Introdução

 

 

 

 

Há um pouco mais de um século, Oswald Spengler publicou o seu célebre ensaio intitulado O declínio do Ocidente. Hoje, Emmanuel Todd afirma que estamos a assistir em direto à sua derrocada final. Por vezes é proveitosa a leitura de autores não marxistas, que os há muito argutos e penetrantes, embora dentro de uma mundivisão histórica limitada ou distorcida. Um dos colaboradores deste número coloca mesmo em epígrafe Samuel P. Huntington. Como que por sinédoque, esta derrocada do Ocidente é hoje representada à cabeça pela queda da supremacista e mitomaníaca colónia de povoamento denominada Israel. Mas a parte e o todo representam-se mutuamente com grande fidelidade, num inolvidável espetáculo político, diplomático, mediático e, finalmente, militar, de arrogância, inépcia, cobardia e desumanidade. Tudo com a habitual cobertura gelatinosa de hipocrisia. Exterminem todas as bestas, ordena Tel Aviv aos seus. Da forma o mais humanitária possível, insistem publicamente Washington, Londres e Bruxelas, afanosamente municiando as munições. À medida que cresce o desespero, abrem-se de par em par as goelas do horror sem medida e sem sentido.

 

Auschwitz é um nome ocidental, como é bem sabido. Enquanto houver império racializado, oficiando livremente nas catedrais do desprezo humano, nunca mais é, na verdade, inevitavelmente, sempre mais. Todo o escândalo ocidental com o nazismo foi, afinal, por este ter virado esse desprezo (sobejamente conhecido alhures, há muito) contra o próprio homem branco. Externalizar a expiação (senão mesmo a culpa) pelo holocausto dos europeus de fé judaica, com desprezo acrescido por outros povos e outras crenças, serve apenas para reproduzir o crime, em repetição fractal infinita. Por esse vasto mundo afora. Esse mundo inesgotável, de uma profundidade estratégica para sempre inexpugnável. O problema é que, nos dias de hoje, qualquer ser humano neste planeta é potencialmente um cidadão consciente, bem capaz de ver, julgar e atuar. Ocidental, cuidado, estás a ser visto. E não só pelo mundo que achas que conta. Todo o mundo agora conta! E o teu pulso, tão fraco já, para toda a escalada de crimes que ainda projetas…

 

A civilização ocidental conduziu a humanidade ao limiar da sua extinção, por ganância e hubris das suas classes dirigentes. Não se trata apenas das alterações climáticas, que continuam a gerar ceticismo em certos espíritos, apesar das provas científicas esmagadoras, que extravasam cada vez mais flagrantemente para a experiência comum dos sentidos de toda a gente. Quanto a este problema, os atuais senhores do mundo já decidiram: nada será feito. Pelo menos por iniciativa pública. Para eles, esta questão ou é inexistente ou será remediada por uma qualquer solução que inevitavelmente aparecerá, por infalibilidade do mercado. Fim da humanidade? Todas as previsões até hoje feitas nesse sentido se revelaram falsas. Ergo, é uma impossibilidade. É preciso ter calma. As cimeiras COP foram desterradas para o Médio Oriente petrolífero e remetidas à insignificância. Ora, o que é impossível é pedir a um porco que se suicide para salvar o chiqueiro onde ele se habituou a refocilar completamente à sua vontade. Com a devida vénia à espécie porcina, que, pela sua parte, sempre deu mostras de honradez e responsabilidade.

 

A crise geral do Sistema Terrestre é evidenciada por muitos outros fenómenos, como a acidificação dos oceanos, a destruição recorrente da camada de ozono, a extinção maciça de espécies animais e vegetais (30% em perigo, com um verdadeira dizimação em curso nos insetos e nos corais), a perturbação dos ciclos do azoto e do fósforo (ameaça direta para a agricultura), a perda de coberto vegetal (incluindo florestas), o esgotamento da água doce, a saturação de aerossóis, a proliferação de lixos químicos sintéticos, a radiação nuclear ou os organismos geneticamente modificados. A lista podia continuar. Cada um por si só ou em conjugação, todos estes fenómenos – e outros que se desencadeiam a partir deles por reação em cadeia -, a não serem, também eles, produto da nossa imaginação apocalíptica, são potencialmente devastadores para a habitabilidade humana do planeta, ainda no corrente século, a manterem a sua atual progressão.

 

Desafiadas no seu poder universal, as classes dirigentes ocidentais têm, porém, meios ao seu dispor capazes de antecipar o fim ao qual já nos destinaram inevitavelmente de qualquer forma. Este mundo tem de ser delas, ou não será. É inconcebível de outro modo. O imperialismo ocidental é uma ameaça terrível à paz mundial, porque vai insistir sempre em manter relações assimétricas, de supremacia e exploração, que nenhum povo já aceita nos dias de hoje. Na incerteza, no declive para a derrota, porque não acabar com tudo imediatamente, à bomba? As armas nucleares existem para ser usadas, de tática a estrategicamente. É precisamente no Ocidente, em exclusivo, que existe uma criminosa doutrina militar que prevê o seu emprego em primeira instância. Segundo os estudos mais credíveis, não é preciso um grande número de deflagrações para provocar um inverno nuclear catastrófico para toda a humanidade. Pode ser um psicopata fanático da Torá, como Benjamim Netanyahu, a dar esse passo. Pode ser Trump. Mas pode também, perfeitamente, ser um político convencionalíssimo, como Joseph Biden ou Emmanuel Macron. Todos eles, juntamente com a sua envolvente decisória, têm a (de)formação moral, o treino de caráter e a motivação ideológica para o fazer, em determinadas circunstâncias, que não são de todo inconcebíveis. Podem até estar bem próximas.

