A propósito de conceito de lógica liberal

 

 

 

Jean-Claude Michéa (*)

 

 

 

Os nossos Belinsky e os nossos Granovsky não acreditariam se lhes disséssemos que são os pais directos de Netchaiev e dos seus discípulos. Foi este parentesco, esta permanência da ideia que se transmite de pais para filhos que procurei exprimir na minha obra. Não o consegui nem de longe, mas trabalhei nisso com cuidado.”

 

Dostoiëvsky, Les Possedés, Gallimard,

Col. Folio, 1979, tomo I, p. 26

 

 

 

 

Juntar uma multiplicidade de autores e de obras sob uma categoria filosófica comum constitui sempre uma operação complexa. Em primeiro lugar porque a percepção das diferenças precede geralmente a dos pontos comuns (1). Em seguida porque é só com o tempo que aquilo que está implícito historicamente numa nova maneira de pensar pode emergir com clareza. Também aqui. Como Marx havia sublinhado, a anatomia do homem é chave da anatomia do macaco; só à luz das ideias de um Gary Becker ou de um Milton Friedman é que podemos definitivamente medir o conjunto das potencialidades filosóficas de que a obra de Adam Smith ou de Turgot era portadora.

 

É, pois, claro que um conceito como o de “lógica liberal” só poderia ser forjado a posteriori e releva muito menos da história das ideias filosóficas em sentido estrito (o que disseram verdadeiramente Benjamin Constant ou Tocqueville) do que do estudo das interacções concretas entre as ideias e o movimento histórico real. É apenas a este título que um conceito deste tipo pode revelar-se teoricamente útil. Ser-nos-ia muito difícil apreender as razões pelas quais “os problemas se multiplicam em número e se acentuam em intensidade à medida que a sociedade se torna, pelo seu movimento próprio, cada vez mais abertamente ilimitada” (2) se não tivéssemos já apreendido, a montante, as condições filosóficas de “um processo que não poderia conhecer princípio de travagem, nem no tempo nem no espaço, nem nos objectos nem nas pessoas” (3). Ora, o axioma liberal de “neutralidade axiológica” – isto é, a hipótese segundo a qual seria tecnicamente possível definir as regras de uma vida comum pacificada sem mobilizar uma única representação subjectiva da “salvação da alma” ou da “vida boa” (A) – responde, a meu ver, a este tipo de exigência estrutural.

 

Na verdade, é ele que aparece como o princípio da unidade última de todos os liberalismos efectivamente existentes – quaisquer que sejam, por outra parte, as evidentes diferenças secundárias. Se a nenhum indivíduo pode ser imposto, seja por quem for (Estado, Igreja, ou outros indivíduos) a mais pequena definição positiva do que seria um comportamento decente ou conforme ao bom senso – e essa é definitivamente a essência mesma da liberdade para todos os liberais - isso implica apenas a adesão prévia aos dogmas do relativismo cultural ou a uma teoria pós-moderna da desconstrução. Implica também que a liberdade individual – uma vez que não pode ser submetida a nenhum valor moral ou filosofia comum – não pode encontrar os seus eventuais limites, a não ser na liberdade correspondente de outros indivíduos (sendo que a liberdade de um termina onde começa a liberdade dos outros) Do ponto de vista liberal, portanto, só a liberdade pode limitar a liberdade.

 

É pois uma e a mesma coisa afirmar que as noções de virtude e de vida boa não possuem nenhum significado universalizável e sustentar que a liberdade – assim tornada o único marcador simbólico da condição humana – não exige qualquer compromisso particular e constitui, por si mesma, o único critério do seu próprio exercício (um ponto que está evidentemente no cerne da filosofia sartreana). “Neutralidade axiológica” das regras da vida pública e “liberdade” (como direito e poder de definir arbitrariamente os seus próprios valores individuais) demarcam, por consequência, os dois rostos de uma mesma realidade. De onde a insistência dos liberais em sustentar que os mecanismos da livre concorrência e do Direito processual não se baseiam sobre nenhum princípio metafísico particular. Segundo dogma oficial, trata-se de simples dispositivos técnicos cujo anonimato e neutralidade permitem conjurar - ou corrigir em tempo real - os efeitos desta rivalidade mimética das liberdades egoístas que definem – no paradigma moderno – o horizonte insuperável da sociedade civil. Uma vez aceite este postulado, o problema dos limites indispensáveis a qualquer sociedade humana pode, então, receber uma solução racional sem que nenhum atentado seja cometido à liberdade inalienável dos indivíduos.

 

Originariamente, nenhum pensador liberal teria sonhado celebrar na ilimitação absoluta a conclusão normal dos seus axiomas políticos. Longe de fazer apelo a um mundo sem fronteiras - integralmente desterritorializado e desprovido de todo o “princípio de travagem” (4) - os pioneiros do liberalismo (tanto politico como económico) consideravam-se espíritos realistas e moderados. É inclusivamente o seu sentido dos limites e a sua ausência de ilusões sobre a natureza humana que colocariam definitivamente a humanidade ao abrigo da hubris e do entusiasmo próprio dos fanatismos ideológicos e religiosos.

