o não se poder equilibrar a propaganda facciosa, levada a cabo nas províncias longínquas por uma parte do clero e por essa aristocracia rural que tanto se sentiu prejudicada naquilo a que chamava os seus direitos.

 

 

CONFIANÇA E DESCONFIANÇA NO FUTURO DO REGIME:

 

Este liberalismo tem realmente dado que fazer - vimo-lo já várias vezes - no seu primeiro período revoIucionário, o daqueles três anos até à Abrilada de 1824; durante a sua reorganização em novos moldes iniciada com o desembarque no Porto em 1832 e que se prolonga, pelo menos até o movimento de Setembro de 1836; a todos aqueles que andaram envolvidos não só nestas lutas ideoIógcas mas também nas lutas militares e sofreram os duros trabalhos da emigração. E deu que fazer também, afinal, àqueles que desenvolveram a sua actividade no sentido de o combater!...

 

Logo devemos ouvir as opiniões de alguns dos homens mais categorizados da época. Porque afinal, escrevem-se livros, redige-se a palavra com L grande, mas aqueles que tal fazem focam-no normalmente como uma generalidade, como uma simples atitude mental, como uma corrente ideológica, como uma posição filosófica que nasceu na Idade-Média e se prolongou através dos séculos, atingindo o período áureo, verdadeiramente a Idade Liberal, no sécuo XIX. É assim que pensam, por exemplo, H. Lasky, em THE RISE OF EUROPEAN LIBERALISM, an essay in interpretation, e de certa maneira, é sob este ponto de vista filosófico - longe de todas as implicações sociais e económicas - que Benedetto Croce o «historia» em HISTÓRIA DA EUROPA NO SÉCULO XIX; assim como - embora atribuindo lugar de maior relevo à técnica, à economia, às classes sociais - Bertrand Russel em LIBERDADE E RECONSTRUÇÃO.

 

Mas não é como corrente filosófica que temos de o definir e caracterizar. É pela sua actuação; é pelas modificações que introduziu ou pretendia introduzir na vida dos portugueses; é pelas esperanças que se puseram nele como sistema administrativo e político; é pelos desencantos e pelos desânimos que provocou; é pelos apoios que foi conseguindo da parte da população; é pelo afastamento das pessoas que foi também provocando: uns voltando-se para o «saudosismo», outros procurando ultrapassá-lo, pondo suas esperanças ou trabalhando para o socialismo.

 

É assim que se caracterizará o Liberalismo, mas sempre de forma genérica. Para nós, vivendo a quase 150 anos dos entusiasmos iniciais de Fernandes Tomás, de Borees Carneiro e de outros, o que o vai caracterizar é a análise da sua obra. Mas isso fá-lo-emos mais adiante.

 

Quem o vai definir na sua linguagem acessível, é o maior tribuno popular do seu tempo, José Estêvão, E não com palavras solenes extratadas dum estudo ou peça oratória solene, mas pura e singelamente num discurso de defesa - vejam como eram aqueles homens! - num discurso de defesa dum jornal miguelista, feita num tribunal público. Quem fai fazer essa defesa é José Estêvão, aquele mesmo que afirma que «a legitimidade está no povo, está na soberania popular. Só pode ser decidida nos comícios populares; nunca pelos publicistas». Quem vai fazer esta defesa é José Estêvão, a defesa dum jornal que defende exactamente o Legitimismo, isto é a ideia de que o poder dos reis lhe vem deles próprios, dos seus antepassados, de Deus, e não do próprio povo!

 

Mas o melhor é dar-lhe a palavra:

 

«Entregar o país nos braços de seus filhos; pôr em actividade todas as suas inteligências e vontades; envidar todo o patriotismo em todas as questões nacionais; reduzir a memória das nossas dissenções políticas a uma recordação puramente histórica; abrandar as paixões dos partidos por meio da tolerância; censurar os maus precedentes por meio da generosidade; transigir até certo ponto com os caprichos; desfazer as ilusões honestas, e chamar por estes meios a grande massa dos cidadãos à vida nova dos povos, à vida da liberdade pacífica e do progresso nacional - sempre me pareceu uma ideia grande, patriótica e fecunda!» (Tengarrinha, I, p. 309).

 

Está aqui, neste enunciado, um genérico esquema de observações e ao mesmo tempo um programa de ideias vibrantes. Mas o problema está em saber como estas rubricas hão-de desdobrar-se e ser levadas à prática. Formular enunciados gerais, não será absolutamente fácil, mas concretizá-los é imensamente mais difícil. E aqui é que se dividem as opiniões; aqui é que se notam as primeiras cisões entre os ordeiros - e havia-os dentro do próprio Setembrismo - e os radicais; entre os que defendiam a pureza, a ingenuidade das fórmulas primitivas e gerais até aos que se entregavam às especulações da finança, como aconteceu de Costa Cabral em diante e sobretudo da Regeneração; desde aqueles que julgavam que o valor das ideias estava nas casacas, nos laçarotes, nos chapéus altos, no empertigado das atitudes e do andar, até aos que tinham orgulho na sua simplicidade e naturalidade… por vezes bem estudada!

 

Daí as divergências. Mas o principal ponto de partida das divergências está, como se disse, na dificuldade de adaptação às circunstâncias e na resolução dos problemas, que são cada vez em maior número, e mais intrincados uns nos outros.

 

Perante as dificuldades e a impotência, surge o desânimo dos teóricos, dos tais homens do liberalismo geral, abstracto. Nessa época de romantismo, de tristezas, de sonhos, de lamúrias, de interpretações poéticas do passado, não são aliás de estranhar estas atitudes tomadas contra a construção liberal em que por vezes tomaram parte.

 

Inclui-se aqui a conhecida opinião de Herculano sobre a revolução liberal:

 

«O povo espantava-se de se achar tão livre, tão rico, em direito teórico: porque, na realidade, nos factos materiais, palpáveis, da vida económica, as coisas estavam pouco mais ou menos na mesma».

 

É este um dos trechos típicos e muito repetidos da posição de Herculano, que vai terminar por um desânimo total, traduzido na célebre frase: «isto dá vontade de morrer».

 

Mas vê-se também como o grande pensador distingue entre a teoria de que os portugueses do tempo eram ricos e fartos e os factos da vida económica em que tudo continuava mais ou menos na mesma.

 

Pela mesma época, Garrett - o elegante, o gozador da vida, o admirador da beleza das mulheres, o entusiasta da organização do teatro, o orador inflamado e optimista - escreve uma poesia intitulada No Lumiar, datada de Dezembro de 1851, evocando uma antiga visita ao Duque de Palmela na sua quinta do Lumiar. Vale a pena apreciá-la, não só pela grande beleza que o poeta põe em tudo o que escreve, mas como documento do cepticismo político que o dominava no tempo:

 

«Oh! Minha pobre terra, que saudades

Daquele dia! Como se me aperta

O coração no peito co'as vaidades,

Co'as misérias que aí vejo andar àlerta,

Á solta apregoando-se! Na intriga,

Na traição, na calúnia é forte a liga

É fraca em tudo o mais…

 

Tu socegado

Descansa no sepulcro; e cerra, cerra,

bem os olhos, amigo venerado,

Não vejas o que vai por nossa terra.

Eu fecho os meus, para trazer mais viva

Na memória a tua imagem,

E a dessa bela Inglesa que se esquiva

De nós entre a folhagem

 

Dos bosques de Parténope. Cansado,

Fito nesta miragem,

Os olhos de alma, enquanto que, arrastado,

Vai o tardio pé

Por este que inda é,

Que cedo não será, bem cedo - em mal!

O velho Portugal.»

(FOLHAS CAÍDAS)

 

E com esta poesia, acabrunhante, pessimista, com o olho da saudade no futuro, com o olho do desânimo no presente, não compreensiva das causas do pouco sucesso - não do insucesso, porque não é justo referirmo-nos assim a um movimento que tantas portas abriu - registamos a existência desta corrente.

 

O que é realmente desanimador para nós é ouvir palavras, como as de Herculano e de Garrett, dois homens que sabem perfeitamente que nada se constroi dum momento para o outro, que tudo tem as suas fases de progresso e também os seus precalços; que se o povo ajuda, se sacrifica e morre, os vampiros da alta finança não fazem outra coisa que sugar ou pensar em sugar, que cear ou pensar na ceia, como o padre Januário, do Júlio Dinis!

 

Garrett nesta sua dorida invocação do passado, dum passado de esperanças, e dum presente de desespero, dá a impressão de que apenas se refere - falando na traição, na calúnia, na intriga, na miséria - aos desentendimentos e embates entre os grandes, das várias correntes de dirigentes. E também certamente a toda aquela estrumeira do cabralismo, que começava a gangrenar na Regeneração, e que já se sentia o cheiro.

 

É possível que o povo não esteja em causa. Aliás Garrett, sempre metido a fundo em todos os problemas do dia a dia, bem sabia de que lado estava sempre o povo.

 

Contudo, não esqueçamos que Garrett vive afastado dos ambientes de trabalho rural, operário, comercial, industrial. E que o povo vive muito longe das actividades intelectuais que são o normal da vida do poeta. Ninguém duvida das suas intenções revolucionárias; mas o teatro, a diplomacia, a literatura, a oratória, a engrenagem dos partidos, e também a convivência com os Palmelas e quejandos, e igualmente (não o esqueçamos), a sua vida amorosa, absorvem-no quase completamente.

 

Mas há por esse tempo homens que habitam mais perto do rés-do-chão das realidades sociais, embora não esqueçam também as amplas ideias gerais. Que vivem mais junto do povo do que Herculano, enterrado na papelada dos arquivos ou o Garrett.

 

Estou a pensar em Félix Henriques Nogueira que, abrindo os olhos para a realidade nacional presente, sobretudo para o atraso e para a miséria das populações, não se limita à lamúria e às confissões de desânimo e propõe soluções.

 

É ele quem vai dizer-nos o que era uma aldeia em meados do século:

 

«Somos finalmente chegados, em nossa peregrinação ideal ao lugar ou povoado, que suporemos ser, sem grande esforço de imaginação, uma pequena e miserável aldeia com os seus casebres escuros e arruinados, em que raro se vê uma janela, e onde por milagre se depara com um vidro.

A fonte é um charco, mais ou menos profundo, em que os moradores mergulham os seus cântaros.

O lavadoiro é a pedra do rio, em que as mulheres metidas na água ou postas de joelhos sofrem a intempérie das estações. No verão o escasso manancial seca, e então começa a pobre gente de caminhar em procura de urna lágrima de água. Os gados enfezam-se neste período e às vezes morrem à sede.

Vede aquela mó de crianças cobertas de farrapos, com os pés descalços e a cabeça nua, que no terreiro, ao olho do sol, brincam, lutam, choram e riem para de novo começarem o seu estéril passa-tempo! São os filhos do pobre, que ainda não têm idade de trabalhar, e a que ele não pode dar outra educação. Crescidos, lá irão os rapazes vigiar gado, ou começar os trabalhos rústicos; e as raparigas entrar no serviço doméstico ou ser mães de família; mas uns e outras, grosseiros, boçais, sem uma ideia de moral, de justiça ou de ciência, sem nenhum sentimento do belo, do útil ou necessário.

Distinguis aquela casa um pouco mais reparada e branca, com o seu poial à porta e ramo de pinho dependurado? É a taberna, banco e clube do lugar. Ali correm as mulheres, de dia, a proverem-se das suas gulodices a queimarem o pequeno salário de seus maridos. Ali se juntam os homens à noite para matarem o tempo. Alguns no meio duma nuvem de fumo e duma gritaria infernal, começam a toldar-se das bebidas: altercam, barafustam, travam-se de mãos e por fim, cambaleando ou taciturnos, voltam para casa com a algibeira vazia ou com o calvário (o aumento da conta) bem povoado. Outros, à roda de grosseira banca, despedem violentamente as ensebadas cartas e, em danoso jogo de sorte, arriscam o que não podem.

Nos dias calamitosos da doença, ou da falta de trabalho, é também ali que o operário vai procurar a crédito aquilo de que carece. Triste socorro comprado a preço de espantosa usura! Se possuía algum pequeno património, bocado de terra ou morada de casas, breve ficará sem ele, que tudo lhe levará o oficioso capitalista, que o remediou. Se tinha ao canto da arca ou em verde na ceara poucos alqueires de pão para o seu sustento, lá lhos irá vender, por metade do preço, que depois terá de custar-lhe.

Se achardes o quadro carregado de sombras, comparai-o bem com a realidade - que ela não é por certo, mais lisongeira». (ESTUDOS SOBRE A REFORMA EM PORTUGAL, pp. 175-177).

 

O quadro não está realmente carregado, a não ser... em sentido contrário, pois faltam-lhe notas e observações sob muitos aspectos da vida rural. O que afinal não é de estranhar, porque o que disse era suficiente para o fim em vista.

 

Onde talvez não esteja certo é na afirmação de que o camponês «não faz uma ideia da moral, da justiça, da ciência e não possui nenhum sentimento do belo, do útil, do necessário...».

 

Talvez aqui se possa até notar um pouco do desprezo ou pelo menos da indiferença que uma grande parte dos contemporâneos - mais ou menos e de uma forma ou outra - sempre revelam pelo homem do campo, sobretudo pelo trabalhador.

 

Isto afinal será assim enquanto os dirigentes e os legisladores não saírem realmente do povo; é vê-se bem o que isso implica...

 

Mas o que nos interessa é ver a situação dos camponeses neste primeiro período do constitucionalismo. E compará-lo com o estado em que ele se encontrava antes e também com aquilo que nos dizem os contemporâneos do fim da dinastia, do fim do século. Só assim podemos compreender de que forma os dirigentes constitucionais serviram de guia ao povo português, através de quase um século.

 

Para já, comecemos pelo fim. Leia quem quiser - porque o não vamos fazer aqui - por exemplo, o mais benevolente, o mais alheio às coisas da vida portuguesa, na opinião de certos críticos, Eça de Queiroz no mais encantandor dos seus livros com a vida dos campos - A CIDADE E AS SERRAS. Por ele se verá que, 50 anos depois do que disse Félix Nogueira, Eça desenha um quadro da vida do campo que, se não decalca o dele, supõe os mesmos alicerces, as mesmas doenças, os mesmos salários, as mesmas vivendas, a mesma fome, as mesmas crianças, a mesma miséria, em suma; e, na outra frente, os mesmos grandes senhores, donos das terras e delas vivendo.

 

Oitenta anos depois da Revolução de 1820, o fundamental mantinha-se: a diferença profunda de regalias entre os grandes e os pequenos mantém-se também.

 

Já se falou aqui em socialismo de várias correntes, em republicanismo, da mesma forma. Nenhuma influência, nenhuma acção destas doutrinas chegou até aos camponeses, sempre perdidos, sempre esquecidos. De todas as palavras bonitas pronunciadas, de todos os discursos proferidos com ênfase, de todos os artigos de jornal lógicamente desenvolvidos, nada saíra para lá das paredes do café e das associações promotoras da cultura popular das cidades.

 

Cantava-se pelos campos. Mas, como diz Cesário Verde, aí por 1880, nem tudo são descantes / por esses longos caminhos. Também há uma emigração espantosa e também há praças de gente, pelos domingos calados.

 

Contudo, em 1820 e até 1823, trabalha-se e trabalha-se bem! Que se fizera? Trabalha-se em quê? Trabalha-se como?

 

 

A OBRA DAS CONSTITUINTES!

 

A evolução das sociedades está cheia de contradições! Talvez nunca em período algum da história de Portugal tenha havido uma elite que tanto tenha trabalhado. Nunca qualquer grupo de umas dezenas de homens produziu tanto decreto, tantas análises sociais, tantos inquéritos a todos os ramos da vida nacional.

 

Contudo, da sua obra, o que ficou?

 

Antes de mais, a análise que Felix Nogueira faz da vida do campo, poderia ter sido feita trinta anos antes quase com as mesmas palavras, por qualquer um que, nas Constituintes tivesse ouvido o discurso pronunciado pelo deputado Soares Franco, na apresentação do projecto de abolição dos direitos banais:

 

«Os extraordinários vexames que pesam sobre a agricultura portuguesa, esta grande e primeira fonte das riquezas e da prosperidade nacional, e sobre todos os ramos da indústria, exigem um pronto remédio da vossa parte, ilustres representantes da nação portuguesa. As determinações para que chamo a vossa atenção não têm relação alguma com as rendas públicas, mas com o sistema de imposições actualmente estabelecido, ou que para o futuro se estabelecer. Refere-se a certos privilégios exclusivos e privativos, ignominiosos pela sua natureza, sumamente opressivos dos povos e contrários ao direito natural da propriedade que é o principal fim de todas as sociedades civis. A esta classe pertence: primeiro, os privilégios que certos senhores têm de só eles possuírem fornos, moinhos, lagares, para moerem a azeitona, e até boticas. Por muitos anos tem a nação tolerado semelhantes abusos; eles não sòrnente são contrários aos direitos que têm todos os homens de usar livremente da sua propriedade individual, com o mais que lhes parecer; mas atacam a agricultura e a indústria pela raiz.

