A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Democracia, capitalismo e revolução
 
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A democracia política é uma aquisição civilizacional muito anterior ao capitalismo e muito dificilmente compatível com ele. A democracia burguesa é assim, em larga medida, um oximoro, e não a forma mais perfeita e acabada de domínio da classe que vive dos rendimentos do capital, conforme se pensava no marxismo clássico. Com o conhecimento histórico que temos hoje, podemos concluir que as formas constitucionais democráticas foram, no máximo, um expediente auxiliar da burguesia na sua fase ascensional e uma bandeira de propaganda quando o capitalismo teve de enfrentar as sérias ameaças sistémicas do “socialismo real” e do “terceiro-mundismo” de Bandung. De resto, a conciliação entre a democracia e o domínio do capital nunca foi fácil, nem óbvia, nem “natural”.

 

Durante 2,5 milhões de anos, os hominídios fabricantes de ferramentas viveram em comunidades, nómadas ou sedentárias, nas quais as decisões importantes para a vida social eram tomadas, segundo tudo indica, por consenso ou deliberação coletiva. A partir da revolução urbana, iniciada há cerca de 5.000 anos, isso deixou de ser assim. Surgiram a propriedade privada, a divisão social em classes, o patriarcado, a escrita, o dinheiro e o Estado (1). Desde então, as decisões relevantes para a vida coletiva são tomadas por uma elite, integrante ou cooptada pela classe detentora dos principais meios de produção e responsável apenas perante ela. É assim ainda hoje. Desde que surgiram as sociedades de classes, a democracia passou apenas a assomar, de forma sempre episódica e imperfeita, propulsionada pela luta social a partir de baixo (2).

 

No entanto, os regimes políticos na maior parte das nações contemporâneas afirmam a sua adesão ao princípio democrático. E o modelo social que nos é imposto retira daí uma grande parte da sua legitimação. Foi em nome da democracia que as classes dominantes conduziram a sua luta contra o campo socialista (1917-1989). É uma bandeira que não será facilmente descartável para elas, embora a incomodidade que lhes causa o regime democrático seja cada vez mais notória. Para lá dessa fachada institucional, haverá um campo aberto para a luta emancipadora das classes subalternas (3). Baluartes fortificados de poder social e de representação simbólica podem ser tomados e perdidos, numa incessante guerra de posições. É ainda e sempre no seio da democracia - defendendo, aprofundando e radicalizando o princípio da soberania popular – que se pode divisar um caminho para abolir a apropriação privada dos meios de produção e o regime de dominação social que lhe está associado.

 

Uma coisa é a democracia. Outra coisa, completamente distinta, é a questão do Estado, o Estado como institucionalização da dominação de classe, que é presentemente, em todo o mundo, o Estado capitalista. Os dois problemas intersecionam-se, como é óbvio, mas têm de ser rigorosamente distinguidos, concetualmente e na prática. A democracia, pela sua história e pulsação atual, será antes um anti-Estado, tendo como vocação política mais profunda contestar e desarticular a dominação de classe. Ademais, a expressão político-ideológica típica da dominação de classe da burguesia não é, nunca foi, a democracia mas o liberalismo. A democracia é uma tradição política ancestral, a que devemos respeito e estremosa veneração. É muito anterior ao capitalismo e há-de certamente sobreviver-lhe, se a humanidade houver de ter um futuro.

 

A alvorada da democracia

 

Está hoje firmemente estabelecido que não foi na Grécia clássica que se reinventou a democracia, em sociedades já socialmente estratificadas. O autogoverno popular em assembleia de iguais ocorria já em algumas cidades do Médio Oriente em plena Idade do Bronze. Por volta de 1.500 a.c. esse costume transmitiu-se ao subcontinente indiano, no início do período védico. Praticou-se ainda em cidades fenícias como Sídon e Biblos, antes de, por essa via, chegar finalmente à Grécia micénica. Só muitos séculos depois floresceria na Atenas clássica (4). Não foi assim uma dádiva ocidental ao mundo, como o quer ainda hoje um certo etnocentrismo de vezo neocolonial (5).

 

O fato, porém, é que estamos hoje muito mais informados sobre o surto democrático ateniense do que sobre os seus antecessores. E esse conhecimento é precioso para termos uma correta perspetiva do que é a democracia, para lá da sua integração tardia no arsenal de legitimação da dominação de classe burguesa sob o modo de produção capitalista.

 

A Grécia arcaica, do século VIII à primeira metade do VII a. c., foi um período de relativa tranquilidade social, sob o domínio indisputado da classe dos grandes terratenentes. Dele nos chegou um expressivo retrato no poema Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo. A história humana obedecia a um curso cíclico, em perpétua harmonia com a natureza, de que colhia os frutos por intermédio de um labor honesto e persistente. Os problemas começaram depois (6).

 

Os séculos VII a V a. c. foram um período de grande expansão económica, com uma contínua acumulação de riqueza nas cidades mais progressivas. A navegação intensificou-se, bem como a colonização das costas e ilhas dos Mares Egeu, Negro, Adriático e Mediterrânico, com particular destaque para a Dalmácia, o sul da península itálica (Magna Graecia), a Sicília, a Sardenha-Córsega, o litoral sul de França, o Levante hispânico, a Cirenaica, a foz do Nilo, Creta, Chipre, todo o litoral da Ásia Menor, da Bulgária, da Ucrânia e da Geórgia, a Crimeia-Kuban e a foz do Don. Por volta do ano 500 a. c., quase metade dos gregos vivia nesta diáspora colonial. O comércio, a indústria manufatureira e a circulação monetária conheceram um grande incremento. Exportava-se azeite, vinho, têxteis, cerâmica, artefatos metálicos, em grandes quantidades. Importavam-se metais, madeira, cereais, peixe seco, couro, escravos. As cidades portuárias gregas pululavam de grandes multidões industriosas e irrequietas. Em breve uma grande parte desta cidadania livre começou a reclamar direitos políticos.

 

O regime político correspondente ao domínio dos grandes terratenentes era a aristokratía, o governo pelos melhores ou pela excelência. Durante toda a época clássica grega, nunca a classe proprietária deixou de ser a classe dominante. As fortunas que se faziam no comércio ou na indústria, eram normalmente consolidadas pela compra de terras, o que garantia infalivelmente acesso ao restrito grupo dos melhores. Todavia, o governo por uma minoria privilegiada começou antes a ser denominado por oligarkhía, um termo que Aristóteles depois consagraria como significando o governo pelos ricos (7). Com este alcance, está bem à vista que este conceito veio a ter um grande futuro. Uma oligarquia de base muitíssimo alargada integraria todos os cidadãos com meios próprios suficientes para lhes permitirem servir no exército como cavaleiros ou hoplitas, o que corresponderia a entre um terço a um quinto da população livre masculina.

 

A sociedade grega da época clássica poderá ser denominada de esclavagista, no sentido em que, com grande probabilidade, a maior parte do excedente social apropriado pela classe dominante era produzido por trabalho não livre, com predomínio do trabalho dos escravos, embora se deva ainda incluir nessa categoria o trabalho servo e o de remissão de dívidas. O trabalho assalariado era reduzido e ocasional, à exceção da época das colheitas. Todavia, o que dissemos atrás não significa que a maior parte do produto social fosse gerado por escravos, ou sequer pelo trabalho não livre. Quase de certeza, a maior parte do produto social era gerada pelos pequenos e médios camponeses independentes, formalmente livres.

 

Ora, uma parte importante do produto do trabalhador livre - camponês e também artesão - era igualmente apropriada pela classe dominante, a classe dos grandes proprietários. Era-o, em primeiro lugar, de uma forma direta e individual, por exploradores concretos, a quem o trabalhador livre pagava rendas fundiárias e juros por empréstimos, de quem sofria execuções por hipotecas. Era-o, por outro lado, de uma forma indireta e coletiva, por intermédio do poder estatal, sob a forma de tributação (em dinheiro ou em espécie), de serviços ocasionais compulsórios e do recrutamento militar. Uma vez que os escravos (cativos numa terra estranha, divididos por origens étnicas muito diversas) muito dificilmente se poderiam unir numa causa comum, era a exploração do trabalho livre que traçava a linha onde se jogaram os lanços fundamentais da luta de classes em toda a Antiguidade. A anulação das dívidas e a redistribuição da propriedade fundiária eram as reivindicações mais comuns das classes populares, que muitas vezes tomaram expressão tumultuosa ou mesmo insurrecional (stasis).

 

A irrupção na política dos novos ricos e da plebe comum fez-se através do regime dos tiranos (tyrannoi), entre meados do século VII e finais do século VI a.c.. Tratava-se de um regime de poder pessoalizado, de caráter excecional, que se seguia normalmente a episódios de guerra ou de grande comoção político-social. Os tiranos legitimavam-se como protetores das massas populares laboriosas contra os abusos dos grandes latifundiários. Prosseguiram geralmente uma política de reforma social, promoção do comércio, da indústria, das artes e de grandes obras públicas. Pisístrato em Atenas foi um tirano modelar, entre 546 e 527 a.c.. Na esteira das tiranias, já bem adentrados no século V a.c., surgiu a demokratia, o governo pela maioria, pelo povo ou pelos pobres.