 

Nestas condições, como compreender esta curiosa dialéctica descendente da inteligência liberal que a conduz sistematicamente de Adam Smith a Milton Friedman de Madame de Staël a Laurence Parisot ou de Benjamin Constant a Daniel Cohn-Bendit? É evidente que nenhuma resposta plausível pode ser dada a esta questão se não for introduzido o conceito de “lógica liberal”, isto é, a ideia de um sistema de constrangimentos teóricos suficientemente coerentes para induzir, por si mesmos, efeitos destinados a estenderem-se muito para além das intenções iniciais dos pais fundadores (5).

 

De facto, como toda a gente pode facilmente verificar, os primeiros textos da tradição liberal continuavam a apoiar-se largamente – à imagem da pomba de Kant – sobre todo um jogo de referências (as famosas “jazidas culturais” de Castoriadis) cujo uso poderia ser imediatamente desacreditado pela axiomática que procuravam estabelecer. No contexto de uma civilização ainda largamente “pré-moderna”, estas virtudes tradicionais apareciam com uma evidência tão massiva que a sua recorrente mobilização filosófica permanecia invisível aos olhos dos próprios teóricos liberais (na época só o marquês de Sade era suficientemente louco para imaginar, por antecipação, todas as implicações de um liberalismo inteiramente desenvolvido – o que, de passagem, explica o facto de Sade se ter tornado tão rapidamente um do autores de culto da extrema esquerda liberal francesa) (B).

 

O problema reside em que a partir do momento em que os princípios liberais começam a ser tomados a sério na sua integralidade - quer dizer, a partir do momento em que toda a referência a estes valores ou axiomas filosóficos tacitamente admitidos vai sendo metodicamente banida da reflexão económica e jurídica (e é aqui que a esquerda e a extrema-esquerda liberais entram em jogo) - a gestão trocquevilliana dos conflitos das sociedade vai rapidamente revelar-se problemática – e modelo da fuga para a frente aparece como o único modo de resolução possível dos problemas de sociedade assim criados (C).

 

É precisamente esta radicalização de esquerda do liberalismo (ou, mais exactamente, o facto de que o liberalismo tenha acabado por desenvolver historicamente toda a gama das suas implicações lógicas) que constitui uma das origens principais do presente mal-estar da civilização capitalista. A dupla lógica do Mercado auto-regulado e do Direito processual só pode, de facto, realizar-se de modo coerente decompondo, uma por uma, todas estas estruturas elementares da solidariedade tradicional (a família, a aldeia, o bairro, etc.) que tinham, até então, constituído a principal condição de possibilidade antropológica do senso comum e da moralidade popular, dito de outro modo, aquilo que Orwell chamava a common decency (6)e que os universitários “pós-modernos” preferem descrever nos tempos que correm, como um conjunto de valores e atitudes “conservadoras” ou “reaccionárias”, próprias – segundo eles – dos “pequenos brancos racistas” e dos redneks que desde sempre constituíram, juntamente com o camponês tradicional, os eternos bodes expiatórios da inteligência iluminada (D).

 

É pois de um modo perfeitamente lógico que a subordinação progressiva da vida humana aos mecanismos paralelos e complementares do Direito abstracto e do Mercado auto-regulado acaba por conduzir (a menos que um movimento político venha contestar este domínio duplo a partir de uma lógica diferente) à eliminação, um a um, de todos os “princípios de travagem” sobre os quais repousavam (embora impensadamente) os primeiros liberais (E). Pode, portanto, deduzir-se que existe necessariamente um limiar histórico a partir do qual a lógica liberal já terá acumulado uma autonomia suficiente (graças, entre outra coisas, ao apoio de novas categorias sociais profissionalmente ligadas ao enquadramento técnico, cultural e “humanitário” do capitalismo de consumo) para se encontrar em estado de reproduzir, por si mesma, as condições materiais, imaginárias e simbólicas da sua própria expansão (sob reserva, mais uma vez, de que ninguém se organize para lhe fazer frente).

 

Atingido este limiar, a commercial society do simpático Adam Smith ou o sábio equilíbrio institucional de um Guizot estarão prontos para ceder o seu lugar – “sobre o fundo de um habitat vertical e das tecnologias de vanguarda – e este Estádio Dubai do capitalismo, onde a convergência de diversas etapas intermédias do desenvolvimento económico engendrou uma síntese perfeita do consumo, diversão e urbanismo espectacular numa escala absolutamente faraónica” (7). Em termos hegelianos, o liberalismo “encontrou o seu conceito” e tornou-se “para-si” o que era “em-si”.

 

Se fosse necessário resumir os princípios de um uso fecundo do conceito de “lógica filosófica” proporia que se mantenham presentes ao espírito as seguinte distinções, cujo carácter escolástico estou pronto a reconhecer:

 

(a) As intenções iniciais dos Pais Fundadores de uma lógica (F).

