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A Economia como distopia
Andrea Zhok (*)
A ciência que hoje identificamos como Economia tem uma história e uma status científico peculiar. O seu nascimento convencional costuma coincidir com a publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, que ocorreu em 1776, data altamente simbólica também porque coincide com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. O trabalho de Smith, como muitas vezes acontece, foi considerado como inaugural por meio de uma operação a posteriori, que decidiu reconhecer-lhe características qualificadoras de particular importância. A Riqueza das Nações cobre inúmeros tópicos, mas a razão da posição que adquiriu como obra fundadora da ciência económica é dada pelo papel eminente que aí é atribuído à troca como geradora de bem-estar. O texto de Adam Smith, num certo sentido, vem sendo lido como uma celebração da nascente Revolução Industrial da Inglaterra e da supremacia mundial que ela prefigura, uma celebração que quer compreender as razões deste sucesso, identificadas na liberdade de troca entre agentes económicos auto-interessados.
No entanto, uma leitura que queira ver unilateralmente nos benefícios do comércio livre, a origem do capitalismo industrial moderno, e o seu sucesso histórico, é certamente insustentável. É assim por, pelo menos, três razões: porque ignora o papel crucial desempenhado pelo poder militar e naval inglês antes da industrialização; porque negligencia o grande papel desempenhado pela revolução tecnocientífica, que permitiu um novo uso produtivo de máquinas; e porque subestima a solidez institucional e jurídica da Inglaterra do século XVIII, que proporcionou as condições para novas relações de mercado. Que o que está nas origens do capitalismo industrial inglês é uma multiplicidade de fatores, entre os quais o componente de livre comércio é apenas um entre outros, não é uma tese particularmente controversa hoje em dia, mesmo que existam grandes margens interpretativas quanto aos pesos relativos a atribuir a cada fator. No entanto, a nível teórico, a acentuação unilateral do papel do comércio livre desempenha um papel peculiar. No século que se segue à publicação da obra-magna de Smith, abundante em elaborações intelectuais, ocorre uma transformação na teoria económica que leva à sua sistematização neoclássica, marginalista, tradicionalmente ligada aos nomes de Carl Menger, Léon Walras, William Stanley Jevons e Alfred Marshall. Esta sistematização, que representa hoje o núcleo da teoria económica estudada nas respetivas faculdades em todo o mundo, produziu uma metamorfose crucial na natureza e nas ambições da ciência económica.
Na base do edifício da ciência económica atual existe um esquema sugestivo, tão retoricamente poderoso como enganador. Consiste numa visão idealizada e antropologicamente fictícia de troca voluntária entre indivíduos. A troca ideal imaginada por Smith é aquela em que dois agentes económicos individuais, como o caçador de castores e o de cervos, dos quais ele fala (1), podem se encontrar acidentalmente e interagir de forma livre, numa transação para benefício mútuo. Neste encontro imaginário, se os dois sujeitos chegaram a uma troca voluntária, por definição, ela deverá ser benéfica para cada uma das duas partes contratantes, caso contrário, estas não concordariam com isso. Ora, este benefício mútuo é concebível como o benefício percebido por ambas as partes contratantes, e pode ser imaginado como uma ideal quantidade de valor. Sob estas premissas, podemos assumir que, após cada troca voluntária, a quantidade de valor total (a utilidade dos sujeitos envolvidos) é aumentada. Sendo as coisas assim, parece, portanto, que um aumento e intensificação das trocas voluntárias dentro de uma sociedade é o principal caminho para um aumento generalizado do bem-estar, da riqueza das nações.
Este esquema inicial, considerado intuitivo, é então desenvolvido, complicado e refinado pelo próprio Adam Smith e pelos seus sucessores. A troca torna-se a chave universal para a escolha e ação racionais. Assim, em autores como Ludwig von Mises (2), também a ação individual do único é lida como uma instância de troca, e precisamente como uma espécie de troca entre eu e eu, onde um sujeito troca perspetivas de ação com resultados alternativos para ele próprio, por exemplo, o prazer do descanso e o de uma realização futura. A divisão do trabalho entre múltiplos sujeitos é vista igualmente como um corolário natural desse modelo de troca: podendo aceder às trocas voluntárias, os indivíduos têm interesse em especializar-se, dividir as tarefas produtivas e, assim, obter um aumento da produção geral. O mesmo padrão ocorre no nível das relações produtivas entre as nações, onde a divisão do trabalho levaria em princípio ao aumento generalizado da produção, como defendeu, antes de todos, David Ricardo, com a “teoria dos custos comparativos”.
