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Os inovadores e os mandarins: Reflexões sobre as ilusões de uma classe
Jason E. Smith com Tony Smith (*)
Tony Smith (Rail): Antes de mais, parabéns pela publicação de Smart Machines and Service Work. É um dos melhores livros que já li sobre as consequências sociais da mudança tecnológica, muito mais perspicaz do que os livros de tecnologia que recebem tanta atenção da grande imprensa. Muitas dessas obras defendem o tecno-utopianismo, argumentando que se esperarmos um pouco mais bastará apresentar as políticas corretas e as tecnologias avançadas desencadearão uma nova era de crescimento e prosperidade. Outros adotam uma postura tecno-distópica, prevendo níveis sem precedentes de desemprego tecnológico e caos social. Como definirias a tua posição em relação a essas alternativas?
Jason E. Smith: Ambas estão erradas. Ambas partilham o pressuposto de que as economias capitalistas avançadas estão atualmente a experimentar, ou prestes a experimentar, uma transformação profunda, impulsionada por máquinas, cujo efeito principal será um súbito aumento da produtividade do trabalho e do crescimento económico. Diferem apenas na sua consideração dos efeitos de arrastamento (“knock-on effects”) deste dinamismo renovado, com os "tecno-distópicos" a enfatizarem as consequências sociais presumivelmente catastróficas, para a estratificação de classe e os mercados de trabalho: uma exacerbação da desigualdade de rendimentos e, acima de tudo, o desemprego "em massa". No meu livro, concentro-me neste último problema. Episódios de desemprego em massa resultam não da mudança tecnológica, mas do colapso económico. Caso se verificasse uma reanimação robusta das economias de elevado rendimento, provocada pela automatização, os precedentes históricos sugerem uma trajetória completamente diferente. Poderíamos esperar deslocamentos temporários do mercado de trabalho, à medida que os processos laborais são revistos, os postos de trabalho redefinidos, o trabalho reafetado de sectores de alta produtividade para sectores mais intensivos em mão-de-obra, indústrias inteiramente novas criadas e novas divisões de trabalho (tanto sociais como técnicas) impostas. Surgiria uma nova composição de classe, com novas estratificações de competências, género, raça ou localidade. Nos E.U.A., basta olhar para o período imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial, que se estende até cerca de 1965 ou 1970 – aquilo a que eu chamo "Automatização 1.0" - para traçar um tal padrão. Com certeza, a longo prazo, tal transformação resultaria muito provavelmente num aumento do desemprego, com a maioria dos novos empregos a surgir no sector dos serviços de baixos salários, sobretudo nos serviços pessoais. Miséria e convulsões seriam o destino de muitos, com certeza. Mas não está atualmente em curso, nem está iminente, uma transformação tecnológica radical das economias avançadas.
As alegações de que estas economias estão à beira de uma rotura tecnológica têm origem, principalmente, em escolas de negócios ou de "gestão", bem como em Silicon Valley, sendo depois trombeteadas, ecoadas e remastigadas por uma multidão de jornalistas e comentadores. Vêm embrulhadas de nomes vibrantes: "segunda era das máquinas", "terceira revolução industrial", "indústria 4.0", escolha o que quiser. Esta excitação respiga (“trickles down”) também para a esquerda, ligando-se aí a esquemas especulativos da rendimento universal ou mesmo propostas para "nacionalizar" plataformas de redes sociais. Tais projeções, contudo, estão a ser feitas contra um pano de fundo de crise incessante. (Em 2018 o Banco de Inglaterra reportou que a economia britânica tinha "suportado a pior década para o crescimento da produtividade desde o século XVIII").
A retórica que emergiu e se consolidou em torno da automatização pode ser interpretada como parte de uma iniciativa mais ampla para alimentar uma bolha especulativa historicamente sem precedentes, impulsionada principalmente por um punhado das chamadas ações tecnológicas ou de Internet (as adequadamente denominadas ações "FAANG" – Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google). A história da inovação da última década está principalmente confinada ao sector financeiro e à política monetária: recompra de ações (800 mil milhões de dólares em 2018), taxas de empréstimo quase nulas, alavancagem maciça de empresas privadas, ronda após ronda de flexibilização quantitativa. Tsunamis de dinheiro barato têm assolado as economias mais ricas do mundo, uma parte considerável do qual foi investido em bens imobiliários urbanos. Com o início da pandemia, tivemos mais uma dose, em escala King Kong, forçando as bolsas de valores a máximos de sempre, à medida que setores económicos inteiros encerravam e dezenas de milhões de trabalhadores nos E.U.A. perdiam os seus empregos.