 

 (b) Os axiomas que lhes permitiram configurar esta lógica. No caso do paradigma moderno são aqueles que contribuíram para construir o ideal da Ciência ou a apresentar a neutralidade axiológica das normas políticas como a única condição realista susceptível de pôr termo às guerras da religião. No interior desta lógica, o projecto cartesiano de um domínio total da Natureza constitui evidentemente um lema decisivo – ou seja, uma tese anexa que é impossível dispensar se pretendemos desdobrar o programa liberal de um modo consistente. A lógica liberal - enquanto subconjunto da lógica da modernização - conduzirá a acrescentar a este primeiro edifício os axiomas cuja ausência ou esquecimento poderia atentar contra a sua coerência (o sinal mais nítido de tal “incoerência” sendo geralmente, para os primeiros liberais, o sistema liberticida de Hobbes): Em primeiro lugar a ideia do carácter inalienável da liberdade individual, assim como a afirmação segundo a qual existem dois mecanismos ideologicamente neutros (e apenas dois) capazes de garantir simultaneamente a liberdade e a paz civil, Estes dois mecanismos, como vimos, são a economia de mercado e o Estado de Direito – dupla engrenagem metafísica cuja engenhosa teorização constitui o maior contributo do liberalismo à filosofia moderna.

 

(c) As proposições logicamente implicadas pela axiomática inicial. É evidentemente aqui que começam os problemas e as querelas de interpretação. Se inquirirmos, por exemplo, que concepção concreta da família – ou da relação dos seres humano às sua comunidade de pertença – se encontra logicamente implicada pela lógica liberal, basta – para descrever os seu efectivos contornos – partir deste imperativo de mobilização geral dos indivíduos (ou nomadismo – no sentido em que o entendem Attali e os diferente ideólogos do movimento migratório natural) que constitui a chave fundamental de todos os equilíbrios capitalistas: do lado do Mercado – porque o movimento browneano das mónadas humanas aparece como a condição de uma adequação óptima da oferta à procura; e do lado do direito processual – porque esta liberdade integral de circular e de se instalar a seu gosto em qualquer lugar do mercado mundial (do turismo massificado ao exílio fiscal, passando peles “deslocalizações”) constitui um dos direitos mais inalienáveis do indivíduo atomizado.

 

Pode, portanto deduzir-se que, numa lógica liberal integralmente desenvolvida a verdadeira norma quer que a família possa ser indefinidamente decomposta e recomposta ao sabor do capricho individual e do mercado de trabalho (podendo este exigir, por exemplo que cônjuges e filhos vivam em cidades ou, inclusivamente, em nações diferentes); a norma quer igualmente que cada indivíduo possa, doravante, escolher a sua comunidade de pertença como se escolhe um operador telefónico, isto é, após comparação dos custos propostos (escolha “cidadã” que, em toda a lógica, pode ser rescindida a todo o momento e, idealmente, sem pré-aviso).

 

Naturalmente, só os liberais de esquerda e de extrema-esquerda têm já a estrutura psicológica adaptada a acolher com entusiasmo este tipo de transformações culturais nas quais eles vêem geralmente o modelo de uma vida finalmente “livre e moderna” (à imagem, em suma, da dos dirigentes das grandes empresas internacionais, os people e as stars do show business ou destes novos mandarins que perpassam por todos os colóquios a fim de comunicarem aí os saberes que não tiveram tempo de adquirir (8). Mas continua a ser exacto que estas transformações radicais estão estruturalmente ligadas à própria essência do capitalismo desenvolvido. Deste ponto vista são, como sempre, os liberais de extrema-esquerda que se mostram mais consequentes. – dito de outro modo, os que estão mais em fase (psicológica e culturalmente) com a lógica real do sistema capitalista (é por isso que a sua doxa “cidadã”) se tornou uma componente fundamental da sensibilidade jornalística dominante. Quanto aos velhos liberais que pretendiam, apesar de tudo, defender ainda alguns “valores tradicionais” eles são pura e simplesmente incoerentes (ou permanecem em campanha eleitoral contínua). Esta é, de resto, a contradição fundamental destes seres híbridos que os universitários de esquerda persistem em designar - um termo privado de sentido - por “neoconservadores”. É verdade que estes políticos dispõem de uma última saída de recurso: As cidades fechadas que se desenvolvem um pouco por toda a parte no mundo, designadamente na China e nos Estados Unidos – oferecem com efeito, um abrigo intelectualmente satisfatório a todos aqueles que celebram as virtudes emancipadoras de um sistema económico cujos corolários morais e culturais não param de maldizer. Por detrás do muros desta cidades fechadas (mas um campus universitário pode garantir o mesmo tipo de isolamento), podem alimentar o sentimento de serem protegidos contra as consequências morais mais terríveis do sistema económico de que tecem, por outro lado, os mais rasgados elogios. Esta solução esquizofrénica (que se baseia, também ela, no exercício do pensamento duplo), exige, todavia, meios e muito dinheiro, pelo que não é universalizável sem contradição. É, por consequência, indispensável que os pobres do mundo inteiro aceitem o facto sem queixume, o que está longe de ser garantido.

 

(d) Os efeito concretos que a lógica liberal arrasta inevitavelmente a partir o momento em que é realmente aplicada. Como é imediatamente verificável, estes efeitos, em regra geral, são muito diferentes das intenções iniciais dos pais fundadores (como é quase sempre o caso quando o programa posto em execução repousa essencialmente sobe axiomas metafísicos). Por exemplo, o desenvolvimento de uma “concorrência livre e não falseada” acaba sempre por conduzir a situações de monopólio (como se aprende em qualquer partida do jogo do mesmo nome). A igualdade puramente abstracta das mónadas cidadãs acaba sempre por aumentar as desigualdades reais reforçando assim o domínio de classe. O projecto de um domínio total da natureza acaba sempre por desregular os equilíbrios fundamentais e comprometer o futuro radioso prometido pelos sacerdotes do Crescimento. Quanto ao individualismo do consumidor, ele acaba sempre por engendrar – particularmente na juventude – os comportamentos mais gregários e mais miméticos que podem imaginar-se (9).