Portanto, tanto a ação individual como a divisão do trabalho são lidas à luz de uma troca voluntária idealizada, que define as formas de escolha racional. Uma vez estabelecida esta plataforma conceitual, a ciência económica procede introduzindo uma série de condições gerais, que deverá permitir que sejam plenamente realizadas as promessas de benefícios de um sistema universal de trocas voluntárias. Com o nascimento da Economia neoclássica, o modelo idealizado da troca voluntária surge analisado nas suas pré-condições e nas condições do seu desenvolvimento ideal. Essas pré-condições e condições são apresentadas como axiomas ou princípios, de acordo com um paradigma mais característico das ciências naturais ou da matemática do que das ciências sociais. Uma vez introduzidos esses axiomas ou princípios com alto nível de abstração, passamos a introduzir cláusulas e esclarecimentos que deveriam tornar o quadro, inicialmente abstrato, progressivamente mais e mais concreto.
Esquematicamente, podemos descrever esta estratificação conceitual através de três momentos. Primeiro, encontramos os princípios mínimos de racionalidade da escolha individual, que atendem pelo nome de princípios de comportamento do consumidor. Em segunda instância, encontramos um grupo de princípios que deveriam especificar as condições sob as quais a troca sistemática e reiterada (o mercado) mantém a sua eficiência: estes são os princípios de concorrência perfeita. Em terceiro lugar, estes princípios abstratos deveriam ser qualificados e tornados mais realistas com a introdução de elementos de perturbação e imperfeição, como a consideração de externalidades e custos de transação. Vamos tentar descrever essas etapas um pouco mais de perto.
Os axiomas do comportamento do consumidor
Os axiomas (ou princípios) do comportamento do consumidor geralmente mencionados são quatro: completude, transitividade, não saciedade e utilidade marginal decrescente. Estes princípios devem definir a estrutura mínima para que uma escolha racional possa ocorrer. A racionalidade incorporada por estes princípios é o que nos permite dar o primeiro passo no processo de matematização da Economia neoclássica (marginalista), isto é, permite-nos traçar as curvas de utilidade que representam a base analítica da microeconomia.
Comecemos pelos dois últimos princípios, que aparentemente descrevem traços psicológicos específicos.
O princípio da não saciedade diz que, para cada bem económico, um sujeito preferirá sempre ter mais do que menos. Esse princípio é claramente falso se o imaginarmos aplicado num contexto onde os mercados não existem (ou onde eles têm eficiência limitada), uma vez que, para qualquer bem concebível, a um determinado ponto da acumulação, tornar-se-á inútil ou mesmo oneroso. Posso adorar tomates, posso usá-los de inúmeras maneiras engenhosas, mas se não puder vendê-los num mercado capaz de absorvê-los, em algum momento chegarei a um limiar onde um tomate adicional será um fardo e não um aumento na utilidade. O princípio da não saciedade pressupõe, portanto, tacitamente, como facto pertencente à própria essência do económico, a existência de um mercado ideal, potencialmente ilimitado (um mercado local, como, por exemplo, os medievais, não seria capaz de nos livrar efetivamente de tomates excedentes). Isto implica, portanto, que o princípio da não saciedade só pode ter plausibilidade em condições históricas muito particulares (a existência de um sistema de mercado) e que não pode ter validade antropológica geral.
O princípio da utilidade marginal decrescente é, provavelmente, o mais sólido dos quatro princípios e funciona, de certa forma, como compensação do anterior. Captura uma tendência própria da satisfação de todo o desejo fundado em necessidades concretas: quanto mais uma necessidade aparece satisfeita através da disponibilidade de um bem, muito menos da próxima unidade de bem será desejável. Este princípio aplica-se extensivamente a nível antropológico, mas deve-se notar que, precisamente, num sistema de mercado (o sistema pressuposto pelo princípio anterior) apresenta exceções importantes. Num sistema de mercado, o crescimento da disponibilidade monetária pode abrir horizontes de aquisição anteriormente ignorados e assim conduzir a um desejo crescente por dinheiro: aqui o aumento de um bem (sui generis) pode levar a um desejo crescente por esse mesmo bem. O que estes dois princípios “psicológicos” mostram é, portanto, uma estranha falta de homogeneidade quanto às condições de aplicação: as condições sob os quais o primeiro é verdadeiro são aquelas sob os quais o segundo é falso e vice-versa. Aqui já surge em primeiro plano o caráter desencarnado, a-histórico em que os princípios da Economia neoclássica são colocados, que os torna altamente problemáticos.