Sem emolução nada se aperfeiçoa; sem ela, nós ficaremos sempre na infância das artes; e por isso os nossos fornos, moinhos e lagares são como eram há 200 anos A que deve a indústria a perfeição das suas manufacturas, a perfeição das suas máquinas? À liberdade que todos os proprietarios têm de as usar, e a emolução que daí resulta. A nação que consente em semelhantes privilégios constitui-se inferior às outras, e por consequência escrava da indústria alheia Além disto, quanta azeitona se perde, à espera de que chegue a sua vez de moer?

Quanto azeite se faz rançoso, ou incapaz de concorrer com os da Provença e da Itália, e que seria excelente se houvesse a liberdade de cada um construir moinhos e lagares. Logo, este privilégio exclusivo é contrário à propriedade industrial e destrutivo da propriedade da nação.

O relengo é outro abuso desta natureza; por ele todos os proprietarios ficam proibidos de vender seus vinhos nos primeiros três meses depois da colheita, com o frívolo fundamento de poderem os donatários dar saída aos seus. Esta legislação é um bárbaro resto da antiga distinção de senhor e escravo, e é, portanto, insustentável hoje, que está reconhecido que todos têm igual direito ao livre uso da sua propriedade. Em consequência da dita legislação, o lavrador vê-se obrigado a comprar ao rendeiro do donatário a licença para vender os seus vinhos, enquanto não cessam os três meses. Desta sorte se acha autorizado, por um largo abuso, o mais injusto na sua origem e opressivo no seu exercício.

O direito de possuir água para as regas foi igualmente reservado por alguns donatários e o vendem hoje aos lavradores; ele é assim, como os antecedentes, servil, abusivo e produz propriedade. O uso da água e do ar é perfeitamente livre; porque foram dados por Deus ao homem para conservação da sua existência e comodidades da vida, e por isso profusamente derramados pela superfície da terra.

Se alguns particulares ou corporações, tiverem feito obras com que aproveitassem a água de algum distrito, e por este motivo alcançassem uma propriedade a título oneroso, deverão apresentar os seus títulos perante a autoridade local, para serem reintegrados no seu capital pelos habitantes do distrito. Fora deste caso é injusto todo o senhorio desta natureza.

O privilégio exclusivo da caça e da pesca é o último grau de operação senhoril. Não falaremos da pesca, porque ela em Portugal é de tão alta importância, que merece a este augusto congresso a nomeação duma comissão especial para regular as leis por que se deve dirigir daqui em diante este grande ramo de indústria nacional.

Mas o privilégio exclusivo da caça, isto é, as coutadas, formam um abuso terrível e opressivo contra os lavradores. Por ela têm os donatários o funesto direito de fazer destruir as searas dos habitantes, sem que estes as possam defender, condição ainda mais abusiva que a da guerra, porque nesta admite-se a defesa por direito natural, e nas terras coutadas o lavrador não pode defender a sua propriedade dos animais silvestres, sob pena de ser preso e condenádo.

A todo o proprietário deve ser permitido matar a caça que encontrar nas suas fazendas, todas as coutadas devem ser abolidas; nenhum homem do universo tem propriedade sobre animais bravos, que não comprou, não criou, e sobre que não exercia domínio ou uso algum.» (Sessão de 1 de Fevereiro de 1821).

 

Punhamos de parte a concepção de propriedade privada e a concepção de emolução que revelarn perfeitamente a origem burguesa da ideologia. Reparemos apenas na situação dos camponeses médios e pequenos proprietários em relação aos grandes senhores proprietários da terra. Veja-se, a situação em que se encontra toda a população dos campos, e por aí se pode concluir como a vida que aí se levava, não podia ser senão a da mais degradante miséria.  

 

Acrescente-se a isto o que já sabemos sobre o que os donatários exigiam a seus rendeiros.

 

Há ainda um outro aspecto da vida da agricultura que temos de mostrar e que nas Constituintes foi apresentada pelo deputado Brotero:

 

«Mas vamos ao Alentejo; como havemos de nós fazer dar a esta província grão para a capital? Eis aqui, senhores, a opinião de um dos melhores economistas franceses e ingleses. O meio que eles propõem são as grandes culturas; sòmente as grandes culturas podem dar pão à capital. Estas grandes culturas podiam-se estabelecer, adoptando o sistema da nossa antiga monarquia, em que dominava o espírito agrícola. Este perdeu-se, e é necessário restaurá-lo. Uma nação que tem uma constituição liberal está certamente no caso de poder ter tudo quanto é necessário para seu alimento.

Ora agora como havemos de estabelecer estas grandes culturas no Alentejo, que está cheio de estevas, de baldios, e de corpos de mão-morta? Adoptando o sistema antigo da monarquia, dos Dinizes, dos Sanches, e dos Afonsos. É preciso que o governo estabeleça granjas; estas granjas, com 7, 8 ou 10 homens, cada uma podem dar 100, 200 ou 300 moios de trigo, cujo redundante pode vir à capital.

Se estabelecermos paróquias com muitos habitantes e repartirmos os baldios em pequenas porções, então os habitantes absorvem todo o produto. É necessário grandes herdades e indivisíveis.

Aos capitalistas e aos corpos de mão-morta é preciso obrigá-los a que aforem ou mesmo a que vendam, visto que não querem cultivar as suas propriedades.

Estabelecendo nós no Alentejo as grandes herdades indivisíveis com certo número de habitantes que trabalhem nessas herdades pode-se adquirir muito grão, e não necessitamos de dar o nosso numerário aos estrangeiros e estar dependente deles.

Se adoptarmos, pelo contrário, a divisão dos baldios em pequenas porções nunca a capital há-de ter trigo e sempre será escrava dos estrangeiros.» (Sessão de 4 de Abril de 1821).

 

Como se vê, um dos problemas do Alentejo era aquele que continuava a ser, quando Basílio Teles se lhe referia e aquele que continua sendo hoje: o do inculto e o da grande propriedade de grandes senhores que a tinham em baldio, reservando-a para a caça.

 

Por outro lado, as importações de trigo, faziam-se como hoie, e, como diz Brotero, havia sempre uma sangria de dinheiro no corpo nacional.

 

No passemos adiante sem lembrar mais uma vez a situação em que se encontravam os camponeses portugueses, embora com milhões de hectares que não produziam aquilo que poderiam produzir.

 

A obra das Constituintes foi grande. Passemos em revista alguns dos problemas que aí foram discutidos, expressos em projectos, publicados ou não, mas, em grande parte, destruídos não só pela sabotagem do ministério de que o rei se fez cercar, logo que chegou, mas também pela reacção dos interesses feridos que se foi aguentando e corroendo o corpo da nação até 1834.

 

Neste esquema que se segue, apresentam-se apenas alguns dos trabalhos desta assembleia legislativa, mas, de forma alguma, toda a obra está aqui contida:

 

1.º - Discutiu-se e assentou-se nos princípios fundamentais da constituição, conhecida por Constituição de 1822;

 

2.º - Publicou-se urna reforma administrativa e judiciária;

 

3.º - Discutiram-se e elaboraram-se diplomas relativos aos assuntos da instrução, desde a primária até à universitária;

 

4.º - Regulamentou-se o assunto das compras de trigo no estrangeiro;

 

5.º - Discutiu-se e decretou-se acerca de secagem de pântanos, abertura de valas e limpeza de rios, sobretudo nos campos do Alentejo; e elaboraram-se projectos sobre o preço dos trigos e o problema dos incultos;

 

6.º - Decretou-se a extinção dos coutos;

 

7.º - Elaborou-se uma reforma industrial, no sentido de substituir os processos pombalinos pela venda das fábricas, à base de propostas, com esse objectivo;

 

8.º - Tratou-se da exploração das minas de carvão;

 

9.º - Procurou resolver-se vários problemas relativos às fábricas de sedas;

 

10.º - Criaram-se carreiras de vapores, sendo inaugurada a primeira de Lisboa a Vila Franca em 17 de outubro de 1821, com o preço de 480 reis por pessoa;

 

11.º - Regulamentam-se certos aspectos do comércio, como por exemplo, os das restrições internas, os direitos de baldeação, que encareciam os produtos;

 

12.º - Torna-se livre e franca a navegação no Douro;

 

13.º - Elaboram-se novas pautas alfandegárias;

 

14.º - Reorganiza-se o serviço dos correios, estabelecendo taxas e criando carreiras periódicas;

 

15.º - Criam-se carreiras de passageiros para a Madeira e Açores; sendo o preço para a Madeira de 15 mil reis, 20 para os Açores e 24 para os dois arquipélagos juntamente;

 

16.º - Recomenda-se às Câmaras que promovam a reconstrução de pontes e outras obras de arte, como cais dos portos, o que supõe um estudo anterior destes assuntos;

 

17.º - Fizeram-se estudos e apresentaram-se memórias ao Congresso que se podem ler, sobre as barras, navegação de vários rios, até muito ao interior;

 

18.º - Promove-se a construção naval;

 

19.º - Fazem-se estudos e publicam-se relatórios sobre as colónias de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Brasil, em que ressalta sempre a necesidade do combate à escravatura que se considerava urna forma de tráfico prejudicial ao verdadeiro comércio;

 

20.º - Apresentam-se propostas no sentido da criação de Companhias monopolizadoras: segundo o deputado Pereira do Carmo devem ser duas estas empresas exploradoras do comércio, uma com o exclusivo de Angola, Cabo Verde, São Tomé e o Brasil, a outra, de Moçambique aos territórios da Ásia, inclusivé;

 

21.º - Reorganiza-se a marinha de guerra e o exército, minuciosamente, sem esquecer os ordenados;

 

22.º - Estudam-se os problemas dos asilos, recolhimentos, mendigos e outros assuntos de assistência;

 

23.º - Elaboram-se várias medidas financeiras;

 

24.º - Decreta-se a criação, em todas as cidades, de comissões de comércio que estudem as necessidades dos povos e elaborem relatórios sobre a agricultura, navegação, comércio, etc.;

 

25.º - Cria-se em 29 de Dezembro de 1821 – e nesta criação intervém sobretudo Soares Franco, Ferreira Borges, etc. - o Banco de Lisboa com 10.000 acções de 500 mil reis;

 

26.º - Discute-se amplamente, e por vezes de forma violenta, o orçamento de 1821, que é o primeiro da nova era. Há nele um deficit de 842 contos. A despesa total é de 8.519 contos; com o exército e a marinha gastam-se 5.198 contos; em compensação, o professorado custa à nação apenas 480 contos. Mas a casa real fica em 524 contos;

 

27.º - Analisam-se, criticam-se, combatem-se certos escândalos e indivíduos protegidos pela clique ministerial que cercava o rei. Certos personagens, como por exemplo, o visconde de Azurara, que recebe 8 contos por empregos que não desempenha, é apontado a dedo. A série dos escândalos do regime está a começar.

 

Por este breve sumário, fica-se com a certeza do que se trabalhou e como se trabalhou, nos dois primeiros anos da Revolução liberal.

 

Trata-se verdadeiramente duma revolução nacional; trata-se da ascensão duma nova classe ao poder, com todas as dificuldades e todos os problemas que isso implica. Não se trata apenas de uma reorganização profunda no regime de propriedade, mas de uma nova era capitalista, evidente por determinadas medidas. Por exemplo: a assembleia geral do novo Banco de Lisboa não é constituída por todos os accionistas, mas apenas pelos 150 maiores. De certo o notaram.

 

E vê-se a despontar o futuro capitalismo financeiro que vamos encontrar impante durante a Regeneração, na pessoa, por exemplo, do barão de Porto Covo, etc..

 

Mas por que razão não foi a obra da Constituinte totalmente levada a cabo? Que se passou na verdade?

 

D. João VI regressou do Brasil, não só porque foi a isso obrigado pela imposição do movimento revolucionáno português, mas porque se estava processando uma revolução económica no Brasil que implicava uma nova organização, com as correspondentes preocupações: a quantidade de ouro produzido pelas minas era cada vez menor; no ano de 1820 via-se já perfeitamente que o filão dum rendimento sem trabalho estava a acabar.

 

A economia brasileira virava-se para as grandes plantações de açúcar, de algodão, de tabaco; para as éxplorações e fabrico de ferro, de aço, aguardente, tecido,.etc..

 

Mas o rei vem acompanhado não só da família como de todo um grupo de aristocratas, que não compreendem - ou compreendem bem demais! - o que se está passando no seu antigo país, no que respeita às suas estruturas económicas e sociais. Uma vez esse grupo instalado em Lisboa, vai dar-se o choque entre dois grupos de dirigentes: os Regeneradores de Portugal cuja elite são os cem deputados, e o Ministério, o Executivo, que faz todos os possíveis para sabotar a obra dos reformadores.

 

Formam-se assim duas correntes em luta. Os reformadores, idealistas, românticos, sem a chefia já de Manuel Fernandes Tomás, não tomam as medidas de defesa necessárias, acreditando que a reacção anti-burguesa, anti-democrática, anti-liberal se sujeitaria às imposições duma maioria liberal, democrática, burguesa.

 

Esta ingenuidade foi a causa da sua morte.

 

 

REACÇÃO ANTI-LIBERAL

 

Uma das razões fundamentais das dificuldades das Constituintes está exactamente, como acaba de dizer-se, nas más relaçõe com o Executivo, o sumo da camarilha que cercava o rei. Estas incompatibilidades são traduzidas na imprensa liberal. Transcrevemos parte de um artigo em que um dos mais importantes jornais da época, o Astro da Lusitânia, ataca o ministério presidido por Silvestre Pinheiro Ferreira:

 

«Que é que tem feito o poder executivo há um ano a esta parte? Que medidas administrativas tem tomado a bem da nação? Que passos tem dado para auxiliar as cortes, na laboriosa tarefa de melhorar nossos males? Todo aquele que sem prevenção lançar as suas vistas sobre a marcha do poder legislativo achará que ela tem sido quase sempre igual, magestosa e digna dos representantes dum povo soberano. Em oito meses de trabalho têm as cortes feito benefícios que a nação esperaria debalde doutra qualquer forma de governo em muitos anos, e aqueles benefícios teriam sido mais completamente conhecidos e desfrutados pelos povos se o poder executivo, unindo figadalmente as suas intenções às do congresso, cuidasse em promover a observância das leis por ele publicadas ou facilitasse os meios, obrando com energia e vigor» (18 de Setembro de 1822).

 

Ha assim um abismo entre a orientação do rei e do seu Ministério e as Cortes Constituintes. Enquanto as Cortes vão trabalhando da maneira que vimos, e de que têm consciência, o Ministério e o grupo de aristocratas que com eles colaboram trabalham em sentido contrário.

 

Esta desarmonia contribuiu extraordinariamente para impossibilitar a continuação do trabalho das cortes. A protecção que dispensava a toda a espécie de conspiratas e conspiradores era absolutamente visível. No Palácio do Ramalhão em Sintra, a rainha reunia todos os que queriam ou podiam lutar contra as coisas liberais. Pequenas associações secretas, mas que não funcionavam à margem do conhecimento do Ministério, os Clubes Apostólicos, desenvolviam uma actividade, por exemplo, tal como ameaças, cartas anónimas, pequenos ataques frustrados, que revelavam aliás urna organização central.

 

Por outro lado, a Igreja, dentro das próprias Constituintes, por intermédio de alguns representantes do clero, desenvolve também a sua enorme actividade anti-liberal. De forma que, em determinada altura, as Constituintes trabalham não só desligadas do Ministério e da Corte mas também duma parte do povo que, orientado pelos frades e pelos fidalgos, os não apoiava.

 

E assim, pequenas rebeliões militares (no Norte o Conde de Amarante, no Alentejo, regimento aqui, batalhão acolá) preparam a chamada Viafrancada, em 1823.

 

O movimento não obtém o sucesso que dele esperavam os partidários da Corte, mas a Abrilada, de Abril de 1824, alcança um sucesso muito maior. Esta luta entre a Corte e as Constituintes é um caso particular da que se travava na Europa entre a Santa Aliança e a alta burguesia inglesa. O Ministério representa a Santa Aliança, as Constituintes defendem a organização parlamentar, à maneira da burguesia inglesa.

 

Mas não era apenas no campo militar, das intrigas e das disputas oficiais que a luta se travava: a reacção tinha também os seus «intelectuais», dos quais o protótipo é o frade aguardentado, devasso, caceteiro, José Agostinho de Macedo.

 

Por outro lado, determinados acontecimentos, de certa forma com repercussão internacional, reflectem-se na vida do país. Queremos referir-nos à independência do Brasil, em Setembro de 1822.

 

A independência do Brasil é um ponto da linha que está conduzindo à independência total da América Central e da América do Sul, sob o impulso do esforço inglês, a quem convém tratar com governos independentes que ele ajudou a subir ao poder, mais que com os governos de Espanha e de Portugal.

 

Quando o Brasil se tornou independente em 1822, já o Paraguai e a Venezuela (1811), o Uruguai (1814), a Argentina (1816), o Chile (1818), o Equador (1820), o Peru, o México, a América Central (1821) tinham proclamado a sua independência.

 

É claro que as mais graves acusações caíram sobre as Constituintes aquando da independência do Brasil; e o acontecimento foi tomado à conta de uma sua grave falta de orientação política e diplomática.

 

Com a morte de D. João VI, em 1826, surge, quase imediatamente, aquilo a que é costume chamar a Questão Dinástica, afinal, um episódio da luta mais ampla entre as forças liberais e a reacção anti-liberal.

