Introdução

 

 

 

Afinal o governo português, por imposição de Angela Merkel, finge decidir-se por uma “saída limpa” do programa de resgate financeiro tutelado pela troika. Teremos juros altos, transferências financeiras de saque e uma acumulação descontrolada de dívida. A austeridade ficará aí para os próximos trinta anos, com salários e pensões cada vez mais baixos, privatizações, eliminação das prestações sociais e dos serviços públicos. A população portuguesa deverá baixar em um terço. No Brasil, ao que parece, vai ter copa. Mas a cidadania crítica, a ética da inclusão social e a exigência de serviços públicos de qualidade são novos dados que, caso se consolidem, podem vir a redefinir em novos moldes o compromisso republicano. Em Moçambique sopraram novamente os ventos da morte, mas aparentemente foi mais forte o apego a uma democracia ainda embrionária. Na Ucrânia, como já antes na Síria-Líbano-Irão, o imperialismo norte-americano dá mostras de ser forte, como sempre, a fomentar e propagandear a guerra, mobilizando para o efeito, sem qualquer pejo, fanáticos islamistas ou bandos de arruaceiros nazis. Incarateristicamente, mostra-se agora indeciso na hora da passagem a acto. Todavia, a crise aperta e a besta vai espreitando.

 

Abrimos este número de O Comuneiro com uma reflexãodo nosso colaboradorIvonaldo Leite, que muito bem define e carateriza o nosso projeto editorial, postulador de uma crítica radical da racionalidade económica dominante, entendida como gravemente mutiladora da essência criativa e convivial própria da genuína experiência humana. O nosso editor Ângelo Novo presta tributo ao jovem Edward Snowden, herói do nosso tempo, procurando caraterizar o que está em jogo com as suas extraordinárias revelações, na encruzilhada histórica em que nos encontramos.

 

João Esteves da Silva é um pensador compulsivo sobre o que é próprio do homem. Em diálogo inteletual cerrado com Dany-Robert Dufour, oferece-nos desta feita um extenso e luminoso ensaio de combate aos novos transmutadores de valores no sentido da superação do humano. A ciência é demasiado importante para poder ser deixada entregue a si própria, podia ser o lema do ensaio de Marcos Barbosa de Oliveira. A verdadeira autonomia da ciência deve ser buscada no diálogo com os outros saberes sociais, no âmbito de uma cidadania autêntica e livremente assumida, que liberte a natureza das agressões da instrumentalidade mercantil.

 

Luciano Vasapollo é um atento analista dos processos de transição ao socialismo encetados na viragem para o século XXI, nos países integrantes da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA). E sobre eles não deixa de se buscar inspiração para possíveis processos de ruptura sistémica na periferia euro-mediterrânica. Completamos um ano sobre a morte de Hugo Chávez, descobrindo com algum alívio que é possível sustentar a luta pelo socialismo sem a sua presença excecional. Miguel Judas traça-nos um percurso da revolução bolivariana, devidamente enquadrada nos novíssimos desafios da luta emancipadora dos povos. Um dos desafios que permanece, ainda que transfigurado, é o da apropriação das condições de produção e reprodução da vida social, no campo como nas cidades, conforme nos dá conta o artigo de José Brendan Macdonald.

 

O geógrafo David Harvey é um sage encantador como existem poucos hoje em dia. Na sua entrevista que reproduzimos neste número de O Comuneiro, partindo do seu livro ‘Rebel Cities’, ele fala-nos nas cidades do passado e do presente como experiências de vida e de luta, como hipóteses de atualização para as aspirações ancestrais a uma vida melhor, mais digna, mais autónoma e mais responsável para quem trabalha.

 

A Danilo Martuscelli devemos um esforço muito abrangente para fazer o ponto da situação num debate de suma importância e atualidade: há ou não uma burguesia mundial coalescente a partir das antigas burguesias nacionais? A sua conclusão é no sentido contrário às teses globalizadoras, por razões de que nos dá conta com grande clareza e detalhe. Muito proximamente relacionado com este está o debate sobre o imperialismo. Virgínia Fontes foi buscar à inspirada ficção de Jack London a descrição de processos sociais com curiosos paralelos com a atualidade. A partir daí procura indagar o que está vivo e como vive, nos dias de hoje, a teoria do imperialismo da idade clássica do marxismo, há cem anos.

 

Quando se desencadeou a atual agressão social austeritária (um neologismo feliz que combina austeridade com autoritarismo), foi-nos dito que ela constituía uma resposta de emergência às réplicas e sequelas da crise dita financeira de 2008. É por isso curioso reler o ensaio de Jacques Généreux que aqui publicamos, datado de 2007, em que ele faz uma descrição exaustiva e ilustrada do credo e das práticas da nova direita francesa, reportada à altura da passagem de testemunho entre Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. Não há nada de novo, exceto talvez o aproveitamento cínico da oportunidade para pôr em prática a “doutrina do choque” descrita por Naomi Klein.

 

Agradecemos toda a divulgação possível do conteúdo deste número do O Comuneiro, nomeadamente em listas de correio, portais, blogues ou redes sociais de língua portuguesa. Comentários, críticas, sugestões e propostas de colaboração serão benvindos. Agradeceríamos em particular a ajuda voluntária e graciosa de tradutores.

 

 

 

Os Editores

 

Ângelo Novo

 

Ronaldo Fonseca