 

O surto democrático ateniense foi produto da revolução agrária ocorrida no início do século VI a.c. que seria institucionalizada pelas reformas do archon Sólon em 594-3 a.c.. O resultado foi a libertação dos pequenos e médios camponeses, não apenas das “dívidas”, mas de todos os laços de sujeição jurídica e política que sobre eles pendiam. Pela primeira vez na história, o pequeno produtor ascendeu a um estatuto de plena autonomia. Ao longo do século seguinte, até às reformas já plenamente democráticas de Clístenes, no final do século V a.c., a cidadania foi-se alargando progressivamente, em geometrias variáveis, a todo o mundo do trabalho independente (8). Não apenas os camponeses, mas também os artesãos, os trabalhadores ocasionalmente assalariados, os peões fundibulários do exército, os remadores da armada, enfim, toda a ralé popular denominada thetes, tinha agora acesso à magistratura e às assembleias deliberativas, para indizível horror de toda a aristocracia bem pensante. Praticamente toda a filosofia grega pós-socrática que chegou até nós é uma extensa e obsessiva diatribe anti-democrática.

 

A máxima expressão da democracia ateniense era a assembleia popular (ekklesia), onde as leis e as deliberações políticas e militares mais importantes eram aprovadas, por voto individual de braço no ar. Também se usou o método de deposição de seixos ou fragmentos cerâmicos numa urna. As assembleias eram realizadas numa colina granítica chamada Pnix, onde se escavou um anfiteatro que, após sucessivas ampliações, chegou a comportar a presença de 23.000 pessoas. Era esperada a comparência de todos os cidadãos do sexo masculino com dois anos de serviço militar. A participação era elevada, tanto mais que era remunerada, de modo a incentivar a presença dos mais pobres. Inicialmente, a ekklesia reunia mensalmente, mas chegou a reunir três a quatro vezes por mês. O mês político democrático na Ática clássica chamava-se pritania e equivalia a um décimo do ano, seja 36 ou 37 dias. Toda a gente tinha direito a falar e a fazer propostas na ekklesia, a partir do estrado central. As discussões eram feitas com método e geralmente ordeiras, mas por norma em ambiente de festa e irreverência popular, com muita chalaça e epigramas espontâneos. A assembleia era geralmente impiedosa para com intervenções vãs e mal informadas. Mas homens de qualquer condição social falavam livremente e faziam propostas sobre os mais elevados assuntos de Estado, civis, religiosos ou militares.

 

A direção corrente dos assuntos públicos era assegurada pelo Conselho dos Quinhentos (boule), que incluía cinquenta conselheiros indicados por cada uma das dez tribos áticas. A boule tinha poderes administrativos, mas não era, de modo algum, um órgão comparável aos modernos executivos. Aliás, o seu nome foi adotado contemporaneamente pelo parlamento grego. Os conselheiros tinham de ter mais de 30 anos. Depois de aprovados num questionário, serviam por um ano, que era o período de exercício do Conselho dos Quinhentos. Apenas poderiam integrar a boule uma segunda vez, em toda a vida. A função de conselheiro acabava por ser desempenhada, ao menos uma vez, por uma grande parte dos homens livres atenienses. Sócrates também por lá passou, afirmando-se contudo totalmente estranho à política. A transitoriedade, o sorteio e o amadorismo eram as garantias da democraticidade e da lisura no exercício dos cargos políticos. A permanência e a especialização eram as marcas da oligarquia, como se verificou durante o golpe antidemocrático de 411 a.c..

 

As tarefas quotidianas da boule, administrativas, legislativas e também judiciais, eram desempenhadas, não pelo Conselho no seu todo, mas apenas pelos cinquenta conselheiros da tribo que, rotativamente e por sorteio, assegurava, por uma pritania, as funções da sua presidência. De entre estes cinquenta “pritanistas”, sorteava-se quotidianamente um presidente (epistates), que assegurava essas funções apenas por um dia e uma noite, para jamais as voltar a desempenhar. Este era, por assim dizer, o “chefe de Estado” de turno em Atenas. Detinha a chave dos tesouros e arquivos da cidade, bem como o selo estatal. Juntamente com um terço dos pritanistas, formava um comité em sessão permanente que assegurava a gestão corrente dos assuntos da polis. Os democratas atenienses cumpriram antecipadamente o anseio de Lenine de que a máquina do Estado pudesse ser dirigida por uma cozinheira (9). Exceto, naturalmente, que teria de ser um homem.

 

O plenário do Conselho dos Quinhentos reunia duas vezes por pritania para deliberar sobre assuntos financeiros ou, extraordinariamente, para qualquer outro assunto de grave urgência. A função mais importante da boule, no entanto, era preparar a agenda e dirigir os trabalhos da ekklesia. As propostas de lei ou decreto e anúncios vários eram afixados em papiros, madeira pintada ou pedra cinzelada junto do monumento aos heróis epónimos, na Ágora. Os normativos aprovados e em vigor eram afixadas na Estoa Real, uma colunata dórica situada a alguma distância, no canto noroeste da Ágora, junto à via panatenaica. Qualquer cidadão podia propor uma lei nova ou a revogação de uma lei existente, devendo neste caso apresentar uma lei alternativa. As alterações legais eram aprovadas mediante a realização de um debate oral contraditório.

 

O poder judicial era assegurado por um sistema de tribunais populares (Heliaea). Os juízes eram não profissionais, eleitos pela ekklesia. Os jurados eram sorteados de entre todos os cidadãos que respondessem a um pequeno teste. As decisões judiciais eram tomadas por voto maioritário e inapeláveis. Só os casos criminais mais graves – homicídio, impiedade, traição - continuaram a ser julgados pelo Areópago, uma instituição de origem aristocrática, cujos membros tinham nomeação vitalícia mas ainda assim estavam sujeitos a escrutínio (10).

 

Entre os princípios afirmados como essenciais para a vida democrática estava o de que a sociedade devia expandir ao máximo a margem permitida de liberdade individual (eleutheria). E entre as liberdades do cidadão estava a de se exprimir, em todas as ocasiões, com toda a franqueza (parrhesia). Toda a gente tinha um igual direito a exprimir a sua opinião com toda a liberdade. A igualdade na expressão das suas opiniões políticas (isegoria) era congénita ao sistema constitucional ateniense (11). E qualquer cidadão era igual a qualquer outro perante a lei (isonomia). Todos os oficiais públicos, a qualquer nível de responsabilidade, estavam sujeitos a um apertado escrutínio público (euthuna). A partir de certa altura, uma parte das funções públicas passou a ser objeto de uma modesta remuneração, o que mais ainda apertou este princípio de permanente examinação de conduta. As nomeações para muitas funções eram aliás feitas por sorteio e tinham duração anual.

 

O novo espírito democrático era antidogmático, cético perante as verdades tradicionais, irrespeitoso perante os poderes estabelecidos. As coisas do mundo são mutáveis, em sentidos imprevisíveis, sendo o homem a única constante. Calicles, Górgias e Protágoras foram alguns dos expoentes inteletuais desta escola sofística, que seria depois incansavelmente caluniada pelos seus inimigos oligárquicos. Infelizmente, não deixou para a posteridade, em sua defesa, um registo original do seu pensamento. Mas os sofistas, ao que parece, nunca perderam em vida uma ocasião para se desforrarem antecipadamente dos seus adversários. Assediavam os poderosos do seu tempo com interrogatórios implacáveis, ridicularizando-os em público. E não se coibiam mesmo de, à sua passagem, na Ágora, libertarem estrondosos assomos de flatulência (12).

 

Questões particulares são levantadas pela relação entre a democracia ateniense e o seu império, por um lado, e o trabalho escravo, por outro. Há claras divergências entre os historiadores sobre o grau em que o funcionamento das instituições democráticas atenienses (nomeadamente, a remuneração de funcionários e participantes na ekklesia) dependia do tributo recolhido entre os seus protegidos da Liga de Delos. Certo é, porém, que as cidades tributárias de Atenas eram elas próprias regidas democraticamente. Onde prevalecesse o poder das armas atenienses, a luta social e o poder político resolviam-se em favor da demos. Megara, Argos, Corinto e Siracusa foram, em alguma época, outras proeminentes democracias clássicas gregas, independentes de Atenas. Rodes era uma importante democracia tributária de Atenas mas que também remunerava os seus agentes públicos. Não parece assim haver bases empíricas que suportem a tese de que a democracia da era clássica era um luxo político suportado por réditos imperialistas. Quanto ao trabalho escravo, a tendência mais recente da historiografia vai no sentido de reavaliar em baixa o seu peso na economia e na configuração geral da formação social ateniense.

 

Liberalismo e democracia “representativa”

 

A democracia ateniense perdurou, com breves interrupções, por cerca de dois séculos. Foi lentamente estrangulada pelo domínio macedónio, a partir de 338 a.c.. Quando a ideia democrática reapareceu em força, no mundo ocidental, dois mil anos depois, era entendida de forma completamente diversa. Tratava-se agora de uma democracia representativa, concebida para entidades políticas mais vastas e populosas. As funções políticas não seriam mais desempenhadas pelo homem comum, mas por pessoal eleito especialmente qualificado. Por outro lado, levava-se em conta a necessidade de uma composição pacífica entre interesses sociais contraditórios (ordens, estados, partidos, etc.). A democracia grega clássica, embora tenha sido produto da luta de classes, laborava ideologicamente com base numa presunção de indivisibilidade da comunidade política (13).