 

Perante estes efeitos acumulados, seria particularmente absurdo denunciar a traição “neoliberal” de um “verdadeiro” liberalismo e apelar a um regresso redentor à pureza dos princípios iniciais (um pouco à maneira como os trotskistas denunciavam ritualmente no sistema de Estaline uma perversão do excelente leninismo). O facto é que se colhe sempre aquilo que se semeou (pelo menos até à aparição da cultura experimental dos OGM).

 

(e) Os contra-movimentos históricos que se constituem como reacção aos efeitos concretos da lógica liberal e que não podem ser inteiramente compreendidos a não ser à luz dos malefícios desta lógica. Esta categoria inclui, bem entendido, o melhor e o pior: por um lado, o nascimento do socialismo original (como crítica simultânea do Economia Política e do Direito moderno ou – o que é equivalente – como crítica radical e coerente do duplo pensamento liberal); do outro, a dos diferentes totalitarismos do século XX, ou do redobramento integrista contemporâneo. A relação de fascínio que estas duas sérias de movimento históricos mantém com o movimento ocidental moderno (designadamente com o seu culto do progresso industrial) explica, no entanto, em grande parte, a incoerência intelectual e a perversidade moral da sua pretensa “crítica” da modernidade ocidental. Sobre este ponto, a espantosa facilidade com que os antigos quadros da nomenclatura estalinista conseguem efectuar, por toda a parte, a sua reconversão pessoal no mundo impiedoso do liberalismo moderno deveria acabar por restituir o sentido da vista aos últimos crentes (e, portanto aos leitores de Alain Badiou, se tal milagre fosse possível).

 

Finalmente – haveria ocasião de nos interrogarmos sobre as estruturas inconscientes que suportam a lógica moderna da ilimitação e favorecem a sua reprodução e o seu desenvolvimento. Se sabemos que as noções de “limite” e de “fronteira” constituíram sempre os inimigos hereditários do homem edipiano, é claro que os progressos históricos do capitalismo têm certamente que ver com o assassinato do pai e a submissão paralela a uma mãe devoradora (como inúmeros militante da extrema esquerda liberal estão geralmente bem colocado para o saber – e portanto para estrebuchar de indignação sempre que se lhes chama a atenção para o assunto). Mas não terei a crueldade de insistir neste ponto, tanto é certo que se trata de um campo de batalha onde os esfolados vivos e os feridos da vida moderna já existem desde há muito tempo (10).

  

 

 

 

ANOTAÇÕES

  

 

(A)

 

 

Esta pretensão positivista é, bem entendido, perfeitamente utópica. Na sua notável obra sobre Le liberalisme et les limites de la justice (tradução francesa, Seuil, 1999) Michael Sandel demonstra, por exemplo, que é estritamente impossível legislar sobre o aborto sem que surjam, de imediato, um mínimo de postulados metafísicos: para o liberal político - escreve ele – “os valores políticos de tolerância e de direito à cidadania igual para homens e mulheres constituem fundamento suficiente para concluir que as mulheres devem ser livres de escolher, por si mesmas, se querem ou não abortar; o governo não deve tomar partido na controvérsia religiosa sobre a questão do momento em que começa a vida humana. Mas, se a Igreja católica está certa a propósito do estatuto moral do feto, e se, portanto, o aborto é o equivalente moral de um assassinato, não se percebe bem porque razão os valores políticos da tolerância e da igualdade dos sexos deveria prevalecer, mesmo tratando-se de valores da maior importância. Se a doutrina católica é verdadeira, a tese do liberal político que afirma a prioridade dos valores políticos, vai tornar-se num exemplo da teoria da guerra justa; esta deve demonstrar porque razão esses valores devem prevalecer mesmo ao preço da morte de um milhão e meio de cidadãos por ano” (p. 286-287). A ideia “cidadã” de um Estado “axiologicamente neutro” deve ser tida definitivamente por ingénua. Na verdade, toda a legislação sobre o direito ao aborto supõe inevitavelmente que se “tome posição na controvérsia religiosa (e filosófica) sobre o momento em que começa a vida humana”. Os limites da filosofia liberal são os de todo o positivismo (e de todo o relativismo).

 

 

(B)

 

 

Este apoio tácito sobre os valores morais e filosóficos que se mostram incompatíveis com a ideologia que, por outra parte, se pretende defender, não é exclusiva do liberalismo. Se abrirmos, por exemplo o Estado e a Revolução podemos notar uma contradição do mesmo tipo assinada por Lenine. À questão de saber como será possível - sob o comunismo realizado – reprimir os inevitáveis “excessos individuais”, quando desapareceu todo o “aparelho especial de repressão”, Lenine responde, com efeito, que “o povo armado encarregar-se-á dessa tarefa tão simplesmente e tão facilmente como um grupo qualquer de homens civilizados, mesmo na sociedade actual, aparta as pessoas que se batem entre si ou impedem que se agrida uma mulher”. O que é certo, pelo contrário, é que Lenine (como, antes dele, Adam Smith ou Benjamin Constant) não podiam imaginar que “estas regras elementares da vida em sociedade, repetidas durante milénios em todas as prescrições morais” (ibidem, cap. V) viriam a ser um dia ameaçadas no seu princípio mesmo pelo desenvolvimento de novas lógicas civilizacionais (em primeiro, a própria lógica leninista).

