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A dívida é política Porque é que a riqueza flui dos pobres para os ricos
Radhika Desai e Michael Hudson (*)
RADHIKA DESAI: O ouvinte poderá pensar que, no dia de hoje, face aos eventos das últimas semanas, poderíamos estar falando sobre as guerras que parecem prestes a fugir a todo o controle, particularmente com Israel parecendo tão determinado a escalar suas hostilidades com o Hezbollah, estando para isso disposto a fazer acusações com bases inteira e visivelmente frágeis. Poderá pensar que falaríamos sobre como não está nada claro quem está em posição de controle, particularmente naquele país que tantas vezes se considera o polícia do mundo. E, de fato, certamente pretendemos cobrir esses assuntos no futuro. No entanto, hoje nos concentraremos num tópico muito intimamente relacionado, que é a dívida.
Somos ensinados a pensar na dívida como uma relação comum, económica ou de mercado, não diferente da compra e venda de bens e serviços, que é feita por duas partes formalmente iguais. Cada uma delas dá algo à outra, e essas coisas são, grosso modo, iguais em valor. Portanto, igual é trocado por igual, e está tudo bem.
No entanto, todos sabemos que, mesmo no caso da troca de bens e serviços, as partes não são senão formalmente iguais, pois que as diferenças de poder entre elas têm enorme influência na transação. E se isso é assim mesmo no caso da troca comum de bens e serviços, é ainda mais no caso da relação dívida-crédito. Na verdade, esta última deve ser pensada não tanto como uma relação económica ou de mercado, mas como uma relação profundamente política, mais dependente do poder do que qualquer outra relação considerada económica.
Quem obtém crédito e quem não obtém? Quem obtém termos favoráveis e quem obtém termos severos? Quem paga juros altos e quem paga juros baixos? Quem é resgatado quando em inadimplência e quem é obrigado a pagar ainda mais quando se acha nas mesmas circunstâncias?
Esses são os tipos de perguntas que pairam em torno da dívida, e todas elas mostram o quão profundamente política é a relação de dívida. Ora, como dizia Clausewitz, a guerra é apenas outra maneira de fazer política, e guerra e dívida estão, portanto, também profundamente conectadas.
Desde que os banqueiros de Londres convenceram o rei William III a tomar emprestado deles, em vez de tributá-los, para financiar as suas guerras, em 1694, as guerras geraram dívidas, enormes dívidas. Nisso, as guerras atuais não são exceção. A Ucrânia está efetivamente lutando uma guerra alimentada por dívidas, e qualquer Estado ucraniano remanescente, após o fim desta guerra - que certamente não deverá terminar antes de 5 de novembro próximo - será sobrecarregado com níveis impagáveis de dívida. Enquanto isso, os mercados rebaixaram a dívida de Israel para praticamente o nível lixo, e um destino semelhante aguardará certamente Taiwan, se os seus dirigentes forem tolos o suficiente para concordar em fazer dessa ilha um representante dos E.U.A. contra a China.
Hoje em dia, há ainda um outro motivo para falar sobre dívida. O Banco Mundial, assim como economistas em todo o mundo, e também a UNCTAD, o think tank do mundo em desenvolvimento, por assim dizer, têm falado sobre uma nova crise de dívida do Terceiro Mundo. Houve uma, como alguns de vocês devem se lembrar, ou saber, no início dos anos 1980. E, de fato, desde então, a dívida insustentável continua sendo um grande obstáculo nas perspetivas de desenvolvimento do Terceiro Mundo.
Pelo que nos apercebemos, a génese da atual crise da dívida do Terceiro Mundo, ou crise da dívida do mundo em desenvolvimento, qualquer que seja o eufemismo que se queira usar, a crise da dívida dos países pobres do mundo, é muito semelhante à da década de 1980. No entanto, os resultados podem ser bem diferentes, e isso é algo que podemos discutir. Michael e eu, pelo menos, especularemos sobre isso.
E finalmente, quando falamos sobre dívida pública ou dívida soberana, temos que falar sobre o F.M.I. e o Banco Mundial, os agentes de execução do capital financeiro ocidental. Quando eles derramam lágrimas de crocodilo sobre as perdas de bem-estar causadas pelo pagamento da dívida, que desviam dinheiro da assistência médica, educação ou água limpa no mundo em desenvolvimento, eles fazem isso por um lado. E por outro lado, eles impõem os termos de pagamento mais draconianos, garantindo fluxos de capital reversos massivos, ou seja, que o capital flua, não de países ricos para países pobres, como deveria acontecer de acordo com os livros de Economia, mas, ao contrário, de países pobres para países ricos.
Ao mesmo tempo, eles demonstram a mais terna das misericórdias pela dívida de países amigos, como a Ucrânia. Não é de admirar que esteja em curso outra campanha, assinalando o 80.º aniversário dessas duas instituições vampiras, pedindo sua abolição. A única boa notícia é que elas estão se tornando cada vez menos eficazes e cada vez menos importantes, principalmente por causa da ascensão da China como um grande credor.
Portanto, este é o pano de fundo do que vamos falar hoje. E, Michael, você fez um trabalho enorme. Sei que você tem acompanhado a dívida da Ucrânia desde 2014, se não antes. Então por que você não começa falando sobre a dívida da Ucrânia e como o F.M.I. tem lidado com ela?
MICHAEL HUDSON: O atual emaranhado da dívida ucraniana mostra o padrão duplo que existe para o F.M.I. e, na verdade, para toda a comunidade internacional de títulos, quando tratamos de países que não conseguem pagar suas dívidas e estão em dificuldades semelhantes.
Dois anos atrás, quando começou a luta com a Rússia, quando a Rússia teve que intervir porque as áreas de língua russa da Ucrânia estavam sob ataque civil, era óbvio que a Ucrânia não pagaria a dívida. Então os detentores de títulos internacionais que tinham dívidas em vencimento disseram, ok, vocês não precisam de nos pagar agora. Sabemos que vocês estão em guerra. Vamos adiar por dois anos e esperar até 1 de agosto de 2024.
É exatamente onde estamos agora. Há dois anos atrás, eles disseram que a guerra certamente acabaria até lá. O F.M.I. e os Estados Unidos da América disseram que a Ucrânia venceria a Rússia e, pelo que sabemos, marcharemos pela Rússia adentro, mas não haverá então guerra. A Ucrânia poderá pagar de volta. Então, todos disseram, ok, vamos esperar, vocês continuarão acumulando juros para nós.
Pode-se imaginar o que aconteceu há um mês atrás, quando o prazo de pagamento chegou. O que faria a Ucrânia? Obviamente, a Ucrânia não tinha dinheiro, e os detentores de títulos tinham uma escolha. Ou eles poderiam insistir em ser pagos e dizer, você está em falta, vamos listá-lo como inadimplente, e se você não puder nos pagar, isso significa que o F.M.I., de acordo com as suas regras, que ele não segue, enfim, mas de acordo com as regras, se elas fossem seguidas, então não é permitido emprestar a países que estão inadimplentes para com credores privados.
Isso porque o F.M.I. é um agente policial agindo como lobista para os credores privados, forçando os títulos a serem pagos.
E então os principais detentores de títulos, estamos falando de pessoas, os maiores fundos de títulos, a PIMCO, a Blackstone, se uniram, e eles tiveram uma escolha. O que eles fizeram foi algo muito notável. Eles realmente disseram, ok, Ucrânia, você não só não tem que pagar a dívida que está vencendo agora, mas você pode reduzir a dívida em cerca de 39%, porque sabemos que você não pode pagar. Apenas prometa nos pagará alguns anos a partir de agora, quando soubermos que você terá derrotado a Rússia, podendo então pagar. E eles realmente tiveram um prejuízo muito grande com o que se tornou títulos lixo ucranianos.
O que me surpreendeu foi que isto não é o que banqueiros internacionais normais costumam fazer. Eles tinham a liberdade de dizer, não, vamos executar a hipoteca, e eles teriam entendido que o governo dos E.U.A. e o F.M.I. teriam feito tudo o que pudessem para evitar um calote da Ucrânia. Teriam resgatado a Ucrânia. Mas, de alguma forma, o governo dos E.U.A. torceu o braço aos detentores de títulos.
Não temos ideia do porquê, mas os detentores de títulos fizeram algo muito incomum ao assumir a perda do empréstimo de US$ 50 mil milhões que estava vencendo. O F.M.I. explicou que, como o Ocidente não vive mais pelo império da lei, mas pela “ordem baseada em regras”, tudo pode seguir em frente.