Os outros dois princípios do comportamento do consumidor são frequentemente considerados meros princípios lógicos, cuja violação seria absurda. No entanto, são precisamente estes que escondem as abstrações mais problemáticas. Na verdade, a ortodoxia neoclássica vê possíveis violações daqueles princípios como formas de irracionalidade radical, com respeito às quais a única coisa razoável a fazer seria censurá-los ou corrigi-los. Estes dois princípios, que não são meramente psicológico-descritivos, desdobram os seus efeitos num sentido plenamente normativo.
O princípio da completude afirma que, para cada par de escolhas, é sempre possível ordená-las em termos de utilidade, como igual, maior ou menor uma em relação a outra. Esta suposição, aparentemente inocente e minimalista, em vez disso, contém uma pressuposição crucial. Na verdade, ela define a comensurabilidade de todo o conteúdo de valor com todos os outros e com isso também a mensurabilidade de cada conteúdo de valor. Afirmar que todo conteúdo de valor pode ser ordenado de acordo com o mais ou o menos significa afirmar que todo conteúdo de valor é quantificável. Este é, de facto, o conteúdo implícito no conceito de utilidade, emprestado do utilitarismo clássico, e fundamental para a compreensão da conceituação de valor em Economia. O que acontece inadvertidamente nesta passagem é crucial: uma coisa, na verdade, é dizer que, em qualquer circunstância, podemos fazer uma escolha sem ficarmos paralisados, outra coisa é dizer que a nossa escolha foi produzida com base numa comparação quantitativa de uma mesma coisa.
Além disso, mesmo uma condição de impasse e de indecidibilidade objetiva não é, estritamente falando, irracional (no sentido de ininteligível): podemos ser confrontados com uma escolha onde imperativos imensuráveis entram em conflito, e isso pode nos levar a um impasse. Por exemplo, podemos imaginar Abraão num estado de impasse semelhante quando confrontado com o pedido divino de sacrificar seu filho Isaque: a obediência a Deus e o amor paterno poderiam configurar uma situação na qual impor uma ordem de valor acaba por se tornar impossível. Mas estes são casos extremos, que poderíamos considerar marginais até certo ponto. O ponto com as implicações mais ricas consiste na ideia de que os conteúdos valorativos sobre os quais exercemos as nossas escolhas devem ter uma natureza quantificável, portanto, em princípio, ser reconduzíveis a uma avaliação numérica (3). Este ponto fica mais claro se completarmos o quadro examinando o axioma final do comportamento do consumidor, ou o axioma da transitividade.
Até mesmo o axioma da transitividade parece afirmar algo banal, quase tautológico. Na verdade, afirma que, se eu preferir o bem A ao bem B e o bem B ao bem C, então devo preferir o bem A ao bem C. A ideia básica aqui é que, se não fosse assim, se eu fosse tão irracional a ponto de violar o princípio da transitividade, seguir-se-ia que, ao vender-me os mesmos bens em sequência alternada, alguém poderia me reduzir à pobreza. Este princípio reforça e explica o carácter quantitativo implicitamente atribuído ao conteúdo de valor que deveria representar uma escolha económica. O valor (utilidade) que é concebido como uma espécie de substância homogênea e incorruptível, divisível e quantificável, que pode, portanto, ser acumulado, ou disperso, no tempo. Não é difícil de perceber como o padrão tácito desta substância não é alguma qualquer característica psicológica obscura e elusiva, como o prazer e a dor dos utilitaristas, mas simplesmente o dinheiro. Na verdade, somente o dinheiro se apresenta como uma substância homogénea, divisível, quantificável, cumulativa e valiosa. Mas o seu valor, claro, é um valor instrumental, extrínseco, devido apenas à sua capacidade, num certo contexto, de garantir acesso a determinados bens ou serviços.