 

As “cortes” convocadas por diversas monarquias ibéricas a partir do século XII (14) foram o precursor da moderna democracia representativa. Mas a ideia base deste pequeno embrião do constitucionalismo liberal – que depois foi transposta e adaptada para os “Estados Gerais” franceses ou o “Parlamento” inglês - estava muito longe do princípio da soberania popular. Tratava-se em primeiro lugar de ganhar o assentimento e a participação dos “homens bons”, a influente burguesia nascente, para a política monetária, a tomada de empréstimos e o lançamento de impostos. Outras questões de interesse político geral passaram depois também a ser objeto de debate e deliberação em cortes. Tratava-se de um sistema político baseado numa representatividade declaradamente oligárquica, que criava espaços de liberdade, participação e defesa contra a arbitrariedade que se destinavam apenas a uma pequena camada superior da população. A mesma observação vale para a famosa Magna Carta inglesa, arrancada pelos barões rebeldes ao rei João no ano de 1215, dizendo respeito sobretudo à tributação, à liberdade de culto, à justiça e aos princípios do processo penal. Em todas as longitudes europeias, foram as classes possidentes, cultivadas, orgulhosas da sua condição não-servil, que se consideraram a si próprias liberais e se proclamaram em luta contra o despotismo e as trevas.

 

Durante os próximos séculos o projeto político burguês vai se consolidar e clarificar, com passagem pelas repúblicas marítimas italianas do século XIII, a revolução portuguesa de 1383-85, as guerras hussitas na Boémia (1419-34), a Reforma Protestante, a revolta dos Países Baixos (1581), a revolução inglesa de 1640-60, a independência dos Estados Unidos da América e a grande revolução francesa. Não era de todo um projeto político democrático. As prevenções de Aristóteles contra a democracia continuaram sempre a gozar de grande prestígio. Como exemplo português de um pensador liberal ferreamente antidemocrático podemos citar, entre outros, Alexandre Herculano (15). O regime liberal, idealmente, seria o autogoverno da sociedade civil por intermédio do livre jogo de forças no seu seio, sem qualquer interferência de poderes a ela superimpostos, fossem eles o soberano absoluto ou a mais terrível ainda tirania da plebe. O liberalismo conviveu muito bem, na verdade encorajou e legitimou, a escravatura racializada, o extermínio de populações nativas, a servidão branca, o malthusianismo, o canibalismo social, a mais extrema misantropia (16). Foram os movimentos de consciência que se moviam contra estes fenómenos que se viram taxados de reaccionários e vestígios despóticos do “antigo regime”. Em muitos sentidos, a avançada social e política do liberalismo foi uma implacável máquina de agressão antipopular (17).

 

A tradição liberal só viria a confluir, de forma parcial e imperfeita, com a democracia, já bem dentro do século XIX norte-americano. Foi aí que se criou o composto sincrético demo-liberal, que se tornaria dominante no mundo ocidental somente após a II Guerra Mundial. Com a queda do muro de Berlim a sua hegemonia alargou-se a todo o mundo contemporâneo, a ponto de Francis Fukuyama o ter conspicuamente considerado a estação final da História. A assimilação da democracia por parte da burguesia fez-se à custa da sua rarefação e mutilação (18). Enquanto na democracia clássica grega o cidadão trabalhador era livre, a democracia representativa contemporânea partilha em grande medida o princípio platónico da separação rígida entre classe dirigente e classe trabalhadora. Apesar de se ter paulatinamente chegado ao sufrágio universal (inclusivamente feminino), este rege apenas na esfera política, que é mantida em rigorosa separação e subordinação para com a esfera económica. Nesta última não há democracia, mas sim o absoluto despotismo da propriedade privada e do mercado. O privilégio político foi substituído pela coerção económica. Os cidadãos são, todos eles, formalmente iguais em direitos e deveres, mas esta fachada constitucional reveste e dissimula o mundo da vivência real, no qual a classe proprietária dos meios de produção se apropria da mais valia produzida pela classe que dispõe apenas da liberdade de vender a sua força de trabalho à melhor oferta (se alguma) de forma a poder sobreviver.

 

Na esfera política, o voto de um explorador vale formalmente tanto como o de um explorado. Mas a igualdade política (isegoria) esfumou-se, quando os mecanismos da representatividade reclamam das classes populares, não o exercício do poder, mas a sua confiança ou alienação ordeira a um pessoal especializado, todo ele (com cambiantes mínimas) fidelizado à classe proprietária. De igual forma, o princípio da soberania coletiva da demos cedeu lugar ao atomismo individualista das escolhas “racionais”. A democracia atual não significa a liberdade do povo em relação a patrões, mas a liberdade dos próprios patrões sancionada pelo consentimento do povo.

 

Longe de ser o fim da história, a democracia representativa burguesa constitui um estádio de equilíbrio altamente instável. A sua viabilidade depende de forma absoluta da contínua expansão do capitalismo. Quando a atual crise prolongada de lucratividade mostra à saciedade os limites históricos deste sistema social, vemos de forma cada vez mais clara que a democracia está constantemente a ser posta em causa. Estamos perante uma bifurcação histórica. A persistência do capitalismo implicará, sem dúvida, uma continuada rarefação da democracia, até chegarmos à sua completa extinção (um déjá vu). Caminharemos para um mundo cada vez mais rigidamente segregado, possivelmente até à criação, por manipulação genética, de uma nova espécie sobre-humana. A humanidade, como a conhecemos, será confinada, dominada e continuamente explorada em espaços geográficos próprios, em estado de extrema desolação demográfica e ecológica.

 

A perseverança no projeto democrático, implicará o seu alargamento progressivo à esfera económica, pondo em causa o império da propriedade privada. É o caminho da luta de massas anticapitalista, das organizações populares de base, da resistência ativa de coletivos profissionais e cívicos, do controle operário e dos consumidores sobre a produção, da defesa dos serviços públicos e do domínio público, do apoderamento coletivo sobre os espaços de vizinhança, da criação livre e partilhada, do desenvolvimento em comunhão de novos conceitos e iniciativas.

 

Antes, porém, de avançarmos para o aprofundamente, alargamento e densificação da democracia representativa, vais ser preciso defendê-la, inclusivamente no seu travejamento mais tipicamente liberal, como os direitos, liberdades e garantias essenciais de cidadania. Tudo isso vai ser - começa já a ser - objeto de assalto por parte da burguesia, cada vez mais forçada a governar em regime de “exceção”, à medida que agudiza a sua ofensiva de classe para preservar as suas margens de lucro. A voragem da globalização sob domínio dos oligopólios mundiais - de que são manifestação os grandes pactos comerciais multilaterais, a sujeição dos Estados a jurisdições arbitrais, a desregulamentação das transações financeiras internacionais, as uniões monetárias, a “independência” dos bancos centrais, etc. - implica uma ofensiva incessante contra a autodeterminação democrática. A democracia formal burguesa está cada vez mais cerceada e sob tutela. O poder efetivo reside nos mercados, esse artefacto ontológico a que os jornalistas chamam a “realidade”. Defender a democracia, porém, só é possível participando nela. Sem ilusões, naturalmente, mas também sem prescindir, quer da sua função tribunícia, quer dos seus mecanismos de alternância no poder.

 

Em articulação com a luta social, a participação nas instituições da democracia respresentativa pode cumprir uma função muito importante. Por seu intermédio podem ser avançadas medidas transitórias de feição tendencialmente anticapitalista, programas mínimos de reforma estrutural que testem os limites de assimilação do sistema vigente. Deste modo pode ser conduzida uma estratégia de atrito permanente que faça avançar, na consciência política das massas, a constatação da necessidade de uma rotura. Para isso, é importante garantir que não haja qualquer solução de continuidade entre a luta por melhores condições de vida para as classes laboriosas e a luta, já mais avançada, pela apropriação e assunção de responsabilidades sobre os meios determinantes de produção e reprodução da vida coletiva. A experiência dos últimos vinte anos na América Latina (que se começa a procurar replicar em alguns países europeus) mostra que isso pode ser tentado com alguns resultados palpáveis. Mas para que esse processo se consolide é necessária nada menos que uma verdadeira refundação constitucional (19). Partindo necessariamente de bases nacionais, este movimento não poderá contudo ficar isolado e circunscrito. Terá de avançar de forma coordenada e envolvente, abrangendo grandes massas continentais potencialmente autosuficientes e, ao menos, alguns dos países capitalistas dominantes.

 

O chamado neoliberalismo assinala, de novo, um marcado distanciamento em relação à democracia do aparato político de domínio burguês, agora na sua fase declinante. A democracia burguesa será pois o campo onde se vai travar uma luta sem quartel entre as duas tendências (os dois “partidos”) que disputam o caminho para a sua superação. É aí que se vai jogar a morte ou transfiguração da democracia. Teremos uma nova “ditadura terrorista” das classes possidentes (alegadamente excecional mas na verdade permanente) ou a retomada efetiva do significado original da democracia, que é o de ser o regime em que o povo é quem mais ordena.

 

Se nos arriscássemos, depois de tudo o que atrás expusemos, a avançar um conceito de democracia, não intemporal, mas com uma certa transversalidade histórica, diríamos que esta é o regime político que: 1) proclama o princípio de que cada homem é igual a qualquer outro em dignidade, direitos e voz própria na resolução dos assuntos de interesse coletivo, devendo ter as mesmas oportunidades para desenvolver todas as suas potencialidades pessoais; 2) sem a superar, tempera e regula as arestas mais vivas e arbitrárias da dominação de classe; 3) introduz o princípio de que a exploração de classe, nas suas modalidades e, por fim, na sua própria subsistência, será sujeita ao consentimento dos explorados, que o darão mediante uma avaliação informada do seu interesse concreto, face às circunstâncias históricas que lhes são presentes e às opções por elas permitidas. Onde estas três caraterísticas não estiverem presentes, ao menos tendencialmente, não teremos algo a que possamos chamar democracia, mas sim uma oligarquia maquilhada.