Já sabemos que um dos outros artigos do acordo do F.M.I. diz que não é permitido fazer um empréstimo a um país em guerra. O F.M.I. disse, e estou parafraseando, bom, se o país vai à guerra por um propósito que os Estados Unidos da América e a NATO apoiam, já que nós próprios somos os braços da NATO, basicamente, e também do Departamento de Defesa e o Departamento de Estado dos E.U.A., então, é claro, podemos dispensar as regras. As regras são destinadas apenas para quando queremos aplicá-las contra países recalcitrantes, que têm dificuldade em pagar a dívida.
Então eles acabaram por fazer novos empréstimos para a Ucrânia, para permitir que ela continuasse lutando na guerra. E todos os detentores de títulos fingiram que, de alguma forma, a Ucrânia não iria perder, que, de alguma forma, ela iria sair solvente e pagar aos detentores de títulos. Ninguém tem ideia do que é que realmente os convenceu. Mas, é claro, já que a Blackstone e a PIMCO são muito próximas do Departamento de Estado dos E.U.A., deve ter havido uma discussão, uma pressão e algum tipo de promessa não oficial de que, não se preocupem, nós cuidaremos de vocês.
E, aparentemente, há dois planos que são estabelecidos para o modo como a Ucrânia poderá pagar as suas dívidas. A Blackstone e o J.P. Morgan estão trabalhando juntos para organizar o que eles dizem que será uma cornucópia de venda de recursos ucranianos, quando a guerra acabar. E eles acham que esse será um mercado enorme para empresas norte-americanas, empresas europeias, comprarem terras ucranianas, serviços públicos ucranianos e quaisquer outros ativos que eles tenham.
Então, se a Ucrânia vencer a guerra militar. Enfim, sabemos que isso não vai acontecer. Mas se vencerem, eles deixarão de ser um país que possui seus próprios recursos. De qualquer forma, acabará parecendo-se um pouco com a Argentina ou com outros países a quem foi dito: paguem as vossas dívidas vendendo as vossas terras, vendendo os vossos direitos minerais. E a Ucrânia tem minerais, todos nas áreas de língua russa, lítio e outros. E a ilusão é que, de alguma forma, todo esse dinheiro que será pago ao governo ucraniano, para comprar os seus ativos, será depois usado pelo mesmo governo para pagar aos detentores dos seus títulos de dívida e permanecer solvente.
Essa é, basicamente, a estratégia do F.M.I. nos últimos cinquenta anos. Se os países latino-americanos ou africanos não puderem pagar as suas dívidas e tiverem que tomar emprestado do F.M.I., eles terão que vender seus direitos minerais, suas terras e os outros bens.
Deve haver um plano B, contudo. Tenho andado a tentar descobri-lo. E a minha suspeita é que os detentores de títulos foram informados de que, bom, se de alguma forma um milagre acontecer, e a Ucrânia perder a guerra, então a Zona Euro pegará nos US$ 300 mil milhões que eles tomaram, confiscados à Rússia, e dará isso à Ucrânia, como reparação pela guerra. E a Ucrânia usará o dinheiro confiscado à Rússia para pagar aos detentores de títulos. Isto é apenas o meu palpite, mas não consigo imaginar que os detentores de títulos tenham assumido agora a perda, a menos que tivessem esses dois planos - plano A e plano B - em suas mentes.
Bom, como a Radhika já disse, esta não é uma relação de mercado. É uma relação política.
RADHIKA DESAI: E, como sabe, Michael, isso é realmente interessante. E, claro, quero dizer, é interessante ver que, neste caso, os credores privados foram solicitados a assumir um corte (“haicut”) de quase 40% nos seus empréstimos para a Ucrânia.
Bom, quaisquer que sejam as maquinações negras acontecendo nos bastidores, as maquinações turvas acontecendo nos bastidores, qualquer que seja o motivo, o facto é que, mesmo que eles realmente fizessem um corte de verdade, os E.U.A. conseguiriam… Bom, há aqui duas coisas. Número um, normalmente esses cortes acontecem depois que o devedor já pagou uma quantia enorme, mais do que a que foi originalmente contratada. Mas, em segundo lugar, os Estados Unidos da América, sempre, nos últimos, eu diria, certamente quarenta e poucos anos, os Estados Unidos apoiaram completamente as suas instituições financeiras, de qualquer maneira. Então, de uma forma ou de outra, essas pessoas realmente não vão ficar a perder.
Mas há aqui algo realmente muito interessante. O facto de que a Ucrânia pode ser, que credores privados podem ser solicitados a assumir um corte a favor da Ucrânia, não deixará de ser registado pelo resto do mundo, porque grande parte da dívida do Terceiro Mundo é para com credores privados. Esses credores privados se beneficiaram enormemente ao emprestar para países do Terceiro Mundo. Falaremos sobre isso dentro de um minuto, exatamente como é que eles se beneficiaram.
Então, quando a crise da dívida do Terceiro Mundo, que já está em andamento, atingir um ponto crítico, acho que os países do Sul global estarão numa posição muito boa para apontar ao F.M.I. que, veja, você pôde pedir aos credores privados que sofressem um corte bem substancial no caso da Ucrânia. Por que não nós? Nossa causa é ainda maior. E então, como sabe, acho que isso ficará muito claro.
Mas há mais uma coisa que eu queria dizer também, que é, claro, que os Estados Unidos da América, historicamente, ganharam dinheiro por meio da guerra. Quero dizer, você mesmo apontou que os Estados Unidos se tornaram essencialmente uma nação credora no final da Primeira Guerra Mundial, porque se recusaram a perdoar os empréstimos que haviam feito aos países beligerantes europeus, da forma como, por exemplo, a Inglaterra havia perdoado os seus empréstimos a países beligerantes nas Guerras Napoleônicas.
E quando a Inglaterra levantou esse ponto, [os EUA] disseram, não, não vamos perdoar essas dívidas. Queremos que vocês paguem essas dívidas. Foi assim que os Estados Unidos da América se tornaram uma nação credora. E, é claro, em certo sentido, mantiveram o seu controle sobre isso. Então, não só os Estados Unidos se beneficiam exportando mais e mais material de guerra e outras coisas para os países beligerantes, como estão fazendo no caso da Ucrânia ou Israel ou o que quer que seja, Taiwan e assim por diante, a sua economia tendo se tornado terrivelmente dependente da guerra. Mas também se beneficia quando as suas instituições financeiras emprestam para esses países.
E você também falou sobre os ativos russos. E o que eu acho realmente interessante sobre essa história dos ativos russos é que os Estados Unidos da América estão pressionando os europeus a usar esses ativos porque, como sabe, a maioria, é verdade, a maioria dos ativos russos são na verdade em euros. E depos quantias menores são em libras e em dólares, em instituições financeiras britânicas e norte-americanas.
Mas os Estados Unidos da América estão pressionando a Europa também porque as instituições financeiras, as instituições financeiras privadas, na verdade, estão um pouco cautelosas em fazer isso porque não querem que os seus outros depositantes pensem que eles lhes vão fazer isso a seguir, porque se os outros depositantes começarem a pensar que vão perder os depósitos, vão perder o negócio. Isto é, na verdade, parte do apertar do torniquete à Europa. Se você fizer com que a Europa desacredite o seu próprio sistema financeiro, enquanto os Estados Unidos da América permanecem sérios e altaneiros. Então isto também é muito interessante.
Portanto, sim, quero dizer, você pode ver a parcialidade. E eu acho, Michael, você também sabe, essa parcialidade que o F.M.I. está mostrando para com a Ucrânia tem uma história mais longa, certo? Eles têm feito esse tipo de coisa desde, bem, se não em 2014, pelo menos, certamente, antes que este conflito atual começasse.
MICHAEL HUDSON: Eu realmente gostaria de começar mais cedo. Você fez uma observação importante, de que as dívidas das nações industrializadas, Europa e Estados Unidos da América, são todas dívidas de guerra. Tudo começou no século XIII. A igreja romana declarou guerra a outros países cristãos, principalmente a Alemanha, que não aceitavam a direção católica de Roma. E lutaram também contra os países cristãos ortodoxos. E então eles, basicamente, contrataram senhores da guerra como Guilherme, o Conquistador, para transformar a Inglaterra num feudo.
