O Estado e a esquerda

 

 

Prabhat Patnaik (*)

 

 

A atitude maoísta para com o Estado indiano é clara: empenhados numa luta armada para o derrube desse mesmo Estado, os maoístas vêm-no como seu inimigo. O que dizer, contudo, acerca daquele segmento da esquerda que não está empenhado na luta armada mas participa em eleições parlamentares, que por vezes constitui governos ao nível de estado e que actua de acordo com a Constituição? Será que ele considera aceitável o Estado indiano? E uma vez que, de acordo com a sua análise, este Estado é um Estado burguês (ou um Estado "burguês-latifundiário"), comprometido com a defesa da propriedade capitalista, será que a "esquerda parlamentar" reconciliou-se então à preservação do sistema capitalista na Índia?

 

Embora haja muitos que responderiam a esta pergunta pela afirmativa, a própria esquerda negaria veementemente esta acusação. Ela argumentaria que permanece tão comprometida como sempre com o derrube do capitalismo e do Estado burguês e que aceitar o Estado indiano burguês (e ocasionalmente, mesmo, a ser parte dele, uma vez que governos estaduais não estão fora do âmbito do Estado), é apenas um meio de operar a partir de dentro da ordem, para obter o necessário apoio popular para derrubar essa mesma ordem. E para obter este apoio, ela opera não só na arena parlamentar como também em outras esferas onde procura fortalecer movimentos populares.

 

Este foi o argumento que o ainda não dividido Partido Comunista da Índia avançou quando apelou à cessação da luta armada em Telangana e, em 1952, disputou as primeiras eleições gerais no país, sob a nova Constituição (1). Contudo, este argumento provoca uma imagem bizarra, de um partido pacientemente "à espera", ou a trabalhar diligentemente em direcção ao desenlace, onde receberá como prémio o apoio público adequado, um tanto como o "virtuoso" que recebe um prémio no "dia do julgamento". Uma tal imagem é obviamente inaceitável para a esquerda, o que significa que este argumento não pode ser tão simples; ele tem de ser complementado por um argumento mais amplo. Este argumento mais amplo pode, na minha opinião, ser esboçado como se segue.

 

O Estado burguês não é uma coisa imobilizada. Ele pode assumir perfis e aparências diversas. Uma ditadura fascista é tanto um Estado burguês (onde monopólios estão directamente envolvidos com o exercício do poder do Estado), como um "Estado Providência" social-democrata, uma vez que ambos estão comprometidos com a defesa e promoção da propriedade capitalista. Por outras palavras, a forma e o conteúdo do Estado burguês muda ao longo do tempo e esta mudança é conduzida por dois factores: um são as mudanças "espontâneas" que ocorrem na natureza do capitalismo, as quais a esquerda acredita estarem a ascender a partir das tendências imanentes do capital, a partir da lógica interna do seu funcionamento, tal como o capitalismo da "livre competição" do tempo de Adam Smith deu lugar ao capitalismo monopolista; o segundo factor é o grau de resistência e a pressão popular que é aplicado sobre o Estado.

 

O capitalismo, tipicamente, quer que a intervenção do Estado seja para promover e fomentar a lógica interna do seu funcionamento, ao invés de a contrariar. Ele está continuamente a tentar assegurar que a pressão popular sobre o Estado seja mantida sob controle, que a necessidade para o Estado de adoptar medidas em resposta aos desejos do povo e contra as exigências do capital seja anulada. Em suma, ele está sempre a tentar atenuar a democracia.

 

Este facto por vezes é articulado abertamente. Em 2006, por exemplo, quando o governo Vajpayee na Índia venceu as eleições, The Wall Street Journal lamentou este desenvolvimento e, candidamente, observou que não se deveria permitir que só o eleitorado escolhesse o governo. Ao invés, todos os "participantes" ("stakeholders"), incluindo "investidores", deveriam ter uma palavra na matéria! Mais recentemente, na Europa, na esteira do referendo na Grécia, o eleitorado foi descrito como uma "inconveniência" pelos porta-vozes da finança.

 

Naturalmente, mudanças tais como a de 2006, não afectam necessariamente os "investidores". O governo seguinte, desde que não afaste o país do turbilhão dos fluxos financeiros globais (que a globalização, resultado da lógica de funcionamento do capital, necessariamente implica), é constrangido, depois de vencer as eleições, a prosseguir as mesmas políticas do governo cessante, por medo de que qualquer desvio das mesmas ofenda o capital financeiro e, com isso, provoque saídas de capital e uma crise financeira. Mas isto apenas sublinha o facto de que os caprichos do capital financeiro sobrepõem-se às exigências do povo numa economia exposta aos fluxos financeiros globais, isto é, que uma tal exposição atenua a democracia. Não importa quem o povo eleja, não importa que compromissos foram assumidos junto ao povo antes das eleições, o governo recém-eleito necessariamente trai estes compromissos desde que retenha as mesmas ligações externas do anterior (como o Syriza, na Grécia, acabou recentemente de demonstrar).

 

Mas com êxito ou não, a resistência do povo actua como um contrapeso contra esta tendência "espontânea" do capital para atenuar a democracia e, em certas conjunturas específicas, ela demonstra mesmo ser mais poderosa. O período do pós-guerra na Europa – quando a resistência interna da classe trabalhadora (Winston Churchill, recordem-se, perdeu as eleições britânicas efectuadas imediatamente após a guerra devido ao horror da classe trabalhadora em relação às suas políticas sócio-económicas) e o temor do Comunismo, forçou o capital a fazer concessões – é um exemplo óbvio de uma tal conjuntura. A "gestão da procura" keynesiana e o "Estado Providência" foram os seus produtos.