 

Estado capitalista e revolução social

 

A teoria do Estado foi deixada em linhas muito esquemáticas pelos fundadores do marxismo. A teoria do “capitalismo monopolista de Estado”, a Escola de Frankfurt, o círculo althusseriano e a escola alemã federal dita “derivacionista” (ou da “lógica do capital”) trouxeram alguns contributos, de valor e influência desiguais (20). Sobre os esteios levantados por Gramsci (21), algumas elaborações importantes foram realizadas, a partir dos anos 1960, por Nicos Poulantzas (22), que tiveram depois continuidade no trabalho de Bob Jessop (23). Para efeitos do presente ensaio, no que respeita à conceção do Estado, serei poulantzianos. As considerações que farei têm em vista diretamente os países capitalistas desenvolvidos com sistemas políticos democráticos. Noutras circunstâncias, valerão apenas aproximativamente, com as devidas adaptações.

 

O Estado capitalista (24) é o aparato institucional que unifica, coesiona, regula, estabiliza para o médio-longo prazo e garante pela força, ao nível concentrado do poder político, o ascendente social da classe detentora dos meios de produção sobre a classe que deles está desprovida, estando por isso coagida a vender a sua força de trabalho. A coerção direta é afastada das relações económicas, sendo concentrada de uma forma geral e abstrata ao nível do poder político. A esfera pública é assim rigorosamente separada da esfera privada. Os agentes económicos nunca sentem as relações capitalistas como relações de classe, mas sim como relações de colaboração (ou de competição) entre indivíduos isolados. Por efeito deste “efeito de isolamento”, na esfera privada reina a ideologia jurídica dos indivíduos iguais entre si, capazes de, por “livre” encontro de vontades, disporem a seu talante dos seus interesses pessoais. E é este mesmo efeito de isolamento, transposto para o nível político, que vai permitir a introdução da “democracia” no funcionamento do Estado capitalista. O Estado, beneficiando por sua vez de um “efeito de unificação”, encarna a unidade pública do povo-nação, soma abstrata de sujeitos formalmente livre e iguais.

 

Na esfera pública, entretanto, a hegemonia da classe burguesa permite-lhe fazer passar os seus interesses coletivos como o desígnio universal de toda a comunidade. A hegemonia é precisamente este mecanismo que concentra e impõe à coletividade o ponto de vista da classe dominante, enquanto dispersa e subalterniza os pontos de vistas dos dominados. Mas a hegemonia não se joga apenas entre as classes sociais, dominante e dominada. No seio da própria classe burguesa, há sempre uma fração, ou uma aliança variável entre diversas frações, que, alcandorando-se a uma posição hegemónica – o bloco no poder - faz passar os seus interesses de grupo como o interesse da classe burguesa no seu todo, e como tal o interesse geral da comunidade.

 

A democracia é um enxerto muito superficial e localizado no robusto corpo do Estado capitalista. O núcleo duro e intangível deste último está completamente fora do seu alcance. A organização interna do Estado reflete uma certa divisão social do trabalho e as relações sociais prevalecentes. Os diversos aparatos estatais cristalizam essas relações sociais com uma eficácia e um poder de inércia que não podem ser facilmente desafiados (25). Não é só o esteio fundacional da dominação da classe burguesa sobre a classe trabalhadora que nunca poderá ser posto em causa por decisão democrática. As próprias necessidades conjunturais da acumulação capitalista nunca poderão ser por este modo contrariadas. O jogo partidário político-eleitoral poderá ter algum papel instrumental e secundário a desempenhar na formação e ascenção de um determinado bloco no poder e na passagem de um regime de acumulação para outro, por exemplo do regime keynesiano para o regime neoliberal. Mas não mais do que isso. Aliás, o impulso fundamental para essas mudanças de regime de acumulação provém do próprio nível de lucratividade global do sistema.

 

Não é viável qualquer alteração no bloco do poder ou qualquer mudança do regime de acumulação que contrarie a necessidade de uma determinada amplitude na lucratividade global do sistema ou os objetivos estratégicos essenciais da classe burguesa no seu todo. A história política do mundo ocidental nos últimos 40 anos é precisamente a da impotência e definhamento da democracia face aos imperativos da lucratividade. As alternâncias governativas ocorridas entre “esquerda” e “direita” não tiveram qualquer influência na repartição de rendimentos e poder social entre o trabalho e o capital, que se foi sempre desequilibrando uniforme e progressivamente em favor deste último. As classes populares foram manifestando a sua frustração com os governos de esquerda votando à direita, fazendo depois exatamente o reverso, e assim por diante, enquanto as suas condições de vida e perspetivas de futuro se foram degradando cada vez mais.

 

O Estado capitalista está dotado de uma certa autonomia em relação às classes dominantes e seus interesses económicos imediatos. Não é propriamente um “comité para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”, como se diz no Manifesto do Partido Comunista. É algo de bastante mais complexo. Representa, isso sim, os interesses políticos da burguesia e a projeção da sua hegemonia coletiva para o mais longo curso. Essa finalidade, bem assumida, implicará a auscultação permanente das classes subalternas, a satisfação de muitas das suas aspirações e a tomada de decisões por vezes bastante desagradáveis para alguns capitalistas particulares, e mesmo, ocasionalmente, para a generalidade da classe burguesa. Atuando deste modo com alguma frequência, além de melhor assegurar os interesses estratégicos do bloco no poder, o Estado capitalista reforçará a sua perceção ideológica como defensor do bem comum, situado com equanimidade acima das classes sociais como representante legítimo do povo-nação.

 

A relativa autonomia do Estado capitalista é um fenómeno antigo, tendo dado origem a fenómenos políticos como o bonapartismo, o caudilhismo, o populismo. Mais recente é a apetência do Estado por intervir diretamente na regulação da atividade económica, assegurando a reprodução e qualificação da força de trabalho e acionando simultaneamente outras contratendências à tendência à baixa da taxa de lucro. Muitas daquelas intervenções “sociais” foram conquistas da luta de classes a partir de baixo e deram ao Estado uma estrutura e um caráter muito diverso do tradicional “guarda-noturno” dos tempos do capitalismo concorrencial puro. O Estado capitalista de hoje inclui tipicamente extensas burocracias e classes profissionais cuja submissão ao bloco no poder não está inteiramente assegurada (professores, enfermeiras, assistentes sociais, técnicos prestadores de serviços, assistentes administrativos, etc.). O próprio aparelho de Estado, em certo sentido, se torna assim terreno disputado, onde se podem defrontar diversas conceções sobre o bem comum. Muitos quadros inferiores do Estado, pela sua origem de classe, pela sua interação e sensibilização quotidiana com as agruras da vida popular, pela própria insegurança e desqualificação pessoal que sentem, podem esperimentar profundos conflitos de lealdade. O Estado capitalista é sempre a condensação formal de uma determinada correlação de forças na luta de classes. É certo que a sua forma o torna incapaz de servir de instrumento de domínio de outra classe social que não a burguesa. Mas não deixa por isso de ser um campo de luta. Como o próprio capital, também o Estado capitalista é uma relação social.

 

Em última análise, porém, a arrastada crise de lucratividade do sistema acaba por restringir a margem de autonomia do Estado capitalista. As frações dominantes do bloco do poder sentem-se asfixiadas (“profit squeeze”) e consideram ser cada vez mais difícil sacrificar lucros de curto prazo à perpetuação da hegemonia política a longo prazo. Esta crise de ansiedade da classe dominante vai provocar uma grande tensão no corpo do Estado capitalista. As camadas político-administrativas do topo agarram mais ferreamente as rédeas do poder, ao serviço dos interesses imediatos do capital monopolista, afastando as decisões mais importantes da esfera de disposição democrática, ou mesmo do escrutínio público. É a “realidade a impor-se à “retórica demagógica”. A divisão dos poderes é enfraquecida, com concentração no executivo. As liberdades públicas – de opinião, associação e manifestação - são restringidas. A imprensa é concentrada sob controlo oligopolista e submetida ao “pensamento único”. O Estado fica partido a meio, com a metade inferior, afeta a funções de coesão social, atónita e desorientada quanto ao seu papel, suspensa no vazio, em perigo de queda na insignificância ou no desemprego. A unidade hierárquica da administração estadual fica comprometida, sendo normalmente escorada por um corpo paralelo (as forças armadas, um partido político dominante ou um sistema partidário dual fiel ao bloco no poder, uma federação patronal…), que lhe procura dar, a partir de fora, uma direção coerente.

 

A presente situação apresenta assim riscos e oportunidades para uma política socialista revolucionária, que passam ambos pelo próprio interior do aparelho estatal. O colapso da unidade e autonomia do Estado capitalista é a derrocada da legitimidade de toda a ordem burguesa, mesmo que se mantenham os rituais periódicos formalmente democráticos. E esse processo agravar-se-á inevitavelmente, de forma continuada, a menos que haja uma folgada retoma da lucratividade. A revolução social começa a engrossar. Ela não enfrentará o Estado como um inimigo coeso e homogéneo, antes como um campo onde é possível encontrar amigos e mesmo estabelecer provisoriamente algumas trincheiras. É possível conduzir uma luta ideológica e política tenaz, paulatina e desgastante no seio do Estado – expondo impiedosamente as contradições do inimigo - e não apenas na sociedade civil. Para isso, é preciso constituir um polo aglutinador da luta política das classes populares que firme bem os seus pés no Estado capitalista, participando no seu jogo democrático. A democracia e a unidade da nação devem ser enaltecidas e defendidas, afirmando-nos nós como os seus verdadeiros campeões. O escoramento exterior aplicado ao Estado deve ser exposto e defrontado diretamente. A tomada por assalto da fortaleza do Estado capitalista far-se-á por dentro e por fora, com vitórias eleitorais e com a ocupação defensiva de espaços públicos essenciais à vida coletiva. O bloco no poder será derrubado e disperso. A aliança popular laboriosa que acede ao poder vai construir o seu próprio aparato estatal, à medida do seu projeto emancipador universal. Será a condensação formal de uma nova correlação de forças, agora invertida.