O problema não é como arranjar exércitos que trabalhem para o Vaticano. Os senhores da guerra eram uma espécie de servos. Mas como conseguir o dinheiro para pagar a guerra? Foi a igreja romana que, no século XIII, organizou banqueiros mercantes da Itália, os banqueiros do norte da Itália, os lombardos. Eles foram chamados para fazer empréstimos à Inglaterra e outros países, que estavam indo para a guerra.
Para fazer isso, a igreja cristã romana reverteu todo o espírito do cristianismo, dizendo que cobrar juros é afinal aceitável, se você fizer isso para um bom propósito cristão, que aprovamos, como ir para a guerra. Dos séculos XIII e XIV até o século XX, quase todas as dívidas externas, as dívidas internas, as dívidas públicas dos países europeus, eram todas dívidas de guerra. E isso continuou. O importante sobre as dívidas de guerra é que elas não são auto-amortizáveis. Ir para a guerra não lhe dá dinheiro para pagar aos credores. E isso é um problema.
As dívidas do Sul global não são, em grande parte, resultado de guerras internacionais. Isso torna as dívidas do Sul global diferentes das dívidas europeias. Você poderia chamar a isso de uma guerra de classes ou caraterizar o que fazemos como uma guerra geopolítica, das nações industriais contra os fornecedores industriais.
RADHIKA DESAI: É imperialista. É imperialista.
MICHAEL HUDSON: E é um colonialismo financeiro, você pode dizer. Para mim, o problema começou a surgir já em meados da década de 1960. Em 1965, eu era economista de balança de pagamentos do Chase Manhattan Bank. E a maioria dos bancos tinha os seus próprios economistas para julgar quanto dinheiro os clientes do Terceiro Mundo poderiam pagar. Eles me fizeram olhar para o Chile, a Argentina e o Brasil, e eles disseram, veja qual é o potencial de exportação deles. Veja como está a balança de pagamentos deles. Quanto superavit eles estão ganhando, que de alguma forma podemos fazê-los prometer dar-nos, para que façamos os empréstimos? Porque o departamento internacional do banco ganhou dinheiro emprestando para esses países.
Fiz uma análise rápida e pude dizer, bom, se você olhar para a balança de pagamentos, eles já estão vivendo de empréstimos. Eles já não estão gerando um superavit. E você já tinha bancos, em meados dos anos 1960, começando a cortar os empréstimos porque ainda era — emprestar para esses países ainda era, em grande parte, um fenômeno de mercado naquela época.
Eles disseram, bom, nós somos os credores. Não queremos fazer um empréstimo que dê errado. E a única maneira de garantir os nossos empréstimos é saber que há um superavit comercial e um superavit da balança de pagamentos. Isso, hoje em dia, deixou de ser o problema.
Então, em algum momento, e acho que deve ter sido na década de 1970, eu era consultor de várias corretoras e subscritores. E eu era conhecido como um dos três doutores sombrios (“Dr. Doom”) naquela época. Eu disse: não vejo como a América Latina pode pagar, para poder assumir mais dívidas. Ela já está demasiado endividada.
Tivemos uma reunião na Reserva Federal e o seu funcionário se virou para mim e disse: Sr. Hudson, você diz que esses países latino-americanos não podem pagar as dívidas. Mas suponha que você fez sua análise para a Inglaterra. A Inglaterra está no mesmo barco. Não há como dizer como é que ela pode pagar suas dívidas, não é assim? Isso foi quando a Inglaterra estava desvalorizando a libra esterlina. Eu disse, sim, isso é absolutamente certo. E o homem da Reserva Federal disse: bom, mas ela paga sua dívida. E como paga ela? Nós lhes emprestamos o dinheiro porque eles são nossos aliados. E se disséssemos aos bancos: vocês podem emprestar dinheiro a esses países sem meios visíveis de pagamento. Nós os apoiaremos. Então você não precisa de fazer uma análise económica. É uma análise política. E se eles são amigos, assim como para a Inglaterra, nós os apoiaremos.
Como você sabe, a Inglaterra acabou desvalorizando. No final dos anos 1970, eu estava trabalhando para a United Nations Institute for Training and Research (UNITAR). E em 1978, 1979, escrevi e publiquei uma série de artigos para a UNITAR, dizendo que o Sul global não tinha condições para pagar. Eu fui registrado dizendo isso mesmo numa conferência da UNITAR, na Cidade do México. Então já se tornara claro que eles não poderiam pagar, a menos que os E.U.A. lhes emprestassem o dinheiro. Bom, em 1982, como discutimos antes, o México inaugurou toda a bomba da dívida latino-americana, por não ser capaz de fazer os pagamentos da sua dívida de curto prazo, chamada tessobonos, que estava rendendo talvez 20% naquela época, porque os investidores baseados no mercado viram que eles não poderiam pagar. Era já evidente há um longo tempo.
Isso levou a um efeito dominó. Argentina, Brasil e o restante da década de 1980 viram entrar em ação o Plano Brady. Os detentores de títulos internacionais se reuniram e disseram: sabemos que os países do Terceiro Mundo, como eram chamados na época, não podem pagar. Temos que reduzir as dívidas para algo que seja pagável, o que, pelo menos, dará aos credores uma ideia de que, sim, neste nível reduzido, eles podem pagar o serviço das suas dívidas.
Este acordo não teve crédito entre os investidores norte-americanos ou europeus. Em 1989 e 1990, fui contratado pela Scudder, Stevens & Clark, que era uma gestora de dinheiro, para iniciar o que se tornou o primeiro fundo de dívida soberana do mundo, principalmente para dívida do Terceiro Mundo. Quando me contrataram, eles disseram, Michael, você é conhecido como o Dr. Sombrio. Você tem dito que os países não poderiam pagar. Suponha que iniciamos um fundo de títulos do Terceiro Mundo e que seja apenas um fundo de cinco anos. Você acha que a Argentina e o Brasil poderão satisfazer os pagamentos dessa dívida pelos próximos cinco anos?
Isso foi numa época, em 1989, quando o Brasil e a Argentina estavam pagando 45% de juros sobre seus títulos em dólares. Imagine você, em dois anos, você recebe todo o seu dinheiro de volta em juros e ainda tem todos os títulos na mão. Scudder viajou pelos Estados Unidos da América, reunindo-se com bancos, nenhum banco, nenhum fundo de investimento ou fundo de pensões estava disposto a investir. Eles disseram, não, nós fomos queimados com os títulos da dívida latino-americana. Não queremos fazer parte disso.
Eles foram para a Europa, Inglaterra, Alemanha, França, ninguém quis comprar nada. Então, finalmente, eles foram ter com a Merrill Lynch e perguntaram: vocês podem subscrever estes títulos? Vamos encontrar algum país que possa comprar estes títulos a 45%. A Merrill Lynch disse ao seu escritório latino-americano na Argentina para emitir ações neste fundo de dívida soberana. Scudder queria chamá-lo de Sovereign High Interest Trust (SHIT), mas acho que eles tiveram um nome que não abarcava bem esse sentido.
As únicas pessoas que vieram a comprar dívidas argentinas e brasileiras as compraram no mercado argentino, onde as ações foram vendidas e a empresa foi organizada nas Índias Ocidentais Holandesas. Os norte-americanos não tinham permissão para comprar essas ações. Quando você tem um fundo offshore, isso geralmente é apenas para estrangeiros.
As pessoas que estavam comprando dívidas soberanas em dólares da Argentina e do Brasil eram membros desses mesmos países. E, obviamente, era a oligarquia que estava fazendo isso. Sem dúvida, os banqueiros centrais e as famílias dos presidentes, compraram porque, bom, somos responsáveis por pagar a dívida, então, é claro que compraremos o fundo. E se ficarmos inadimplentes, venderemos as dívidas a algum otário. Mas, enquanto formos responsáveis por decidir pagar as dívidas em dólares, podemos comprá-las. Você tinha essas oligarquias clientes em todo o Terceiro Mundo, basicamente comprando a dívida do Sul global. E o fundo descolou. Foi o segundo fundo com melhor desempenho em todo o mundo em 1990. Acho que um fundo imobiliário australiano ficou em primeiro.