 

A questão culminou com a vinda de D. Miguel de Viena de Áustria, o centro da reacção anti-burguesa europeu, o desembarque em Lisboa, a reunião das Cortes à maneira antiga, com Clero, Nobreza e aquilo a que se chamava representantes do Terceiro Estado e a sua aclamação como rei (1828).

 

Nem toda a obra das Constituintes ruiu. É muito difícil de destruir um edifício até os caboucos: se fosse assim, os arqueólogos, esses catadores de alicerces, pouco teriam para fazer. Mas a verdade é que se quebrou a continuidade dessa obra; e ela não voltou a ser retomada com aquela intensidade com que se trabalhou quando, mais tarde, em 1834, se regressa ao regime constitucional.

 

Entre 1828 e 1834 decorre um período de lutas que podemos dividir em duas partes: o primeiro é constituído pela emigração que dura dois anos e se dirige sobretudo para Inglaterra, para França e para a Terceira; e o segundo, que vai de 32 até à Convenção de Évora-Monte (1834) e é o período da luta armada, posterior ao desembarque no Porto, em 1832.

 

Mas o trabalho das Constituintes não só não foi retomado na sua intensidade, como também o não foi na orientação. As duas orientações podemos vê-las expressas na Constituição de 1822 e na Carta Constitucional de 1826, a que é costume dar o qualificativo de muito mais moderna.

 

O que se deve dizer é que a Carta Constitucional atribui ao Rei e ao Poder Executivo mais amplas funções, restringindo portanto o poder que os representantes directos das forças económicas e políticas populares podiam ter.

 

Além de que a Carta Constitucional procurava, de certa forma, a harmonia dos desavindos e a colaboração entre as duas forças antagónicas que eram a Reacção e a tentativa de Libertação do povo português, iniciada com as Constituintes.

 

Daí em diante, esta luta trava-se em condições de igualdade. E a igualdade, neste caso, significa melhores condições das forças anti-populares; porque era a estas que o Ministério, as forças armadas e as forças repressivas sempre apoiavam.

 

A luta que vai desenvolver-se consiste, fundamentalmente, num aumento constante das forças militares e repressivas, contra as forças populares, cada vez em maior número.

 

Por outro lado, a reacção anti-liberal tomou uma nova feição. Tendo partido da base económica permitida pelas grandes extensões agrárias, o latifúndio de origem feudal compreendera que lhe era necessário procurar base noutros campos. E assim, aquilo a que se chama Reacção, daqui em diante, já não é representada pelos miguelistas e pelos grandes proprietários da terra - a grande propriedade, os grandes proprietários, as grandes casas agrícolas estão quase todas nas condições da do Tio Luís dos FIDALGOS DA CASA MOURISCA. A Reacção, agora, é constituída por todos aqueles que se vão apoderando dos manípulos nacionais, por intermédio de grandes empresas, que podem ser até empresas agrárias, como é o caso da Companhia das Lesírias, mas que são principalmente Bancos, empresas concessionárias de obras, companhias de navegação, companhias de caminhos de ferro, etc.. Na era do capitalismo financeiro, quem manda é quem pode interferir directamente nas finanças do país e não os que pretendem arrancar das terras uns alqueires de trigo.

 

A reacção não morre: apresenta-se disfarçada. Vai apresentar-se envolvida pela capa dos partidários monárquicos constitucionais.

 

Mas as forças populares também não morrem: começaram por ser monárquicas constitucionais; por fim, só não era reaccionário quem se aproximasse do Partido Republicano ou nele se inscrevesse.

 

É conveniente, de vez em quando, partir duma síntese de tudo o que já está percorrido, para que a exploração do novo período da evolução da sociedade portuguesa no século XIX, isto é, os anos que vão de 1850 à guerra mundial de 14-18 sejam bem compreendidos.

 

Uma das características deste ponto de confluência em que nos encontramos, é o divórcio profundo entre a quase totalidade do povo e as elites que o governam. Não estará certo isso?

 

Tudo depende da maneira como definirmos a expressão elites que o governam. Se por elites consideramos não apenas os parlamentares, os membros dos vários governos que se vão sucedendo, mas também os jornalistas e jornais, escritores e seus livros, oradores e seus discursos, mais ou menos empolados, altos eclesiásticos e seus brilhantes veludos; militares agaloados e suas espadas; e igualmente as teorias políticas, quer se intitulem socialismo, republicanismo ou liberalismo monárquico - se se incluir tudo isso no termo elites dirigentes ou governantes não parece arrojada a afirmação e muito menos errada.

 

Na verdade, um fosso profundo separava os trabalhadores, quer do campo, quer das indústrias, os pequenos e médios proprietários rurais, como acabamos de ver, daquela classe dirigente que pretendia manter intactos seus direitos de propriedade medieval. Um fosso profundo se abriu entre essas mesmas massas populares e as constituintes e toda a imprensa que difundia as suas ideias, na medida em que estes dirigentes deixaram escapar da mão o poder que poderiam ter aguentado, se tivessem chamado, para uma colaboração mais próxima, e imediatamente, essas mesmas forças populares.

 

Há realmente um divórcio profundo entre todos os que trabalham fisicamente e os que escrevem ou falam, ou simplesmente pensam acerca dos primeiros.

 

Isto pode comprovar-se de duas maneiras:

 

Primeiro, verificando a acção nula de quaisquer teorias, venham de que sector vierem, sobre as massas populares;

 

Segundo, observando através dos estudos feitos, que aqueles que os elaboram em nenhuma conta têm as realidades a que se referem e pretendem modificar, no sentido que melhor lhes parece.

 

Estamos pois verdadeiramente perante dois mundos que quase não se tocam, muito menos se cortam e muito menos ainda se interpenetram, quando, na realidade, se deveriam confundir.

 

É certo que esta afirmação não tem carácter absoluto e constante. Vejam-se certos momentos mais intensos da luta, como foi o caso do Cerco do Porto pelas tropas miguelistas, depois do desembarque do Mindelo; ou o da entrada dos liberais em Lisboa em 34; ou de certas manifestações e motins populares, como os do curto período da Patuieia, o das Juntas contra Costa Cabral; o da reacção popular às atitudes da Rainha e ao desembarque inglês no movimento anti-constituição conhecido por Belenzada.

 

Mas que nos sirva este último, de exemplo e de lição: no momento em que tudo indicava que o povo, conduzido pelos agrupamentos de Alcântara e do Arsenal, ia obter a vitória, e ia sugeitar a Rainha à sua vontade, surge um negociador, Sá da Bandeira; e daí saiu uma solução de compromisso, quer dizer a derrota das forças populares, que pouco tempo depois eram esmagadas. Com excepção desses momentos, em que há como que uma espécie de fluido revolucionário e portanto ideológico entre os dois vasos que neste momento se revelam como comunicantes, a separação, o alheamento são perfeitos. Vive-se como em compartimentos estanques.

 

E isto é grave, porque a maior parte das vezes, não chega ao povo o conhecimento dos grandes acontecimentos do que se vai passando por essa Europa fora e pelo próprio país; nem o que alguns homens, interessados e sérios, vão descobrindo nos campos, quase incultos, da sociologia nacional.

 

Que ficaram as camadas populares a saber acerca de socialismo, republicanismo, e mesmo liberalismo constitucional em todos os oitenta e tal anos de monarquia liberal? No entanto, talvez os ideólogos destas correntes - que ainda por sua vez se compartimentavam em vários meandros - tivessem formulado opiniões, apresentado explicações ou soluções que lhes fossem úteis.

 

Mas as massas não estão preparadas para os receber na sua quase totalidade, nem sequer têm possibilidades de contactos com elas, através da leitura; nem os estudiosos e formuladores de teorias tinham as condições e o poder de observação social que deve estar na base de todas as teorias sociológicas que pretendem ser realistas.

 

Contudo, esta separação das massas populares e das elites monopolizadoras, por assim dizer, das ideias e das possibilidades de realização - esta separação, chegou a ser vista logo nos primeiros tempos do liberalismo português.

 

O Astro da Lusitânia, dizia o seguinte, quase logo a seguir ao movimento revolucionário do Porto:

 

«A nação portuguesa em geral ignora os seus direitos; ignora os vícios de administração; ignora os remédios necessários de tantos males e que por tanto tempo têm pesado sobre ela; deste modo ela não saberá que poderes há-de conceder ou negar aos deputados que a hão-de representar em cortes. Não saberá se os remédios aplicados a tantos males são, ou não, os indicados, e receberá talvez com estranheza as medidas de reforma adoptadas nas Cortes que supomos compostas dos homens mais ilustrados dentre os portugueses» (3 de Outubro de 1820).

 

Os males eram conhecidos, mas os processos de aplicação não o eram em parte, nem foram aplicados os que o eram.

 

Querem ver como realmente assim é? Vamos concretizar com a exposição das doutrinas socialistas, por escritores já dentro da época conhecida por Regeneração.

 

O socialismo, com seus órgãos, dos quais alguns já indicados, vai beber a Fourier, Owen, Saint-Simon, Proudohn... e também a Bastiat - o homem das harmonias sociais, Cabet...

 

O socialismo de Lopes de Mendonça, Sousa Brandão, Custódio José Vieira e vários outros que Vitor de Sá (PERSPECTIVAS DO SÉCULO XIX) e César Nogueira (NOTAS PARA A HISTÓRIA DO SOCIALISMO EM PORTUGAL) tornaram conhecido, é um socialismo que apela muito para o patriotismo, que procura as harmonias do arranjo social com o Cristianismo e termina por recorrer sempre a soluções vagas e imprecisas.

 

Escutem o que Custódio Vieira recomenda para destruir a prostituição:

 

«Fazendo voltar o povo a ideias mais verdadeiras e justas. Mas por que meios? A educação, a instrução, tanto a literária como a profissional, uma para esclarecer o entendimento, a outra para criar o hábito do trabalho e pôr ao abrigo das primeiras necessidades. Eis aqui o remédio» (V. Sá, ob. cit., p. 178).

 

Trabalho e esclarecimento, como todos sabem, são soluções gerais de todas as teorias. Não há aqui nem uma palavra que possa cheirar a socialismo, quanto mais indicar os caminhos que conduzem à solução da prostituição e a evitar esta chaga.

 

É claro que este abstraccionismo se compreende bem na medida em que se conhece o esqueleto filosófico do autor; que vai ficar delineado com as seguintes opiniões que vamos escutar:

 

«O pensamento é o anel intermédio entre a natureza e Deus, é a chave do segredo, do mistério que se encerra na eterna sabedoria da Providência e que em parte se revela nos factos, porque os factos são a expressão real do pensamento. Entre o pensamento e o facto há nada menos do que a relação de filiação; é a causa e o efeito. Toda a acção é o resultado duma ideia. Sem a ideia, a existência da acção seria um enigma. Quem quiser compreender e explicar esta há-de remontar àquela». (l. c., p. 159).

 

Este idealismo socialista, aliás perfilhado por um homem que juntamente com outros seus correlegionários se bateu contra Costa Cabral, colaborando com as Juntas Patrióticas de 1846, iria fechar, iria receber sua cúpula com o metafisicismo socialista de Antero, e o colaboracionismo com a monarquia, numa fase da máxima corrupção capitalista, de Oliveira Martins! Aqui fica uma pequena amostra, e de forma alguma caricatural, do socialismo português do século XIX - um socialismo que quando não é metafísica barata, não passa de verborreia ou um pouco mais.

 

 

Quarta Parte

A Regeneração

 

Recordamo-nos ainda do trecho do discurso em que José Estêvão defende um jornal da «oposição» miguelista e que é um enunciado dos princípios fundamentais do Liberalismo, do liberalismo de todas as correntes. Porque todas aceitam aquelas generalidades, quer se trate dum Herculano, quer dum teórico da ditadura como Oliveira Martins, que no fim da vida recomendava a D. Carlos que não reinasse mas governasse, quer mesmo dum ditadorzinho qualquer, desses «bons rapazes» que pululam, desde Costa Cabral até João Franco.

 

Podemos de facto tomar este pequeno trecho do grande Orador como sumário. Mas, antes disso, deve lembrar-se que o Liberalismo não é simplesmente o que disse. E vamos ver aquilo que, dele, dentro dele e à sua sombra, se foi desenvolvendo, que não só o corroeu como também toda a sociedade portuguesa, toda a vida portuguesa.

 

Como cada homem tem a sua cabeça, e não pode viver e lutar sòzinho, sem o perigo de ser submergido, constituem-se correntes de opinião, a que se chamam partidos em linguagem liberal. Os partidos eram, ao tempo, em Inglaterra - a Inglaterra, modelo de parlamentarismo - dois, o dos Tories e o dos Whigs, conhecidos hoje por Conservadores e Liberais.

 

Em Portugal, desde os primeiros momentos da vitória deparamos com partidos.

 

Esses partidos sucedem-se no poder, estrebucham, fazem concorrência uns aos outros. A sua forma de «convivência» é quase sempre a que resulta da pretensão, comum a todos eles, de se assenhorearem do poder, para aplicarem aquilo a que chamam seus programas.

 

Mas nesta competição há regras de jogo parlamentar que se devem respeitar, como as leis dos duelos, como os preceitos da boa educação dentro duma sala, etc..

 

Entre eles portanto mantêm-se relações contraditórias: por um lado combater, intrigar, enrodilhar, atirar poeira, sobretudo aos olhos do eleitorado para o virar a seu favor, insinuar coisas desprestigiantes e torpes do adversário ou do chefe do Estado, captar, por meio de favores, as pessoas e criar clientelas; girar à volta da pessoa do Rei, que no regime constitucional português é sempre quem desempata. Mas, por outro lado, é indispensável manter a mais delicada convivência, o mais fidalgo dos portes, a mais cavalheiresca das atitudes!

 

Querem ouvir a opinião dum político da monarquia, do fim da monarquia, acerca dum adversário, o ditador João Franco, que terminou por, juntamente com o Rei que serviu, serem os coveiros da monarquia?

 

João Franco e António Cabral - o autor das palavras que vão seguir-se - não se suportavam e João Franco é acusado das coisas mais graves. Contudo escutem o que diz dele:

 

«Estimo o senhor João Franco, e habituei-me a admirar-lhe as qualidades de espírito e de carácter desde a minha remota infância.

Depois, mais tarde, nas lutas violentas da política, militámos em campos opostos. Combati-o com ardor. Hostilizei-o com a energia que reclamava, com o esforço que merecia, um adversário daquele valor e daquela envergadura. Mas nunca deixei de respeitar a sua honradez, sempre provada, a sua austeridade, a rigidez inflexível da sua linha de conduta moral. Através daquela rudeza, do fogo no batalhar, da sanha no ferir, via-se o homem honesto, sem mancha, ileso que podia errar e errava, mas nunca podia ser, nem foi, prevaricador protervo, um corrupto, um depravado». (AS CARTAS DE EL-REI D. CARLOS AO SENHOR JOÃO FRANCO, p. 19)

 

Esta fraseologia é a mesma que nós encontramos em todas as páginas do «Diário das Cortes» da Regeneração para cá. Todos os políticos constitucionais, todas as dezenas de políticos constitucionais as empregam.

 

Mas será isto o que José Estevão chama tolerância, generosidade, transigência para com os adversários?! Será este o caminho para chegar à liberdade pacífica e ao progresso nacional, servindo-nos ainda das palavras do impoluto orador?! Antes de prosseguirmos, devemos meditar uma meia dúzia de frases de Luís Blanc, a propósito da Revolução de Fevereiro de 1848 em França, com que ele procura caracterizar o burguesismo da época de Luis Filipe, que a República de 48 derrubou:

 

«Nunca na história se tinha visto qualquer coisa de semelhante. A paixão do ouro apoderou-se das almas agitadas por impuros ardores, a sociedade acabou por se abismar num materialismo brutal. Para juntar fortuna, havia espírito, talento, eloquência, génio, e, se fosse necessário, virtude. Fez-se dinheiro com o renome adquirido, adquirido por sua vez com dinheiro. Literário ou científico, militar ou civil, a reputação foi cotada, a glória teve o seu preço...

Traficou-se de forma baixa em todas as coisas; contaram-se os sufrágios pelos escudos... Comprou-se a honra; vendeu-se a lei.»

 

E umas linhas mais adiante concretiza:

 

«Foge um homem do Palácio das Tulherias, onde roubava: este ladrão é um ajudante-de-campo do duque de Nemours, filho de Rei. Um homem foi condenado por ter cometido uma falsificação: este falsificador está ligado às mais altas famílias do reino, é um príncipe. Um homem em plena Câmara dos Pares foi acusado de se ter tornado culpado de concussão: este concussionário é um ministro do Rei. Um homem figura num processo famoso como tendo-se servido do seu gabinete para qualquer traficância: este cúmplice de uma prevaricação é o Presidente do Conselho». (LA RÉVOLUTION DE FÉVRIER 1848, pp. 8-10).

 

Este trecho indica-nos duas coisas: primeiro, que não pode chamar-se tolerância, transigência, generosidade, a atitude que um político tenha para com outro, em casos destes, quer sejam relativos a escândalos financeiros quer a atitudes políticas escandalosas. Mas é esta forma de tolerância que se defende no período da Monarquia posterior à Regeneração.