 

A aprendizagem da reciprocidade da boa vontade para com os outros – fundamento destas "regras elementares da vida em sociedade"- exige, com efeito, todo um conjunto de relações face a face, ao mesmo tempo estáveis e duradouras (dado que essa aprendizagem carece necessariamente de tempo) com seres cuja presença nos foi originariamente dada (nós não escolhemos os nossos pais, os nossos irmãos e irmãs nem os nossos vizinhos). Só na medida em que aprendemos a acomodarmo-nos a esta realidade incontornável, isto é, a aceitar tal como são (ou mesmo a amar e apreciar) aqueles e aquelas com que nos foi dado viver, é que se tornará eventualmente possível transpor para outros humanos (e eventualmente para os desconhecidos e estrangeiros) os hábitos assim adquirido de common decency. Sem esta aprendizagem primária do dom, da fidelidade e da gratidão – e sem o quadro antropológico inicial que ela supõe – as nossas próprias afinidades electivas (tal como virão a ligar-se no decurso da nossas vidas) serão quase sempre submetidas às leis não superadas do egoísmo infantil. Rousseau não queria dizer outra coisa quando lembrava que ninguém pode pretender "amar os Tártaros" (ou interessar-se realmente pelos sem abrigo ou pelos imigrantes clandestinos) se não for primeiramente capaz de "amar os seus vizinhos", os seus pais ou os seus próximos. Noutros termos, nunca é saltando a casa de partida que um ser humano pode aceder ao universal - teorema que tem a vantagem adicional de esclarecer, de passagem, a face psicológica oculta de muitos envolvimentos "humanitários", "associativos" ou "cidadãos" (não há falta de Richard Durn, de Bertrand Cantat ou de militantes da "Arche de Zoe", para o confirmar).

 

Nestas condições, é suficiente que qualquer lógica política conduza ao desmantelamento de todas as estruturas da sociabilidade primária (desde a vida da família à vida de bairro) para secar na fonte a condição de possibilidade mais fundamental dessas virtudes elementares que fazem com que os indivíduos decentes separem realmente aqueles que se lutam na rua ou se proíba que se brutalize uma mulher. Convém naturalmente acrescentar que, se a sociabilidade primária é realmente o quadro antropologicamente mais apropriado à eclosão das virtudes humanas de base, ela não saberia garantir por si só que estas virtudes aprendidas (quando o foram) serão efectivamente universalizadas. Condição necessária da common decency, a sociabilidade primária não é uma condição suficiente. É pois aqui, e somente aqui que a crítica do "tribalismo" e do "recolhimento sobre si" pode encontrar o seu lugar. Mas isso supõe que se tenha primeiramente compreendido que nenhuma verdadeira consciência moral poderá alguma vez surgir da ruína dos desenraizamentos particulares (e particularmente do ódio edipiano). Ela supõe sempre, pelo contrário, um desenvolvimento dialéctico – desenvolvimento cujo trabalho de reapropriação individual dos valores comuns representa um momento necessário e decisivo. Sem este trabalho pessoal do sujeito sobre si mesmo – que assinala o seu acesso à maioridade – teríamos, quando muito, bons hábitos e, no pior do casos, este sentido puramente mecânico da etiqueta e das convenções que sempre constituiu, no seio das classes dominantes, o substituto privilegiado da common decency.

 

 

(C)

 

 

Bernard Shaw - que incarnou, sem dúvida, a primeira grande figura do intelectual de esquerda moderno (com o humor, por acréscimo), tinha compreendido exactamente a essência da filosofia da suspeita (ou da desconstrução moderna) quando escreveu que a forma superior da inteligência crítica consiste na substituição da velha questão reaccionária “porquê?” pela questão muito mais progressista “porque não?”. Aqui se contém o princípio de todas as derivas modernas e liberais, visto que a questão “porque não?” abre, por definição, um abismo infinito. Pode encontrar-se um exemplo particularmente revelador no número de Maio de 1972 da Bibliothèque des émeutes, onde um dos brilhantes representantes desta nova esquerda extrema – doravante capaz de experimentar, perante um Twingo em chamas (*), os mesmos arrepios íntimos de que padece uma adolescente perante um concerto dos Tokio Hotel – pode escrever tranquilamente que “roubo, violação, assassinato, são delitos de opinião” (p. 124). Assim se compreende porque razão o advogado acabou por tornar-se, com o tempo, a figura mais representativa da neutralidade axiológica liberal. Todo o advogado coerente – como mostra a maior parte das série policiais americanas - é necessariamente um advogado do diabo. O que conta para ele - pelo menos se aceitou renunciar aos seus últimos escrúpulos para se tornar um verdadeiro espírito moderno – não é obviamente aquilo que é verdadeiro ou justo (presentemente, tudo isso são juízos de valor arbitrários incapazes de resistir à menor desconstrução) mas a simples descoberta deste vício de forma que possa permitir ao seu cliente escapar à acusação.