Estas ficções de mudança tecnológica são de importância vital para uma classe capitalista que se imagina uma força histórica progressista, mas que preside a uma economia que está profundamente estagnada, cambaleando de uma crise profunda para a próxima. Esta classe apresenta-se como uma força histórica perturbadora, mesmo anárquica, cujas extraordinárias inovações colocam problemas (crescimento explosivo da produtividade que torna redundante metade da força de trabalho, etc.) que só ela pode compreender e resolver (com o rendimento básico universaI, uma garantia de emprego, talvez um "Novo Pacto Verde"). Não é de admirar que a palavra-chave da década tenha sido "inteligente" (telefones, casas, fábricas, carros e cidades inteligentes), um termo que reflete a autoestima daqueles que o cunharam. No entanto, se estas pessoas enriqueceram foi com bolhas imobiliárias e bolsistas.
Não nos enganemos, a nossa é absolutamente uma era de "caos social", para usar o teu termo: de polarização e pulverização social, de aprofundamento do endividamento e de falta de crescimento, de mercados de trabalho quebrados, e de conflitos de classe agudizados, mas fragmentados e incoerentes. O meu livro tenta dimensionar esta desordem crescente e oferecer um relato diferente da razão pela qual estamos envolvidos nela.
Rail: A maioria das pessoas acredita que estamos a viver numa era de mudanças tecnológicas sem precedentes. No entanto, o teu livro refere-se à "inércia tecnológica sustentada". O que queres dizer com esta frase marcante?
J. Smith: Na sua maioria, os tipos de avanços tecnológicos que ocorreram, durante a última década ou mais, são irrelevantes do ponto de vista macroeconómico, quer em matéria do crescimento da produtividade do trabalho, emprego, taxas de investimento, crescimento do PIB ou o que quer que seja. Não é por acaso que a consolidação desta retórica de automatização iminente (aprendizagem por máquinas, governação algorítmica, revolução das plataformas, economia da "partilha") coincidiu com o súbito crescimento de empresas como Facebook, Apple, Alphabet, Amazon, Alibaba e Tencent. Em meados da década passada, estas empresas tinham cimentado o seu estatuto de líderes da bolsa de valores – as suas avaliações descomunais ultrapassando em muito as multinacionais mais antigas nos sectores bancário, petrolífero, farmacêutico e automóvel - ao mesmo tempo que também se infiltravam na trama da vida quotidiana dos consumidores da classe média e trabalhadora. Empresas de redes sociais, como o Facebook, e monopólios da Internet, como a Alphabet/Google, passaram a década a prometer uma revolução na inteligência artificial ou na autocondução de automóveis, enquanto mais de 90 por cento das suas receitas foram obtidas com a venda de espaço publicitário a outras empresas (como bancos e fabricantes de automóveis). Estas plataformas acumularam enormes lucros ao longo da última década, criando e impondo condições de monopólio para o seu funcionamento. Apesar de se venderem como empresas de tecnologia, investem relativamente pouco em I&D, mas gastam generosamente para esmagar potenciais concorrentes, principalmente através da sua compra antecipada.
O "smartphone" afirma-se como o sinal de inovação (ou artifício) desta época, a sua "mercadoria estrela". A sua penetração alargada, a sua presença nos passeios públicos, em salas de reuniões, salas de aula ou à mesa de jantar, confirma o seu estatuto como um emblema de época. Pela maior parte, ele reúne simplesmente dispositivos mais antigos (o telemóvel, o computador pessoal). Proporcionando o acesso a uma panóplia de diversões - compras, streaming de música e vídeo, comunicação interpessoal - através de um único ecrã interativo, estes aparelhos completam uma confluência em curso há décadas: a fusão de comércio e notícias, entretenimento e socialidade, auto-estilização e vida cívica num ecrã LCD (ou OLED) de tamanho único e sensível ao toque. O seu utilizador é dividido entre estes múltiplos registos, enquanto os executa todos de uma só vez; perdido nos seus rumos, o seu humor bruxuleia entre a diversão inofensiva e a fúria inarticulada. No entanto, a mão pesada que as maiores empresas tecnológicas têm tido nos mercados de ações, combinada com a força contundente que desencadearam no lazer, no consumo, na identidade pessoal e no discurso público - tudo isto já, há décadas, nas vascas da erosão e da decomposição -, levou a que as reivindicações para esta tecnologia central ultrapassassem, em muito, o seu impacto na forma como compramos, consumimos meios de comunicação ou interagimos com amigos, família e estranhos. No local de trabalho, estas inovações prometiam levar ao que Paul Mason anunciava como uma "descolagem exponencial na produtividade". Foi precisamente isso o que não aconteceu. Em vez disso, o que temos são redes cada vez mais apertadas de vigilância e rastreio, nas ruas e nos locais de trabalho.