 

Não é esta a tolerância que há a ter para com os adversários, tal como foi definida nas Constituintes, quando, foi discutido o capítulo da Constituição que dizia respeito à religião.

 

Segundo este trecho que pode servir-nos de intróito para caracterizar o período do liberalismo que estamos estudando, não foi só em Portugal que esta época se caracterizou pelo alto negocismo e pela corrupção. O mesmo se dá em França - com grande volume - na monarquia liberal de Luís Filipe, embora assuma proporções de muito maior relevo durante o Segundo Império.

 

Prossigamos, contudo:

 

Este tipo de relações mostra-nos que a poítica constitucional vive numa espécie de compromisso, num não fazer ondas excessivamente altas, que possam saltar por cima dos diques da moralidade oficial, e salpicar uns e outros de forma visível, levando o povo ao conhecimento da forma como os negócios públicos são conduzidos!

 

E assim se compreende o chamado rotativismo - a um período de governação de um partido, sucede outro do partido concorrente - o rotativismo tipo inglês, que de certa altura em diante, é praticado por Regeneradores e Progressistas.

 

Estabelece-se uma espécie de modus-vivendi, um acordo tácito, como o dos jogadores de cartas - cada parceiro as dá por sua vez! Bem distribuidinhas chegam para todos.

 

Vive-se em acordo tácito político, como o que se estabelece, num regime de concorrência económica, entre os lojistas - lutar, progredir, enriquecer - dentro dum regulamento que não permite uma concorrência feia, desleal ao vizinho do lado; para que este não tenha pretexto para pagar na mesma moeda.

 

O acordo vai até o ponto de o rotativismo se estender aos próprios cargos de direcção em altas empresas! Recordemos o que faziam Hintze Ribeiro e José Luciano de Castro com a direcção da Companhia do Crédito Predial: enquanto um era presidente do Ministério era o outro director da Empresa.

 

Mas o que termina por suceder neste regime económico de concorrência? O acordo, a princípio todo delicadeza, transforma-se ràpidamente num acordo de preços, de salários... e de real direcção e prejuízo da classe popular. Ou no esmagamento de um deles. Em qualquer dos casos, termina no monopólio.

 

O caminho seguido pelo Liberalismo através dos dolorosos passos da monarquia portuguesa foi também, tal como o monopólio, nas coisas económicas, o da ditadura, nas questões políticas.

 

Ora, este avançar do Liberalismo - insensivelmente umas vezes, intencionalmente outras - para o seu contrário, para a forma de absolutismo que foram os governos de Costa Cabral, um pouco antes da Regeneração e de João Franco, um pouco antes da República, com um intervalo de pouco mais de meio século - este avançar para a ditadura verifica-se, porque há nele, porque houve sempre nele, o tal fosso profundo entre dirigentes - espirituais económicos, práticos - e o Povo.

 

O povo, sempre viveu à margem dos acontecimentos poíticos e dos rumos gerais do país. Isto, na melhor das hipóteses, porque, por vezes, colaborava - criminosamente arrastado pelos dirigentes e por todos os meios - no cavar deste fosso, cada vez mais fundo. Isto acontecia sempre que, por exemplo, ia assistir no Parlamento aos debates de oratória, ao estendal dos escândalos, ao lavar da roupa suja - como quem ia aos touros ou às procissões, gozar um espectáculo.

 

Espectáculo em que, julgando-se espectador, era na verdade o verdadeiro actor, a verdadeira vítima.

 

Um espectáculo exerce sempre uma dupla acção sobre o espectador: distrai e faz esquecer os problemas básicos da vida, exactamente aqueles que não deviam, de forma alguma, ficar esquecidos.

 

Antes de prosseguirmos, deve, mais uma vez acentuar-se que o divórcio entre os dirigentes da monarquia burguesa por um lado, e o povo e os seus intelectuais por outro é uma verdade.

 

De um lado está o povo e do outro lado, dirigentes e a maioria dos intelectuais. Apenas alguns intelectuais sabem ocupar o seu lugar e estão com o povo.

 

Na maior parte das vezes, são poetas a quem a sensibilidade popular esteve sempre aberta, mesmo quando não dispunha de cultura para os poder compreender, no mais profundo do seu pensamento e da sua estética.

 

O mais típico destes casos é o de Antero que, poeta obscuro, metafísico ilegível, pela dificuldade que apresenta, chegou a ter certa popularidade, quando presidente da Liga Patriótica do Norte, imediatamente após o Ultimatum inglês de 1890, além dos curtos períodos da sua mocidade e das Conferências do Casino. Foi então um poeta popular.

 

Mas há dois poetas que não saíram, mesmo ainda hoje, do coração do povo republicano: Gomes Leal e Guerra Junqueiro.

 

 

Entretanto, acompanhemos o processo de transformação da monarquia política na monarquia financeira. Vamos ver como é que do diálogo brilhante e compreensivo das Constituintes ou, anos depois na época de Garrett e de José Estêvão, saíu o «regabofe», como chama Oliveira Martins a este período inicial no «Portugal Contemporâneo».

 

Já atrás ficou acentuado que, a vitória dos liberais pelas armas, só teria sido decisiva, se se tivesse verificado a consolidação da nova classe; a ascensão económica de uma nova classe social. Assim como o absolutismo era apoiado pelo grande senhor rural, pelo alto clero, pelo clero regular, e apoiado incondicionalmente, o liberalismo deveria ter dado à pequena e média burguesia condições que lhe permitissem apoiá-lo.

 

Para que a sua revolução fosse completamente vitoriosa, era necessário também a vitória económica; não bastava a vitória nos campos de batalha.

 

Esta é a afirmação deduzida de um princípio geral verdadeiro para todos os movimentos revolucionários. Que, por sua vez, é o resultado da observação constante da história.

 

E o liberalismo sentiu-o bem pois, antes ainda de Évora-Monte (31-8-33) foi publicado o conhecido Decreto das Indemnizações: os bens miguelistas passariam, a título de indemnização dos prejuízos sofridos pelos liberais, para as mãos do governo vitorioso. E assim se matavam dois coelhos com o mesmo tiro: enfraqueciam-se os alicerces da classe que apoiava o absolutismo e fortaleciam-se os da classe burguesa liberal.

 

Mas, por várias razões - entre elas a intervenção das autoridades inglesas - a aplicação do decreto ficou em suspenso e foi preciso esperar pela vitória de Évora-Monte para que começasse a ser aplicado; e agora sê-lo-ia não apenas aos bens dos miguelistas, mas aos dos conventos, da coroa, da Patriarcal, da casa das rainhas e do Infantado.

 

A quanto montaria tudo isto? Não é possível avaliar-se pelo menos de forma aproximada?

 

O cálculo pode fazer-se. Está mesmo feito; mas apenas em números redondos. Luz Soriano calcula em aproximadamente 17.000 contos o valor de tudo o que tinha passado para a posse do Estado, vendido ou por vender, em 1839.

 

Como e a quem eram vendidos esses bens?

 

A quem tinha posses para os comprar e este era o mal. A venda era feita em praça. Mas como as praças, iam ficando sucessivamente vazias, ou porque não havia dinheiro, ou por acordo dos compradores uns com os outros, alguns grandes senhores - novos senhores - surgiram em subtituição dos antigos: o barão devora o frade! Como dizia Almeida Garrett.

 

Palmela transformou-se assim em proprietário da Serra da Arrábida, dos frades arrábidos onde vivera outrora Agostinho da Cruz; Terceira passou a ser dono do Sobralinho de Alverca; Saldanha gozou as delícias de meia serra de Sintra; a Companhia das Lezírias, constituída então apodera-se de extensões. Aliás contra a lei de 15 de Abril, que só permite a venda a retalho que daria para viverem centos de médios-proprietários. E apenas por dois mil contos!

 

E as finanças do Estado, em crise desde o absolutismo, não ganham nada com esses negócios?

 

Talvez alguns números digam mais do que extensas explicações que não cabem aqui. A dívida externa do absolutismo era em 1823 de um milhão de libras; dez anos depois, no princípio de 34, está quase em 7 milhões! A dívida interna em 1828, no princípio do governo de D. Miguel, era de 20.000 contos, números redondos; em Abril de 1835 fica em quase 45.000 contos!

 

Acentua-se o desequilíbrio, em vez de se caminhar em sentido contrário. As coisas estão caminhando à maravilha para os negociantes, que hão-de ser a glória dos futuros decénios!

 

Toda esta dívida acarretava encargos espantosos: só a dívida externa fica anualmente em quase 2.000 contos! Assim, não é de estranhar que, no orçamento do ano económico de 33-34, a receita ordinária de 3.500 contos tivesse de fazer face a uma despesa de quase 13.000! O que parece pelo menos tão difícil como, nas mesmas condições, 3.500 homens poderem bater-se com vantagem contra uma divisão completa.

 

Como conseguiam, resolver o problema?

 

Da forma mais simples, sempre usada pelos governos de regimes não populares em condições idênticas: recorrendo constantemente ao empréstimo, inscrevendo o seu montante na coluna das receitas, e com este empréstimo satisfazendo os encargos do anterior, e por aí fora! Nada mais simples!...

 

O recurso ao empréstimo é porém limitado, porque os banqueiros apenas o subscrevem ou aceitam se lhe oferecerem as melhores condições - melhores para eles, como é óbvio!

Não vamos fazer a história dos empréstimos liberais. É uma longa e dolorosa história de insucessos, uma grande parte das vezes. Um dos primeiros foi o que foi tentado junto da casa Rothschild, em Londres e em Paris, quando a sede desta casa bancária era em Frankfort. Esta tentativa só foi bem sucedida quando se realizou por intermédio do capitalista português, Henrique José da Silva. Tratava-se de uma pequena quantia - pouco menos de 7.000 libras, para uso pessoal do Imperador D. Pedro antes do desembarque do Mindelo.

 

Mas quando se pensou a sério na preparação da expedição - aluguer de navios, compra de armas, ordenados, despesas com a viagem, etc. - foi preciso contrair um empréstimo de grande monta - 2 milhões de libras (9.000 contos) - que foram aceites pelo grupo financeiro «Ardoin, Mendizabal e Sanson & Ricardo», mas nas piores condições, pois que uma parte foi a 16% e implicava a fiscalização das aplicações do capital!

 

Daí em diante, a série nunca mais acabou. E em tudo isto estiveram sempre metidas altas personalidades estrangeiras, como por exemplo Fould que chegou a ser ministro no princípio do Terceiro Império com Napoleão III.

 

É evidente que a intervenção destes altos intermediários junto da Banca custava muito em «pequenas lembranças» e sobretudo no peso, que se fazia sentir fortemente na política interna - intervenções militares, navais, ameaças, tentativa de orientação, quedas e subidas de ministério, fiscalizações - pressão que se vai acentuando, desde a curta regência de D. Pedro em diante.

 

E assim, a burguesia internacional vai-se assenhoreando, por intermédio da Banca, dos fios que ligavam o novo regime ao resto do mundo.

 

A certa altura, as coisas agravam-se extraordináriamente para os dirigentes mais mergulhados no ouro e seus atractivos; é típico destas dificuldades e escândalos o caso do ministro Silva Carvalho - escândalos que rebentam, ou estão para rabentar quando, inesperadamente e por mera coincidência, se dá o célebre incêndio do Palácio do Tesouro (Julho de 1836)!

 

Foi assim abafada por algum tempo a má impressão que tudo isto causava. Mas não se evitou que o povo falasse e considerasse como corrompidas alguns personagens mais altamente colocados.

 

A barreira entre dirigentes e dirigidos continua a ser cada vez mais intransponível. Se não é com incêndios que os crimes se escondem, não é com a troça e a caricatura que eles se evitam. Tanto assim era que em 1854, logo nos primeiros anos da Regeneração a cada português já cabiam anualmente, de juros, pela dívida nacional, 600 reis! E a dívida continuou sempre a aumentar, tão assustadoramente que, em 1880, a capitação de encargo com os empréstimos, já tinha subido a mais de 3.000 réis! Começava a falar-se em bancarrota.

 

Não é uma história económica que estamos lendo, mas com os elementos por ela fornecidos podemos compreender qualquer coisa da vida nacional. Da mesma forma que apenas podemos ver, com relativa clareza, dentro do pequeno grupo social que é uma família, se soubermos o suficiente acerca do equilíbrio ou desequilíbrio das suas finanças. É ou não é assim que se traduz o seu nível de vida?

 

Por isso se tem insistido e insistirá - e não tanto como se devia - na evolução das contas públicas. E já agora e para terminar esta informação até quase ao final do regime monárquico, aí vão mais alguns números:

 

Pelo Orçamento de 1903 - vinte e poucos anos depois da última data referida, a de 1880 - a dívida pública alcançava tal quantia que, de juros, se pagavam mais de 31.000 contos anuais. O que, segundo um parlamentar do tempo, correspondia a quase 550.000 contos de dívida nacional. E ainda não abrangia as dívidas das Câmaras Municipais e das juntas de Paróquia! (citado em MANUAL POLÍTICO DO CIDADÃO PORTUGUÊS, pp. 233-239, Trindade Coelho).

 

Em poucas palavras: o dinheiro domina tudo. O culto pela liberdade fora ultrapassado, e bem ultrapassado, pelo dos interesses; o idealismo de um Mouzinho, de um José Estêvão tinha morrido afogado há muito na escandaleira lamacenta das finanças nacionais...

 

É exacto. O regime de ofertas - «luvas», como já então se chamava - teve de ser adoptado junto dos banqueiros para que estes apoiassem os empréstimos que o Constitucionalismo tentava nas Bolsas europeias. E por este processo, nada se modificava, a não ser para se agravar.

 

São por vezes os próprios políticos - deputados, ministros - os interessados directamente nos «negócios» financeiros e económicos do Estado. Hintze Ribeiro, passando por muitos outros, incluindo Oliveira Martins que, no PORTUGAL CONTEMPORÂNEO, tão irònicamente se refere ao primeiro!

 

É a isso que pode chamar-se a podridão da camada dirigente.

 

O palavrão não diz coisa alguma; ou não diz metade do que realmente se passava. E, já que estamos com a mão na massa, no pequeno esquema que se segue fica a fazer-se uma ligeira ideia do que se passava por detrás daqueles altos colarinhos engomados e dos bigodes bem penteados dos políticos posteriores ao início da Regeneração:

 

1.° - Muitos políticos, e alguns dos mais considerados, fazem parte de empresas, como directores e para lhes dispensarem a protecção do próprio Estado, dado que os seus interesses estão neles comprometidos. Alguns exemplos ao acaso:

 

Fontes Pereira de Meio pertencia à direcção da Companhia dos Caminhos de Ferro; o mesmo Fontes, José Luciano de Castro, Hintze Ribeiro passaram pela do Banco de Crédito Predial; Mariano de Carvalho foi, desde 1885, e durante alguns anos, elemento dos corpos gerentes do Caminho de Ferro de Norte e Leste; Oliveira Martins foi administrador geral da Régie dos Tabacos e também da Companhia de Moçambique...

 

2.º - Entre os políticos que se indicam como tendo recebido «luvas» de certas empresas, para favorecerem chorudas negociatas, citam-se alguns exemplos:

Oliveira Martins, António de Serpa, Ressano Garcia receberam acções e dinheiro de Mac-Murdo, concessionário do Caminho de Ferro de Lourenço Marques; o concessionário francês das obras do Porto de Lisboa distribuiu Bonds Hersent a vários políticos e outras entidades, como por exemplo o banqueiro Burnay que teria recebido Bonds no valor de 33.000 libras, além de 133.000, passadas pelas mãos de Mariano de Carvalho e Emídio Navarro!

 

3.º - O Estado, diz Oliveira Martins no Parlamento, tem concedido créditos a sociedades em más condições de solvabilidade: «Sindicato de Salamanca, 550 contos; Banco Lusitano, 1544; Companhia Real dos Caminhos de Ferro, 4.390».

O Estado, continua ainda Oliveira Marfins, avalisa ao Banco de Portugal, 652 contos; e ainda outras quantias «ao Banco do Povo, à Companhia de Fundição e Forjas, à Empresa do Teatro de S. Carlos; além de um desembolso efectivo à Mala Real Portuguesa» (H. R. Republicano, II vol., pp. 103 e 177.).

 

Aqui fica, balisado com estes grandes marcos, o caminho que atrás fora fotografado numa frase simples, sintética e cujas características gerais não podiam ver-se bem: o Liberalismo, na sua evolução, foi-se encaminhando, cada vez mais marcadamente para a hegemonia das grandes empresas; os políticos monárquicos constitucionais confundiam-se cada vez mais, conforme a monarquia caminhava para o seu termo, com os dirigentes dessas empresas; a monarquia foi-se, a pouco e pouco, tornando sinónimo de corrupção, na opinião popular. Nos últimos tempos da monarquia, as coisas sob este ponto de vista, chegaram a atingir o mais elevado grau de eficiência corruptiva - o de um Estado fortemente centralizado e policiado, apoiando e escondendo a corrupção!

 

E ninguém escapa à necessidade de gastar ou acumular. Por exemplo à Família Real apenas interessa gastar; e para isso chega a vender as próprias jóias! Mas isso é lá com ela!