De repente, isso levou a uma nova onda de empréstimos para os países do Terceiro Mundo, em grande parte porque o F.M.I. disse, bom, estes países estão na órbita dos E.U.A.. Estamos apoiando os seus governos. Afinal, isso foi depois do derrube da democracia chilena, quando o governo dos E.U.A. tinha equipes de assassinos por toda a América Latina, colocando no poder oligarquias clientes que, é claro, iriam pagar a dívida em dólares. Nesse ponto, deixou de ser uma relação de mercado. Tornou-se completamente política e todos os investidores dos E.U.A. e da Europa começaram a saltar para bordo.
RADHIKA DESAI: Bom, isso é muito interessante, Michael. E eu só gostaria de esclarecer que eu não estava dizendo que a dívida às vezes é uma relação de mercado e às vezes uma relação política. Eu acho que é sempre uma relação política. E mesmo o chamado prémio de risco que os países supostamente pobres deveriam estar pagando, porque, como sabe, os empréstimos a eles são mais arriscados. Então isso significa que eles têm que pagar taxas de juros mais altas. Estudos mostraram que, na verdade, esse chamado prémio de risco é algo totalmente fabricado. E que esses credores privados ganham muito mais dinheiro emprestando aos países pobres do que emprestando aos países ricos.
Nesse sentido, eu diria que o crédito é sempre uma relação política e todo tipo de coisa, incluindo preconceitos sociais, entram em jogo para que, como sabe, países pobres sejam quase sempre considerados uma má aposta. E, portanto, eles têm que pagar taxas de juros mais altas. Eles têm condições piores da mesma forma que, dentro de um país, certos grupos marginalizados, seja negros norte-americanos ou latino americanos, terão que pagar mais, como sabe, a sua classificação de crédito será menor e todo esse tipo de coisas. Então, nessas formas, eu acho que é sempre uma relação política.
Você já começou a falar sobre a dívida do Terceiro Mundo. Então, vamos falar sobre a dívida do Terceiro Mundo, porque eu acho que, sabe, você deu uma boa narrativa, mas há um conjunto muito importante de eventos para os quais eu gostaria de chamar a atenção, porque isso nos permitirá olhar para a atual crise da dívida numa perspetiva histórica.
Estou falando da crise da dívida que eclodiu em 1982. Mas, é claro, a sua génese remonta, pelo menos, a uma década antes disso. Então, isso remonta, na verdade, ao fechamento da janela do ouro, ao colapso do sistema de Bretton Woods, ao aumento do preço do petróleo, que primeiro quadruplicou, no início dos anos 1970, e depois dobrou novamente, no final dessa década, em parte por causa do declínio do dólar. O dólar caiu tanto que todos esses exportadores de petróleo disseram, bom, se vamos cobrar em dólares, precisamos de mais dólares, preços mais altos para o nosso petróleo.
Quando os preços do petróleo quadruplicaram, as pessoas se lembram disso como um grande choque para o sistema. Mas, nos bastidores, havia algo mais acontecendo. Isso foi o começo, como sabe, Michael, você e eu tivemos já as nossas discussões sobre o sistema do dólar e assim por diante. E uma das coisas que enfatizamos é que, depois de 1971, depois que o vínculo entre o dólar e o ouro foi quebrado, o dólar foi colocado num novo tipo de base. E essa nova base é o que chamamos de financeirização, que são vastas expansões da atividade financeira denominada em dólar, que aumentaram artificialmente a procura de dólares.
Então, agora o que começou a acontecer é que, primeiro de tudo, Henry Kissinger, no seu típico estilo maquiavélico, após os choques do petróleo, foi a todos os países árabes, os países exportadores de petróleo e disse: olhem, pessoal, estamos bem, vocês sabem, se vocês precisam de ter preços mais altos para o petróleo, tudo bem, nós aceitaremos isso. Mas vocês devem colocar o dinheiro extra que estão recebendo, vocês devem colocá-lo, vocês devem depositá-lo em instituições financeiras ocidentais, em depósitos denominados em dólar. E, de facto, foi isso que eles fizeram.
Então os bancos ocidentais ficaram cheios de dinheiro. De repente, eles estavam sentados em cima de enormes pilhas de dinheiro. E você acha que isso seria uma coisa boa para os bancos. Mas, na verdade, é uma grande dor de cabeça para os bancos, porque se você está sentado em cima de pilhas de dinheiro, sobre as quais tem que pagar juros, você tem que empregá-lo de alguma forma para ganhar os juros que você pagará aos depositantes. Então você tem que encontrar tomadores de empréstimos.
E foi quando as instituições financeiras ocidentais entraram num absoluto frenesim de empréstimos, emprestando para qualquer um, qualquer país do Terceiro Mundo que se oferecesse para tomar emprestado deles. E, de fato, eles até emprestaram, desculpe, apenas um ponto final sobre este ponto, apenas mais uma coisa, eles até emprestaram aos países socialistas neste momento. Desculpe, você queria dizer algo, Michael.
MICHAEL HUDSON: Não foram apenas os bancos. Na década de 1990, você teve também os fundos de títulos privados a entrar.
RADHIKA DESAI: Ainda estou falando sobre a década de 1970. Desculpe, ainda estou falando sobre a década de 1970. Então, talvez eu termine a minha história da década de 1970, depois chegaremos à década de 1990. Porque é uma história realmente interessante. Então, nesse ponto, eles começaram a emprestar como loucos.
E nesse contexto, na década de 1970, lembre-se, a inflação estava muito alta, e as taxas de juros mal conseguiam acompanhar. Então, na verdade, muitas vezes, a taxa de juros real era negativa. Então, os países do Terceiro Mundo que vinham pedindo empréstimos há tanto tempo, para empreender a sua industrialização, e assim por diante, eles, nas palavras de um escritor que eu estava lendo, esqueci-me do seu nome, mas ele basicamente disse que era como uma máquina mágica de dinheiro, como sabe, eles podiam obter quantidades ilimitadas de crédito por quase nada. Na verdade, os bancos estavam pagando para eles tomarem empréstimos, se as taxas de juros fossem negativas. Então, esse foi o contexto em que muitos desses empréstimos ocorreram.
Mas a inflação persistiu. E finalmente, a Reserva Federal, o novo presidente do Reserva Federal, Paul Volcker, decidiu que iria arregaçar as mangas e acabaria com a inflação induzindo uma recessão. Então, o que ele fez foi simplesmente restringir a oferta de moeda. E ele disse: vou apenas restringir a oferta de moeda. E não me importa para onde vão as taxas de juros. E elas saltaram, e subiram, de taxas de juros reais negativas, para taxas de juros de dois dígitos, algo como 15, 18 e 20%. E então, de repente, o fardo da dívida de todos esses países devedores, foi alterado, não por causa de nenhum desenvolvimento secular. A condição deles mudou como resultado de uma única decisão por parte de um único tomador de decisões.
Então, Paul Volcker induziu uma crise dentro dos Estados Unidos da América, uma recessão muito longa, mas no Terceiro Mundo, ele induziu a crise da dívida. E então a crise da dívida estourou, particularmente com o México, o Brasil e a Argentina deixando de pagar suas dívidas em 1982. E eu até me lembro, naquela época, Fidel Castro, realmente, dizendo a eles: vejam, vocês já pagaram mais do que o suficiente. Vocês não precisam, vocês deveriam repudiar essa dívida, vocês deveriam simplesmente riscar essa dívida, etc..
Mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. E todos os países do Terceiro Mundo, que eram essencialmente, a América Latina, seguida pela África. Esses dois continentes, em particular, realmente passaram pelo espremedor, economicamente, eles estavam no espremedor, eles experimentaram retardo económico.
De repente, eles tiveram que expandir as suas exportações. Dado que eles mal tinham ainda se industrializado, tudo o que eles podiam exportar era o que todos os outros países do Terceiro Mundo exportariam, todos os tipos de mercadorias primárias, seja café, seja algodão, seja chá, seja cacau, seja, como sabe, morangos, o que você queira. Você não tinha espaço para andar, com todo o tipo de mercadorias primárias frescas do Terceiro Mundo acumuladas. O algodão, que era difícil de comprar, estava subitamente inundando os mercados ocidentais. A seda, que era difícil de comprar, estava subitamente inundando os mercados ocidentais.
Então você teve essa grande cornucópia, os países ocidentais conseguiram comprar coisas baratas. Porque, é claro, se todo país que pode produzir café estiver exportando café, se todo o país que está produzindo algodão estiver exportando algodão, os preços caem. E então eles tiveram que correr cada vez mais para permanecer no mesmo lugar. Então os países do Terceiro Mundo foram realmente para o espremedor. E, claro, os gastos sociais foram cortados, e todo esse tipo de coisas.