É revelador que os smartphones e as plataformas de redes sociais descolaram no meio de uma profunda recessão que nunca "se quebrou". O iPhone foi comercializado pela primeira vez na véspera da crise financeira de 2008. A forma como as pessoas se correspondem, recebem as suas notícias, vêm filmes, fazem compras, ou partilham fotografias, nunca mais será a mesma. Mas o "paradoxo da produtividade" de Robert Solow, formulado pela primeira vez em 1987 - "Pode-se ver a era do computador em todo o lado, menos nas estatísticas de produtividade" – continua a resistir ao teste do tempo. A última década assistiu ao crescimento mais fraco dos ganhos de produtividade do trabalho em várias décadas, mesmo no sector da manufatura. No entanto, o abrandamento do crescimento da produtividade do trabalho registou-se já no início dos anos 1970, ou seja, no preciso momento em que o primeiro microprocessador do mundo, o Intel 4004, fez a sua estreia.
Rail: Isto leva-nos a um dos mistérios permanentes da economia contemporânea, capturado na frase "estagnação secular". Como é que o teu relato da desconexão entre o aparente dinamismo inovador das últimas décadas e a relativa falta de dinamismo económico difere de outros que também chamaram a atenção para isso?
J. Smith: No final de 2013, justamente quando estava a aquecer a retórica que antecipava uma explosão da produtividade impulsionada pela automação, outra fração da classe dominante dos E.U.A. fez-se ouvir com uma perspetiva muito diferente. Larry Summers, outrora Secretário do Tesouro sob a direção de Bill Clinton, opinou que os E.U.A. e outras economias capitalistas maduras enfrentavam a perspetiva de uma estagnação profundamente enraizada, na qual o elevado desemprego, o lento crescimento do PIB e a estagnação salarial poderiam persistir por muito mais tempo do que as breves fases de recessão dos ciclos económicos típicos.
O desempenho da economia dos E.U.A. parecia provar que Summers estava certo. A prometida descolagem nunca chegou. A década durante a qual livros com títulos como Rise of the Robots (2015) receberam lugares de destaque na discussão pública foi também uma década definida por uma implacável crise económica global, que não se via desde a década de 1930. A ronda de abertura deste colapso foi marcada por uma série de fracassos espetaculares no sector financeiro, à medida que os bancos de investimento excessivamente alavancados vacilavam, entrando em colapso ou sendo comprados por cêntimos por empresas menos expostas. O que se seguiu foi tão previsível como devastador: anos perdidos marcados por taxas de desemprego não vistas em décadas, combinadas com taxas de participação laboral em queda livre, à medida que os trabalhadores dispensados saíam do mercado de trabalho (ou, em alguns casos, eram reclassificados como “incapazes”). Enquanto a procura de mão-de-obra diminuiu, os salários de muitos trabalhadores caíram. Como os trabalhadores estavam ociosos, o capital também estava. Ao longo da década de crise, as taxas de utilização da capacidade, medindo a discrepância entre o que uma economia pode produzir e a sua produção real, atingiram os níveis mais baixos da história do pós-guerra, muito abaixo dos dos anos de crise da década de 1970. O crescimento do PIB crepitou, mesmo enquanto o endividamento das empresas disparava ao longo deste período. Tanto nos E.U.A. como na Europa, surgiu um fenómeno observado pela primeira vez durante a "década perdida" do Japão nos anos 1990: a presença fantasmagórica de empresas "zombies", capazes de evitar a ruína refinanciando constantemente a sua dívida, mesmo enquanto as suas operações se contraíam. Muito significativamente, no preciso momento em que tantos comentadores anunciavam a perspetiva de uma nova era de máquinas, o investimento empresarial privado em capital fixo abria crateras, afundando-se até taxas sem precedentes para a era do pós-guerra. Os números da produtividade laboral dos E.U.A. exibiram, sem surpresa, taxas de crescimento abismais, aumentando a menos de um por cento ao ano, mesmo no historicamente dinâmico sector manufatureiro.
