|
Se o capitalismo é “natural”, porque foi usada tanta força para o erigir?
Pete Dolack (*)
Se o capitalismo é um resultado tão natural da natureza humana, porque foi necessária a violência sistemática e leis draconianas para o estabelecer? E se a ganância é a principal motivação dos seres humanos, como poderia a grande maioria da existência humana ter ocorrido em sociedades de caçadores-coletores em que a cooperação era o comportamento mais valioso?
Os turiferários do capitalismo – que geram argumentos intermináveis de que a ganância não é apenas boa, mas a motivação humana dominante – tendem a não insistir muito na origem do sistema, dando a entender que ele sempre esteve connosco ou então que é o resultado “natural” do desenvolvimento. Curiosamente, os críticos do capitalismo parecem muito mais interessados nas origens do sistema do que os seus impulsionadores. Talvez a história sangrenta de como o capitalismo suplantou lentamente o feudalismo no noroeste da Europa, e depois se espalhou por meio da escravatura, da conquista, do colonialismo e das imposições rotineiras de força bruta, seja um quadro pouco atraente. Não foi à toa que Marx escreveu: “Se o dinheiro… ‘vem ao mundo com uma mancha de sangue congénita na face’, o capital vem pingando da cabeça aos pés, por todos os poros, sangue e sujeira”.
Uma implicação desta violência aplicada pelas elites daqueles tempos e pelos governos que, então como agora, serviram as elites da sua sociedade, foi que os camponeses e os primeiros trabalhadores assalariados devem ter resistido. Na verdade eles o fizeram. Há uma longa história de resistência às ofensivas capitalistas e, embora os movimentos, os organizados e muitos outros que foram espontâneos, não tenham sido capazes de criar um mundo mais humano e equitativo, estas são histórias que vale a pena conhecer. Um novo livro da Monthly Review Press, The War Against the Commons, Dispossession and Resistance in the Making of Capitalism (A Guerra contra os Bens Comuns: Despossessão e resistência na criação do capitalismo), de Ian Angus, traz uma grande parte desta história a vívido detalhe.
Concentrando-se no berço do capitalismo, a Inglaterra, o Sr. Angus é franco sobre os detalhes violentos à medida que se desenrolaram, desde o século XV até à Revolução Industrial, “focando-se no primeiro e mais completo caso, a guerra multissecular contra os bens comuns agrícolas, conhecida como cercamento (“enclosure”) na Inglaterra e autorizações (“clearances”) na Escócia”. No alvorecer do capitalismo (mais comumente visto como tendo surgido no século XVI, embora só tenha sido firmemente estabelecido mais tarde), a Inglaterra e a Escócia eram esmagadoramente povoadas por agricultores, tal como o resto do mundo. Embora existisse trabalho assalariado, muito poucos viviam dele e só sob o capitalismo ocorreu a dependência em massa do trabalho assalariado.
Assim, a remoção forçada da terra, a eliminação do acesso às terras comuns e o fim da capacidade de viver sem trabalhar para os outros foram essenciais para o desenvolvimento do capitalismo, e esse é o tema de A Guerra Contra os Bens Comuns. Em sua introdução, o Sr. Angus expõe isso numa linguagem caracteristicamente clara e inequívoca:
“Para que o trabalho assalariado triunfasse, era necessário que houvesse um grande número de pessoas para quem o auto-abastecimento já não fosse uma opção. A transição, que começou em Inglaterra nos anos 1400, envolveu a eliminação não só da utilização partilhada da terra, mas também dos direitos comuns que permitiam até às pessoas mais pobres o acesso a meios essenciais de subsistência. O direito de caçar ou pescar para obter alimento, de recolher madeira e plantas comestíveis, de recolher restos de grãos nos campos após a colheita, de pastorear uma ou duas vacas em terras não urbanizadas - esses e outros direitos comuns foram apagados, substituídos pelo direito exclusivo dos detentores de propriedades a usarem as riquezas da Terra.”
O capitalismo só existe há alguns séculos, enquanto os humanos vagueiam pela Terra há centenas de milhares de anos. É claro que isto não é um argumento no sentido de que deveríamos regressar a uma existência de caçadores-recoletores - completamente impossível dada a dimensão atual da população humana, mesmo que fosse desejável - mas simplesmente um reconhecimento de que o capitalismo não é “natural”; existe desde há um piscar de olhos na história humana.