 

(*) Nota do tradutor: Trata-se de uma alusão aos motins que ocorreram nos subúrbios de Paris em Novembro de 2005, com muitos incêndios de viaturas; Twingo é o modelo de um automóvel da marca Renault.

 

 

(D)

 

 

Sendo Benjamin Constant o mais complexo (ou o mais contraditório) dos grandes pensadores liberais, não é de admirar que encontremos regularmente sob a sua pena afirmações incompatíveis com a axiomática que proclama. É assim que, em 1813, ele escreve o seguinte: “é bastante surpreendente que a uniformidade jamais tenha encontrado tanta receptividade do que no seio de uma Revolução feita em nome do direitos e das liberdades dos homens. O espírito sistemático ficou primeiramente extasiado perante a simetria. O amor do poder descobriu rapidamente a imensa vantagem que essa simetria lhe trazia. Enquanto o patriotismo só pode existir por uma viva dedicação aos interesses, aos costumes locais, os nossos auto-designados patriotas declararam guerra a todas estas coisas. Eles secaram a fonte natural do patriotismo e substituíram-na por uma paixão fictícia por um ser abstracto, despojado de tudo o que desperta a imaginação e tudo o que fala à memória. Para construir o edifício começaram por triturar e reduzir a pó os materiais que deveriam utilizar. Pouco faltou para que designassem com algarismos as cidade e as províncias, como designavam por algarismos as legiões e os corpos do exército, tanto eles pareciam temer que uma ideia moral pudesse ligar-se àquilo que instituíam (…). Os interesses e as recordações que nasciam dos hábitos locais contêm um gérmen de resistência que a autoridade só tolera a muito custo e que se apressa a desenraizar“ (De l’esprit de conquête, cap. XIII). Como pode verificar-se, um texto como este dificilmente se articula com o princípio de neutralidade axiológica (que Constant por outro lado defende) e menos ainda com o antipatriotismo de princípio dos liberais. Quanto a este ódio contra ao “hábitos locais” que representa uma das condições essenciais da uniformização capitalista do mundo, Christopher Lash observa, a justo título, que ele está amplamente difundido “nos universitários que, tendo subido na escala social, passam o seu temo a felicitarem-se por haverem escapado ao tradicionalismo estreito das suas aldeias, ao seu guetto étnico ou ao seu subúrbio intelectualmente mediano. A sua recusa de olharem para o passado, não vem da saudade das origens mas de uma indiferença absoluta, aliada a uma fé absurda no progresso. Dito isto, este optimismo absoluto e incondicional tem tendência a extinguir-se. Ele requer uma tal ausência de profundidade, tanto emocional como intelectual, que a maior parte das pessoas, incluindo os universitários, têm as maiores dificuldades do mundo para a alimentar.” (Le moi assiegé, Climats, 2008, p.64). No que se refere aos universitários franceses, pode achar-se que a última observação de Lash é ligeiramente optimista.

 

 

(E)

 

 

A decomposição das solidariedades locais tradicionais não ameaça apenas as bases antropológicas da resistência moral e cultural ao capitalismo. Minando igualmente os fundamentos da confiança (tal como têm habitualmente sua origem na tripla obrigação de dar, receber e retribuir) a lógica liberal contribui, do mesmo passo, para destruir os seu muros protectores, isto é, a troca mercantil e o contrato jurídico. Desde que nos colocamos no plano do simples cálculo (e o egoísta ou o economista não conhece outro), nada me obriga a cumprir a palavra dada ou a respeitar os meus compromissos (por exemplo, sobre a qualidade das mercadorias prometidas ou sobre facto de não me dopar) desde que tenha a certeza prévia de que ninguém se vai aperceber. A partir de um certo limiar de desarticulação histórica do “espírito do dom” (matriz antropológica de toda a confiança real) só a suspeita e a desconfiança podem vigorar. Neste novo quadro psicológico e cultural, o cinismo tende a tornar-se a estratégia humana mais racional; e o ”não visto, não entendido” a máxima mais segura do liberalismo triunfante (da qual o desporto nos fornece todos os dias a prova provada, na medida que se profissionaliza e se mediatiza). Como acontece muitas vezes, foi o simpático ex-tenista Yannick Noah que soube formular, com o rigor filosófico que lhe é habitual, os novos aspecto desta questão moral. Tendo acontecido que o seu filho Joakim havia cometido, nas palavras do pai “une petite boullette” (álcool e droga ao volante de uma automóvel, sem carta de condução e em excesso de velocidade), o nosso herói nacional achou que devia imediatamente declarar publicamente que o essencial era “de ne pas se faire pécho”, acrescentando, de passagem, que “já lá vão vinte anos que eu me comporto como um canalha e sou ainda um tipo popular porque toda a gente pensa que sou um tipo fixe. Sendo assim, Joakim pode fazer o mesmo”. Em homenagem a esta bela lição de pedagogia paternal, proponho que seja designado por princípio de Noah a lei que tende a governar uma parte crescente das trocas económicas contemporâneas (sabe-se, por exemplo, que a contrafacção tornou-se uma das indústrias mais florescentes do capitalismo moderno).