A diminuição das despesas de capital tem sido especialmente aguda, mas de forma alguma uma aberração em relação ao que se verificou anteriormente. Alguns anos após a crise, um estudo mostrou que, medido como "percentagem do PIB, o investimento empresarial diminuiu em mais de três pontos percentuais desde 1980". Desde a década de 1970, apenas a década de 1990 se destacou como uma anomalia, durante a qual um grupo de indicadores económicos (PIB, produtividade do trabalho, investimento empresarial) deu um impulso modesto para cima. Todavia, no período entre 2000 e 2011, as taxas de investimento das empresas mal se mexeram, crescendo a apenas um décimo do nível que prevaleceu na década anterior.
Na medida em que destacam a míngua do investimento empresarial, os estagnacionistas não estão errados. Mas o seu relato das razões pelas quais as economias de alto rendimento, em todo o mundo, estão atoladas numa crise aparentemente sem horizonte - a resposta pronta keynesiana: procura insuficiente - é escassa. É preciso lembrar que Alvin Hansen, o principal defensor norte-americano de Keynes, esboçou pela primeira vez a teoria da estagnação secular, em resposta à abrupta recessão de 1937, após o fracasso da estratégia fiscal contracíclica de Roosevelt para reativar a procura em queda e impulsionar o investimento privado. Este fracasso forçou Hansen a considerar a possibilidade de uma apatia crónica e intratável, e a especular por que razão as economias capitalistas maduras tendem para a estagnação e a deriva (declínio populacional? encerramento da fronteira?). No entanto, hoje em dia, as prescrições políticas dos que se encontram neste campo ainda se baseiam em novas rondas de despesas deficitárias em grande escala. Continuam deslumbrados com os sucessos aparentes da gestão da procura keynesiana durante algumas décadas, após a Segunda Guerra Mundial, para melhor reprimir a memória da derrota desta escola na década de 1970, quando as mesmas políticas ajudaram a nascer um monstro macroeconómico - a "estagflação" - que não podiam explicar teoricamente nem descobrir os antídotos para o cambater.
Em 1981, a percentagem da dívida do governo dos E.U.A. em relação ao PIB era apenas de 31%; mesmo antes de a lei das despesas maciças ter sido aprovada, em março de 2020, esse número era já superior a 100%, muito próximo do número registado em 1945-46, quando estava em vigor o financiamento das despesas de defesa para uma guerra global. É certamente muito mais elevado agora. Da mesma forma, a despesa do governo dos E.U.A. em percentagem do PIB tem crescido regularmente desde 1970, atingindo um pico de 43% em 2010, um ano após a "recuperação" da crise de 2008. A dimensão da economia capitalista privada continua a contrair-se, em relação à atividade económica total. O que os principais economistas, tanto keynesianos como neoclássicos, não reconhecem é a distinção fundamental entre a atividade capitalista privada e as despesas públicas, pagas com fundos apropriados (sob a forma de impostos ou dívidas) do sector privado. Quando os governos compram bens e serviços a empresas privadas para estimular a procura, o resultado pode ser um aumento a curto prazo do emprego. Mas, como Paul Mattick demonstrou com grande clareza, há algum tempo atrás, em Marx & Keynes (1969), este tipo de despesas é simplesmente uma forma de consumo em grande escala, impulsionado pelo governo, pago a partir do conjunto de lucros (ou "mais-valia") gerados pela economia privada. As despesas governamentais deste tipo simplesmente redistribuem esta parte do lucro total a capitalistas específicos, como Raytheon, Pfizer, ou Purdue Pharma. Da mesma forma, quando os governos produzem diretamente serviços, como a educação pública, esses serviços não são vendidos no mercado, e não produzem lucros para investir na expansão da produção. Embora a educação ou os gastos com a saúde por parte do Estado se dirijam frequentemente às necessidades reais, do ponto de vista do próprio sistema capitalista, estes são gastos improdutivos. Não produzem valor ou mais-valia diretamente, mas são pagos a partir da mais-valia extraída pelo sector privado.
Rail: As categorias de trabalho "produtivo" e "improdutivo" não se encontram na economia dominante. Poderias falar um pouco mais sobre esta distinção, uma vez que ela desempenha um papel tão crucial no teu livro?
J. Smith: Esta distinção foi decisiva para a economia política clássica, para Smith, Ricardo e Malthus, bem como para o grande crítico dessa escola de pensamento, Marx. Penso que também é sentida na experiência quotidiana das pessoas, razão pela qual o slogan enganador de David Graeber, "empregos de treta" (“bullshit jobs”), teve a ressonância que teve. Da mesma forma, Adair Turner falou recentemente de "atividades de soma zero" para caracterizar a fração crescente da atividade económica dedicada não à produção de riqueza, mas à luta pela sua distribuição. No entanto, esta distinção conceptual fundamental está completamente perdida para os economistas da corrente dominante.