 

 

POESIA E POVO:

 

Percebe-se agora a audição que alguns poetas tinham adquirido, nos meios populares. Descobrem-se assim as causas do seu prestígio É que Junqueiro e Gomes Leal põem, melhor que quaisquer outros a oposição entre os que trabalham e os que apenas vivem enfronhados em todas estas medonhas negociatas. Agora percebemos a razão por que, desde que aludissem a qualquer aspecto do lamentável estado em que se encontrava a monarquia, não podiam deixar de ser ouvidos e admirados.

 

Porque o povo vê em tudo isto uma traição das classes dirigentes à generosa ideologia liberal, à Pátria, e aos seus próprios interesses populares.

 

Exactamente: Traição! É precisamente este o título de um célebre poema de Gomes Leal, publicado em 1908 e que devemos ler:

 

«Ó mineiro! Ó mineiro! Ah, quando sob a terra,

Desces, longe da luz as espirais da dor,

E esquecendo as canções natais da tua serra,

Espantaste de ti as ilusões do amor;

Quando, tornado o peito um túmulo vazio,

Desceste para sempre à tenebrosa mina,

Onde não vem gemer a fresca voz do rio,

Nem vulto de mulher branqueia na neblina;

Quando fechaste a alma à ânsia dos desejos,

Como um faminto lobo, uivando num pinhal,

Ou como um cenobita esconde o rosto aos leigos,

Das líricas visões pelo Sabbat do Mal;

Quando nas solidões dos trópicos ardentes,

Rojaste no árido chão a fronte e os membros nus,

E lembrou-te a palmeira e o estrondo das torrentes,

E, ao fundo, o azuI calado, a erva, o mar, a luz;

Quando no gelo, enfim, das solidões estranhas,

No deserto polar da escuridão do inferno,

Para sempre fugiste aos cardos das montanlas,

À Grande Natureza, e ao grande Amor eterno;

Dize, sabias já, ó lúgubre mineiro!

Que o pálido metal que ias desenterrar,

Vergado, semi-nu, talvez um ano inteiro

Gastam os reis sòmente num dia, num jantar?

Dize, sabias já que a Providência avara

Concede a um a luz, a outro a treva exangue,

A um a taça de oiro, a outro, a esponja amara,

E a noite árida e má em que se sua sangue?

……………………………………………….

Dize, se como o Fausto em sua cela escura,

Viras o pranto, o escárneo e a loura meretriz;

Sabias que se atira ouro pelas janelas,

E que, ó infâmia! há reis que vendem seu país?

……………………………………………….

Levantai para o Céu as vossas mãos honestas,

Como um protesto heróico, enérgico, sublime,

Cavaleiros do Bem, que vindes das florestas

Da Ideia, e juras guerra á podridão e ao Crime?

Correi sobre este charco a toda a rédea solta,

Vós, justos campeões, puros como os arminhos,

E agitai pelo ar a espada da Revolta!

E afiai os punhais nas pedras dos caminhos!»

(ALMANAQUE DO MUNDO, pp. 174-175)

 

Como é que perante o espectáculo daquela monarquia em que impera a Podridão e o Crime e onde há reis que vendem o seu País, o povo não havia de ser tocado pelo que tem de verdade e pelo que tem de épico a poesia acusadora? Como é que o povo não havia de ser tocado por tantos outros poemas de tantos outros poetas? Como é que o povo não havia de ser tocado pela separação, pela oposição entre os dirigentes escandalosamente gozadores da vida, e o trabalho dos que produziam a riqueza para eles desperdiçarem e gozarem.

 

Como é que a sonoridade junqueireana não havia de fazer vibrar a sensibilidade de um povo que via o poder da Inglaterra alastrar pelas colónias e na Metrópole, crescendo constantemente no mundo das finanças e das relações internacionais e, ainda por cima, alardeando impúdicamente seu poder, em esquadras que se apresentavam à entrada do Tejo e em imposições militares?

 

Como é que o povo não havia de ver os tentáculos da burguesia internacional estendendo-se sobre ele, quando eram os próprios poetas que clamavam estrofes como as da célebre À INGLATERRA de Junqueiro:

 

«Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente,

Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?

Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,

Repartindo por todo o escuro continente

A mortalha de Cristo em tangas de algodão.

 

Vendes o amor ao metro e a caridade às jardas,

E trocas o teu deus a borracha e marfim,

Reduzindo-lhe o lenho a coronhas de espingardas,

Convertendo-lhe o corpo em pólvora e bombardas,

Transformando-lhe o sangue em água-raz e gin!»

 

E por aí fora, sempre na mesma toada, no mesmo ritmo, no mesmo chamamento às armas! Como é que a Inglaterra dominada pelo guinéu pela agenda que é a sua Bíblia, como é que a Inglaterra que se ia assenhoreando de tudo que até aí tinha sido português, não havia de provocar poemas destes, naquele povo que já então era educado, contraditòriamente, na orientação patriótica que depois se acentuou, da maneira desconforme que hoje vemos!

 

E como é que a pena dum Junqueiro, dum Gomes Leal, não haviam de ser assim os porta-vozes da ideologia popular?

 

Na verdade, quando os poetas, os escritores, vivem os problemas do tempo, os problemas do povo, não têm que temer o isolamento, e não ficam de facto isolados, como aconteceu à poesia daquele pobre Antero durante a vida, e na morte!

 

É assim. Estes dois, pelo menos conseguiram aquilo de que nunca Antero foi capaz nem com suas filosofias nem com seu reclamado socialismo.

 

 

A CULTURA POPULAR:

 

Hoje, o teatro, o cinema, todos os espectáculos públicos, assim como a rádio e a televisão, não falando já na imprensa e no livro, são instrumentos de difusão da cultura; e, por sua vez criadores de cultura, na medida em que despertam interesse pelos problemas culturais.

 

Sejam quais forem os efeitos que deles se pretendam, por mais que se esconda, e se deturpe, por mais imperfeitamente que se interpretem os acontecimentos, a verdade é que, com um bocadinho de esforço, da parte de quem vê, ouve ou lê, se vai compreendendo a situação presente, a direcção que pretende imprimir-se-lhe e o futuro que se procura alcançar.

 

Mas quando nada disto existia, a não ser um livrito ou outro e meia dúzia de jornais de pequeníssima tiragem, como se promovia a cultura popular indispensável para que o povo interviesse no desenrolar dos acontecimentos, com certa dose de consciência?

 

É preciso lembrarmo-nos de que a quase totalidade da população do início do século XIX é de analfabetos, estando portanto impossibilitados de tomar contacto com a reduzida utensilagem da cultura.

 

Para que um povo intervenha nos acontecimentos sociais, em determinado sentido, é necessária certa formação. Não é preciso ter preparação para ler um jornal, para poder intervir numa manifestação ou numa discussão num clube operário; mas naturalmente, essa intervenção será muito mais eficiente se tiver sido preparada pelo estudo.

 

Sabe-se que esta formação se vai avolumando, e tornando prática, conforme o contacto com as coisas se for processando. A cultura não provém apenas da escola. A concepção do mundo e da sociedade que têm os camponeses é aquela que adquiriram no contacto com a enxada, com as sementes que lançam à terra e a malta com quem colaboram na ceifa.

 

Mas a escola é o ponto de confluência de todas as concepções parcelares, chegadas de um lado e de outro. À escola vão-se buscar os alicerces para a construção que através da vida se vai erguendo. E também uma utensilagem lógica e, ao mesmo tempo, a possibilidade de alargamento dessas culturas parcelares. O que vem da escola é uma síntese das experiências, das explorações, das lutas, das intervenções, das descobertas, das criações, dos frutos da imaginação, das interpretações subjectivas e dos dados objectivos da realidade, numa palavra, daquilo que as gerações anteriores foram acumulando.

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Tudo isto não vai além do que já se dizia, em pleno século XIX: daquilo que disse um João de Deus num livro pouco conhecido - A CARTILHA MATERNAL E A CRÍTICA; e que muito antes fora também apresentado por Almeida Garrett no seu célebre TRATADO DA EDUCAÇÃO, escrito em forma de cartas. Uma síntese é quase sempre uma interpretação, uma deformação de caracter pessoal, uma deformação de classe.

 

Uma deformação?! Como uma deformação?

 

Basta procurar os objectivos que se pretendem atingir com a educação escolar para se ver como a cultura ministrada é «deformada».

 

Não se procura por vezes uma finalidade desviada, deslocada, deformada, para não usar uma adjectivação mais violenta? É de admirar que os meios usados, os métodos tenham de ser adaptados a essa deformação? Quando os antigos preceptores reais se encarregavam da educação de um D. João III, de um D. Sebastião, tinham naturalmente em vista fazer deles um certo tipo de rei. E naturalmente, os métodos adoptados tinham de estar de acordo com o que queriam fazer deles. Num folheto do tempo, intitulado Instruções dadas ao Núncio de S.S. que Passava a Portugal no Reinado do Senhor Rei D. João III, lê-se o seguinte, pág. 14 da ed. de Londres de 1824 (em citação de Almeida Garrett):

 

«O Rei, e ao seu exemplo, toda a nobreza que o cerca, dá grandíssimo crédito aos frades; e, ou seja pela sua diligência e ambição imensa, ou por negligência dos prelados, ou descuido seu, têm-se convertido em tiranos, daquele rei, já por via da confissão e já por via da prédica». (DA EDUCAÇÃO, ed. de 1904, pág. 200).

 

Naturalmente que as indicações de Garrett acerca da educação da soberana D. Maria II não tem nada a ver com estas que acabam de ser indicadas! Portanto os métodos de educação estão em relação com os objectivos que se pretendem atingir: D. João III será preparado para rei-agente-da-Igreja, D. Maria da Glória para rainha constitucional.

 

Mas não é apenas isto. A educação ministrada num Colégio dos Nobres não é a mesma de um camponezito de Trás-os-Montes ou de um pescador de Lagos. A educação que o regime liberal vai ministrar às classes populares não é a dos filhos membros da classe dirigente.

 

A sociedade é governada por classes e não por cidadãos, independentemente da classe a que pertencem, quer sejam idealistas e limpos como o José Estevão e o Garrett ou corrompidos como o Silva Carvalho, o Mariano ou o Oliveira Martins.

 

Recordemos também que cada classe procura atingir fins diferentes, por vezes opostos. E, para os atingir, naturalmente usa métodos e processos diferentes e igualmente, opostos.

 

Ora entre os fins a atingir pela classe dirigente de qualquer país, em qualquer tempo, e também pela classe burguesa constitucional, está em primeiro lugar o aguentar-se nas cadeiras do poder em que está sentada, contra todo os estremeções ou sismos. E por este motivo nada fará nem nada permitirá que possa abalar a solidez da sua posição. Mais: fará até o que possa tornar a sua posição progressivamente mais sólida.

 

Assim se compreende a posição que o Constitucionalismo tomou em relação ao problema da instrução, que nos parece hoje incompreensivel quando procuramos ver a necessidade que um regime liberal tinha de cidadãos com vistas relativamente amplas. Aliás o problema foi debatido nas Constituintes, concIuindo-se ser indispensável resolvê-lo. Contudo em 1890 – veja-se 70 anos depois da Revolução Liberal! - ainda há 79 por cento de analfabetos, embora em Lisboa seja apenas de 46 por cento.

 

No entanto, nalgumas leis eleitorais exige-se o saber ler e escrever, como condição indispensável para ser eleitor. Que quer isto dizer senão que se pretende limitar o número de eleitores? Que se tende a impedir a intervenção das classes populares nos problemas políticos? Que a classe dirigente não deseja correr o risco do domínio do povo o que seria inevitável, se ele tivesse, possibilidades de se manifestar?

 

Por aqui se vê - e igualmente pelos treçhos do Júlio Dinis, transcritos atrás - como se defende a classe dirigente.

 

Vejamos imediatamente como se desenvolve, de forma insignificante, a vida cultural das populações traduzida na evolução da vida escolar:

 

Vamos ver em que consiste a preocupação dos governantes liberais quanto à instrução popular, à indispensável instrução, já não dizemos para a compreensão dos problemas, mas para que uma das condições do eleitorado pudesse ser satisfeita.

 

Podemos partir de dois dados extremos:

 

Em 1904, em vésperas, pois, da proclamação do Regime Republicano andava-se à volta das 5.000 escolas primárias (exactamente 4.968);

 

Em Novembro de 1772, uma lei pombalina criou a escola e sete anos depois (1779) havia 720.

 

E a que se chamava escola primária? O que se ensinava então?

 

Ler, escrever, contar, um pouco de gramática e sobretudo catecismo e civilidade - eis o que se aprendia. O ensino era ministrado por frades que ganhavam 40.000 reis; e se não fossem religiosos, receberiam 60.000 reis.

 

Entre 1809 e 1820 fundam-se mais 21 escolas primárias. Nos três primeiros anos da Revolução liberal, portanto até 1823, acrescentam-se-lhes mais 59.

 

Em 1829 funcionam, em todo o país, 900 escolas das primeiras letras, apesar das medidas contra-revolucionárias aplicadas de 23 em diante. Mas, exactamente em 1829, o número de 900 que então se atingira é reduzido, por duas vezes, e ficam a funcionar apenas 550!

 

O ensino primário vai-se desenvolvendo, (!) portanto em movimentos de avanço e recuo, o que-se tem tornado eficiente como táctica da classe dirigente!

 

E a quem era entregue o ensino?

 

Os mais progressivos e intervencionistas escritores portugueses, Herculano, José Estêvão, Félix Henriques Nogueira, Almeida Garrett têm respondido a esta pergunta da seguinte forma: o que é preciso é que haja quem ensine; e nas escolas paroquiais podem ou devem ser mesmo os párocos! Com excepção de AIneida Garrett, que tendo-se deixado influenciar pela leitura do Emilio de Rousseau, e de outros teóricos da educação, já tinha conhecimentos de pedagogia suficientes para saber que há períodos na evolução da criança e que o ensino tem de ser adaptado a essas fases; numa palavra que há uma ciência chamada pedagogia que considera a igualdade como princípio fundamental.

 

Afirmar que o mais necessário é haver quem ensine, é o mesmo que confessar desconhecer que, por vezes, o ensinar a ler consiste mais em desfazer com uma mão o que se faz com a outra. Tudo depende, em grande parte, da orientação dos professores. O professor pode aproveitar a própria escola para inocular o veneno reaccionário.

 

A classe dirigente sabia disto muito bem, sabia muito bem que a escola se pode transformar, se transfornou mesmo, num campo de batalha contra as próprias instituições liberais, aproveitando-se delas com o fim de as destruir.

 

Houve por isso quem propusesse a laicidade como fundamental à preparação da juventude escolar, embora este problema fosse discutido apenas nos últimos 20 anos da monarquia.

 

A ideia não vingou senão depois da limitação dos poderes da Igreja e da separação desta do Estado, após a Proclamação da Repiblica de 1910.

 

Mas a deficiência da escola da monarquia liberal não era apenas o ser tendenciosamente religiosa, o maior defeito da escola liberal foi a falta de um conteúdo formativo. De certo que ler, escrever e contar contribuem - mesmo independentemente daquilo a que possa aplicar-se a arma da leitura, idependentemente do seu aproveitamento para a vida, prática, na era da máquina e da contabilidade comercial - contribuem para dar ao espírito novas regras de pensamento, aquilo a que hoje chamamos utensilagem lógica.           

 

Mas isto não chega. Compreende-se bem que na escola penetra-se para além dos umbrais dum mundo diferente do da vida diária. Normalmente ela abre as portas para a cultura, enquanto que cá fora se luta pela resolução de problemas concretos do próprio momento.

 

Sai-se da escola com relações e contactos com dois mundos diferentes; mas deve-se sair também com a noção de que eles - na actual situação de divisão de classes - não só não comunicam correntemente um com o outro mas são, de certo modo, incompatíveis, tal como as classes que constituem a sociedade.

 

E igualmente se sai com a ideia de que quem penetra no âmbito de um se afasta do âmbito do outro; quem mergulha profundamente num, não pode, no outro, andar senão vogando à superfície.

 

A escola pode contribuir assim para cavar mais fundo a separação das classes; e em vez de procurar a igualdade de todos, como preceituava a Constituição de 22, a Carta Constitucional de 26, e por aí fora, tender apenas para pôr uns ao serviço dos outros.

 

De resto, isso vai-se tornando límpido como a água devido ao desenvolvimento das técnicas comerciais, da industrialização e da maquinaria, o rendimento da «cultura», adquirida nas escolas primárias começou a tornar-se indispensável para que o trabalhador pudesse dar quanto podia à classe que utiliza o seu esforço.

 

Mas isto verifica-se apenas numa fase superior da evolução social - como aquela que estamos atravessando neste instante - e torna-se bem visível, a ponto de não poder ser negada.

 

Mesmo pondo de parte tudo isto, todos estes aspectos, fundamentalíssimos, nunca a monarquia constitucional tomou a sério os problemas da instrução popular, como tomou a sério o problema da preparação militar, da marinha… É que estas instituições especializadas interessavam profundamente à classe que se quer aproveitar -destas entidades como forças mantenedoras da ordem ou ocupantes das regiões coloniais.

 

E assim a sua indiferença pela cultura popular acentua-se nos últimos anos de vida...