Virando a tragédia dos comuns com os pés no chão
Naturalmente, o Sr. Angus precisa primeiro de eliminar os equívocos bem propagados. Ele começa por derrubar um absurdo neoliberal muito difundido intitulado “tragédia dos comuns”. O criador do conceito de “tragédia dos comuns”, um argumento ideológico a favor da privatização de tudo, é um professor de biologia cujo livro emblemático defende o “controlo da reprodução” de pessoas “geneticamente defeituosas”. Angus observa que este professor “não tinha formação ou conhecimento particular de história social ou agrícola” ao escrever artigo que incluía este conceito, publicado em 1968. Mas a “tese” foi politicamente útil, sendo usada para justificar o roubo de terras dos povos indígenas, a privatização dos cuidados de saúde e dos serviços sociais e muito mais. O que a “tese” da “tragédia dos bens comuns” afirma é que a terra mantida e usada em comum será inevitavelmente usada em demasia e destruída, porque todos quererão usar mais do recurso comum, por exemplo colocando demasiados animais num pasto, até que “ruína comum” é o resultado.
A Guerra Contra os Bens Comuns aponta que nenhuma prova foi apresentada neste artigo; a sua tese foi simplesmente afirmada. Mas a agricultura baseada nos bens comuns durou séculos; esse sucesso por si só refuta a tese. Aqueles que realmente estudaram como os bens comuns eram usados e forneceram evidências reais nos seus trabalhos demonstram que os camponeses tinham sistemas sofisticados para gerir os bens comuns e regular os animais.
No início do século XVI, oitenta por cento dos agricultores ingleses cultivavam por conta própria, enquanto apenas os restantes vinte por cento enviavam parte da sua produção para os mercados, mas poucos destes empregavam mão-de-obra. No entanto, começaram a ser vistas diferenciações à medida que as queixas sobre os cercamentos começaram a ser ouvidas na década de 1480 e o processo se acelerou na década de 1500. O conselheiro do rei Henrique VIII condenou os cercamentos, escreve o Sr. Angus, e uma série de leis contra a prática foram aprovadas, nenhuma delas com qualquer efeito. (O rei não parece ter seguido tal conselho; dezenas de milhares de pessoas foram enforcadas durante o seu reinado como “vagabundos” ou “ladrões” durante uma época de repetidas revoltas camponesas.)
O Sr. Angus argumenta que o fracasso da legislação dos Tudor contra os cercamentos se deveu a que ela visava as suas consequências e não as suas causas e que os juízes eram nobres locais que constantemente ficavam do lado dos seus colegas. Independentemente disso, Henrique VIII conduziu um confisco massivo de terras da Igreja e depois vendeu a maior parte delas aos senhores, pois que necessitava de angariar receitas para as suas guerras. A consolidação de grandes explorações significa que haveria espaço disponível para menos pequenas explorações. A oposição à propriedade privada da terra e à ganância, na Inglaterra do século XVI, era muitas vezes religiosa, mas os pregadores protestantes condenavam a avidez num fôlego e no seguinte condenavam toda a rebelião.
Rebelião houve, no entanto. Os despossuídos lutaram contra o trabalho assalariado, que era comumente visto como “pouco melhor do que a escravatura” e o “último recurso” quando todas as outras opções tinham sido excluídas. No final do século XV e no século XVI, a maioria dos cercamentos eram despejos físicos, muitas vezes de aldeias inteiras; depois de 1550, os proprietários negociavam frequentemente com os seus maiores arrendatários, já inseridos nos mercados capitalistas, para dividir entre eles os bens comuns e as terras não cultivadas. Os sem-terra e os pequenos proprietários não receberam nada; o número de trabalhadores agrícolas sem terra quadruplicou entre 1560 e 1620. As pressões económicas foram complementadas pela coerção estatal para forçar os despossuídos ao trabalho assalariado. Uma série de medidas brutais foram transformadas em lei. Embora não houvessem empregos suficientes para todos os que eram forçados ao trabalho assalariado, aqueles que não estavam empregados eram classificados como “mendigos” ou “vagabundos” e sujeitos a punições draconianas.
Uma lei de 1547, por exemplo, ordenava que qualquer “vagabundo” que recusasse uma oferta de trabalho fosse marcado com um ferro em brasa e fosse “literalmente escravizado durante dois anos”. O novo escravo estava sujeito à colocação de argolas de ferro no pescoço e nas pernas e a sofrer espancamentos. Uma lei de 1563 determinava que qualquer homem ou mulher com até 60 anos de idade poderia ser obrigado a trabalhar em qualquer fazenda que os contratasse; qualquer pessoa que oferecesse ou aceitasse salários superiores aos estabelecidos pelos empregadores locais, atuando como juízes, poderia ser presa; era ainda necessária permissão por escrito para deixar um emprego sob pena de chicotadas e prisão. Outras leis determinavam “chicotadas nas ruas até sangrar”, sendo os reincidentes condenados à morte. Muitos dos condenados foram sendo cada vez mais enviados para as colónias como servos contratados, completamente à mercê dos seus senhores do Novo Mundo.