 

 

(F)

 

 

Quando temos que ver com um “liberalismo de governo”, é evidentemente indispensável distinguir as intenções reais de um político liberal das intenções que a competição eleitoral o constrange a exibir publicamente. Deste ponto de vista, era realmente necessário ser um universitário de esquerda para levar a sério as imprecações de Nicolas Sarkozy contra o “Maio 68” (e ainda a sua crítica do divórcio e do prazer imediato) num discurso em que ele lançava simultaneamente à ortigas “o culto do dinheiro rei, o lucro a curto prazo, a especulação e as derivas do capitalismo financeiro”. Mas um poder liberal é também obrigado a compromissos mais sérios se quer manter um controlo eficaz sobre a sua base eleitoral (tanto mais que uma grande parte dos políticos liberais são eleitos de proximidade). Aqui, a retórica eleitoral não é suficiente para manter a ilusão durante muito tempo. Por consequência, tal como os organizadores da Volta à França são constrangidos todos os anos a fazer cair alguma novas cabeças – geralmente escolhidas ao acaso – a fim de dar ao grande público a ilusão de que o ciclismo se tornou finalmente um “desporto limpo” (quando toda gente sabe que a dopagem constitui a norma em todos os desporto que o capitalismo mediatizou), o Estado liberal é regularmente obrigado a montar operações espectaculares - a fim de dar a ilusão de que a delinquência é incompatível com o crescimento do PIB - ou a expulsar sob o olhar das câmaras de televisão um clandestino em cada dez (são, pelo menos, os números que hoje circulam nas comunidades asiáticas) - a fim de dar às classes populares a ilusão de que as empresas liberais (particularmente as da construção e da restauração) não sobreviveriam um minuto à abertura das fronteiras e à livre circulação mundial da força do trabalho. Estas encenações podem naturalmente ser condenadas de um ponto de vista estritamente humanitário (o combate político contra o sistema internacional de prostituição não exige a humilhação pessoal das prostitutas). Mas, de um ponto de vista político, elas apresentam sobretudo a vantagem de satisfazer simultaneamente os dois grandes partidos do Capital: o eleitor de direita pode ver aí a prova de que os seus sofrimentos quotidianos começam a ser tidos em conta, enquanto o eleitor de esquerda encontra confirmação de vivemos, realmente, sob um Estado racista e policial, onde Bertrand, Ségoléne ou Olivier incarnam os novos Mandelas. É assim que o sistema se perpetua.

 

 

 

 

 

 

 

(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950) é professor de filosofia no Liceu Joffre (Montpellier) e um pensador anticapitalista independente, influenciado por George Orwell e pela escola antropológica seguidora de Marcel Mauss. A tradução deste artigo é de João Esteves da Silva. ‘O Comuneiro’ aprecia, como sempre, a forma extraordinariamente estimulante com que este autor coloca questões da maior importância no mundo contemporâneo, mesmo não concordando com o teor de certas apreciações feitas, generalizadamente, ao “marxismo” ou ao “leninismo”.

 

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NOTAS DE RODAPÉ:

 

(1) Assim acontece com o estruturalismo. O que une ideologicamente obras tão diversas como as de Althusser, de Levy-Strauss, de Lacan, de Foucault ou Derrida não salta imediatamente aos olhos. E sabemos que a definição da episteme estruturalista deu lugar a polémicas numerosas e sangrentas.

 

(2) Jean-Claude Milner, Les penchants criminels de l’Europe démocratique, Verdier, 2003, p. 43.

 

(3) Falando da “reacção em cadeia não dominada” que se desencadeou “na época da Renascença” (a meu ver o século XVII seria uma melhor data de partida, para esta crise da consciência europeia) Jean-François Billiter escreve que “para compreender este fenómeno sem precedente temos que apreender a lógica do seu desenvolvimento e apercebermo-nos, ao mesmo tempo, da forma particular de inconsciência que ele engendrou e manteve. Trata-se de uma reacção em cadeia não dominada porque os seus actores não têm consciência e, hoje, têm menos consciência do que nunca do seu verdadeiro mecanismo. Esta reacção em cadeia só poderá ser travada quando o seu mecanismo for geralmente reconhecido (Chine trois fois muette, Allia, 2000, p.10). Sem subscrever inteiramente as formulações por vezes mecanicistas do autor (o desenvolvimento da lógica liberal implica uma dimensão consciente e deliberada) entendo que estas linhas contêm uma excelente descrição do que entendo por “lógica filosófica”.

 

(4) Descrevendo o florescimento da nova cultura capitalista no final dos anos 90, Thomas Frank sublinha “enquanto o olhar dos empresários e dos meios dos negócios era, outrora, contrabalançado, ou, pelo menos, temperado, pelas visões alternativas propostas pelos meios universitários e jornalísticos, hoje ele não encontra qualquer oposição séria. Esta impressão de um assentimento universal é ilustrada pelo entusiasmo típico do final do decénio perante as novelas e os spots publicitários que mostravam nos ecrãs grupos de pessoas de todas as cores e de todos os estratos sociais transmitindo uma idêntica mensagem de esperança, seja entoando We are the champions, para a empresa Aguillon, ou maravilhando-se perante os atributo quase divinos da Internet, para a empresa Cisco. O título de um folheto de divulgação da gestão em meados da década reflecte perfeitamente este estado de espírito: The Bounderless Organization (organização sem fronteiras)” (Le Marché du droit divin Agone, 2003, p. 41). Em relação com esta fobia liberal de todas as forma de pertença, pode recordar-se, como o fez Derrida, que a URSS foi o primeiro Estado do Mundo em que nada, na sua designação, escolhida pela sua classe dominante, continha a menor referência a qualquer fronteira geográfica ou nacional.