 

Tudo isto são boas razões para fazer meditar um pouco mais aqueles que, inclusive à esquerda da esquerda, insistem em apostar o futuro da humanidade na carta civilizacional do Ocidente. Tem essa esquerda um desafio credível a apresentar, capaz de fazer apear as classes dirigentes ocidentais que têm conduzido o mundo ao abismo que temos perante nós? Se tem, que o apresente muito rapidamente.

 

Poucos autores ousam desenhar um programa político de trabalhos à escala mundial. Talvez por pudor de parecer megalomaníaco. Com a impaciência da juventude, Jason Hickel tem essa ousadia, indispensável nestes tempos em que se joga a própria sobrevivência da humanidade. O que ele nos diz é muito simples e cativante. Lê-se com avidez, em escassos minutos. É preciso produzir menos, melhor, mais equilibradamente, com equidade e proporcionando oportunidades de desenvolvimento integral para todos. Bem-estar geral, com baixo custo em energia e transformação de matérias. É revolucionário, sem dúvida. É preciso construir a luta e o sujeito pronto para encarná-la. O recentemente falecido Paul Burkett foi um dos que, na viragem para este milénio, defendeu que uma visão desse tipo foi precisamente o que Karl Marx nos legou. Este não foi, de forma alguma, um produtivista tecnocrático insaciável, como tantos críticos ecologistas afirmaram. O seu objetivo não era a abundância em bens de consumo transformados, mas sim um desenvolvimento humano integral com base na fruição de valores de uso, com constante criação e satisfação de novas necessidades qualitativas. A verdadeira riqueza, em sentido marxista, não deixa uma pegada ecológica incomportável.

 

Ângelo Novo debruça-se sobre a vida, a obra, as esperanças (e desesperanças) do pensador grego Nicos Poulantzas (1936-1979), cuja projeção sobre a atualidade tem sido objeto de numerosas reavaliações recentes. Uma delas tomou corpo com um volume coletivo editado há dois anos no Brasil, com autores quase exclusivamente latino-americanos. Poulantzas é um homem bem do nosso tempo. Por isso, dá excelente pretexto para, com ele, se tratarem teoricamente grandes questões de candente atualidade, como o Estado burguês, o imperialismo, o fascismo, a revolução, o partido, o papel dos intelectuais, a transição socialista e muitas outras. O monismo filosófico, a batalha pela unidade do ser como matéria em movimento, é uma das grandes batalhas do marxismo mais consequente. Vasco de Magalhães-Vilhena, entre nós, foi um lutador incansável dessa causa. Helena Sheehan peleou nela durante décadas muito difíceis, para ter agora a satisfação de poder fazer um balanço otimista, face ao retorno da natureza como preocupação central da humanidade.

 

Antonio Castronovi saúda a emergência de um mundo multipolar, consequente com a sua verdadeira descolonização, abrindo horizontes para o socialismo globalizado. A derrocada do imperialismo é também uma oportunidade para outras tradições culturais ocidentais se emanciparem do jugo da vulgarização anglo-saxónica. A verdadeira cultura inglesa também teria a ganhar, sem dúvida. Não podemos já dispensar as reflexões quinzenais de Prabhat Patnaik. Escolhemos novamente um conjunto delas em torno do imperialismo, tema em que ele tem um pensamento profundo e inovador, ainda não devidamente reconhecido. A história e a teoria do imperialismo capitalista vai, sem dúvida, um dia, ser encerrada a partir do Sul Global e a voz dos Patnaik (há também a sua companheira Utsa) é uma das que já se destaca. Leila Ghanem, incansável lutadora comunista libanesa, traz-nos oportuníssimas reflexões sobre a história das relações entre marxismo e islamismo, com um destaque de atualidade para o movimento xiita Hezbollah.

 

Há títulos que valem por tratados inteiros. Pete Dolack faz uma competente recensão de um valioso estudo histórico de Ian Angus sobre a ascensão do modo de produção capitalista na Inglaterra. A interrogação que escolheu para intitular a sua peça - Se o capitalismo é “natural”, porque foi usada tanta força para o erigir? - é que é um achado imperdível. O 18 de Brumário de Marx é uma obra-prima inesgotável. Com este livro em punho, Ivonaldo Leite embrenha-se nas tortuosas vias do populismo latino-americano, procurando traçar as indispensáveis linhas de demarcação com aquilo que poderá ser um autêntico movimento emancipador nacional-popular. Por vezes vale a pena revisitarmo-nos, anos depois. Não para nos vangloriarmos de ter “acertado”. O tempo é um rio traiçoeiro e nem sempre é possível prever os seus desvios. Mas é, enfim, a nossa única casa. Na passagem para o presente milénio, Ronaldo Fonseca escreveu sobre a globalização capitalista algumas páginas que vale a pena rever.

 

Neste último semestre, partiu de entre nós Jorge Araújo (1936-2023). Foi um dos indispensáveis, lutador incansável, valente, generoso, sem pose nem alarde, atento ao pulsar dos tempos, semeador de cultura e de inquietação. Deu tudo de si e faz-nos falta.

 

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