Então, essa foi a génese e a erupção da crise da dívida do Terceiro Mundo. E, num minuto, Michael, eu sei que você quer dizer algo. Vou deixar você entrar. E depois, iremos então falar sobre a atual crise da dívida.
MICHAEL HUDSON: Eu quero apenas resumir o que você disse. Quando os preços do petróleo quadruplicaram, o acordo que foi feito com a Arábia Saudita foi: você pode cobrar o que quiser, mas manter seus ganhos nos Estados Unidos da América. Isso inundou o mercado dos E.U.A. com dinheiro. O dinheiro foi colocado nos bancos dos E.U.A.. E você está certa. Os bancos disseram, o que vamos fazer com todo este dinheiro? Eles tinham que encontrar clientes. E os clientes pagantes eram os devedores do Terceiro Mundo.
O que levou tudo isto ao seu fim? Quando Paul Volcker aumentou as taxas de juros, como você disse, de repente, os investidores internacionais venderam suas participações estrangeiras e disseram, vamos comprar antes títulos do tesouro dos E.U.A. com rendimento de 20% em 1980. Eu me lembro muito bem disso. Então você está certa. Isso levou a toda a crise. De repente, não havia mais esse jorro de dólares sauditas nos bancos dos E.U.A.. E quando o crédito parou, de repente, o México e outros países latino-americanos não conseguiram tomar de empréstimo os juros que tinham de pagar.
Ao longo da década de 1970, como você apontou, basicamente, os países tomavam emprestado e não tinham problemas para servir a dívida porque tomavam de empréstimo os juros para o fazer. Isso é um esquema Ponzi.
RADHIKA DESAI: Os preços das mercadorias também estavam altos. Lembre-se, essa foi a década de 1970 inflacionária. Porque os preços das mercadorias estavam altos, então eles podiam ganhar dinheiro para pagar. Quer dizer, não é certo que um país do Terceiro Mundo não possa ganhar o que tem para pagar. A verdadeira dificuldade é que o empréstimo ocorreu não porque os países do Terceiro Mundo precisassem do dinheiro. O empréstimo ocorreu porque os credores privados precisavam de emprestar. Então, eles basicamente foram propagandeando esses empréstimos junto dos países do Terceiro Mundo.
MICHAEL HUDSON: Sim, concordo. Sim.
RADHIKA DESAI: Então, vamos dar uma olhadela nisso. Tenho alguns gráficos. Sabe, o United Nations Council on Trade and Development (UNCTAD), como mencionei antes, publicou um relatório maravilhoso chamado A World of Debt (Um Mundo de Dívida). É um relatório de 2024, que tem alguns gráficos e tabelas realmente instrutivos e vou compartilhar alguns deles.
Então, aqui vamos nós. Este é um gráfico, Michael, que mostra que a dívida pública cresceu duas vezes mais rápido nos países em desenvolvimento:
Então, se você vir aqui, tem os países desenvolvidos e a sua dívida cresceu. E, claro, vimos que a dívida pública cresceu particularmente desde 2020. E você pode ver que a linha amarela sólida são os países em desenvolvimento. E isso é basicamente uma linha de índice. Então, 2010, imagine que todos os países, todas essas três categorias de dívida dos países eram 100 em 2010. Então, ela foi para os países desenvolvidos de 100 para um pouco mais de 150, talvez 160. Mas para os países em desenvolvimento, a dívida pública total foi de 100 ao longo de cerca de 12, 13 anos para mais de 350. Então, isso é realmente muito interessante.
E, claro, o que é realmente interessante também é que, se você olhar para os países em desenvolvimento excluindo a China, é muito menor porque a China tem tomado muitos empréstimos. Mas é claro que não estamos preocupados com a capacidade de crédito da China porque a China tem muito dinheiro para pagar. A China tem um enorme poder produtivo para pagar. Então, a parte problemática é a linha quebrada ao meio, entre a linha dos países desenvolvidos e a linha dos países em desenvolvimento incluindo a China. Essa é a parte problemática.
MICHAEL HUDSON: É difícil começar em 2010 porque se você tivesse começado em 1990, teria incluído a crise da dívida asiática de 1998. E isso foi todo o colapso da moeda asiática em resultado da crise da dívida para quase todos os lugares, exceto a Malásia. Houve uma grande liquidação do Terceiro Mundo, especialmente asiático.
RADHIKA DESAI: Sim, mas isso não era dívida pública, Michael. Isso era realmente o capital ocidental entrando nesses países. Quer dizer, acho que temos que colocar entre parênteses, temos que retirar, temos que dedicar outro programa para falar sobre a crise da dívida de 1998. Então, em 1998, a crise cambial foi o que foi porque o capital privado ocidental estava indo para todos os tipos de mercados de capital, nesses chamados grandes mercados emergentes.
Mas vamos voltar para esta crise da dívida pública, por enquanto, e então faremos outro programa sobre esse fenómeno. Então, este é outro gráfico também bem interessante, aqui:
Então, os países em desenvolvimento com saída líquida de capitais relacionada com a dívida mais do que duplicou desde 2014. Então, mais uma vez, você vê aqui, estes são todos os países em desenvolvimento. Eles estão divididos entre a África, aqui a amarelo, o azul escuro é Ásia e Oceânia, e o azul claro é a América Latina e Caraíbas. E então, você pode ver que, em 2014, tinha caído para um ponto muito baixo. E desde então, essencialmente, essa dívida aumentou e passou de um pouco mais de 20 para mais de 50.
Então, você pode ver que a quantidade real de situações com saída líquida de capitais ligada à dívida pública mais do que duplicou. Ou seja, neste período, mais dinheiro tem saído desses países do que entrado neles. Então, esse é outro ponto realmente muito interessante.
E então este gráfico também é muito interessante:
Mais países enfrentam altos encargos de dívida, especialmente em África. Então, este é apenas um gráfico do número de países em desenvolvimento - novamente divididos nessas mesmas três regiões - onde a dívida pública está acima de 60% do PIB, que é quando o F.M.I. começa a soar alarmes.
E apenas para efeito de comparação, a dívida nos Estados Unidos da América passou acima de 100% do PIB recentemente, acho eu. Acho que é algo como 110 ou 120%. Não tenho a certeza sobre o número exato, mas você pode ver pela comparação com estes países que, é claro, têm menor capacidade de suporte, ou, pelo menos, são considerados como tendo menor capacidade de suporte.
E este gráfico é realmente interessante:
Então, falamos já sobre a crise da dívida do Terceiro Mundo, e havia algum capital privado, mas agora você vê que, para os países em desenvolvimento como um todo, os credores privados são hoje responsáveis por 61% da sua dívida. Essa percentagem é a mais alta no caso da América Latina e Caraíbas, como você vê num dos gráficos menores à direita, e então um pouco menor no caso da Ásia e Oceânia, e a menor de todas no caso da África.
E então as outras duas categorias, que são credores bilaterais e credores multilaterais, constituem o resto. Então, o capital privado, o dinheiro privado, está desempenhando um papel muito grande na génese desta crise da dívida. E então, outro gráfico mostra que os pagamentos de juros dobraram em relação à receita:
Portanto, para os países em desenvolvimento como um todo, se você considerar as receitas públicas, a arrecadação de impostos desses governos, os pagamentos de juros pela dívida externa subiram de 4,2% das receitas para 7,8%. E então, novamente, no caso da África, o aumento é mais acentuado, com o aumento sendo menos acentuado no caso da América Latina e Caribe, onde já era muito alto, e aumentando menos acentuadamente no caso da Ásia e Oceânia.
Então este próximo gráfico também é fascinante, e Michael, sinta-se à vontade para entrar, mas eu acho este gráfico realmente interessante, ou estes números muito interessantes, porque o que você está olhando neles é a dívida pública total do mundo inteiro, e então qual o pedaço do mundo que gerou o quê.
Então, você pode ver que os Estados Unidos da América, é claro, geraram a maior pilha de dívida. O Japão está em segundo lugar, mas, é claro, aqui você tem de se lembrar que a dívida pública no Japão é, em grande parte, detida por japoneses. No entanto, é também dívida pública. Depois vem a França, a Alemanha, etc., e depois outros países.