Os economistas não fazem distinção entre as atividades produtoras de valor e as que circulam ou distribuem valor. Também não vêm qualquer necessidade de prestar contas da forma como os lucros apropriados por certos tipos de capital – capital bancário, as empresas comerciais - representam fatias daquilo a que Marx chama "mais-valia", com origem no emprego de trabalho devidamente produtivo. Em vez de distinguir entre atividades que produzem valor e aquelas que capturam mais-valia redistribuída através da concorrência intercapitalista, os economistas adotam, mais ou menos, a noção comum de "produtividade" utilizada pelos proprietários de empresas e pela imprensa empresarial. Qualquer atividade económica que gera rendimento é dita produtiva, e a produtividade do trabalho é avaliada através da divisão da produção, expressa em termos monetários, por unidades de trabalho. Naturalmente, a existência de um sector público expansivo não sujeito aos rigores da concorrência intercapitalista, fornecendo bens e serviços não vendidos no mercado, coloca alguns problemas a esta noção simplista. Mas existem truques contabilísticos subtis para rebocar sobre as fendas.
Voltemos ao chamado "paradoxo da produtividade" acima mencionado. A solução para este enigma foi proposta, ao que parece, num famoso artigo de William Baumol. Este argumenta que, à medida que certos setores económicos introduzirem inovações de poupança de mão-de-obra, cujo efeito líquido é uma redução na procura de trabalho, os trabalhadores agora tornados redundantes serão, mais ou menos facilmente, reafectados a sectores menos produtivos e mais intensivos em trabalho. Muitos destes trabalhadores serão desviados para aquilo a que os economistas chamam emprego no sector dos "serviços". O modelo de Baumol prevê que, à medida que os ganhos de produtividade são desigualmente distribuídos, por aquilo que ele chama de setores tecnológicos "progressivos" e "estagnados", mais e mais trabalho será concentrado em empregos menos produtivos, resultando em ganhos decrescentes na produtividade laboral da força de trabalho como um todo. Extrapolada a muito longo prazo, a crescente disparidade nos ganhos de produtividade entre sectores resultará numa economia em que o crescimento da produtividade se aproxima de zero.
Esta história é conceptualmente imperfeita. Baseia-se numa noção de produtividade que é confusa ou contraditória, mesmo nos seus próprios termos. No meu livro exploro algumas das contradições que surgem quando se tenta comparar a produtividade do trabalho entre sectores, medida por vezes em unidades físicas, por vezes em unidades monetárias. Como se mede a produtividade do sector financeiro, cuja produção é difícil de caracterizar em termos físicos? Faz sequer sentido medir a produtividade de uma atividade que se limita a intermediar entre outras atividades económicas, sem produzir "valores de uso" consumidos pelas empresas ou pelas famílias? Os economistas fazem-no a toda a hora. Como se mede a produtividade dos professores das escolas públicas, que prestam serviços administrados principalmente pelos governos locais, e que não são trocados por dinheiro no mercado? Apesar dos processos de trabalho e funções sociais radicalmente diferentes destes exemplos, ambos são agrupados numa única e incoerente categoria de "serviços".
Mais significativamente, Baumol não discrimina entre as atividades que produzem valor e as que não o produzem. Não faz distinção entre os bens e serviços fornecidos pelo setor público e os produzidos pela economia capitalista privada e, dentro desta última, entre as atividades que produzem diretamente valor e as que apenas o circulam ou distribuem. A exploração destas distinções conceptuais constitui uma preocupação central de Smart Machines and Service Work. Se empregarmos estas categorias, chegamos a uma noção de produtividade muito diferente daquela em que se baseiam os economistas e os empresários. Muitas atividades que empregam trabalho geram receitas mas não aumentam a riqueza total da sociedade; muitas atividades que criam "valores de uso" - providas pelo Estado ou por famílias privadas - não produzem valor ou valor de troca. Um número significativo dos chamados empregos no setor dos serviços são produtores de valor, por mais intensivos e resistentes à mudança tecnológica que sejam; outros não produzem qualquer valor, e implicam processos de trabalho que são suscetíveis de reformatação com vista à poupança de mão-de-obra. A distinção entre trabalho produtivo e improdutivo é transversal a esta categoria, e torna-a analiticamente irrelevante.