 

Em torno da ditadura do proletariado

 

Karl Marx empregou pela primeira vez a expressão “ditadura do proletariado” (26) numa série de artigos escritos em 1950 que seriam reunidos sob o título As lutas de classes em França. A dictatura, para cultores da história romana,era simplesmente um regime de exceção, que se seguia normalmente a uma grande comoção pública e visava assegurar a transição para uma ordem mais estável. Equivaleria ao moderno “estado de sítio”, mas naturalmente sem a previsão e regulamentação constitucional. O apelo a uma ditadura do proletariado não era, por princípio, contra nem a favor da democracia. Nesta altura não existia aliás nenhum regime democrático na Europa. A democracia era justamente o ideal da ala mais extrema do movimento revolucionário de 1848, em que Marx e Engels participaram ativamente. Ademais, a acentuação na frase era colocado (contra o blanquismo e, mais tarde, o bakuninismo) no facto de se querer, não uma ditadura pessoal ou de um grupo esclarecido, mas a ditadura de uma inteira classe social, justamente a classe social mais numerosa e de raiz popular.

 

Durante mais de vinte anos Marx não tornou a usar a expressão “ditadura do proletariado”, mas sim “domínio do proletariado”, “Estado dos trabalhadores”, etc.. Só voltou a usar o conceito “ditadura do proletariado” em conexão com os acontecimentos da Comuna de Paris de 1871. Dir-se-ia que a necessidade de uma ditadura assomava ao seu pensamento com o cheiro da pólvora e o estrépito das barricadas. Por fim, é claro, na Crítica do Programa de Gotha (1875), escreveu:

 

“Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde também um período político de transição cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado(27).

 

Esta pequena frase perdida no meio de um escrito de circunstância, não destinado a publicação, viria a constituir um dogma doutrinal que Marx certamente nunca previu, nem desejou. Não é plausível que Marx tivesse maduramente pensado que a transição para um novo modo de produção – que equivale a toda uma época histórica, provavelmente alongada por séculos – se fizesse necessariamente, em qualquer lugar, em contínuo regime político de exceção, ou seja, sem qualquer legalidade e institucionalidade estabilizadas. O que ele estava, seguramente, nesta circunstância, é de cabeça completamente perdida com o legalismo oportunista e obsequioso dos dirigentes operários alemães para com Bismarck e o kaiser.

 

É certo que, por esta altura, com base nas experiências em curso na Suíça e nos Estados Unidos da América, Marx, já pressentia a democracia como um possível horizonte de futura estabilização política do domínio burguês. E previu expressamente que essa democracia burguesa não estaria imune ao levantamento armado do proletariado. Nunca, porém, da sua pena saiu nada no sentido de que a revolução proletária renegaria o princípio democrático. Aliás, na mesma Crítica do Programa de Gotha, algumas linhas à frente da passagem citada, recrimina asperamente os sociais-democratas alemães por não terem a coragem de reclamar a república democrática.

 

A ditadura do proletariado, como Engels viria a esclarecer certeira e oportunamente, era a Comuna de Paris (28). Ou seja, era o povo tomando o seu destino nas próprias mãos, na mais ampla vaga participativa e assembleária de que há memória, derrubando os títeres e os mitos da velha ordem, questionando tudo, procurando o seu caminho de forma ainda tenteante, armas na mão. Longe de a suprimir, a ditadura do proletariado é uma verdadeira explosão de democracia. Simplesmente, a menos que se caia no mito da “revolução permanente” (que tinha efetivamente alguma sedução sobre Marx), há que introduzir aqui a consideração da longa duração. Roma e Pavia não se fizeram num dia, como mais seguramente podemos dizer agora que se encerrou o ciclo revolucionário do século XX e mal se entreabriu ainda o do século XXI. As classes populares vão querer reclamar a sua emancipação. Mas também vão reclamar pão, géneros, transportes confiáveis, segurança, cuidados de saúde, serviços urbanos, escola de qualidade. A transição ao comunismo será um processo longo, pontuado por múltiplos episódios revolucionários (de “ditadura”, se assim se quiser) e por períodos de calma e paciente aprendizagem coletiva. Com avanços e recuos, dispersões e reagrupamentos, na correnteza das lutas de classes.

 

A outra faceta da ditadura do proletariado é a destruição do Estado burguês, com sua substituição por um aparelho político provisório, apto a expressar a hegemonia do proletariado e a defendê-la das tentativas restauracionistas dos velhos senhores. A isso me referirei àparte mais adiante.

 

Pela mão de Georgy Plekhanov, a instauração da ditadura do proletariado foi incluída no programa do Partido Social-Democrata Russo, no seu congresso de 1903. A adesão foi unânime, de bolcheviques e mencheviques. Para isso terá contribuído, certamente, a crença errónea de que Marx, na citação acima mencionada, estava a advogar a sua inclusão no programa da social-democracia alemã. De todo o modo, por altura da viragem de século, este conceito já havia adquirido um caráter contencioso, servindo como estandarte divisor de águas entre o revisionismo reformista (Bernstein, Jaurès) e o socialismo revolucionário.

 

O problema conceptual colocado pela ditadura do proletariado seria reformulado por Vladimir Lenine, numa série de reflexões que culminariam em O Estado e a Revolução (1917) (29). Todo o poder de classe será afinal uma ditadura, no sentido de ser um poder absoluto, não partilhado, de uma única classe social, fundado na violência sem peias. Consequentemente, a instauração da ditadura do proletariado quererá simplesmente dizer que se passou de um regime de ditadura burguesa (fosse ele formalmente o mais “democrático”) para um regime de domínio das classes trabalhadoras. O poder social não pode senão percorrer vertiginosamente, de lés a lés, esta polaridade absoluta. Ser todo meu ou todo teu, num lance apenas em que tudo se decide. Como na dialética hegeliana do senhor e do escravo.

 

Lenine foi um dos principais responsáveis por disseminar, na opinião socialista, o topos teórico de que a república democrática parlamentar seria a forma mais perfeita e avançada de Estado burguês (30). Com a experiência histórica que fomos acumulando entretanto, parece-me antes que o Estado capitalista pode revestir diversas formas - integrando ou não elementos democráticos - sem que se possa dizer que umas sejam mais avançadas que as outras, ou que ele percorra um caminho necessário de progresso evolutivo. O máximo que se pode dizer é que a democracia é um elemento que aparece associado ao Estado capitalista, doseado por formas variáveis, contribuindo para a sua legitimação, em alturas em que a burguesia se sente mais segura quanto ao exercício indisputado da sua hegemonia. Numa abordagem sincrónica e estrutural, como a de Nicos Poulantzas, é aceitável que se diga hoje, na Europa, que o Estado capitalista normal se carateriza pela existência de representação parlamentar, liberdades públicas, sufrágio universal e soberania popular, sendo Estados de exceção o fascismo e a ditadura militar (31). Todavia, o historiador não tem como dizer que a norma do Estado capitalista deve ser definida pelos momentos de máxima autoconfiança da burguesia. A “exceção” já provou o seu caráter recidivo e a “norma” democrática ainda não se impôs numa grande parte do mundo capitalista, nem é nada seguro que aí se venha a impor.

 

Embora não fosse responsável por essa deriva – que remonta a Plekhanov e era amplamente partilhada em toda a social-democracia russa – pode dizer-se que Lenine entendia natural que, em emergência, extensível a toda uma época histórica, a ditadura de classe do proletariado fosse assumida como ditadura do seu partido (substitucionismo). Por outro lado, no seu pensamento, há uma clara solução de continuidade histórica entre a democracia burguesa e a democracia proletária. A primeira deve ser inteiramente destruída e enterrada, antes que a segunda possa emergir ex nihilo, dada à luz pela ditadura do proletariado (32). Marx e Engels não viam as coisas assim. Tendo exigido e apoiado sempre (como também Lenine, aliás) a emergência, consolidação e alargamento de liberdades, direitos e instituições democráticas no regime burguês, eles pensavam que havia uma possibilidade, ainda que estreita, de estas últimas poderem vir a desembocar diretamente na democracia real, sob o impacto da revolução proletária, embora houvesse sempre que contar com a reação inconformista das classes dominantes (33). A especificidade “atrasada” da Rússia poderá ter tido um peso decisivo na formação do ponto de vista de Lenine sobre esta questão.

 

A conceção leninista da ditadura do proletariado foi endossada entusiasticamente por Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), num ensaio de 1967 (34). Contudo, da asserção de que todo o poder político é uma ditadura de classe, Cunhal tira conclusões que conduzem inapelavelmente à completa irrelevância teórica deste conceito. Seguiu-se, logicamente, a expedita solução do correspondente problema político: derrubado o regime fascista em 1974, no VII congresso (extraordinário) do PCP, o primeiro realizado à luz do dia em 48 anos, preparando-se o partido para enfrentar competições eleitorais em regime de imprensa livre, foi aprovada a eliminação da expressão “ditadura do proletariado” do seu programa.

 

Durante a revolução de 1974-75, tornou-se claro que o que o PCP entendia por “destruição do Estado fascista” (que não o capitalista) era na verdade, simplesmente, o seu saneamento, com a ocupação dos seus lugares estratégicos por quadros democratas e progressistas da sua confiança. O movimento popular espontâneo era hostilizado sempre que não podia ser instrumentalizado como simples aríete ao serviço daquele objetivo.