 

No orçamento de 1904-1905 é reservada para a instrução primária a quantia de 346 contos! Esta quantia é insignificante, tendo ainda em conta o que se lhe acrescenta de contribuição dos municípios que é variável de uns para os outros. Contudo - reparem agora na confirmação do que se diz acima - eram consagrados 14.000 contos para as forças de terra e mar E só a Polícia e a Guarda Municipal custam mais de 1.000 contos anualmente.

 

Aliás o ódio, o receio da escola primária é, por vezes francamente apresentado; em 1894, o Diário Ilustrado escreve: «A instrução primária é o mais poderoso elemento do despotismo jacobino, o pior de todos…».

 

Há realmente duas formas de despotismo: o das classes populares que saem ou que podern sair de todas as escolas, e o das forças armadas, agentes da ordem (da Ordem em que tanto falavam João Franco e D. Carlos) à qual se atribui no orçamento quantia trinta e tal vezes superior.

 

Das quase 4.000 escolas que há então (1894), cerca de 1.000 estão fechadas.

 

É preciso manter a Ordem; começa a ser urgente manter a ORDEM. As cidades crescem; os centros industriais do século XVIII desenvolvem-se; formam-se outros; os partidos operários ou melhor as correntes operárias são cada vez mais caudalosas; as actividades que desenvolvem vêm-se a olhos fechados. Aquilo que antes de 1870 não existia - as greves - começa a avolumar-se- extraordinàriamente. Operários não são só os homens: são os homens, as mulheres e as crianças. Há empresas em que em 1872 já trabalham 800 operários dos quais 370 são muIheres, 170, homens, 150, rapazes, 110, raparigas. É o que acontece na «Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense», nas fábricas a Santo Amaro e Olho de Boi.

 

O Partido Republicano cresce ràpidamente. E este crescimento torna-se mesmo assustador para a monarquia, depois da crise política de 1890-1891.

 

Há acontecimentos que podem desencadear muitos e muitos outros acontecimentos. Mas também há situações que podem provocar o desencadeamento dos acontecimentos...

 

Mas antes de passarmos adiante, para acompanharmos a passo e passo a luta que as classes populares vão travar, no sentido da sua libertação, recuemos um pouco - recuemos aí para 1870 para vermos o panorarna económico do Portugal dessa época.

 

 

CONDIÇÕES DE VIDA E «PROSPERIDADE» NACIONAL

 

O cálculo da despesa com a alimentação, vestuário etc., é sempre difícil de fazer. Sobretudo numa época em que as estatísticas são muito incompletas e com muitos erros. E há um elemento que nunca se pôde dar: é o da distribuição equitativa das coisas, quer se trate de alimentos, quer de vestuário, pelas populações. Pode dar-se a distribuição pelo número de habitantes do país. Pode saber-se que no país, entram, num determinado ano, tantos quilos de açúcar, ou que pagam imposto de venda tantos milhões de quilos de carne.

 

Mas o que nunca podemos saber é o que cabe em média a cada habitante. Ora numa sociedade onde há uma diferença profunda de rendimentos, onde se gasta com a Casa RaI mais de 500 contos por ano, mais do que se gastava com os milhares de professores de escolas e de outros serviços, e que, sunultâneamente há empregados nas fábricas citadas há pouco (Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense) cujo salário mínimo é de 80 reis e máximo de 400, no ano de 1872; em que um ferreiro tem, numa cidade como o Porto, o salário de 320 reis; em que um trabalhador agrícola tem de jornal, também numa cidade, 380 réis; numa sociedade destas, nunca podemos saber quanto cabe de carne em média por ano ou de açúcar a uma família de trabalhadores rurais.

 

Do que temos a certeza é de haver uma extraordinária desproporção entre o que come o trabalhador rural e que come um burguês. E que a natureza dessa desproporção é a seguinte: enquanto que na casa onde entra um pequeno salário, a quantidade de pão é muito grande e vai diminuindo, conforme observamos primeiro uma família de médios recursos, depois outra com maiores disponibilidades e finalmente uma da alta burguesia; o crescimento do consumo de carne é inverso. E quem diz carne diz açúcar, café ou quaisquer produtos que nessa era 1870 ainda são considerados produtos de luxo.

 

Passemos então a ver o consumo geral do país e o que cabe a cada indivíduo, aproveitando, com ligeiras modificações, um quadro de Delfim de Almeida.

 

 

Quantidades

Valor (contos)

Capitação

Pão e massas

142.000.000 kg

43.200

190 kg

Hortaliças, frutas e legumes

70.000.000 kg

4.500

16 kg

Legumes

191.500.000 kg

7.700

50 kg

Batatas

10.249.000 kg

1.200

2,5 kg

Carne e derivados, ovos, leite, manteiga e queijo

33.554.000 kg

7.300

8 kg

Peixe

53.000.000 kg

3.800

3,5 kg

Vinho e bebidas

92.000.000 lit.

6.000

23 lit.

Açúcar

15.000.000 kg

3.600

3,5 kg

Café

1.200.000

960

0,250 gr.

Chá

231.000

500

0,060 gr.

Industrialização de alguns destes produtos

__

15.700

__

Tabaco

1.640.176

6.560

0,420 gr.

 

Ficam aqui algumas ou a maior parte das despesas médias com a alimentação e com um produto extraordinàriamente importante já na época que é o tabaco.

 

Esta média é estabelecida sobre os anos de 67-68-69.

 

A população era de um pouco mais de 4.000.000 de habitantes. Queremos ainda destriçar - porque isso ajuda-nos a ver a vida das populações - as qualidades de pão que se consumiam: milho nacional, 386.000.000 de quilos; centeio, 106.000.000; trigo, à volta de 200.000.000, dos quais quase a quarta parte é importado (1). Come-se quase duas vezes e meia mais milho e centeio que trigo.

 

É certo que a estes números há que acrescentar determinadas pequenas correcções que modificam um pouco, sòmente um pouco, o cálculo dos economistas: é o caso das carnes que são consumidas e não figuram nas estatísticas; o do leite de animais caseiros que também não conta. Um outro numero que exige modificações é o respeitante ao vinho e bebidas alcoólicas. Sabemos que a quantidade de vinho produzida nessa altura é muito superior àquela que figura. Ora, a exportação de vinho não corresponde, de forma nenhuma, à diferença entre a produção e o consuno. Há pois aqui uma falha grave. A produção era superior a 2.000.000 de hectolitros, em média; na nossa lista figuram apenas 920 hectolitros, incluídas todas as outras bebidas, que não seriam muitas. Há pois um desvio grande a ter em conta e que é constituído por aquelas quantidades que se escapam e escaparão sempre ao fisco, à estatística e se dirigem directamente... para o aparelho digestivo do consumidor!

 

Estes números que acabam de dar-se indicam, com relativa objectividade, algumas das condições de vida do povo. Como já se disse, são apenas médias; e as médlas não indicam as condições reais, das quais a mais importante é uma acentuada diferença de classe e portanto de diferença de vida. Fica ao cuidado do estudioso o ter sempre isto presente. E àquele que está passando o filme, ficará o cuidado da apresentação dos salários e de outras formas de rendimento popular, dados com que o Leitor pode jogar no seu cálculo. Naturalmente que um director de alfândega, que tem um ordenado anual de 1.800$00 não tem à sua mesa a mesma quantidade de carne que um operário duma fábrica de fiação com um salário de 460 reis, o máximo, por volta de 1870.

 

Mas os números médios que foram dados têm sempre a vantagem, para os economistas, historiadores e todos aqueles que gostam de fazer comparações, de permitirem falar no aumento da riqueza ou sua diminuição, em determinado período.

 

Vamos ver agora em que consiste esse anunciado aumento de riqueza a partir do princípio da Regeneração, comparando os anos de 1851 e 1871 e acrescentando-lhe dados posteriores e correspondentes ao fim do século ou mesmo aos primeiros anos do século XX.

 

Partamos de alguns elementos fundamentais como sejam os relativos a população:

 

Em 1851 a população portuguesa era de 3.829.108; em 1871 é de 4.286.995; a densidade é assim em 51, de 42 habitantes por quilómetro quadrado; e em 71 de 46. Seguem-se agora dados comparativos:

 

 

1851

1871

1907

Extensão das estradas

127 km

3.480 km

 

Extensão dos caminhos de ferro

-

786 km

 

Extensão das linhas telegráficas

-

3.111 km

 

Movimento bancário

7.712 contos

41.879 contos

 

Valores do comércio especial

20.799 contos

39.260 contos

 

Valores das matérias primas importadas

2.719 contos

5.260 contos

 

Consumo de açúcar por indivíduo

2,69 kg

3,39 kg

6 kg

Consumo de chá

0,03 gr.

0,05 gr.

 

Consumo de café

0,27 gr.

0,39 gr.

 

Consumo de tabaco

0,18 gr.

0,31 gr.

 

Impostos gerais

8.526 contos

15.312 contos

 

Impostos locais

1.110 contos

1.589 contos

 

Emolumentos

584 contos

834 contos

 

 

Desdobranos agora algumas formas da actividade bancária:

 

 

1854 - contos

1871 - contos

Aumento

Dinheiro em caixa

1.695

4.136

144%

Letras descontadas

2.384

14.674

522%

Empréstimos sobre penhores

344

5.469

1.495%

Depósitos

2.159

14.674

579%

Notas em circulação

1.126

2.923

159%

 

 

Completamos esta informação com mais os seguintes elementos:

 

A circulação fiduciária aumenta ràpidamente: em 31 de Dezembro de 1890 já é de 8.604 contos; um ano depois, 31 de Dezembro de 1891, multiplicou-se não sei por quanto, atingindo 34.760 contos; e em 31 de Dezembro de 1907 atinge a quantia de 70.966 contos!

 

Chama-se a isto prosperidade, progresso, movimentação comercial, etc.!

 

Mas para que se veja bem este aspecto da «prosperidade» vamos dar a evolução da circulação fiduciária, dos lucros do Banco emissor e dos juros com que o Estado contribuiu, no seguinte quadro:

 

Anos

Circulação fiduciária

- contos

Lucros

- contos

Juros pagos pelo Estado

- contos

1851

1.126

40

-

1871

2.923

100

-

1890

8.604

325

-

1891

34.760

1.290

850

1892

50.200

2.300

1.565

1896

59.000

2.045

1.084

1898

70.000

2.091

1.158

1907

71.000

2.729

1.194

 

De 1891 a 1907, durante 17 anos, o Banco teve exactamente 38.698.779$620 reis, quase 39.000 contos de lucros! Para estes lucros, fabulosos para o tempo e para o número de anos, o Estado contribuiu com 20.153.701$486 reis e quem diz o Estado diz todo o povo.

 

Esse é mais um índice da prosperidade nacional!

 

O negócio dos bancos era tão ou tão pouco rendoso que o número de bancos existente cresce, digamos, quase de ano para ano. Três ou quatro números apenas. Em 1858, há três bancos e em 1870 já são 14; em 1875 são 51; em 1892 concentraram-se em 44.

 

Ainda outra série de números: em 1858 há depositados nos 3 bancos 3.182 contos; em 1870 nos 14 bancos a soma dos depósitos é de 7.268 contos; em 1875 nos 51 bancos há 25.099 contos em depósito; em 1890 os depósitos atingem 47.006 contos.

 

Como acabam de ver, pelos números indicados, continua a manifestar-se o que se chama a «prosperidade nacional».

 

Mas começa a perceber-se - pelo número de bancos que cresce de ano para ano, pelas quantias depositadas - que a chamada prosperidade nacional é a prosperidade dos que podem comprar as acções das sociedades bancárias e fazer seus depósitos. Portanto, a prosperidade nacional é a prosperidade da classe dirigente.

 

E a grande massa da Nação o que ganha ou o que perde com essa chamada prosperidade dos seus dirigentes? A resposta é dada um pouco rnais adiante. Não podemos misturar dirigentes com dirigidos; não podemos confundir as classes, falando nos criados, quando estamos tratando dos patrões! Porque, para vermos a verdadeira profundidade da «prosperidade» faltam-nos ainda alguns outros aspectos. E um deles é o da evolução de um sector especial da actividade comercial: a dos meios de transporte e, em especial os meios de transporte por mar.

 

Uma das histórias mais interessantes do século XIX é a das companhias de navegação de passageiros e de mercadorias. Vamos indicar algumas compaihias de navegação, de vida curta ou de vida longa; e algumas delas com subsídios especiais do Estado. Nunca esquecer que o Estado é o administrador dos dinheiros da Nação…

 

Vejamos então a data da fundação de algumas empresas de navegação:

 

Em 1853 e 1854, organizam-se a Companhia Luso-Brasileira, a Empresa Portuense de Navegação a Vapor, a Companhia do Lloyd Lusitano, a Companhia Luso-Hamburguesa, a Companhia Real Portuguesa de Navegação em 1858, a União Mercantil, em 1868 a Empresa Lusitana; em 1873, a Companhia Aliança Marítima, a Companhia Progresso Marítimo e Thetis, a Empresa Insulana de Navegação, Empresa de Navegação a Vapor; em 1878, a Empresa do Barão de Fonte-Bela; em 1880, a Empresa da Mala Real Portuguesa, a da Companhia União, a Empresa Nacional de Navegação.

 

Além destas, há várias empresas menores. Algumas delas sumiram-se pouco tempo depois de começarem a funcionar; algumas não chegaram mesmo a exercer a sua actividade.

 

Uma outra característica destas grandes empresas é o auxílio que recebem do Estado: das indicadas, foram subsidiadas pelo menos a União Mercantil, a Empresa Lusitana, a Empresa Insulana e a Empresa Nacional de Navegação.

 

Além disso, o Estado garantiu a várias outras o pagamento de juros e fez adiantamentos... Tudo com o dinheiro que recebia de toda a população, classe dirigente ou não. Insiste-se nesta nota, porque ela ajuda-nos a compreender a técnica da administração burguesa num dos seus principais aspectos: receber de todos e dirigir o recebido para uma pequena parte.

 

Apesar de todos estes passos indicados atrás, e que marcam o avanço da classe burguesa no domínio dos sectores vitais da sociedade - com as suas tentativas e erros, com os seus passos em frente e seus passos em falso, com as suas crises, como é o caso das companhias de navegação, das dificuldades dos Bancos, etc. - alguns sintomas nos indicam que nem tudo vai bem. O comércio externo é um deles. Se fizermos um confronto, seguindo as pisadas de Roque da Costa, entre as quatro pequenas nações europeias que são a Holanda, Bélgica, Suíça e Dinamarca; e Portugal, sob o ponto de vista do seu comércio, verificamos que a distância entre Portugal e esses países é extraordinàriamente grande. Repare-se ainda que todos eles têm uma superfície inferior a menos de metade da superfície de Portugal. Pelo que respeita à população, a da Holanda, Bélgica e Portugal é quase a mesma. Pois bem, no comércio especial, no ano de 1906, o valor das exportações da Holanda foi de 782.000 contos; o da Bélgica, de 503.000 contos; o da Suíça, de 193.000 contos; o da Dinamarca, de 98.000 contos; tudo em contos de réis ouro. Pois, no mesmo ano, o valor das exportações (comércio especial) portuguesas não chegou a 31.000 contos papel! É este um índice seguro não só da administração da burguesia portuguesa, mas da situação em que ela estava, em relação à burguesia inglesa, sua superior hierárquica; e do lugar que esta lhe reservava dentro dos quadros da burguesia europeia: o de fornecedora de substâncias alimentícias e de matérias-primas que eles depois transformavam.

 

A direcção da burguesia, nos últimos anos da Monarquia, tem de recorrer a todos os processos para arranjar dinheiro. Considera que todos os processos são legítimos, com a condição de poder tirar lucro. E a sua legitimidade é proporiconal ao lucro obtido!

 

Os grandes benefícios - os lucros dos bancos e das grandes empresas, os divertimentos das casas de espectáculo, como S. Carlos que tanto dinheiro custava ao Estado, o gozo dos grandes edifícios e dos bons gabinetes, etc. etc. - tudo revertia a favor da camada dirigente. Já vai ver-se a quantidade de palácios construídos!

 

Para as massas populares, as camadas dirigentes inventaram a Caridade. Os hospitais e as misericórdias funcionam, não só para proteger um pouco as camadas populares na medida em que tem bastantes benefícios com a saúde das massas, mas também por uma questão de publicidade.

 

Mas a sustentação das casas de assistência e beneficência fica cara. E para diminuir as despesas, concedeu-se à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o direito de emitir uma lotaria. Ora, pelas contas de 1905-1906, a Santa Casa lançou lotaria no valor de 3.279.200$000 reis, Na compra, em resultado do desdobramento dos bilhetes em cautelas e noutras coisas, o preço dos respectivos bilhetes aumentou ainda uns tantos por cento. Como foi dividido este dinheiro depois? 532 contos, reverteram a favor do Estado; para a Misericórdia foram 312 contos! Veja-se agora que nos cofres da Santa Casa da Misericórdia não chegou a entrar a décima parte das bolsas particulares! O restante foi para despesas...

 

Este exemplo da Lotaria é um dos mais evidentes processos que o Estado português usa com o objectivo de canalizar os dinheiros da Nação apenas no sentido do benefício duma classe diminuta.

 

Entretanto os grandes lucros não procura a burguesia obtê-los: no princípio do século, dos 8.900.000 hectares que constituem a superfície do reino, 3.800.000 são constituídos por incultos e baldios - 44% da sua superfície total.