Esta distinção é essencial porque, como observei anteriormente, as atividades improdutivas devem ser pagas a partir do conjunto total de mais-valias geradas pela economia privada: são um custo incorrido no processo de acumulação. As convenções nacionais de contabilidade do rendimento contam estes custos como receitas. Uma das tendências a longo prazo de uma economia capitalista madura é um aumento do número de atividades improdutivas, relativamente às produtivas, necessárias à acumulação: realizar partes do processo de troca, facilitar as atividades capitalistas através de operações financeiras, alugar terrenos e edifícios a empresas produtivas. Esta crescente sobrecarga de atividades laborais que circulam ou distribuem valor, em vez de o criarem, é tanto uma condição para a acumulação de capital como - quanto mais aumenta esta proporção de atividades improdutivas em relação às produtivas - um obstáculo para ela. Esta é uma questão espinhosa, e o meu pensamento sobre ela deve muito ao trabalho de Mattick e do economista Fred Moseley. O resultado é que existe uma taxa diferencial de crescimento da produtividade entre as dimensões produtiva e improdutiva da economia; os ganhos de produtividade do trabalho das atividades produtoras de valor, com importantes exceções, tendem a crescer mais rapidamente do que os das que circulam ou distribuem valor. A expansão relativa, daí resultante, do sector improdutivo, exerce uma pressão paralisante e descendente sobre a taxa de lucro global. A única esperança de aliviar esta pressão é um aumento da produtividade laboral no "setor" improdutivo (um termo enganador, uma vez que a distinção entre atividades produtivas e improdutivas é transversal aos setores e mesmo às empresas individuais). Mas por razões que já enunciei, tal cenário é altamente improvável: desde logo porque a compressão da taxa de lucro faz baixar as taxas de investimento.
Mesmo entre as empresas que extraem diretamente mais-valia no processo laboral, não há correspondência entre a quantidade de mais-valia que exploram e a mais-valia que absorvem, sob a forma de lucros; estes lucros refletem a parte máxima do valor excedente total, produzido pela economia como um todo, que essas empresas são capazes de apropriar no processo de distribuição. À medida que a acumulação abranda e as empresas capitalistas intensificam a concorrência para se apropriarem de uma massa cada vez menor de mais-valia, dedicarão cada vez mais dos seus recursos às "atividades distributivas de soma zero" de Adair Turner. Muitas vezes, estas atividades são de natureza de supervisão, uma vez que uma maior disciplina no local de trabalho exige pessoal adicional para impor a aceleração nos ritmos de trabalho, na ausência de refinamentos nas técnicas de produção. Mas também tomam a forma dos chamados serviços "empresariais", uma vez que cada vez mais recursos são dedicados à contabilidade, publicidade e operações financeiras, ou a eficiências no marketing e processos comerciais. O efeito líquido desta guerra sobre a distribuição, através da economia, é um abrandamento ainda maior da acumulação, precisamente porque estas atividades representam custos gerais adicionais pagos pelos capitalistas a partir do conjunto total de mais-valias criadas através da exploração em atividades devidamente produtivas. Uma vez que a taxa de lucro é apertada, a diminuição das reservas totais de mais-valia exige que as empresas dediquem ainda mais recursos para se apropriarem, em vez de produzirem, esta mais-valia, fazendo baixar ainda mais a taxa de lucro. Esta é a dinâmica semelhante a um turbilhão de uma economia implacavelmente estagnada.
Rail: Na conclusão do teu livro, pareces bastante pessimista acerca dos sindicatos e das formas de luta baseadas na comunidade, apelando a novas formas de organização. Qual é a base para este pessimismo? Tens alguma ideia sobre as caraterísticas que estas novas formas poderão assumir?
J. Smith: Sou pessimista apenas quanto a um renascimento do antigo movimento operário, uma perspetiva a que tantos, na esquerda dos E.U.A., se agarram. Acho que a forma como o conflito entre as classes se está atualmente a desenvolver é promissora e revigorante, mesmo quando o processo permanece fragmentado, desorientado, e cheio de surpresas.