De um ponto de vista empírico, é bastante simples mostrar como as violações da transitividade podem ser tudo menos irracionais. Eu posso preferir um Ferrari a um Mercedes como símbolo de status, posso preferir um Mercedes a um Ferrari para levar a família nas férias, e posso preferir um Smart a um Ferrari ou a um Mercedes para ir fazer compras na cidade. Aqui podem ser criadas infinitas formas de intransitividade que não apresentam sequer um traço de irracionalidade (4). Na verdade, uma contradição no verdadeiro sentido, como afirma a definição clássica de princípio da não contradição, seria uma incompatibilidade que ocorre para escolhas estritamente simultâneas e sob as mesmas condições (5). Mas nenhuma escolha real ocorre nesta simultaneidade descontextualizada. Essas condições ideais, na verdade, pertencem apenas à atemporalidade abstrata das relações matemáticas. As nossas escolhas reais acontecem em contextos de ação que mudam, e onde também as nossas próprias preferências podem estar sujeitas a alterações. Em diferentes fases da vida, mas às vezes até no mesmo dia, podemos subjetivamente ter necessidades diferentes e, portanto, ordenar valorativamente de forma diferente os mesmos bens.
Na verdade, uma descrição fenomenológica cuidadosa da natureza das escolhas reais poderia mostrar como elas nunca ocorrem na forma de alguma comparação entre “prazeres” e “dores”, ou mesmo “sentimentos”. As nossas escolhas avaliam comparativamente cenários dinâmicos com significado, possíveis desenvolvimentos da história, incluindo quaisquer componentes de facilidade ou desconforto, que são definidos à luz dos horizontes potenciais de consequências. O “cálculo” que muitas vezes ocorre nas nossas escolhas não tem nada a ver, por isso, com um cálculo, mas é na verdade uma avaliação comparativa imaginária de situações alternativas e das opções que elas abrem. Eu posso escolher se quero ir para um lugar de carro ou comboio e, nesta escolha, podem ser inseridos diferentes "cálculos" relativos a custos, conveniência de prazos, tempo de viagem, possibilidade de decidir o horário de saída, oportunidade de trabalhar (ou não) durante a viagem, etc. E cada uma dessas avaliações, por sua vez, depende do que espero ter que fazer a seguir: na chegada, nos dias seguintes, até mesmo na minha próxima vida. Aqui, a reflexão traz diante dos olhos da mente, de uma forma analítica, opções singulares, que, no entanto, devem o seu valor ao seu significado na ordem das minhas ações e perspetivas. Concebê-los como unidades independentes de valor, como “quanta” isoladamente comparáveis de uma substância homogênea, é, essencialmente, errado.
Uma consideração global desta breve análise começa a mostrar como já nos primeiros e mais elementares axiomas que definem a racionalidade da escolha económica se abrigam algumas abstrações que, longe de serem aproximações inofensivas, são na verdade distorções robustas. A existência de um mercado e de um modelo monetário de valor são pressupostos, já que sem esses pressupostos aqueles axiomas não fariam qualquer sentido. Mas assumir tacitamente a existência de duas instituições históricas fundamentais como um pressuposto geral da escolha racional é uma operação repleta de consequências problemáticas, como veremos.
Os princípios da concorrência perfeita
As condições de concorrência perfeita são as condições ideais sob as quais um sistema de livre comércio (um mercado) encontra um equilíbrio capaz de otimizar, tanto a alocação de recursos, quanto a utilização dos fatores de produção. A ideia do mercado perfeito representa um ideal fundamental não só de teoria económica neoclássica, mas daquele grande componente do liberalismo político que concebe a sociedade no seu conjunto como um lugar ideal de trocas entre indivíduos. Essa condição de vantagem mútua identificada inicialmente numa única troca voluntária seria generalizada à totalidade das relações sociais, na medida em que as trocas podem ser exercidas nas condições de um “mercado perfeito”.
As condições pressupostas para o funcionamento de um mercado perfeito são diversas, mas no seu núcleo fundamental elas podem ser reconduzidas até oito principais requisitos.
1) Maximização: os agentes económicos, sejam eles produtores ou consumidores, tentam maximizar os seus ganhos, a sua “utilidade”.
2) Independência mútua das decisões: cada decisão relativa na realização de uma transação é tomada por cada transator independentemente da decisão dos demais agentes económicos.