 

O abandono da ditadura do proletariado seria também oficializado pelo Partido Comunista Francês no seu 22º congresso, de fevereiro de 1976 (35), no contexto das negociações em perspetiva para a renovação do Programa Comum de governo com o Partido Socialista de François Mitterrand. Foi como que o sinal de dispersão final para os restos da III Internacional, tal como o congresso de Bad Godesberg do SPD alemão havia sido, alguns anos antes, a formalização da rendição ao capitalismo da II Internacional. Na verdade, a teoria do Capitalismo Monopolista de Estado, temperada pelo clima geoestratégico da “coexistência pacífica”, há muito que havia traçado na maioria dos partidos comunistas ocidentais uma estratégia gradualista de passagem ao socialismo a partir da democracia burguesa. Era a via da “democracia avançada”, com base numa alargada aliança de classes antimonopolistas e na estatização progressiva da economia, na expetativa de uma confluência final com o “campo socialista”. A ofensiva neoliberal a partir dos anos 1980 e a derrocada da União Soviética provocaram a completa falência deste modelo, que todavia continua ainda a ser a proposta estratégica do PCP. Não há hoje como escapar à necessidade de, a partir do avolumar e da radicalização das lutas de massas, atacar frontalmente o Estado capitalista.

 

A nosso ver, o conceito marxista de ditadura do proletariado deve ser retido, embora esteja fora de questão manter esta mesma denominação. Em primeiro lugar, devido à evolução semântica muitíssimo desfavorável que o vocábulo político "ditadura" sofreu desde o tempo de Marx, que fez com que se tornasse antinómico de democracia. A isso acresce ainda, especificamente, o abuso que o conceito sofreu, sob o estalinismo, como sinónimo de ditadura terrorista e autofágica de partido único. Mas se este nome hoje não nos interessa, a coisa interessa-nos sim, sobremaneira, desde que se faça o necessário trabalho de restauração do seu significado original. Poderemos talvez chamar-lhe democracia radical (36), autogoverno popular revolucionário ou qualquer outra expressão que, nas circustâncias concretas, abarque mais perfeitamente o seu sentido.

 

Destruição do Estado burguês e a questão do duplo poder

 

A tomada de poder pelo proletariado e seus aliados (o campesinato, as camadas em vias de proletarização, a pequena-burguesia, os inteletuais independentes, as camadas pobres urbanas) opera-se com a destruição do Estado burguês. O Estado capitalista é um bloco feito à medida para o exercício da hegemonia de uma classe social específica, não podendo ser instrumentalizado ao serviço de uma classe ascendente. A destruição do Estado burguês, entretanto, será realizada de uma forma seletiva e descontínua. Uma parte dele será efetivamente destruída ou desfigurada para lá de qualquer reconhecimento, com destaque para o aparato repressivo (polícia, exército, tribunais). Outra parte será simplesmente redimensionada, adaptada às novas relações de poder entre as classes sociais, democratizada. Haverá ainda, porventura, uma parte do novo Estado que provirá da institucionalização da auto-organização revolucionária das massas. É impossível prever antecipadamente quais as proporções relativas que adquirirão estas três partes.

 

Tornou-se comum, em diversas correntes que se reclamam do marxismo, avaliar o caráter revolucionário de um projeto político pelo grau de desprezo devotado à democracia representativa burguesa e pela sua disposição em fazer uma aposta total em novas formas políticas, de democracia direta, provenientes da própria experiência revolucionária. Há aqui em ação como que uma metáfora naturalista. As novas formas políticas deverão brotar espontaneamente da sociedade em convulsão. Abusou-se um tanto da homologia do parto. Haveria necessariamente um período de “duplo poder”, em que as duas formas de legitimidade coexistem e se defrontam diretamente no terreno. Depois uma delas pereceria necessariamente, perante o ascenso ou a reafirmação da outra. Nenhum compromisso seria aqui possível.

 

As experiências que tivemos no século XX de desenvolvimento de novas formas políticas, de democracia direta, como expressão do poder proletário, não foram bem sucedidas. Os sovietes na Rússia, as comunas na China Popular, o poder popular em Cuba e muitas outras experiências similares, jamais se puderam sustentar para lá de um período transitório de efervescência revolucionária. Depois disso tornaram-se formas vazias, manietadas pelo partido do poder. Pode sempre argumentar-se que isso é, em si, um sintoma thermidoriano, sinal do triunfo de uma contrarrevolução burocrática. O certo é que, com a experiência histórica que adquirimos no século XX, não temos hoje bases para concluir que as novas formas do Estado popular serão necessariamente as que brotam espontaneamente da experiência revolucionária.

 

O fenómeno revolucionário do duplo poder quer apenas dizer que uma parte da sociedade está em rebelião contra o estado de coisas existente. Não está mais disposta a viver como até aí, obedecendo a quem habitualmente manda. Quer tomar o seu destino em suas próprias mãos. Mas isso não significa necessariamente que estes gestos insurrecionais coletivos e as disposições de emergência tomadas nesse contexto constituam o embrião de um novo Estado, historicamente superior. Há que esperar, após a revolução, que as novas relações de poder político se condensem numa forma nova, estabilizada, decantada pela experiência e pelas lutas. De contrário, teríamos que dizer que os acampamentos e as assembleias deliberativas do movimento “occupy” já prefiguram hoje, também eles, um novo Estado pós-capitalista. Houve, sem dúvida, numerosos episódios de duplo poder na transição do feudalismo para o capitalismo, mas o Estado capitalista não foi gerado espontaneamente a partir da sociedade civil em rotura completa com a ordem política senhorial.

 

A democracia representativa burguesa, com os direitos, liberdades e garantias que lhe estão associados, é uma aquisição civilizacional que não deve ser sumariamente remetida para o caixote de lixo da história. O princípio republicano da soberania popular é um horizonte político ainda não alcançado e que nos deve continuar a servir de referência. O que deve ser abolido é a consagração política da dominação de uma parte da sociedade sobre a outra. Esse, sim, é o Estado que tem de ser destruído. Em vez de uma democracia condicionada à manutenção do regime da propriedade privada e da exploração, queremos uma democracia ilimitada. Até que ponto será esta uma democracia direta ou terá que fazer ainda recurso a mecanismos representativos, é um problema que neste momento tem ainda de ficar em aberto, dependente que está de definições políticas e até técnicas que não podemos antecipar.

 

Esta democracia radical pode se ver constrangida a tomar medidas de exceção, para se defender das agressões restauracionistas da burguesia desalojada do poder. Será, porventura, em certas circunstâncias, uma ditadura no sentido acima exposto. Mas o estado de exceção terá de ser constitucionalmente previsto e regulamentado. Estaremos ainda e sempre num Estado de Direito. Naturalmente, todo o direito é ideologia e falsa consciência (37), mas é melhor do que a nua arbitrariedade do poder. Não é concebível que a democracia radical ofereça menos garantias legais, menos direitos e menos liberdades, para a generalidade dos cidadãos, do que a democracia burguesa.

 

A destruição do Estado burguês não é apenas a sua transformação num Estado proletário, que é já, em muitos sentidos, um anti-Estado, por ser um aparelho de poder de sinal invertido. É também o início do processo do deperecimento desse mesmo Estado proletário, da sua autodestruição paulatina e conscientemente dirigida. O proletariado não aspira a tornar-se uma nova classe exploradora e, por isso, necessita do seu Estado apenas para se defender e para coordenar minimamente as tarefas que se propõe com vista à sua futura submersão pela auto-organização democrática da sociedade. Para isso, é necessário que, pelo alargamento do tempo livre, pela luta, pela aprendizagem, pela organização, pela inovação, se desenvolvam as relações de produção comunistas e as formas de sociabilidade delas decorrentes. O deperecimento do Estado, do Direito, do sujeito jurídico-político, irá de par com o definhamento da apropriação privada do produto social, o fim da separação entre o trabalho e as “potências inteletuais” da organização da produção.

 

Democracia e transição

 

O primeiro impulso de quem pretende hoje defender as classes laboriosas contra as agressões e os abusos das classes possidentes, não é formar um partido revolucionário de absoluta pureza milenarista com o objetivo de destroçar o Estado burguês em assalto frontal. É antes lutar por defender esse mesmo Estado, naquilo em que ele dá ainda algum refúgio e conforto a quem sofre necessidades cada vez mais agudas. Defender a escola pública, o sistema de pensões, o centro de saúde, a estação de correios, a acessibilidade da água, etc.. Ora, esse impulso é o impulso certo. Não só por ser o que é mais imediatamente mobilizador das classes populares, mas também por ser aquele que constitui o início lógico de uma cadeia de lutas que poderá culminar no revolucionamento completo do presente estado de coisas.

 

O desmantelamento do Estado social é um objetivo central da luta de classes de iniciativa da burguesia nesta época histórica. É uma agressão direta aos trabalhadores, equivalendo à negação de uma prestação contratual, o salário indireto. A par disso vão a diluição da legislação laboral e a privatização de bens e serviços públicos. É a própria burguesia que procede afanosamente à destruição destas específicas parcelas do seu Estado, cabendo-nos a nós defendê-las. O êxito nesta ofensiva vai desestruturar completamente a vida familiar das classes populares, o pequeno comércio, o equilíbrio urbano, a harmonia social. Defender o Estado social, o direito do trabalho e os serviços públicos faz-se por intermédio dos sindicatos, dos partidos políticos da esquerda, das associações de cidadania, mas também no âmbito das relações de proximidade e vizinhança, contribuindo para o fortalecimento de um sentimento de solidariedade e empoderamento local. É uma primeira escola de luta, que pode contribuir decisivamente para a elevação da consciência política e da autoconfiança das classes laboriosas, ultrapassando divisões étnicas, profissionais e geracionais.