Desde a viragem do século, quase todo o crescimento do emprego nos E.U.A. tem se dado em "serviços" de baixa produtividade, e projeções recentes do Bureau of Labor Statistics antecipam que o segmento do mercado de trabalho em mais rápida expansão, durante a próxima década, estará em posições de baixos salários que não requerem educação formal. Este padrão é lúgubre, exacerbando uma dinâmica que tem estado em vigor há décadas. Num certo sentido, ainda estamos apanhados na ressaca criada pela grande onda de inovação capitalista que se desenrolou entre 1920 e 1960, mais ou menos. Chamo-lhe Automação 1.0, mas esta onda inclui o desenvolvimento e difusão generalizada do motor de combustão interna, a construção de infraestruturas à escala capitalista adequada e as "promessas" e perigos da energia nuclear, para além de desenvolvimentos mais estreitamente associados à automatização das fábricas. Não é segredo que os salários reais dos trabalhadores norte-americanos mal se mexeram desde meados da década de 1970. Muitos atribuem esta estagnação salarial a longo prazo à derrota do trabalho organizado que data do início dos anos 1980. É certo que, entretanto, as taxas de sindicalização foram reduzidas para metade. Mas a derrota não foi simplesmente política. A situação material que tornou possível a consolidação do poder sindical nas décadas do pós-guerra começou a deteriorar-se já em meados da década de 1960, à medida que a composição da classe trabalhadora, e a própria natureza do trabalho, sofreram mutações. A estagnação salarial esteve intimamente ligada ao início de declínios dramáticos na taxa de crescimento da produtividade laboral. O Bureau of Labor Statistics dos E.U.A. mostra que, para o período de 1973 a 1990, a produtividade dos trabalhadores norte-americanos aumentou a uma taxa anual de apenas 1,3%, uma fração dos ganhos registados nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. O crescimento dos salários reais dos trabalhadores exige um aumento da produção por hora de trabalho. É por isso que os acordos pós-guerra entre capital e trabalho, nos E.U.A. e na Europa, vincularam explicitamente os aumentos salariais ao reforço da produtividade: trabalhadores e proprietários "partilhariam" os benefícios do aumento dos rendimentos por hora de trabalho. Quando tais ganhos são difíceis de obter, como é o caso, há muito tempo, na Europa, América do Norte e Japão, qualquer potencial aumento salarial para os trabalhadores implicaria uma queda correspondente nos lucros dos proprietários das empresas. Contra esta perspetiva, a classe capitalista lutou, e continuará a lutar, com unhas e dentes.
A natureza mutável do mercado de trabalho, da composição das classes e do próprio trabalho tem tido outros efeitos paralisantes no movimento laboral. À medida que cada vez mais trabalhadores são desviados para empregos no processo de distribuição e não na produção, ou se concentram na parte de baixos salários do chamado setor de serviços - em lojas, call centers, hospitais, ou centros de dia - eles estão espalhados por inúmeras indústrias e, ao contrário dos seus pais e avós, que estavam frequentemente concentrados em grandes instalações laborais que reuniam milhares de trabalhadores, eles tendem a estar dispersos no espaço, em locais de trabalho mais pequenos, trabalhando muitas vezes com muito pouco capital fixo. Se há uma característica que define o amplo setor dos serviços, onde se concentra muita mão-de-obra "improdutiva", esta é negativa: ela aglomera processos de trabalho concretos muito divergentes, cuja única característica comum é a sua intensidade de trabalho. Uma condição material decisiva para o crescimento, em tamanho e poder, dos sindicatos no pós-guerra, foram os efeitos homogeneizantes da racionalização capitalista do núcleo fabril. Em períodos passados de industrialização rápida, os avanços tecnológicos numa indústria rapidamente se generalizaram através de linhas de produção, fazendo convergir os processos de trabalho; trabalhadores anteriormente divididos por competência, classe, região, género e salários, viram-se a desempenhar atividades laborais cada vez mais semelhantes, com as suas competências e níveis salariais a convergir. À medida que as diferenciações de competências mais antigas, baseadas no artesanato, se foram desgastando e se externalizaram em maquinaria de grande escala, e à medida que esta convergência de processos laborais impulsionava saltos na produtividade laboral, os trabalhadores achavam muito mais fácil descreverem-se como trabalhadores tout court, definidos em contraste e oposição à classe capitalista, do que como empregados de uma empresa específica, cujas queixas e reivindicações eram apresentadas contra este ou aquele patrão específico.