 

Por outro lado, também não se procuram outros lucros que beneficiariam não apenas a burguesia mas toda a Nação. Mais um exemplo:

 

Nos últimos anos do século, pelo menos de 1885 em diante, isto é depois da Conferência de Berlim, surge, em primeiro plano, sobretudo dentro da publicidade monárquica, o problema colonial. Gastaram-se milhões em campanhas coloniais; sacrificaram-se vidas; criaram-se companhias a que foram feitas concessões de território, por vezes imensamento maiores que o território da Metrópole; desenvolveu-se o mito da valentia, da heroicidade. No entanto, alguns sectores da vida colonial, exactamente aqueles que podiam trazer um lucro mais certo e com um futuro mais garantido, foram absolutamente esquecidos.

 

Um destes é o da beneficiação do porto de S. Vicente em Cabo Verde. Pela sua posição, este porto tinha como concorrentes os portos das Canárias espanholas. Se comparamos o movimento de S. Vicente com o porto espanhol de Tenerife, verificamos o seguinte: Em 1900 o movimento de Tenerife é constituído por 2.940 navios com 4.724.140 toneladas de arqueação; no mesmo ano em S. Vicente entram 1.839 navios com 4.230.275 toneladas.

 

Em 1907 o porto de Tenerife dá entrada a 3.547 barcos com 6.454.372 toneladas; enquanto que o número de navios em S. Vicente é de 1.629 navios com 5.571.884. Há que acrescentar a isto o movimento de Las Palmas que se manteve sempre, desde 1900 até 1907, mais ou menos na mesma. Isto quer dizer que em 1906 os portos das Canárias foram procurados por 8.625 navios, com 11.243.460 toneladas, enquanto que em S. Vicente entraram, apenas no mesmo ano, 1.526 navios com capacidade de 5.047.218 toneladas.

 

Isto tem o significado de que os dirigentes não se preocupam senão com o que lhes possa dar um lucro imediato, descurando o que exija trabalho e persistência.

 

Vamos dar um outro exemplo: o do consumo do açúcar:

 

A quantidade de açúcar gasto pelo país foi aumentando progressivamente. Isto é um índice da melhoria de vida das populações. Como se recordam, em 1870 consomem-se 15 milhões de toneladas de açúcar; 37 anos depois, em 1907, o consumo é já de, números redondos, 33.000 toneladas. Há realmente um progresso sensível no consumo do açúcar. Mas vejamos agora o aspecto da sua proveniência. Destas 33.000 toneladas, 14.150 são de origem alemã; 8.618, austríaca; 2.466, francesa; 1.277 inglesa; 4.480 vêm da África Oriental Portuguesa!

 

Quer dizer, um país cujo Império colonial tem uma extensão imensa; que pretende ainda acrescentar-lhe toda a região entre Angola e Moçambique - um país destes só consegue que a sétima parte do seu consumo de açúcar venha das suas colónias! Seis sétimos vêm do estrangeiro; e de países com territórios coloniais muito inferiores, na sua maior parte, como é o caso da Alemanha. Contudo tinha-se dado, nos últimos anos um certo aumento da produção de açúcar na sua África Oriental - não vale a pena falar na África Ocidental porque esta, no ano de 1907, apenas forneceu à Metrópole 559 toneladas.

 

Eis porque, no «relatório» do Ministro da Fazenda no Parlamento, sobre o fornecimento do açúcar, nesse ano de 1907, se podia ler:

 

«A África Oriental Portuguesa começa por fornecer 222 toneladas no valor de 19 contos de reis em 1893; passa a 1.209 toneladas e 102 contos de reis, em 1899; ascende aos números mais elevados, 5.963 toneladas e 437 contos em 1905».

 

Vê-se nitidamente como o progresso da burguesia em Portugal coincide absolutamente com o progresso das burguesias dos outros países, dentro dos limites económicos e geográficos de Portugal.

 

Esta ascensão da burguesia verifica-se pelos progressos feitos na aquisição de instrumentos de riqueza - quer seja no número de bancos e na sua movimentação; no número de empresas e nos capitais nelas investidos; quer seja na protecção do Estado a muitas dessas empresas; ou na extensão progressiva das vias de comunicação; ou no crescer sem medida dos impostos - não corresponde a uma ascensão paralela das condições de vida da grande massa da população, sobretudo a trabalhadora. Se não vejamos:

 

O jornal de um trabalhador agrícola é, no Porto, de 380 réis; em Vila do Conde, de 200 réis. Um oficial de ferreiro ganha no Porto 320 reis, em Vila do Conde 280 reis. Um oficial de cardação ganha, na Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, em 1872, entre 280 e 400 reis; um pedreiro, entre 450 e 600 réis; um serralheiro ou um carpinteiro, entre 510 e 710; um mestre de oficinas, entre 700 e 900 reis; uma mulher da Fiação, entre 120 e 320 reis; um rapaz, entre 100 e 220 réis; uma rapariga,entre 100 e 180 reis. Os próprios empregados do Estado estão mal remunerados, a não ser os de maior categoria, como sejam o director geral das contribuições directas, os directores das alfândegas do Porto e de Lisboa que recebem respectivamente 1.181$000 reis e 1.800$000 reis. Mas um aspirante de primeira classe das repartições da fazenda distritais, recebe 160$000 anualmente, quer dizer, 535 reis em cada dia útil. Isto por volta de 1870.

 

Mas se dermos um salto de trinta anos, por essa altura, os trabalhadores rurais, segundo os cálculos, de Bazílio Teles, ganham entre 240 e 160 reis. O que dá, para uma família, 400 reis diários, caso o trabalhador seja casado. Com estes 400 reis tem de viver. Mas este salário apenas chega para uma alimentação constituída por pão, feijão, azeite, hortaliças, sal e 4.000 reis de sardinhas anualmente!

 

Isto significa que os benefícios da civilização só foram aproveitados por pequeníssima parte da população, isto é a burguesia, e principalmente a burguesia das cidades.

 

Mas podemos ver ainda outros aspectos que nos revelam a miséria em que vivem as populações no campo e na cidade. Ainda segundo Bazílio Teles, em 1893, 5/6 dos indivíduos falecidos em Aveiro, morreram sem assistência médica; em Faro, 3/5; e figuram, nas estatísticas, com a designação de vitimados por doenças gerais (quer dizer que não foram assistidos), em Castelo Branco 3/4; em Faro 7/10; em Viseu, 9/10. Na Guarda, nesse mesmo ano de 1893, houve 5945 óbitos, todos incluídos na rubrica de doenças não classificadas. Isto é fantástico!

 

Havia portanto um descontentamento geral, dentro das populações não beneficiadas, sob o ponto de vista do salário, da assistência e de uma forma geral do nível de vida. Mas havia também uma acentuada inquietação dentro da classe dirigente. Este mal-estar era em grande parte provocado pelo desequilíbrio dentro dos seus vários sectores, causado pelos excessos de lucros que uns tinham sobre os outros; e pelo excesso de poder que alguns entre eles exerciam sobre outros, menos favorecidos.

 

Este desequilíbrio, este mal-estar é absolutamente notório nas disputas da imprensa e no parlamento. E exprime-se de forma muito mais clara nas perturbações das mais camadas da burguesia. A própria sucessão dos governos o denuncia.

 

Entre 1851 e 1871 sucedem-se os seguintes governos:

 

Ministérios

Anos

Meses

Duque da Saldanha

5

7

Duque de Loulé

3

2

Duque da Terceira e Aguiar

1

3

Duque de Loulé

4

8

Marquês de Sá

-

6

Aguiar

2

3

Marquês de Ávila

-

7

Marquês de Sá

1

-

Duque de Loulé

-

9

Duque de Saldanha

-

4

Marquês de Sá

-

2

Marquês de Ávila

-

3

Marquês de Ávila

-

9

 

À primeira vista, saltam dois aspectos: os presidentes do ministério são da recente aristocracia constitucional; e a duração de cada ministério vai decrescendo de ano para ano. Alguns anos depois, lá para 1890 começará a falar-se em «instabilidade ministerial», em «falta de continuidade governativa», em impossibilidade de se continuar a viver desta maneira. E portanto, com esta linguagem ou com outra idêntica, começa a preparar-se a concentração dos poderes políticos nas mãos de meia dúzia. E quem seria essa meia dúzia? Naturalmente aqueles que estão já senhores do poder económico!

 

Nem podiam ser outros.

 

Finalmente, e à laia de conclusão, que já ia tardando - dentro deste capítulo, quase exclusivamente de números e de índices - façamos a comparação da carga tributária portuguesa com a daqueles pequenos países a que há pouco nos referimos: Suíça, Holanda, Bélgica e Dinamarca, estudando a percentagem da cota do imposto - dos impostos gerais e dos impostos locais - sobre a cota do comércio especial.

 

Percentagem da cota do imposto geral somada à de todos os outros impostos:

 

Suíça.

5,9%

Holanda.

11,4%

Bélgica

13,3%

Dinamarca

42,7%

Portugal

40,1%

 

Estes números referem-se à era de 1870, quer dizer a uma espécie de período áureo da burguesia. Por eles se vê como ela sobrecarregava as populações, em relação às dificiências da sua actividade comercial. Esta estava sujeita às directrizes da burguesia europeia, em especial da burguesia inglesa. E aquilo que os dirigentes portugueses não eram capazes de ir buscar ao comércio, arrancavam-no às populações por meio do imposto, como fica à vista pela relação entre o comércio especial e os impostos que recaiam sobre os indíviduos.

 

 

O LUXO DA ALTA BURGUESIA:

 

Não é apenas nos índices de produção, nas percentagens deste ou daquele produto, nas relações das várias quantias entradas ou saídas nos Bancos, no número de descontos, nas somas correspondentes aos objectos empenhados, nos confrontos de ordenados dos altos funcionários e dos amanuenses ou aspirantes; não é apenas através dos números que podemos avaliar a vida dum povo e a diferença de classes.

 

O luxo e as comodidades de que goza aquela parte da população favorecida pela fortuna revela-nos aspectos que são extraordinàriamente importantes. A dificuldade está por vezes em estabelecer a comparação. Quando entramos no Convento de Mafra e constatamos a vida luxuosa que aí gozavam os 300 frades, com seus salões, sua igreja rica em cores, em estatuária e em arte musical; com seus jardins interiores e seus tanques; sua extensa mata, envolvida por uma verdadeira muralha de vinte e tal quilómetros; e damos a seguir um salto ao pequeno Convento dos Capuchos, afogado na frondosidade da floresta de Sintra, não podemos deixar de ficar asssombrados com o contraste. Que tem a ver aquelas pequeninas celas, onde não cabe um homem ao comprido, onde a altura é inferior à dum homem normal, sem cama, sem mesa, sem soalho - que têm a ver os frades de Mafra com os Capuchos de Sintra? Contudo são membros da mesma religião.

 

Se fizermos uma visita ao Palácio da Ajuda, palácio típico da primeira parte do século XIX, devemos procurar simultâneamente saber como eram as barracas onde se alojavam os pedreiros e os canteiros que nele trabalharam e ganhavam 300 réis por dia.

 

A Ajuda é um dos maiores palácios de Lisboa; tendo sido planeada a sua construção logo a seguir ao Terramoto, embora tivesse sido interrompida por váras vezes, foi depoIs decorado com estátuas e com pinturas murais em grande abundância.

 

Simultâneamente, os reis não descuravam as suas comodidades. D. Fernando, marido de D. Maria II não se limitou à sementeira e plantação do parque da Pena, para regalo de seus ócios artísticos. Escolheu uma penedia para aí mandar erguer o célebre Palácio da Pena. Em tamanho não se compara com o Palácio da Ajuda, mas o local é admiràvelmente escolhido.

 

Em Belém ergueu-se também um outro palácio, hoje residência do chefe de Estado, mais voltado para o interior, para os seus jardins do que para o Tejo que lhe fica em frente. Mas não foram só os reis a procurar na variedade de residências o que lhes faltava em preocupações e trabalho. Os grandes fidalgos do Liberalismo, construiram também os seus palácios dos quais não queremos deixar de salientar o dos Condes de Farrabo, o do Conde de Castelo Melhor nos Restauradores, hoje repartição pública, o Palácio dos Duques de Palmela ao Rato e muitos outros de menor categoria.

 

Também neste século foi construído o Teatro D. Maria II (1842-1846); completado, o Arco da Rua Augusta, erguido o monumento a Camões, o monumento dos Restauradores, o Palácio de Domingos Mendes e também o Palácio das Cortes hoje sede do Parlamento. Fora de Lisboa, alguns grandes edifícios foram erguidos, entre os quais não deve esquecer-se o Palácio das Carrancas no Porto.

 

Pode dizer-se que EM Lisboa, depois da retirada das tropas francesas, foram edificados ou remodelados completamente algumas dezenas de palácios e grandes residências.

 

Mas a aristocracia liberal não se limitava à construção de grandes edifícios: procurava mobilá-los condignamente e decorá-los com estátuas, com pinturas murais e tapeçarias. Sob este ponto de vista são notáveis os tectos do Palácio de Belém e do Palácio da Ajuda, principalmente. No Palácio da Ajuda, um dos mais notáveis salões é aquele que é conhecido pelo Salão das Tapeçarias de Goia.

 

Tem também de pôr-se a pintura e a escultura, não só a escultura religiosa com que foram decoradas certas igrejas em Lisboa mas, principalmente, as estátuas do Palácio da Ajuda.

 

Nem podem esquecer-se os jardins que no século XIX foram plantados de novo ou desenhados de forma diferente da traça primitiva.

 

Vale realmente a pena dar uma volta pela Capital, de guia em punho para se poder verificar este aspecto da vida da burguesia vitoriosa do século XIX. E uma vez saídos dos palácios e dos museus onde muito do mobiliário e até da pintura e da escultura se encontra hoje, passar pelas vielas estreitas, mal cheirosas, mal iluminadas, do Bairro Alto, Mouraria, Alfama, Alcântara, etc., para se poder estabelecer perfeitamente o contraste entre os géneros de vida das duas classes. Mas por outro lado não eram só palácios que a burguesia aristocrática erguia, eram verdadeiros bairros. Ao percorrer muitas daquelas ruas do Bairro Alto, verifica-se pelas portadas para que se é obrigado a olhar, à esquerda e à direita, a quantidade de casas encravadas na miséria geral do bairro. Um outro bairro é o da Lapa, não que se notem aí os palácios, mas simplesmente as casas apalaçadas e sólidas do género daquela em que viviam os «Maias», ilustre família que Eça tão bem soube acompanhar nas andanças da vida.

 

Uma grande parte desta burguesia aristocratizada, os Palmelas, os Ávilas, os Loulés, os Sabugosas, etc., etc., tinha as suas raízes bem lançadas nos incultos do Alentejo e nas quintas do Douro, cuja uva nem tinham o trabalho de transformar em vinho, entregando-a a peso ao comprador inglês que o fabricava e o fazia transportar em grande quantidade para Inglaterra. Não esqueçamos os Resendes, com a sua grande herdade da Corte-Condessa e a quinta no Douro que o Eça tomou como modelo, segundo parece, de Tormes da CIDADE E AS SERRAS.

 

Alguma coisa beneficiaram os artistas com esta abundância de palácios. O século XIX é uma época em que vivem alguns dos bons artistas portugueses, como Sequeira, Vieira Portuense, Pousão, Carlos Reis, Malhoa, Columbano, Soares dos Reis... Não que toda esta fidalgaria constituisse um grupo de Mecenas. Mas, como precisavam das suas residências ornamentadas, os artistas iam tendo que fazer.

 

A arquitectura, a escultura e a pintura eram assim gozadas por um número restrito de pessoas. Não existiam museus; os jardins eram privados; os palácios estavam vedados ao povo e por vezes defendidos com sentinelas armadas. Aos trabalhadores, aos pequenos comerciantes e portanto a 99 % da população estavam reservados os becos e os arredores; e, vá lá, as fachadas dos edifícios grandiosos, iluminados nos dias de festa!

 

Contudo, apesar de viverem naquelas maravilhosas residências não faziam aquela vida caseira que à primeira vista parece deveriam fazer. Aquilo que hoje tanto se recomenda como tendo sido o exemplo desses antepassados dirigentes, não corresponde a uma realidade. A única coisa que realmente se fazia era um pouco a vida de salão e quando era possível, organizarem-se festas. É isso que nos mostram os escritores, sobretudo aqueles que mais possibiliidade tinham de conhecer a aristocracia aburguesada, como por exemplo Eça de Queirós. Recordemos as recepções em casa do Conde de Gouvarinho, da D. Joana Coutinho, os serões dos Maias, etc..

 

E é através dos escritores que podemos ver também um pouco da vida desses possuidores de maravilhosas moradias.

 

 

A LITERATURA, A BURGUESIA E O POVO:

 

Cada época tem seus escritores adaptados às circunstâncias. Naturalmente, num período de guerras e conquistas, num período de expansão, os escritores não irão preocupar-se com os problemas caseiros, mesmo com os relativos à distribuição da terra, e com muito mais dificuldade, ao empobrecimento e ao enriquecimento das classes e dos indivíduos. Quando lemos hoje as crónicas de guerra dos jornais, verificamos exactamente isto: ao jornalista interessa normalmente aquilo a que é costume chamar os feitos heróicos, esquecendo quase completamente a vida das populações e por vezes as condições económicas em que se desenvolve a guerra. Nota-se uma atitude idêntica no período que estamos estudando.