 

Por outras palavras, naquele período o Estado burguês, sem deixar de ser um Estado burguês, foi empurrado numa direcção providenciária (welfarist) sob a pressão popular e contra os desejos da própria burguesia. Numa data posterior, com o capital tornando-se globalizado em consequência das suas próprias tendências imanentes, nem o poder do Estado-nação nem o do movimento da classe trabalhadora (o qual continua a ser organizado em bases nacionais) foi suficientemente poderoso para impedir a imposição da sua agenda. A "espontaneidade" do sistema reafirmou-se, livrando-se da interferência do Estado contra a sua lógica inerente, a qual dirige-se para o enfraquecimento da resistência e dos direitos dos trabalhadores, para a criação de um exército de reserva de trabalho, para repelir o Estado providência e para uma atenuação da democracia.

 

Uma vez que as tendências espontâneas do capital são sempre para pressionar o Estado burguês em direcção ao autoritarismo, a defesa e aprofundamento do seu conteúdo democrático, através da mobilização da resistência popular, torna-se uma tarefa da esquerda. A esquerda, portanto, não está preocupada apenas em calmamente reunir suas forças dentro do corpo de alguma entidade imobilizada (fixed) chamada Estado burguês, até que estas forças se tornem suficientemente fortes para derrubar aquele Estado. Ela está preocupada em defender a todo momento o conteúdo democrático do Estado burguês contra a tentativa da própria burguesia de corroer esse conteúdo.

 

Dito de modo diferente, dentro do objectivo estratégico global de substituir o Estado burguês existente, defender o conteúdo democrático do sistema político-constitucional, contra a tentativa da burguesia para empurrá-lo numa direcção mais autoritária, torna-se uma táctica essencial na luta para a ultrapassagem do Estado burguês. Isto acontece porque tal luta em defesa do conteúdo democrático do Estado burguês também se torna uma luta contra os escalões dominantes da burguesia que estão por trás do ímpeto autoritário.

 

Na verdade, paradoxalmente, defender o que quer que exista de conteúdo democrático no Estado burguês é uma intervenção poderosa e eficaz no combate global contra o Estado burguês. Isto acontece porque este modo de superar o Estado burguês actua como uma garantia contra a imposição, numa data posterior, de qualquer nova espécie de autoritarismo, de qualquer ditadura totalitária. E isto envolve, em todas as etapas, mobilizar grandes massas de povo, junto com outras formações políticas que também se oponham ao autoritarismo, o que lhe dá uma potência muito maior.

 

Tudo isto é vivamente ilustrado na actual situação indiana. Para executar "reformas" neoliberais tais como tomar terras de camponeses sem o seu consentimento (um exemplo daquilo que Marx chamou de "acumulação primitiva de capital") e introduzir "flexibilidade no mercado de trabalho" (o que significa reduzir os direitos e a resistência dos trabalhadores), que estão de acordo com as tendência imanentes do capital, a Índia patronal apoiou nas últimas eleições uma formação política suportada por uma organização comunal-fascista cujo objectivo confessado continua a ser a criação de uma "Nação Hindu" ("Hindu Rashtra"). Esta aliança patronal-comunal que alcançou o poder já está a desviar o país bastante significativamente numa direcção autoritária. É importante, nesta conjuntura, que ao invés de menosprezar qualquer conteúdo democrático que exista dentro do Estado, tratando-o como "impostura", a esquerda defenda este conteúdo democrático do Estado burguês. O conteúdo democrático do Estado burguês, por outras palavras, torna-se um terreiro para a luta de classe. Só defendendo a democracia a esquerda pode esperar transcender o sistema.

 

 

20 de setembro de 2015

 

 

 

(*) Prabhat Patnaik (n. 1945) é um economista marxista e reputado comentarista político indiano. Natural do Estado de Odisha, o sistema de bolsas permitiu-lhe prosseguir estudos até ao doutoramento na Universidade de Oxford, tendo ensinado também em Cambridge. De regresso à Índia em 1974, foi professor na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, até à sua recente jubilação. De 2006 a 2011 serviu como vice-presidente do Comité de Planeamento do Estado de Kerala. É editor da revista Social Scientist e autor de numerosos livros, dentre os quais: Time, Inflation and Growth (1988), Economics and Egalitarianism (1990), Whatever Happened to Imperialism and Other Essays (1995), Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Retreat to Unfreedom (2003), The Value of Money (2008) e Re-envisioning Socialism (2011). O original deste artigo foi publicado na revista People’s Democracy, Vol. XXXIX, Nº 37, 20 de setembro de 2015. Tradução de Jorge Figueiredio revista por Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS DO EDITOR:

 

(1) A revolta de Telangana foi um levantamento camponês contra os senhores da terra (jagirdars and deshmukhs) nesta região e contra o principado de Hyderabad, no coração da Índia. Durou entre 1946 e 1951, contando com o apoio do Partido Comunista da Índia (PCI). A independência da Índia ocorreu em 1948, mas os senhores de Hyderabad tentaram resistir à incorporação na nova nação, o que levou à sua ocupação pelo exército indiano. O prestígio ganho pelo PCI na luta de Telangana levou-o à vitória nas eleições de 1952 no estado de Andhra Pradesh.