À medida que os trabalhadores são expulsos das indústrias nucleares, intensivas em capital, as condições materiais cruciais para a coerência de classe cedem lugar. Apesar da especulação dos entusiastas da automação, a maioria dos empregos no sector dos serviços permanece impermeável - pela sua própria natureza - à mecanização. E quando são suscetíveis a ela, os baixos salários prevalecentes dissuadem os donos das empresas de empreenderem revisões de cima abaixo destas atividades (serviços de entrega, caixas, guardas de segurança, limpeza de hotéis, passeios de táxi). Os baixos ganhos de produtividade, os baixos salários persistentes, a própria natureza dos trabalhos (que para muitos assume a forma de serviços pessoais) e, acima de tudo, a falta de solidariedade, são desmoralizantes para os trabalhadores. Há muito pouco sentido que eles formem uma classe, em qualquer sentido positivo, que representem alguma prefiguração de uma sociedade a vir, a ser construída à sua própria imagem. Em tais condições, pode prevalecer entre eles um exacerbado sentido de conflito, alimentando-se de formações identitárias de longa data (raça, etnia, género) que os dividem. Durante a pandemia, estas divisões cresceram para incluir a distinção entre aqueles considerados "essenciais" e, portanto, forçados a arriscar as suas vidas para continuar a trabalhar, aqueles que perderam o trabalho por completo, e aqueles, muitas vezes empregados de classe média, que migraram facilmente para plataformas em linha.
Apesar do desmoronamento das condições que deram origem ao antigo movimento operário, nos últimos anos temos, no entanto, assistido a iniciativas extraordinárias tomadas pelos trabalhadores, tanto nos locais de trabalho como nas ruas. Não esqueçamos que foi a verdadeira ameaça de uma greve ilegal dos trabalhadores da TSA em 2019, com os trabalhadores das companhias aéreas prestes a juntar-se a eles, que pôs fim ao encerramento do governo. Há já alguns anos que os professores das escolas públicas também estão dispostos a empreender ações em larga escala; estas têm sido frequentemente em estados supostamente conservadores, mas foram recebidas com um apoio popular esmagador. Os professores das escolas públicas têm permanecido largamente isolados da mecanização da economia de trabalho do tipo que transformou algumas indústrias, e o seu lugar, no seio da ampla divisão social do trabalho, confere-lhes uma extraordinária influência social. Em França, tivemos recentemente um vislumbre do que pode parecer uma revolta naquilo que Phil Neel chama "o interior" (“the hinterland”), à medida que o movimento gilets jaunes - com todas as suas contradições – tomou como alvo, durante meses, os centros das cidades e as rotundas de trânsito. Deus ajude a classe capitalista se os trabalhadores dos centros de distribuição e das redes logísticas decidirem atacar os fluxos de mercadorias através dos portos e ao longo das artérias das redes just-in-time. Há poucos meses, tropas da Guarda Nacional patrulhavam as ruas norte-americanas, sob recolher obrigatório, à medida que motins e manifestações antipolícia se espalhavam pelo país, no meio de uma pandemia mortal.
Verdadeiro pessimismo, para terminar com uma nota pessoal, resultou de ver centenas de milhares manifestarem-se contra o ataque que se preparava ao Iraque, em 2002 e 2003, sabendo quão impotentes eram esses números. Apesar da miséria ambiental e mesmo os traumas, infligidos pelos anos de crise, parece agora que podemos estar à beira de uma verdadeira investida, de uma rotura. Mas quaisquer que sejam os números da luta que os próximos anos nos reservem, é pouco provável que regressem os modelos do movimento laboral no seu apogeu, de meados do século XX. Apesar de tudo o que se conluia contra eles, tanto em termos materiais como políticos, os trabalhadores terão de tatear o seu caminho até algo novo.
(*) Jason E. Smith mora em Los Angeles. Escreve com frequência para a seção “Field Notes” do portal The Brooklyn Rail, editada por Paul Mattick Jr.. Escreveu também extensivamente sobre política contemporânea e economia política, em periódicos como Critical Inquiry, Radical Philosophy, SAQ, Artforum, Commune e outros. É autor do livro Smart Machines and Service Work. Automation in an Age of Stagnation, Reaktion Books, 2020.
Tony Smith é professor de Filosofia na Universidade Estatal de Iowa e membro do conselho editorial das revistas Historical Materialism; Science and Society; Capitalism, Nature, Socialism; Marxism 21 e Against the Current. É autor de muitos livros sobre política, filosofia, e crítica da economia política, dos quais destacaremos The Logic of Marx’s Capital: Replies to Hegelian Criticisms, State University of New York Press, 1990; Dialectical Social Theory and Its Critics: From Hegel to Analytical Marxism and Postmodernism, State University of New York Press, 1993; Technology and Capital in the Age of Lean Production: A Marxian Critique of the “New Economy,” State University of New York Press, 2000; Globalisation: A Systematic Marxian Account, Brill Press, 2005. Por ocasião da publicação do livro de Jason E. Smith's Smart Machines and Service Work, lançado pela Reaktion Books, Tony Smith entrevistou o autor, seu parcial homónimo, em nome e para The Brooklyn Rail.
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