E quanto ao mundo em desenvolvimento, em primeiro lugar, registe-se que a sua parcela é muito menor. E no entanto, dentro dessa parcela, é que está ocorrendo essa crise da dívida, embora a maior parte da relação devedor-credor esteja localizada nesse círculo de charme do qual Michael estava falando há pouco, no qual, essencialmente, a capacidade de pagar não é questionada, e se for questionada, em algum sentido, a Reserva Federal estará lá para a apoiar.
Sim, Michael, vá em frente.
MICHAEL HUDSON: A situação é muito pior do que os seus gráficos mostram. A dívida em relação ao PIB não tem sentido para os países do Terceiro Mundo e para quase qualquer outro país, para além dos Estados Unidos da América. A dívida não é paga com o PIB. Nos E.U.A., você poderia talvez dizer que sim, mas a dívida dos países do Sul global, dos países asiáticos, não está denominada na sua própria moeda, está em dólares.
A questão é: como transformar o PIB deles em dólares? Diferentemente dos Estados Unidos da América, esses países não têm dívida na sua própria moeda. Então, o que você realmente precisa comparar e analisar é qual é o superavit comercial e o superavit da balança de pagamentos desses países?
Estamos falando de algo como 1.000%. E agora, basta olhar para este gráfico que você acabou de colocar. Considere a África de 2010 a 2023. Até aos 9%. 9% significa que você está tendo um tempo de duplicação da dívida em cerca de oito anos. Ora, já se passaram muito mais de oito anos desde 2010. Você teve a dívida da África duplicando e quadruplicando, simplesmente pelos pagamentos de juros.
Então, a maior parte da dívida desses países, os países do Sul global, não é dinheiro que foi emprestado. São juros que foram acrescendo à sua dívida existente. E eles podem se endividar para pagar os juros, mas tudo isso é um acúmulo de juros, não empréstimos. O fluxo real de novos créditos para esses países já morreu, secou, há anos. O que há são apenas os juros acumulados sobre as dívidas passadas, que eles assumiram com a garantia de que, de alguma forma, com o F.M.I. coordenando as coisas, os seus interesses seriam cuidados. E também sob a ficção de que eles seriam capazes de pagar essas dívidas, quando não havia como a maioria dos países do Sul global pagar tais dívidas, especialmente dívidas dolarizadas sem qualquer meio de ganhar dólares, que eles realmente não têm. Então o que fizeram eles? Durante essas décadas que você está mostrando, eles estavam essencialmente privatizando, fazendo dívidas apenas para pagar os juros e, até certo ponto, vendendo o seu património.
RADHIKA DESAI: Correto. E aquilo a que você se está referindo, Michael, que é a retirada de fundos, é realmente mostrado neste conjunto de gráficos.
Então isso mostra que a retirada por credores privados causa quase US$50 mil milhões em saídas. Transferências líquidas sobre dívida pública externa de países em desenvolvimento por tipo de credor. Então você pode ver aqui que a transferência líquida total de recursos passou de algo como pouco menos de 100 para positivo. Portanto, as entradas de capital nesses países, subiram para algo como 170, ou à volta disso, então caíram, pelo meio, por volta de 2014 ou algo assim, recuperaram, mas então caíram massivamente tornando-se negativas, em US$50 mil milhões negativas ou algo assim.
Dentro disto, no entanto, a dívida bilateral, que é um país emprestando a outro, ou a dívida multilateral, que são grupos de países ou organizações como o Banco Mundial, F.M.I., etc., emprestando para um determinado país, permaneceram relativamente estáveis. O que aconteceu foi que, em resposta ao aumento das taxas de juros nos países ocidentais, essencialmente, os capitais privados se retiraram desses mercados. Então, essencialmente, são eles os causadores, é a retirada do capital privado que criou este problema.
MICHAEL HUDSON: Não gosto do eufemismo transferências de recursos. Nem um único centavo de recursos foi transferido para esses países. Um empréstimo financeiro não é um recurso. Um recurso é um meio tangível de produção que ajuda você a crescer. Um recurso é uma fábrica. Um recurso é algum meio de produção. Dar dinheiro aos países, especialmente dinheiro para pagar as suas dívidas, não é um recurso. É uma reivindicação financeira. É o oposto de um recurso. É uma dívida que os onera, uma algema financeira e uma camisa de força sobre eles, não uma transferência de recursos. Isso é conversa de credor do F.M.I..
RADHIKA DESAI: Claro, absolutamente. E esse é outro ponto importante que você está levantando porque, eu acho que, particularmente a dívida ocidental, parece ser desse tipo que, essencialmente, é usada para espremer, como sabe, mais e mais capital desses países, sem contribuir para sua capacidade de produzir.
Enquanto eu acho que, mais recentemente, a ascensão da China como um grande credor contribuiu muito mais para criar capacidade produtiva nesses países, seja fazendas, minas, fábricas, infraestrutura ou o que quer que seja. Mas aqui está a outra coisa sobre a qual estávamos falando. Como sabe, nós estávamos apontando que, países do Terceiro Mundo pagam um prémio de risco mais alto. Então, como sabe, os custos de empréstimos dos países em desenvolvimento, diz este relatório, são muito mais altos do que os dos países desenvolvidos.
Então, qual é a relação de rendimento entre títulos de dívida de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento?
Portanto, a Alemanha paga 0,8% sobre empréstimos. Os Estados Unidos da América, curiosamente, pagam muito mais do que a Alemanha, na verdade três vezes mais, que é 2,5%. Os países asiáticos pagam 5,3%. Os países latino-americanos e caribenhos pagam 6,8%. E os países africanos pagam quase 10% de juros por esses empréstimos.
Portanto, estes são, essencialmente, os contornos dessa crise da dívida que estamos analisando.
Mas a génese também foi muito semelhante. Como sabe, antes estivemos enfatizando a génese da crise da dívida de 1980, que estourou em 1982 e continuou pelas próximas duas décadas, mais ou menos. Isso, a génese dessa crise da dívida esteve no desespero das instituições financeiras ocidentais para emprestar a países do Terceiro Mundo. Então você pode muito bem perguntar, de onde veio o desespero dos financiadores ocidentais para emprestar dessa vez?
Bom, a história é muito simples. Como as pessoas sabem, já no rescaldo da bolha das dotcom, Alan Greenspan, era ele? Sim, acho que era já Alan Greenspan que estava buscando então, começando a buscar, uma política de juros baixos. E então, em meados dos anos 2000, ele foi forçado a começar a aumentar as taxas de juros, por causa da pressão descendente sobre o dólar, que eventualmente, depois que as taxas de juros atingiram cerca de 5%, ou mais, estourou com as bolhas do imobiliário e do crédito pessoal.
E no rescaldo do caos que se seguiu, a Reserva Federal, desculpe, aqui devo acrescentar ainda mais uma coisa. Greenspan estava buscando uma política de juros baixos porque sentia que essa era a melhor maneira de manter a bolha imobiliária. E de facto isso estava correto, porque a bolha imobiliária naquela época, eu observo isso no meu livro Geopolitical Economy, a bolha imobiliária era a única coisa que estava impulsionando qualquer tipo de crescimento económico. Quer dizer, era bem anémica, mas era tudo o que você tinha então. O investimento estava no fundo do poço. Então eles pensaram, tudo bem, vamos deixar explodir, deixar a bolha imobiliária explodir e ficaremos bem. Mas, é claro, isso então colocou pressão descendente no dólar, porque por quanto tempo pode você ter uma política de juros de 2% e 3% e ter um dólar forte?
Bom, o dólar estava enfraquecendo e isso era demais. Os preços das importações estavam crescendo, os preços do petróleo estavam subindo. Então Greenspan começou a aumentar as taxas de juros, e vejam só, as bolhas imobiliárias e de crédito estouraram. Agora, após o estouro as bolhas imobiliárias e de crédito, é claro, eles buscaram uma política de juros ainda mais baixa.
A ZIRP (“Zero Interest, Rates Policy”), a chamada política de juros zero, surgiu. Eles tinham flexibilização quantitativa, eles tinham todos os tipos de maneiras de injetar mais e mais dinheiro no sistema bancário, mas oferecendo-lhe cada vez menos em termos de juros, o que significa que eles foram forçados, eles foram essencialmente forçados, a assumir riscos cada vez maiores e mais apertados para obter um retorno. E entre os riscos que eles agora estavam dispostos a assumir, estava emprestar aos países do Terceiro Mundo. E, então, os países do Terceiro Mundo começaram a desfrutar de uma grande cornucópia em termos de fundos recebidos.