Tais foram as ternas misericórdias demonstradas pelos capitalistas nascentes e pelo Estado cada vez mais orientado para os interesses dos capitalistas.
O poder faz o direito como fundação
Com a ascensão simultânea das indústrias do carvão e dos têxteis, eram necessários trabalhadores – as leis draconianas eram o caminho para forçar as pessoas a empregos com baixos salários, longas horas de trabalho e, por vezes, condições perigosas. A própria mineração de carvão desencadeou mais cercamentos no século XVI. Alguns proprietários descobriram que a mineração de carvão era mais lucrativa para eles do que o arrendamento de terras agrícolas, o que levou à despossessão dos inquilinos. Os pequenos proprietários restantes podiam ser roubados das suas terras porque estavam proibidos de recusar o acesso aos minerais sob os seus campos. Eram as primeiras manifestações dos atuais “direitos de propriedade” em que, se você for suficientemente grande, o poder constitui o direito.
Embora grande parte da resistência consistisse em revoltas espontâneas, houve campanhas organizadas. Dois desses movimentos foram os Cavadores (Diggers) e os Niveladores (Levellers). O apelido dos Niveladores provém do “nivelamento” das sebes e cercas de pedra que os proprietários usavam para demarcar as terras de que se apropriavam; estes grupos organizados removeram repetidamente estas demarcações. Os Cavadores foram um movimento coletivo fundado por Gerrard Winstanley que buscava transformar a teoria em melhores práticas. Os Cavadores criaram comunas em terras comuns, em primeiro lugar numa colina perto de Londres. Todos os membros receberiam uma parte da produção em troca de ajuda no trabalho da terra.
Winstanley criou um programa que criticava a desumanidade dos ricos e afirmava que o caminho para a liberdade passava pela propriedade comum da terra. O trabalho assalariado, a propriedade privada de terras e a compra e venda de terras foram todos proibidos nas comunidades dos Cavadores. Todos deveriam contribuir para o capital comum e levar apenas o que lhes era necessário; quaisquer penalidades para com os abusadores foram sempre projetadas para reabilitar, em vez de punir. Winstanley e os Cavadores viam a propriedade privada da terra como a causa da pobreza e da exploração. Uma das suas exigências era que todas as terras fossem entregues àqueles que as trabalhassem, incluindo as terras confiscadas à Igreja. Afinal de contas, eles estavam a viver os primeiros dias do capitalismo agrícola, com tantas pessoas à sua volta a viver na pobreza e na exploração.
Notavelmente, o conceito de Winstanley, concebido dois séculos antes da definição de comunismo, por Marx, como “de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme as suas necessidades”, tinha semelhanças significativas com as ideias deste último, embora Marx não pudesse ter conhecido Winstanley. As ideias dos Cavadores foram impiedosamente eliminadas e só seriam redescobertas no final do século XIX. A violência dirigida pelo Estado contra as comunas dos Cavadores não demorou a acontecer. Os proprietários estavam determinados a eliminá-los. Os magistrados locais, eles próprios proprietários de terras, indiciaram os Cavadores por invasão e reunião ilegal e impuseram multas demasiado elevadas para poderem ser pagas; turbas organizadas por proprietários de terras destruíram colheitas e casas até que as comunas tiveram de ser abandonadas.
Na segunda metade do século XVII, “os grandes proprietários de terras e comerciantes conquistaram o controlo decisivo do Estado inglês”, escreve o Sr. Angus. “Nos anos 1700, eles usariam esse poder para continuar a desapropriação dos plebeus e consolidar a sua propriedade absoluta da terra”. E à medida que a Revolução Industrial começou a desenvolver-se, foram iniciadas novas rondas de cercamentos, desta vez através de leis promulgadas pelo Parlamento, para despojar as pessoas das suas restantes capacidades para serem autossuficientes e não forçadas a trabalhos assalariados, com baixo pagamento por longas horas de labor penoso e extenuante.