 

(5) Se a ideia de “lógica liberal” pode parecer idealista a muitos espíritos, notar-se-á que estes mesmos espíritos raramente mostram os mesmos escrúpulos teóricos quando de trata de explicar a lógica filosófica que conduziu inexoravelmente a instalar regimes de idêntica natureza politica em países tão diferentes à partida, como a Rússia, a Checoslováquia, a Mongólia, Cuba, os Países Bálticos ou a Coreia do Norte. O uso de tal conceito exige que se rompa com os dogmas do “materialismo histórico” em sentido estrito. Em França, esta ruptura deve evidentemente muito aos trabalhos de Castoriadis. No mundo árabe, encontramos uma postura paralela na obra apaixonante do pensador argelino Malek Bennabi (1905-1973), um dos mais notáveis teóricos da “luta ideológica” dos povos coloniais. Poderemos reportar-nos ao seu belo livro sobre Le Problème des idées dans le monde musulman (Albourak, 2006). A edição original tinha aparecido no Cairo em 1960.

 

(6) No seu ensaio sobre Dickens (escrito em 1939), Orwell sublinhava que o “homem da rua ainda vive no universo psicológico de Dickens, mas a maior parte dos intelectuais aliaram-se a uma ou outra forma de totalitarismo. De um ponto de vista marxista ou fascista a quase totalidade dos valores defendidos por Dickens são assimilados à «moral burguesa» e odiados a esse título. Mas, no que respeita às concepções morais, não há nada de mais burguês do que a classe operária inglesa” (Essais, Articles, Lettres, vol. I, edição Ivrea/Encyclopédie des nuisances, 1995, p. 573).

 

(7) Mike Davis, Le Stade Dubai du capitalisme, les Prairies ordinaires, 2007, p. 16.

 

(8) O mobilíssimo Attali vangloriava-se recentemente num programa de televisão de não viver em França “senão dois dias por mês”. O que constituía, a seus olhos o fundamento da sua superior sabedoria. Sem querer ser cruel, deveria deduzir-se que existe uma ligação directa entre ser constrangido a viver em permanência entre dois aeroportos (tendo por única pátria um computador portátil) e a incapacidade de sentir o que quer que seja perante os sofrimentos e as preocupações quotidianas das classes populares do seu país de origem. É, alias, o que explica que Nicolas Sarkozy (como antes dele Mitterrand) tenha imediatamente reconhecido em Attali o ideólogo mais bem armado intelectualmente para extrair do seu cyber cérebro liberal trezentas “decisões” que permitirão “libertar” o Crescimento e “mudar a França”. É esta a ocasião de lembrar a célebre dito de Chesterton: “O universo do globe-trotter é infinitamente mais restrito do que o de um camponês”.

 

(9) Podemos encontrar um exemplo particularmente instrutivo deste mimetismo moderno no brilhante pequeno ensaio que René Girard consagrou à mulher anoréctica “orgulhosa de incarnar o que talvez constitua o ideal comum a toda a nossa sociedade: a magreza.”: Anorexie et désir mimetique, L’Herne, 2008. No seu excelente prefácio, Mark Anspach recorda-nos que nas ilhas Fiji, onde a televisão não existia antes de 1995, os problemas de peso jamais haviam atormentado ninguém. “Três anos após a chegada do pequeno ecrã, 74% das alunas de liceu interrogadas sentiam-se demasiadamente gordas pelo menos uma parte do tempo e 69% já haviam experimentado um regime de perda de peso (…). No decurso das entrevistas, as raparigas afirmavam que os personagens vistos na televisão se tinham tornado os seus modelos, designadamente, as alunas californianas ricas da série Beverly Hills. Note-se que, em França, uma crítica de esquerda aos malefícios da televisão limitar-se-ia, a maior parte das vezes, a indignar-se sobre o tempo antena concedido à UMP em relação ao do partido “socialista” ou a inquietar-se com a cor política do PDG que tem a seu cargo a mentira generalizada. Quanto à existência da manipulação publicitária, existe inclusivamente uma nova raça de militantes de esquerda, prontos a montar barricadas a fim de exigir a manutenção da publicidade nos canais públicos (quando se trataria, isso sim, de eliminá-la por toda a parte, inclusivamente nas privadas).

 

(10) Seria, sem dúvida, interessante estudar os efeitos da política do filho único (e do culto familiar, designadamente materno, de que é forçosamente objecto) sobre a psicologia colectiva do povo chinês. Com a chegada à maturidade – nas zonas urbanas - de centenas de milhões de filhos únicos (não há nenhum precedente na história da humanidade), bem poderia detectar-se aí uma relação precisa com a fúria capitalista que conhece actualmente a China popular.