Mas, é claro, com as mesmas causas, a mesma coisa aconteceu. A inflação voltou aos Estados Unidos da América e a inflação essencialmente começou a pressionar. Para conter a inflação, a Reserva Federal foi forçada a começar a aumentar as taxas de juros, exceto que, como todos sabem, ela as aumentou para cerca de 5, 5,25%, mas não as aumentou mais, Jerome Powell não as aumentou mais, porque mesmo trazê-las até esse ponto desencadeou uma espécie de colapso financeiro em câmara lenta, cujo início vimos com a falência do Silicon Valley Bank e outros bancos semelhantes, a que assistimos em março de 2023.
E há muitos outros em perigo. Agora estamos vivendo no tempo, não apenas desta ou daquela bolha, mas da bolha de tudo. E é bem possível que todos esses mercados de ativos venham a despenhar-se, mas, no entanto, essas taxas de juros subiram e criaram uma crise da dívida para os países em desenvolvimento que já estavam sofrendo com a COVID, com o revés económico que foi a COVID, que também estão sofrendo com os altos preços do petróleo, que também estão sofrendo com os altos preços dos alimentos, com os altos preços dos fertilizantes e todas essas coisas. Então, juntando tudo isso temos uma receita para o desastre para muitos países do Terceiro Mundo.
MICHAEL HUDSON: Como pode o F.M.I. fazer empréstimos a esses países para que eles possam servir a dívida e continuar a fazê-la rolar, emprestando a eles as taxas de juros, para evitar a inadimplência, se eles têm os problemas que você descreve? Esta não é uma relação de mercado. Se definirmos uma relação de mercado como credores agindo responsavelmente, eles não farão empréstimos a países que não podem pagar as suas dívidas, porque a relação de mercado deve equilibrar os riscos com a taxa de juros. Isso não aconteceu de forma alguma. Os riscos são tão altos que as taxas de juros teriam que ser muito, muito mais altas.
Então tem que haver outra explicação. A explicação é que o F.M.I. e os formuladores das políticas norte-americanas sabem que as dívidas não podem ser pagas. O que estamos sempre dizendo é que estas dívidas não podem ser pagas. Isso não é um segredo, conhecido apenas por nós. A razão pela qual os empréstimos são feitos a países que não podem pagá-los é, precisamente, porque se um país não pode pagar, com seus ganhos de exportação, com seus outros balanços de pagamentos e fluxos, então ele tem que fazer o que um indivíduo faria. Se você pedir dinheiro emprestado ao banco para uma hipoteca e não puder pagar, o banco fica com a sua casa. Foi o que aconteceu com os países do Sul global.
O F.M.I. dirá: oh, você não pode pagar? Bom, nós lhe daremos o empréstimo, para que a sua moeda não desvalorize novamente e aumentem os seus preços ao consumidor à medida os preços de importação sobem devido aos câmbios. Nós lhe daremos o empréstimo, mas você vai ter de vender os seus serviços públicos, o seu petróleo e os seus recursos. Vamos trazer aqui os nossos amigos do Banco Mundial. O Banco Mundial está aqui sempre para o ajudar, lembra-se?
O Banco Mundial tem todo um enorme e sapientíssimo grupo consultivo para lhe dizer: nós o ajudaremos a privatizar os seus recursos. Faremos pelo Sul global exatamente o que a Black Rock está fazendo pela Ucrânia. Nós o ajudaremos a vender todos os seus meios de autossuficiência para os estrangeiros. Podemos ajudá-lo a deixar de ser um país soberano e a tornar-se uma boa, enfim, aquilo a que a América chama de democracia, deixando os estrangeiros comprarem todos os seus ativos, que você está privatizando, ao estilo Margaret Thatcher.
Isso coloca em questão, o que é uma dívida soberana? Esses países são soberanos, se tiverem que vender os seus meios básicos de sustento para estrangeiros? Eles não são soberanos de forma alguma. O F.M.I. e o Banco Mundial trabalham juntos, como um golpe duplo, para impedir que outros países assumam o controle do seu próprio destino, para impedir que os países do Sul global usem as suas receitas fiscais para realmente investir em gastos sociais e na formação de capital e para subsidiar a sua própria autossuficiência agrícola e industrial, tornando-os definitivamente incapazes de fazer isso.
A função de sobrecarregar os países com dívidas é que todo o seu superavit fiscal doméstico passa a ser dedicado ao pagamento a credores estrangeiros, não ao uso nos seus próprios países. Isso significa que os países devedores deixaram de ser soberanos em qualquer sentido da palavra. Eu acho que essa é a lógica. E a consciência de que isso é assim está se espalhando entre os países do Sul global. Eles percebem que pagar dívidas externas é um tipo de neocolonialismo financeiro, exceto que é colonialismo sem as canhoneiras, a menos que você seja como o Chile e a América tenha que entrar e fazer uma operação de mudança de regime. Então isso transformou toda a questão.
RADHIKA DESAI: Este também é um ponto interessante. Sabe, eu me lembro de quando o F.M.I. e o Banco Mundial completaram 50 anos, já havia um movimento para aboli-los, em grande parte, como sabe, basicamente pelas mesmas razões que você acabou de enumerar.
Eles sempre agiram como agentes de execução do capital estrangeiro, estrangeiro ocidental. E é isso que eles continuam a fazer ainda hoje. Mas sabe de uma coisa? E você mencionou, Michael, a crise financeira de 1998. Após a crise financeira de 1998, a maneira como o F.M.I. interveio no caso da Coreia do Sul, que não era um país subdesenvolvido, é uma economia extremamente diversificada, industrial e sofisticada. E eles, basicamente, tentaram tratá-la da mesma forma que você descreveu, como sabe, forçando uma espécie de venda em saldo de ativos, tanto privados quanto públicos, na Coreia do Sul e assim por diante.
Muitos países começaram a tomar nota. E, na verdade, o F.M.I., o F.M.I. em particular, mas também todo o portfólio de empréstimos do F.M.I. e do Banco Mundial, encolheu, porque os países do Terceiro Mundo também começaram a ver que estavam podendo receber dinheiro, é claro, de forma privada, depois de 2000, de outras fontes. O crédito chinês estava se tornando cada vez mais disponível. Então, como resultado, o papel dessas instituições diminuiu. E elas não são mais tão poderosas. Acho que estão tentando se agarrar a algum tipo de papel internacionalmente. Mas acho que, no novo ambiente, exatamente como esta última crise da dívida será resolvida será interessante de ver.
Por exemplo, nos nossos programas anteriores, temos falado sobre como a maioria mundial está mostrando sinais crescentes de solidariedade, os países do BRICS, o BRICS está se expandindo, a China está criando novas alianças e assim por diante. Agora, isso poderá talvez levar os países devedores a criar uma frente conjunta e dizer: ok, vocês querem lidar connosco como um grupo de credores, nós lidaremos com vocês como um grupo de devedores. E veremos onde isso vai dar. Acho que se tal coisa acontecesse, seria bem interessante. Acho que poderia acontecer, depende de muita coisa.
Acho que quanto mais, como sabe, no início do programa, falávamos sobre o facto de que, se credores privados podem ser solicitados a fazer um corte substancial para a Ucrânia, a fim de esta lutar numa guerra, por que é que credores privados não poderão ser solicitados a fazer um corte substancial para a dívida do Terceiro Mundo, para que as crianças possam comer, ou ir à escola, ou ter água limpa, ou o que quer que seja.
Então, em todas essas formas, acho que a dívida, o caráter político da dívida se tornou cada vez mais aberto. Também é assim com a armamentização do sistema financeiro pelos E.U.A., por causa do crédito, como sabe, por causa do sequestro de ativos russos, e ativos venezuelanos, e ativos afegãos, e o que quer que seja. Então, o caráter político de todas essas coisas está se tornando mais claro. Então, a questão é: a maioria mundial, o mundo em desenvolvimento, o mundo em desenvolvimento juntamente com a Rússia e a China e assim por diante, realmente tomarão medidas, realmente agirão de acordo? Sim, por favor, continue.
MICHAEL HUDSON: Aqui está o problema. Você não pode pedir emprestado para sair da dívida. Tudo o que isso faz é adicionar ainda mais pagamentos de juros, e é um esquema ponzi. O facto é que os países do Sul global, e outros países, não podem pagar a dívida com a sua produção existente, porque não podem imprimir dólares. Eles só podem imprimir a sua própria moeda, e se eles jogarem isso no mercado para comprar dólares, essa moeda vai cair muito, os seus preços de importação sobem, e eles têm inflação.