Um Estado de classe promove interesses de classe
Desde a chamada “Gloriosa Revolução” de 1689 até à Lei da Grande Reforma de 1832, a Grã-Bretanha foi controlada por magnatas agrários e capitalistas mercantis; o estado existia para beneficiar os ricos. O autor escreve:
“Os muito ricos governavam o Parlamento através do seu domínio incontestado da Câmara dos Lordes, do seu controlo efetivo do executivo e da sua forte influência sobre os membros ligeiramente menos ricos da Câmara dos Comuns. Esta câmara baixa era eleita, mas apenas cerca de 3% da população (todos homens) podia votar, e as elevadas qualificações imobiliárias garantiram que apenas os ricos pudessem ser candidatos. Nas palavras de E. P. Thompson: ‘O estado britânico, como todos os legisladores do século XVIII concordavam, existia para preservar a propriedade e, incidentalmente, as vidas e liberdades dos possuidores’”.
Mais de 4.000 leis de cercamento foram aprovadas pelo Parlamento entre 1730 e 1840, leis que afetaram um quarto de todas as terras cultivadas. As leis eram fortemente distorcidas em favor das grandes propriedades e da aristocracia. Os camponeses resistiram, mas tiveram muita força reunida contra eles. Os deslocados, a menos que emigrassem, tornaram-se trabalhadores assalariados nas novas fábricas. O desenvolvimento em Inglaterra baseara-se na escravatura, com os enormes lucros provenientes dos produtos agrícolas produzidos por escravos e do próprio comércio de escravos fornecendo o capital para o arranque industrial. E muitos dos grandes proprietários de terras estavam em condições de comprar terras devido aos lucros que obtinham diretamente com o trabalho escravo. A abolição do comércio de escravos foi simplesmente mais uma medida talhada para benefício económico. O Sr. Angus escreve:
“Os defensores do imperialismo britânico gostam de se gabar de que a Grã-Bretanha proibiu o comércio de escravos em 1807, mas isso é como elogiar um assassino em série porque ele acabou por se reformar. A proibição ocorreu depois de séculos em que os investidores britânicos enriqueceram como traficantes de seres humanos, e não fez nada pelos 700 mil africanos que permaneceram escravizados nas colónias britânicas das Caraíbas. O alardeado humanitarismo da Grã-Bretanha é desmentido pelo massacre de escravos rebeldes pelo exército britânico na Guiana – dezassete anos depois de o comércio de escravos ter sido declarado ilegal”.
Os parlamentares britânicos, defendendo os seus interesses de classe, não estavam menos inclinados para uma legislação draconiana do que os seus antecessores. De 1703 a 1830, 45 estatutos foram aprovados relacionados com a proibição da caça a todos, exceto os mais elitistas proprietários de terras; estas leis devem ser vistas no contexto da época em que os pequenos agricultores e os sem-terra precisavam de caçar para garantir que eles e as suas famílias tivessem comida suficiente para sobreviver. A Lei Negra de 1723 criou 350 crimes puníveis com a pena de morte; já estavam previstos, por delitos menores, o enforcamento, chicotadas e a expulsão para a Austrália para trabalhos forçados. Até mesmo cortar uma árvore podia resultar em enforcamento.
O facto de tais leis draconianas terem sido repetidamente aprovadas durante longos períodos de tempo demonstra que o capitalismo não é “natural” e, na verdade, só poderia ser imposto pela força, como A Guerra Contra os Bens Comuns demonstra de forma convincente. Este é um livro muito útil para aqueles que já estão familiarizados com esta história sangrenta e desejam obter mais conhecimento, inclusive sobre o ainda desconhecido Winstanley e o movimento dos Cavadores, mas também para aqueles sem esse conhecimento que desejam aprender sobre a história de capitalismo. O autor escreve em linguagem clara, compreensível e sem jargões, produzindo uma obra que não requer conhecimentos prévios, mas que é útil para quem tem familiaridade com o assunto. Qualquer pessoa interessada em compreender a dinâmica do capitalismo e que se preocupe em abordar o assunto com a mente aberta será beneficiada com a sua leitura.
(*) Pete Dolack, com formação em jornalismo, é um ativista, escritor, poeta e fotógrafo norte-americano, residente em Nova Iorque. Foi organizador da Amnistia Internacional, da Campanha Nacional Popular, Trabalhadores de Nova Iorque Contra o Fascismo, Verdes de Brooklyn/Partido Verde de Nova Iorque, entre outras iniciativas. É autor dos livros It's Not Over: Learning from the Socialist Experiment, Zero Books, 2016, What Do We Need Bosses For?: Toward Economic Democracy, Autonomedia, 2023 e do panfleto The Winners and Losers of Fascism. É ainda editor do blogue Systemic Disorder, onde apresenta ensaios seus sobre a atual crise económica do capitalismo e as questões ambientais a ela ligadas. Aí foi publicado originalmente este artigo. A tradução é de Ângelo Novo.
|
||||
|
|||||