 

Para desmantelar por completo o Estado social vai ser preciso degradar de forma extrema e ostensiva o funcionamento da democracia representativa. O movimento popular tem aqui uma nova tarefa, que é defender a democracia burguesa dos ataques... da própria burguesia. É uma luta quotidiana, em diversas frentes. É a defesa do valor do bem público (res publica), do princípio da soberania popular, da independência nacional, da divisão dos poderes, da lei geral e abstrata, da jurisdição universal, das liberdades de pensamento, de informação, de associação e de manifestação, a própria liberdade de iniciativa económica, a educação universal, a igualdade de oportunidades, etc., etc.. As principais traves-mestras da república democrática estão a ser alvo de ataque feroz, sustentado e persistente por parte das forças ao serviço do capital monopolista. É uma batalha que não pode ser evitada. E ao travar esta batalha, vamos inevitavelmente reunirmo-nos sob bandeiras republicanas de esquerda, com companheiros de barricada que não nos merecem grande estima inteletual, nem moral. Mas sem participar nesta batalha, não teremos outras.

 

A defesa da democracia é uma posição política muito sólida porque, numa grande parte do mundo, a ideia democrática já firmou raízes em profundidade na consciência popular. É uma ideia muito simples e eficaz, que uma vez adquirida logo se reveste de uma evidência generalizada e uma enorme compulsão moral (38). Não será fácil de erradicar. E também não está a ser fácil para a classe dirigente tentar explicar que devem ser colocadas restrições e qualificações à democracia… por imposição dos “mercados”. Uma vez mais aqui se confirma que a melhor forma de castigar um hipócrita é tomá-lo à letra. A defesa das instituições democráticas vai atingir o Estado capitalista no seu âmago, expondo com uma grande crueza as suas contradições e a artificialidade do seu discurso legitimador. De embate em embate, no longo rosário das lutas de classes, vai ficando progressivamente mais claro que democracia e capitalismo são na verdade incompatíveis. Um deles deverá finalmente ceder.

 

Defender a democracia burguesa é necessariamente participar nela. E não se trata apenas de usar o parlamento burguês como tribuna de denúncia. Socialistas revolucionários que somos, sem dissimulação, teremos ainda assim que estudar os problemas nacionais quotidianamente, com afinco e seriedade, apresentar soluções publicamente e estar disponíveis para as aplicar, a qualquer nível de responsabilidade do Estado a que sejamos chamados pelo voto popular. Fazer tudo isto, naturalmente, sem ilusões, mas também sem petulância autossuficiente, servindo o povo sempre com diligência e honestidade, nos limites que nos são impostos. Limites esses que, entretanto, devem ser denunciados e criticados publicamente. A nossa fidelidade à democracia, como valor civilizacional universal caldeado pela história, não se estende ao capitalismo, a que ela se encontra presentemente subordinada. A nossa participação nas instituições da democracia burguesa deve ser feita reclamando sempre incessantemente a democracia não condicionada, a democracia verdadeira, a democracia radical (ver supra). Para servir como referência identitária e doutrinal a nível global, a democracia radical deveria idealmente ter ao seu serviço uma Nova Internacional (39).

 

A crise de lucratividade é um problema crónico do capitalismo nesta época histórica. Teria de haver uma destruição maciça de capital acumulado, mas o recurso à guerra está agora vedado entre os países capitalistas mais avançados. O formidável poder destruidor existente, se liberto, não teria como poupar a própria burguesia à aniquilição física. Vamos ter uma estagnação económica prolongada, com crises cada vez mais profundas e frequentes, seguidas de longas depressões. A luta de classes vai se agudizar a um ponto em que poderão ocorrer fenómenos sociais e políticos extremos. Os representantes da democracia radical devem acompanhar de perto esse engrossamento e radicalização das lutas de massas. A certo ponto, o povo vai descer à rua, incapaz de viver como até ali. E vai procurar com o olhar em volta quem lhe dê uma palavra franca e de confiança sobre “que fazer?” É de uma importância crucial que, nessa altura, sejamos conhecidos e respeitados, tenhamos um conhecimento profundo do Estado, contatos entre os seus agentes, soluções de emergência para apresentar, capacidade para as executar. Para destruir o Estado burguês, é preciso conhecê-lo bem. Isto se o quisermos fazer efetivamente e não apenas por frases grandiloquentes.

 

Imaginemos uma situação em que há ocupação popular de tribunais, de quartéis militares e esquadras policiais, de centros de emprego e segurança social, de repartições de finanças, de bancos, de hospitais e postos de saúde, de grandes superfícies comerciais, da rede de serviços públicos de água, correios, eletricidade e comunicações, etc.. As pessoas estão cansadas de esperar e vão tomar a sua vida nas próprias mãos, lá onde esperam encontrar as suas condições determinantes, mais próximas ou mais longínquas. São organizados circuitos alternativos de abastecimento e autoajuda coletiva. Será que tudo isso levará a constituição de uma situação de “duplo poder”? A resposta cautelosa que podemos avançar desde já será: talvez sim, talvez não. Com este nível de radicalização da vida social, com o grau de neutralização dos aparelhos preventivos e repressivos da burguesia que aí está implícito, será bem possível conseguir a eleição de listas socialistas revolucionárias para uma grande profusão de cargos públicos, inclusive, porque não, uma maioria parlamentar que dê aceso ao governo. Ou de um presidente da república nos regimes presidenciais. É provável que, antes disso, haja ainda uma tentativa de golpe militar ou de decretamento do estado de sítio. Derrotada essa intentona, a maré popular é quem mais ordena, nas ruas e também nas urnas.

 

O acesso das classes populares ao poder pode fazer-se por via insurrecional, mas também por via eleitoral, nos próprios trâmites constitucionais burgueses, desde que se encontrem bloqueados os mecanismos de segurança do Estado capitalista. O que é impossível torna-se possível, em determinadas circunstâncias. Uma luta de massas persistente, em crescendo, coordenada, politicamente enquadrada, vai ela própria fazer o trabalho inicial de erosão do Estado burguês, fazendo baixar as suas defesas. O duplo poder pode ser afinal um só. Com o poder que caiu na rua, mais aquele que se conquistou nos palácios, pode dar-se início ao desmantelamento do Estado capitalista, com o apoio e colaboração de uma grande parte dos seus quadros inferiores.

 

O alargamento de espaços de empoderamento das classes populares abrirá caminho ao estabelecimento de novas relações produtivas, cooperativas e solidárias, que o mesmo é dizer à abolição das classes sociais (40). A automação da indústria, a produção de valor zero, a redução progressiva do tempo de trabalho compulsivo, a rarefação da propriedade privada, a expansão da “economia” da dávida e a colocação em comum de todo o património cognitivo da humanidade serão as coordenadas gerais deste projeto. Ele poderá se iniciar ainda antes da aurora da democracia radical. Certo, porém, é que esta última não poderá ser sustentada sem circunscrever e, por fim, esmagar as relações de produção capitalistas e a mercantilização da vida. E essa é uma tarefa eminentemente política, não decidida de antemão por qualquer determinismo tecnológico. Será a própria democracia em ato, superando-se a si própria, que poderá (ou não) elevar-se a esse novo patamar histórico.

 

 

 

 

Publicado nos números 22 e 23 da revista em linha O Comuneiro, março e setembro de 2016, respetivamente.

  

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NOTAS:

 

(1) V. Gordon Childe, What happened in history, Penguin Books, London, 1982. Este clássico imprescindível teve em Portugal uma única tradução, parcial, hoje esquecida e nunca reeditada: Gordon Childe, O Homem faz-se a si próprio, Edições Cosmos, Lisboa, 1947. Na verdade, este precioso volume é um arranjo autorizado pelo autor a partir de três originais seus – Man makes himself (2ª edição, 1940), What happened in history (1942) e Progress and archeology (1944) – concebido, traduzido e anotado por dois (então) jovens marxistas, Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo.

 

(2) V. Temma Kaplan, Democracy: A World History, Oxford University Press, Oxford-New York, 2015.

 

(3) O ponto de partida para este ensaio foi um artigo de Prabhat Patnaik, ‘O Estado e a Esquerda’, publcado no número 22 da revista O Comuneiro.

 

(4) V. John Keane, Vida e Morte da Democracia, Edições 70, Lisboa, 2009, p. 11.

 

(5) Foi um banqueiro whig britânico, George Grote, na sua History of Greece, em doze volumes (Londres, 1846-56), que espalhou esta lenda, tremendamente influente ainda hoje, da democracia ateniense como longínquo precedente e farol do liberalismo ocidental.

 

(6) Em muito do que vamos expor de seguida sobre a Grécia clássica apoiamo-nos sobretudo em Geoffrey E. M. Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek World, Cornell University Press, New York, 1981. Leia-se também, Moses I. Finley, A Economia Antiga, Afrontamento, Porto, 1986 (2ª edição). Estes dois extraordinários classicistas britânicos, declaradamente marxista o primeiro, simpatizante o segundo, mantiveram entre si um cerrado e curiosíssimo despique inteletual.

 

(7) Cf., por exemplo, Aristóteles, Tratado da Política (2ª edição), Publicações Europa-América, Lisboa, 2000, pp. 89 ss..

 

(8) Leia-se Ellen Meiksins Wood, Peasant-citizen and slave. The foundations of Athenian democracy, Verso Books, London-New York, 2015.

 

(9) Lenin, Can the Bolsheviks retain state power?, 1917.