Um país pode dizer: ok, eu percebo, como a Argentina ou o Brasil, nós percebemos isso, mas se não pagarmos a dívida, então o crédito dos detentores de títulos pode atuar como eles fizeram com a Argentina, sob o juiz Thomas Griesa. Outro Griesa pode dizer: bom, tome todos os ativos deles no exterior que você puder apanhar.
Você mencionou que a China mudou o cenário. Só há uma maneira de os países do Terceiro Mundo repudiarem a dívida, e é unindo-se e dizendo: bom, vamos repudiar a dívida, e se os detentores de títulos na América e na Europa tentarem tomar nossos recursos lá fora, então retaliaremos, nacionalizando a propriedade estrangeira, o próprio solo, os direitos minerais e os serviços públicos que tivemos que vender sob as promessas do F.M.I. de que isso nos tornaria mais competitivos.
O problema remonta a 1955, na Conferência de Bandung, quando as nações não alinhadas já viam que havia um problema, e você mencionou antes como isso foi reconhecido nos anos 1970, reconhecido nos anos 1980 e 1990, mas naqueles pontos, não havia como os países se unirem. A única maneira que vejo, na prática, para os países do Sul global cessarem de pagar as suas dívidas é eles dizerem: desculpe, você fez maus empréstimos. Se você fez um empréstimo que não podemos pagar, então você falhou em fazer o que os credores deveriam fazer, ou seja, uma análise de mercado garantindo que só faremos empréstimos que podem ser pagos. Caso contrário, você está nos fazendo um empréstimo que não pode ser pago, e não vamos sacrificar o nosso crescimento e vender nossos recursos naturais só porque você fez um mau empréstimo. Esse é o seu problema, não o nosso problema.
O problema para os devedores é tornar o problema do mau empréstimo um problema dos credores, não o problema deles próprios, e isso requer uma reestruturação de todo o sistema financeiro internacional e, na verdade, o tipo de rotura entre a maioria global e os EUA-NATO de que temos falado. Até agora, embora se fale de um banco BRICS, não há nada na escala daquilo que falamos que tem de ser feito. Ainda precisa de haver uma mudança na consciência de que as dívidas não podem ser pagas e não devem ser pagas e são, de facto, dívidas odiosas.
Essa é a consciência que eu acho que pode levar mais um ou dois anos a formar-se, e a razão pela qual estamos tendo esses programas geopolíticos é para tentar espalhar essa consciência de dizer que este não é um problema que possa ser resolvido. Não pode ser resolvido. É um beco sem saída (“quandary”), e a maneira de evitar um beco sem saída é mudar todo o sistema. Diga: ok, tem sido um sistema mau nos últimos 80 anos, Bretton Woods e a dominação dos E.U.A., agora é hora de sermos um país soberano e dizer que o nosso próprio crescimento vem antes de pagar as dívidas aos credores estrangeiros.
RADHIKA DESAI: Acho que, Michael, você está absolutamente certo. Há algumas questões realmente complicadas aqui para desembaraçar, mas eu diria que, de muitas maneiras, a busca por alternativas ao sistema do dólar, a esse sistema predatório do dólar sobre o qual Michael e eu conversamos, até certo ponto, o sistema do dólar que requer essas formas de empréstimos predatórios sobre as quais temos falado hoje, esse sistema do dólar, é bem possível que ele entre em colapso antes que as alternativas estejam em vigor. É por isso que as coisas são tão urgentes, porque essencialmente, como sabe, nós mostramos já aqui aquele gráfico com a dívida dos E.U.A.. A dívida dos E.U.A. está crescendo para além da capacidade dos mercados para sustentá-la.
O F.M.I. alertou repetidamente, nos últimos meses, para a quantidade insustentável da dívida dos E.U.A., e a Reserva Federal já está apoiando os mercados de títulos do tesouro porque os mercados de títulos do tesouro estão entrando em colapso. Essa ideia de que os Estados Unidos da América podem emitir quanta dívida quiserem e o mundo, o mundo grato, comprará mais e mais dela, é completamente lixo. O mundo não está pronto para absorver a quantidade de dívida que os E.U.A. estão dispostos a imprimir. E uma vez que o mercado de títulos do tesouro caia, o mesmo acontecerá com muitas outras coisas.
Talvez devêssemos fazer outro programa nosso sobre o sistema do dólar, porque, realmente, as coisas estão chegando a um ponto crítico, porque a Reserva Federal não pode baixar as taxas de juros, por causa da inflação, e se não as baixar, então a crise financeira virá, e nem pode aumentá-las ainda mais, para terminar o seu trabalho, porque isso significará simplesmente que a crise financeira ocorrerá ainda mais cedo. E se não fizer isso, então a inflação minará o valor do dólar norte-americano. Portanto, estará condenado se fizer e condenado se não fizer. E é aí que estamos de volta ao sistema do dólar, mas hoje tivemos esta conversa realmente interessante sobre o caráter político da dívida, o poder da dívida e a dívida do poder. Então, nos veremos novamente em breve.
(*) Radhika Desai (n. 1963) é uma economista política de origem indiana, atualmente professora no Departamento de Estudos Políticos e diretora do Grupo de Investigação em Economia Geopolítica, na Universidade de Manitoba, Winnipeg, Canadá. Depois de concluir a sua licenciatura em Ciências Políticas na Universidade Maharaja Sayajirao de Baroda, na Índia, prosseguiu a sua formação académica na Queen's University, no Canadá, onde concluiu o seu mestrado em 1986 e o seu doutoramento em 1992. Em 2000, foi professora visitante na Universidade de Bangalore, na Índia, em 2008 foi investigadora no Zentrum Moderner Orient, em Berlim, e em 2009 foi convidada académica na London School of Economics and Political Science. Desde 2020 é presidente da Society for Socialist Studies. É autora de numerosas obras, entre as quais Intellectuals and Socialism: 'Social Democrats' and the Labour Party (1994), Slouching Towards Ayodhya: From Congress to Hindutva in Indian Politics (2.ª ed. rev., 2004), Geopolitical Economy: After US Hegemony,Globalization and Empire (2013) e Capitalism, Coronavirus and War A Geopolitical Economy (2023). É também editora ou coautora de Developmental and Cultural Nationalisms (2009), Revitalizing Marxist Theory for Today’s Capitalism (2010), Theoretical Engagements in Geopolitical Economy (2015), Analytical Gains from Geopolitical Economy (2015) e Russia, Ukraine and Contemporary Imperialism (2019). É também autora de numerosos artigos na Economic and Political Weekly, New Left Review, International Critical Thought, Third World Quarterly, World Review of Political Economy e outras revistas, bem como em coleções editadas sobre partidos, economia política, cultura e nacionalismo. Com Alan Freeman, é co-editora da série de livros “Geopolitical Economy” da Manchester University Press e da série de livros “Future of Capitalism” da Pluto Press. Michael Hudson (n. 1939) é um economista norte-americano, professor de Economia na Universidade do Missouri, em Kansas City, pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College e Presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). O ISLET dedica-se à investigação sobre finanças nacionais e internacionais, rendimentos nacionais e contabilidade de balanço no que diz respeito a bens imóveis. Envolve-se também na história económica do antigo Próximo Oriente. Estudou e meditou extensamente e em profundidade sobre história e teoria económica, nas suas diversas escolas, incluindo a fisiocrática, a economia política clássica, marxista, neoclássica, keynesiana, pós-keynesiana, a teoria monetária moderna, etc.. Dedicou particular atenção ao problema da dívida, pública e privada. Foi analista financeiro em Wall Street e conselheiro económico, sobre finanças e direito fiscal, de governos de todo o mundo, incluindo a Islândia, a Letónia e a China, para além de muitas organizações não-governamentais. É autor de numerosos livros, entre os quais The Myth of Aid – The Hidden Agenda of the Development Reports (1971), Global Fracture: The New International Economic Order (1977), Super-Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (2003), Trade, Development and Foreign Debt – A history of theories of polarisation and convergence in the international economy (2009), The Bubble and Beyond (2012), Killing the Host - How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (2015), J is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of Deception (2017), …and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year (2018), Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (2021) e The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalismo or Socialism (2022), entre muitos outros. O diálogo que aqui apresentamos ocorreu num programa podcast do canal youtube “Geopolitical Economy Hour”. A tradução é de Ângelo Novo.
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