 

Os problemas coloniais no século XIX apresentavam três aspectos fundamentais pelos quais a burguesia dirigente se interessava: o internacional, isto é o das relações diplomáticas a que dava lugar a expansão ultramarina; militar, isto é, o da ocupação das várias regiões e suas dificuldades; terceiro, o económico, quer dizer o da aquisição das matérias primas, comunicações, exportação de produtos manufacturados para essas regiões, etc. etc..

 

Pois os escritores do século XIX só se interessavam pelo aspecto militar do problema - batalhas, feitos heróicos incríveis, Mousinhos, Serpa Pintos, para aqui e para acolá - esquecendo os próprios relatórios elaborados por alguns desses militares que mostravam determinados aspectos das regiões que estavam a ser ocupadas militarmente, como é o caso do relatório de Mousinho de Albuquerque acerca de Moçambique. Olhavam para o herói e esqueciam uma parte da sua obra.

 

Isto quer dizer que a maior parte dos escritores do século XIX não compreendeu bem a sua época. Uns porque estão demasiado voltados para o passado e à luz do já vivido vêm aquela que vivem. É assim o Herculano da HISTÓRIA DE PORTUGAL, o Garrett do ARCO DE SANTANA e das outras obras. Não vale a pena falar em romancistas menores, género Arnaldo Gama.

 

Herculano é o primeiro grande escritor da burguesia que nos surge. É o escritor da burguesia liberal, ainda não afogada nos negócios e nos problemas financeiros de que vai sair enlameada. É o escritor da burguesia reformadora e construtora da nova sociedade. Basta ver, para nos convencermos disto, o seu estudo sobre Mousinho da Silveira.

 

Herculano é, sob o ponto de vista ideológico, um anti-absolutista: todas as instituições da monarquia de forte poder centralizado, como por exemplo, a Inquisição e a Realeza autocrática têm nele um adversário; em segundo lugar, combate o clero e a nobreza medievais, com a mesma intensidade com que no cerco do Porto se bateu contra as tropas miguelistas. Mas o Herculano vê a burguesia do seu tempo quase com os mesmos olhos com que vê aquela burguesia da Idade-Média que assalta o castelo-catedral onde se refugiam D. Urraca e o Bispo! A burguesia actual é para ele como que uma reencarnação da da Idade Média. Por isso a posição tomada perante ela, logo que percebeu as tendências e a orientação novas da parte mais popular da classe, é de incompreensão e mesmo de agressividade. Por outro lado, o mundo burguês puro morreu para ele, logo que a burguesia entrou nesse período da degenerescência a que ela dava o nome de Regeneração. Para ele só há uma burguesia - a burguesia vintista, aquela que apoiou o Imperador, aquela que está disposta a aceitar as medidas de Mousinho, aquela que mantém a integridade de carácter à Passos Manuel.

 

É guiados por estes pontos de vista que temos de ver a obra histórico-sociológica de Herculano, a que está hoje concentrada nos OPÚSCULOS.

 

Camilo é o escritor do fidalgo não aburguesado do século XVIII, ou melhor com mentalidade à século XVIII e cuja maneira de ser se choca com a nova sociedade burguesa. O romance modelo de Camilo, o AMOR DE PERDIÇÃO levanta exactamente o problema do embate de dois tipos de mentalidade: a do fidalgo na sua rigidez aristocrática, na sua severidade nobiliárquica e a do desembargador. O estudante e sua amada para quem o amor é mais forte que os preconceitos sociais, está entre os dois polos opostos. Não é pois um escritor da burguesia, quando o consideramos em função duma grande maioria das suas obras: é o escritor do período intermediário entre o velho e o novo mundo. É a esta luz que temos de o ver. E é ela mesma que nos ajuda a compreender aquela posição reaccionária e anti-reaccionária simultaneamente, aquela duplicidade ideológica que Alexandre Cabral tão bem procurou mostrar.        

 

O brasileiro de Camilo, tipo burguês do século XIX, põe-nos bem de frente os problemas que esta sub-classe levantou no país. Mas sempre aparece uma força amorosa e romântica que deforma completamente a sua personalidade, afastando-a da do brasileiro real. Sem dúvida que o Comendador Pinho do FRADIQUE nos deixa antever muito melhor que os personagens de Camilo os problemas ligados ao dinheiro vindo do Brasil, a sua aplicação na Metrópole e a vida dos seus proprietários.

 

A burguesia evoluiu, deixou de ser a classe em luta pelo poder, pela sua consolidação; para ser aquela que, urna vez senhora de todos os manípulos, procura aproveitar o melhor possível os benefícios do Iugar ocupado. Assim como o automóvel começou por ser um instrumento de trabalho e de comunicação nas coisas necessárias da vida, entrando depois na fase em que se encontra hoje de objecto de divertimento, tornando-se assim em absolutamente prejudicial sob o ponto de vista geral - a burguesia começou por ser uma classe cuja severidade de princípios e de costumes, encarnada em Herculano, Mousinho, Fernandes Tomás, Passos Manuel, se foi transformando naqueles barões de que falavam o Herculano e o Garrett, mas com o volume dos Maias, dos Abranhos, dos Burnays, dos Moser, dos Marianos de Carvalho - dos grandes banqueiros afidalgados e politizados dos últimos 30 anos do século.

 

E os escritores que estudam esse tipo de sociedade, a sociedade burguesa desta fase são Eça de Queiroz e Teixeira de Queiroz.

 

Teixeira de Queiroz, descobrindo os personagens, não conseguiu dar-lhes roupagem literária, de maneira a torná-los representativos da época como são os de Eça; não conseguiu que a forma literária correspondesse à realidade dos personagens principais. O seu Salústio que é o tipo do político ao serviço da Alta-Finança a estender as garras para o ultramar, sendo um personagem real não se encontra envolvido contudo naquele conjunto de probIemas e situações que dão à obra literária a sua feição própria.

 

Igualmente, aquele amor pelo próximo que se encontra em CARIDADE EM LISBOA, as reuniões, as festas, as recepções de caridade onde aquelas senhoras gastam o seu tempo e os seus ócios, estando realmente certo, sob o ponto de vista da realidade - e ainda nenhum escritor o tinha focado, nem outro voltou a fazê-lo com o desenvolvimento que ele lhe deu - não tem os elos de ligação suficientes e bem definidos com os outros aspectos da sociedade.

 

O grande escritor da burguesia, no seu período áureo, da burguesia decadente, devassa, cansada já, aristocratizada, é o Eça de Queiroz.

 

Todos os seus personagens nem são de épocas anteriores nem se encontram deslocados por uma ideologia, por esperanças no futuro, para o qual não estejam já abertos largos caminhos. Os seus políticos, os Gouvarinhos, os Abranhos, os Ribamar, os Sousa Neto, os Pachecos são verdadeiramente, - pela sua ignorância, pela sua afectação, pelo luxo em que vivem, - os representantes do político posterior ao Fontismo. As grandes senhoras dos seus livros são também, tanto quanto nós podemos saber acerca da vida da Corte, as grandes damas do reinado de D. Luís.

 

Eça foca também um pouco a vida da pequena e média burguesia das cidades.

 

Quase todas as figuras do CRIME DO PADRE AMARO, do PRIMO BASÍLIO e até as da RELÍQUIA são da média burguesia. E nós vemos como os seus problemas, as suas dificuldades são agravadas pelo ambiente de dissolução criado pela alta burguesia dirigente. Os padres do Eça são de variado tipo, mas todos eles com qualquer coisa de comum, são funcionários do Estado, sem ligação absolutamente nenhuma com os problemas religiosos. Sob este ponto de vista o mais típico é o horrendo padre Salgueiro como lhe chamava o frade de Varatojo: cumpridor dos seus deveres, casto, com aspirações a subir de categoria como funcionário de qualquer repartição. Em resumo, Eça de Queiroz é o observador e o crítico da burguesia no período máximo da sua escalada; Herculano, corresponde à burguesia na sua fase de iniciação da luta contra a tirania da velha sociedade. Assim como Herculano tem os olhos postos no passado, como um exemplo e como primeira fase da criação e desenvolvimento da classe burguesa, Eça de Queiroz põe os olhos numa organização social, num futuro à vista, para os olhos iluminados de S. Cristóvão.

 

Mas, de qualquer maneira, estes escritores estão virados para a burguesia e apenas para a burguesia.

 

Realmente Eça olha para o futuro; mas não vê ainda bem o que o há-de construir, nem como há-de ser construído: algures, ao virar-se para os operários, durante qualquer pequena agitação do seu tempo, recomenda-lhes que trabalhem, que não escrevam, porque isso de escrever pertence aos escritores!...

 

Mas há de facto quem esteja virado para o futuro de modo construtivo e não apenas duma forma vaga e abstracta.

 

São, em primeiro lugar, aqueles que se preocupam com as reformas da instrução, com a adaptação dos programas às necessidades populares; com a crítica às instituições culturais burguesas no sentido de estarem adaptadas apenas a uma elite. São ainda aqueles que propõem reformas de ensino no sentido de uma melhor metodologia; no sentido da adaptação às dificuldades que têm as crianças na aprendizagem da leitura e de tudo aquilo que está ligado com o ensino.

 

Pensadores virados para estes assuntos pedagógicos, quer sejam pedagógico-culturais, quer sejam de metodologia e didática são: D. António da Costa, pelos seus estudos sobre a evolução da instrução primária e pelas suas propostas de reforma; António Feliciano de Castilho, resmungão e reaccionário, sob o ponto de vista literário, como se sabe das suas intervenções no problema da Questão Coimbrã, mas preocupado com a aprendizagem da leitura de que fornece alguns elementos imitados, que a facilitem; João de Deus, não só pela CARTILHA MATERNAL mas pelo que escreveu acerca dela; Manuel Bento de Sousa, o autor do DOUTOR MINERVA, pela análise que faz dos institutos de cultura e dos objectivos mecânicos, digamos assim, que eles têm em vista.

 

Todos estes escritores têm a preocupação de alargar os conhecimentos, torná-los acessíveis - propositadamente ou não - criar cidadãos, colaborando assim na organização de um regime democrático, de um regime em que fossem suprimidas as classes: suas críticas, seus métodos, seus objectivos pressupõem a igualdade de todos, perante a leitura, perante a cultura.

 

Há um outro grupo de escritores - não de poetas nem de romancistas ou novelistas - mas de estudiosos de assuntos de economia e de sociologia.

 

Estes escritores pela objectividade que revelam, pela relacionação dos assuntos económicos com os sociais e os políticos, pela sua igual consideração por todos os indivíduos, sejam de que classe forem - merecem um lugar à parte na enumeração que se está fazendo. O mais antigo de todos não falando já nos economistas da Academia é, sem dúvida, Mousinho da Silveira; o que fica mais próximo de nós, tendo chegado à República, é Basílio Teles. Mousinho da Silveira é um reformador cujos decretos são normalmente acompanhados de preâmbulos que revelam o estudo profundo da sociedade portuguesa do seu tempo. Mousinho da Silveira propõe, em duas palavras, a organização duma sociedade pequeno-burguesa, com base numa agricultura nova, saída da nacionalização da grande propriedade clerical e aristocrática.

 

Basíio Teles, no fim da monarquia visto que os seus estudos são quase todos dos últimos anos da monarquia - depois duma análise da vida dos campos, que inclui a alimentação dos camponeses, as suas habitações, os seus salários, a evolução de todas estas coisas nas últimas dezenas de anos, não propõe reformas, porque não é um político, mas faz recomendações, chegando mesma a apontar a necessidade de expropriação do inculto, e os incultos, no seu tempo, continuam a ser de 44 % do território português.

 

Entre estes dois extremos, encontramos os estudos de Fradesso da Silveira, José Ferreira Borges, o autor do Código Comercial e do DICIONÁRIO JURÍDICO-COMERCIAL que nos põe perfeitamente ao par de toda a complexa actividade jurídico-comercial; Rodrigues de Freitas, sociólogo, economista e talvez dos poucos contemporâneos que conhece qualquer coisa de Carl Marx; Delfim de Almeida, cuja obra de análise económico-financeira do período de 1850-1870 é fundamental; Roque da Costa que estuda principalmente os anos entre 1890 e 1908, sob o ponto de vista económico e financeiro; etc. etc..

 

Pomos num lugar à parte os estudos económicos e sociais de Oliveira Martins; não porque eles valham mais do que os outros seus contemporâneos, mas exactamente pelo perigo de representarem a opinião da ciência económico-social do seu tempo, quando afinal são fundamentalmente uma arma para as suas ambições, escondida atrás duma modéstia simplesmente aparente.

 

A obra destes economistas pressupõe a igualdade de todos e a Constituição duma sociedade futura com base nessa igualdade. Que nos interessa que um reaccionariozito actual considere como sendo dos seus um Silva Cordeiro? Interessa sim, é o seu contributo para o conhecimento de determinados aspectos do povo português.

 

Colocando-nos, portanto, dentro deste ângulo, consideramos esta equipe de economistas-sociólogos, constituída por muitas dezenas de estudos, ainda por conhecer da maior parte daqueles que se têm dedicado à história do século XIX.

 

Mas, quando se pretende auxiliar as condições em que o povo trabalhou, lutou, se foi organizando lentamente, durante o século XIX, então descobre-se o merecimento daqueles que não olharam só para os progressos bancários mas se voltaram, alternadamente, para as duas classes em luta. Porque só assim se podiam ver os passos que a nova classe trabalhadora estava dando em frente, os erros cometidos e o rasgar dos caminhos a seguir.

 

Não queremos acabar este capítulo sem fazer referência a alguns escritores que se dedicaram a assuntos de carácter científico e muito contribuíram, por um lado, para a difusão das novas correntes sociais, por outro, para o desmascaramento daqueles que, dizendo-se cultores e praticantes da ciência, no fundo, apenas queriam encontrar nela armas para combater a nova classe trabalhadora e aquela parte da burguesia mais em ascensão.

 

Entre estes, Júlio de Matos, muito conhecido pelos seus estudos neurológicos e psiquiátricos, Maximiliano de Lemos, Miguel Bombarda, etc..

 

Chamamos a atenção para a obra de Miguel Bombarda, da qual talvez o aspecto mais importante seja o da polémica travada em favor da nova ciência biológica, contra os seus detractores, género de Fernandes Santana.

 

O seu materialismo é ainda um materialismo mecanicista; mas o seu combate é o de um homem que compreende perfeitamente os fenómenos da evolução e que actua de certa forma como um dialecta, ao ocupar lugar na frente da batalha política pela República.

 

 

 

Flausino - História Contemporâna

 

 

(*) Alertado para que estaria iminente a sua prisão, Flausino Torres mergulha na clandestinidade de Junho a Dezembro de 1965, primeiro em casas de apoio na zona do Porto e depois escondido em sua própria casa, em Tondela. É nestas precárias condições que ele vai ditar algumas obras, cujo manuscrito deixará ao cuidado de amigos antes de partir para o exílio. Seriam publicadas pela Portugália e pela Prelo ao longo dos anos seguintes, sem qualquer revisão do autor. Entre essas obras está História Contemporânea do Povo Português, publicada em três volumes pela Prelo Editora entre 1968 e 1971. Reproduzimos aqui apenas o preâmbulo e dois capítulos do primeiro volume. É a primeira tentativa portuguesa de ensaiar uma história popular ou a partir de baixo. Por essa altura ainda nem E. P. Thompson tinha cunhado esse conceito. No entanto, havia desde 1938 o exemplo charneira de A People’s History of England, do historiador marxista Arthur Leslie (A. L.) Morton, publicado pelo Left Book Club e que Flausino provavelmente conhecia desde os seus tempos de colaborador da Universidade Popular Portuguesa em Lisboa. Quanto à“contemporaneidade” da obra, ela é sobretudo mais uma excursão ao ingrato terreno do século XIX e da instauração do liberalismo, que por essa altura ocupava ainda com afinco outros marxistas portugueses, como Piteira Santos, Victor de Sá ou José Manuel Tengarrinha.

 

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NOTA:

 

(1) Segundo Roque da Costa, em 1902 a capitação de carne, sòmente de carne, não incluindo os derivados, tinha aumentado muito, porque era então de 20 quilos anuais, com excepção de Lisboa onde era de 41 quilos.

Em relação com dezassete países europeus, apesar de ser de 20 quilos era ainda a penúltima. Nessas capitações apenas a Itália tinha o último lugar - 11 quilos. A mais alta era então a da Inglaterra, com 50 quilos.

O trigo importado, foi volta de 45.000 toneladas. E sempre continua a importar-se em quantIdades enormes. Entre 1900 e 1907 foi durante cinco anos, superior a 90 000 toneladas; durante três anos, superior a 100.000 toneldas e apenas no ano de 1902 é que foi reduzida a importação – 9.000 toneladas. No entanto continuam a existir à volta de 4 milhões de hectares de incultos.

O consumo de açúcar foi aumentando, e portanto a importação aumentou também: em 1906 já é de mais de 32.500 toneladas e em 1907 é de quase 33.000 toneladas. A capitação é pois muito mais elevada, quase atinje o dobro, embora a população seja já de 5 milhões e meio. Mesmo assim ainda não passa de 6 quilos!