 

(10) Quem quiser saber mais pormenores técnicos sobre o funcionamento da democracia ateniense, com remissão para as fontes primárias disponíveis, pode consultar em linha Demos: Classical Athenian Democracy.

 

(11) “A constituição que nos rege não tem nada que invejar às dos outros povos; serve-lhes de modelo; não as imita. Ela tomou o nome de Democracia, porque o seu objectivo é a utilidade do maior número e não a de uma minoria.

Nos assuntos particulares, todos são iguais perante a lei, mas só àqueles que se distinguem por algum merecimento se tributa consideração.

Bem mais que as distinções sociais é o mérito pessoal que abre o caminho das honras.

Nenhum cidadão capaz de servir a pátria é impedido de o fazer, pela indigência ou pela obscuridade da sua condição.

Péricles, ‘Um discurso’, Livraria Educação Nacional, Porto, 1941, pp. 11-12. Como se vê bem, trata-se de um programa político da maior atualidade, que ainda hoje está em grande medida por cumprir.

Como é bem sabido, os escravos, os estrangeiros e as mulheres estavam excluídos da democracia ateniense. Neste mesmo discurso de Péricles, escontra-se esta passagem da mais extrema misoginia que é possível encontrar, em qualquer época ou lugar do mundo: “Às mulheres (...) Uma só palavra me basta. Que elas ponham todo o seu orgulho em se mostrarem fiéis ao carácter do seu sexo, e em adquirirem, junto dos homens, a menor celebridade possível, quer no bem quer no mal” (pp. 22-23).

 

(12) Cf. John Keane, ob. cit., p. 84.

 

(13) Cf. John Keane, ob. cit., p. 199.

 

(14) Por exemplo, as cortes do reino de Leão, convocadas por Afonso IX a partir de 1188, as cortes do reino de Castela reunidas pela primeira vez em 1211 (Toledo), as cortes portuguesas reunidas pela primeira vez em 1254 (Leiria) no reinado de Afonso III, as cortes do reino de Aragão reunidas pela primeira vez em 1283.

 

(15) Cf. Joaquim Barradas de Carvalho, As ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano, Seara Nova, Lisboa, 1971.

 

(16) Cf. Domenico Losurdo, Liberalism, a counter-history, Verso Books, London-New York, 2011, uma implacável obra prima de história do pensamento social.

 

(17) Cf. E. P. Thompson, Costumes em comum, Companhia das Letras, São Paulo, 1998. Para a experiência portuguesa, leia-se José Manuel Tengarrinha, Movimentos populares agrários em Portugal (1751-1825), 2 vols., Publicações Europa-América, Lisboa, 1994 e Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resistências populares ao liberalismo (1834-1844), Afrontamento, Porto, 2002.

 

(18) Em muito do que vamos expor neste parágrafo e no próximo baseamo-nos em Ellen Meiksins Wood, Democracy against capitalism. Renewing historical materialism, Verso Books, London-New York, 2016 (1ª edição 1995).

 

(19) Leia-se Frédéric Lordon, ‘Pela república social’, in Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, n.º 113, março de 2016, pp. 19-21.

 

(20) Ver Chris O’Kane, ‘State Violence, State Control: Marxist State Theory and the Critique of Political Economy’.

 

(21) Ver ‘Caderno 13 (1932-34). Breves notas sobre a política de Maquiavel’, in Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere (edição de Carlos Nelson Coutinho), Volume 3, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007 (3ª edição). Uma antologia bastante abrangente sobre o pensamento político gramsciano, preparada pelo Instituto Gramsci, é Antonio Gramsci, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980 (4ª edição).

 

(22) Ver Nicos Poulantzas, Poder Político e as Classes Sociais, Dinalivro, Lisboa, 1977 (2ª edição portuguesa; edição original: Maspero, 1968). No final dos anos 1960, outro contributo importante para a teoria marxista do Estado foi Ralph Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista (2 vols.), Presença, Lisboa, 1977 (edição original 1969). Estes dois autores entraram em polémica, da qual a primeira parte foi publicada em Nicos Poulantzas e Ralph Miliband, Debate sobre o Estado capitalista, Afrontamento, Porto, 1975. O confronto não foi muito feliz, polarizando uma posição “instrumentalista” (Miliband) e outra “estruturalista” (Poulantzas), de cuja unilateralidade, felizmente, ambos os autores se distanciaram subsequentemente. A evolução de Poulantzas, que aqui mais nos interessa, viria a culminar em L’État, le Pouvoir, le Socialisme, Presses Universitaires de France, Paris, 1978, não editado em Portugal. Para lá do breve período em torno da revolução de 1974-75 (em que se publicou muito, depressa e mal), os editores portugueses não demonstram qualquer intresse em literatura marxista, com a natural exceção, quase exclusiva, das editoras ligadas ao Partido Comunista Português (Avante!, Caminho, Página a Página), que obedecem uma linha político-ideológica muito demarcada.

 

(23) Ver Bob Jessop, The Capitalist State, Martin Robertson & C.º, Oxford, 1982. Deste mesmo autor, ver também o utilíssimo e esclarecedor Nicos Poulantzas. Marxist theory and political strategy, Macmillan, London, 1985.

 

(24) Nicos Poulantzas pronunciou-se pela impossibilidade de uma teoria geral do Estado, válida para todos as sociedades de classes. Em algumas considerações genéricas que produzimos, na abertura da primeira parte deste ensaio, desatendemos essa prevenção, com alguma ligeireza. No que se vai seguir, referir-nos-emos apenas ao Estado capitalista.

 

(25) Ver Göran Therborn, What does the ruling class do when it rules?, New Left Books, London, 1978.

 

(26) Em muito do que vou expor de seguida, sigo de perto Hal Draper, The dictatorship of the proletariat from Marx to Lenin, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1987. Para mais detalhes, do mesmo autor, ver o Volume III (The ‘dictatorship of the proletariat’), da monumental obra Karl Marx’s theory of revolution (4 vols.), Monthly Review Press, Nova Iorque, 1977-1990.

 

(27) Ver Crítica do Programa de Gotha, in Marx e Engels, Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1985, Tomo III, p. 25.

 

(28) Ver Introdução de Engels para a edição especial de 1891 de A guerra civil em França, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1983, Tomo II, p. 195-216.

 

(29) Ver O Estado e a Revolução. A doutrina marxista sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução in V. I. Lenine, Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo 2, pp. 221-305.

 

(30) Ver As tarefas do proletariado na nossa revolução in V. I. Lenine, Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo 2, pp. 21-48. Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978.

 

(31) Vale a pena referir que Nicos Poulantzas, tendo vivido apenas até 1979 e não tendo conhecido o Estado neoliberal em todo o seu fulgor, detetou e caraterizou claramente a emergência de um novo “estatismo autoritário”, com degradação generalizada das suas feições democráticas, como sendo a nova norma do Estado capitalista. Ver L’État, le Pouvoir, le Socialisme, ob. citada, p.223 ss..

 

(32) Ver, p. ex., Teses sobre a Assembleia Constituinte e Discurso ao Terceiro Congresso dos Sovietes de toda a Rússia in V. I. Lenine, Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo 2, pp. 431-434 e 465-477, respetivamente.

 

(33) Ver, por exemplo, o testemunho contido na parte final do prefácio de Engels para a primeira edição inglesa (1886) de O Capital, in Karl Marx, O Capital, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1990, Livro Primeiro, Tomo I, pp. 33-34.

 

(34) Cf. Álvaro Cunhal, A questão do Estado, questão central de cada revolução, Edições Avante!, Lisboa, 2007 (2.ª edição).

 

(35) Sobre a polémica daí resultante, ver Étienne Balibar, Sobre a ditadura do proletariado, Moraes, Lisboa, 1977. A tradução é de José Saramago, militante do PCP considerado “esquerdista” por Álvaro Cunhal. Ver também, Louis Althusser, O 22.º Congresso, Estampa, Lisboa, 1978.

 

(36) Democracia radical, naturalmente, é um conceito já cunhado e de uso corrente na filosofia política contemporânea. Ver Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemony and socialist strategy. Towards a radical democratic politics, Verso Books, London, 2014 (2.ª edição). A sua aproximação à ditadura do proletariado é, naturalmente, da minha inteira responsabilidade. Laclau e Mouffe colocam no horizonte da democracia radical a abolição das relações de produção capitalistas, mas não reconhecem a universalidade do proletariado nem a centralidade social das identidades e relações de classe.

 

(37) Ver Evgueni Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo (2.ª edição), Centelha, Coimbra, 1977.

 

(38) Ecoou aqui, na minha memória, que o próprio Marx, no seu tempo, a propósito da forma valor, observou que “a ideia de igualdade humana adquiriu já a firmeza de uma convicção popular”. Ver Karl Marx, O Capital, Livro I (1º Volume), Centelha, Coimbra, 1974, Capítulo I, p. 91 (tradução de Vital Moreira e Teixeira Martins a partir da edição francesa revista por Marx).

 

(39) Ver István Mészáros, Reflexões sobre a Nova Internacional.

 

(40) Maugrado o seu conteúdo globalmente dececionante, vala a pela ler Paul Mason, Pós-capitalismo. Guia para o nosso futuro, Objectiva, Lisboa, 2016. Aí, pelo menos, este problema é abordado de uma forma séria, levando o comunismo ao encontro do grande público leitor, o que não é coisa de somenos. Uma crítica do livro de Mason muito informativa e teoricamente sólida é Christian Fuchs, Henryk Grossmann 2.0: A Critique of Paul Mason’s Book “PostCapitalism: A Guide to Our Future”.

 

 

 

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