3) Fraqueza dos agentes económicos: não existe um único agente no mercado capaz de exercer, por si só, uma influência significativa sobre os preços, nem como comprador, nem como vendedor; isto implica que deve haver um grande número de agentes, compradores e vendedores.
4) Informação perfeita: cada agente do mercado possui informações exaustivas sobre a natureza dos produtos e seus preços relativos.
5) Acesso gratuito: não existem barreiras de qualquer tipo para acessar o mercado de novos produtores e novos consumidores, bem como uma saída do próprio mercado.
6) Mobilidade dos fatores de produção: os fatores de produção clássicos são a terra, a força de trabalho e o capital, e num mercado perfeito eles devem poder ser livremente realocados para obter as margens mais altas. Força de trabalho e capital devem, portanto, poder mover-se sem impedimentos em relação à terra.
7) Nenhuma externalidade: uma externalidade é qualquer custo (ou benefício) gerado numa atividade económica que é involuntariamente imposto a terceiros, que não optaram por exercer essa atividade económica (por exemplo, poluição colateral de uma atividade produtiva). No sistema de transações livres no mercado, não deverá haver situações em que externalidades recaiam sobre outros sujeitos que não os produtores ou transacionadores voluntários.
8) Nenhum custo de transação: os custos de transação são todos os custos necessários para alcançar uma troca voluntária, como os custos que se incorrem numa negociação, ou por ocasião da definição dos direitos de propriedade e na sua defesa, na obtenção de informações sobre a natureza dos produtos, etc.. Num mercado perfeito não deveria haver custos de transação.
Estas oito condições são consideradas idealizações, que, portanto, não pretendem captar a realidade dos mercados num sentido estrito. As duas primeiras, no entanto, mencionam condições já consideradas boas aproximações do funcionamento dos mercados reais. As outras, no entanto, representam abstrações que expressam as condições ideais sob as quais o sistema de livre comércio voluntário seria otimizado, em termos de utilidade geral.
Vamos nos concentrar primeiro nas duas primeiras.
Ad 1). A primeira condição (maximização) transpõe e aplica ao nível do mercado o que observamos estar implicitamente estabelecido nos axiomas do comportamento do consumidor: o valor que se estabelece na esfera da troca tem natureza de quantidade acumulável e cada agente económico tenta ter cada vez mais. Na esfera de mercado, essa condição, abstrata a nível antropológico, parece transformar-se em algo intuitivo: a aquisição de lucro monetário cada vez maior. No entanto, como já foi observado diversas vezes, a partir da conceção de bounded rationality de Herbert Simon (6), mesmo na presença de um mercado, esta suposição é, de facto, geralmente falsa; em vez de maximizarem, os agentes económicos tendem a alcançar condições genéricas de satisfação.
Segundo Simon, isso dependeria essencialmente das dificuldades, e por vezes da impossibilidade, de atingir o conhecimento adequado do que é necessário para escolher racionalmente. Mas esta perspetiva, que se centra sobre os limites da possível recolha e processamento de informação, é limitante. O sujeito agente, em sua existência ordinária, não é um maximizador, antes de mais nada, por uma razão muito fundamental, isto é, porque, exceto nos casos circunscritos em que existem avaliações monetárias, ele não se refere a nenhuma quantidade de valor acumulável e, portanto, maximizável. A maneira mais apropriada de entender a forma que as escolhas humanas comuns assumem é em termos de caminhos numa história, onde um ponto de chegada da história nunca é totalmente definido, nem definível: as nossas escolhas são escolhas entre caminhos alternativos, face a perspetivas mais ou menos promissoras. A introdução da condição de maximização leva, em vez disso, a conceber como propriamente racionais, apenas as decisões que podem ser reconduzíveis a uma parametrização quantitativa. Isso leva a pensar como modelo da decisão racional a decisão com base em avaliações monetizáveis, de facto ou de direito (por exemplo, em termos de avaliações de custo-benefício).
Ad 2). A segunda suposição, a independência mútua de decisões, ou, mais precisamente, dos critérios que governam as decisões, é um pressuposto adicional crucial para fazer as descrições ideais da microeconomia funcionarem. Só sob estas premissas faz sentido imaginar que o efeito global das escolhas numa economia pode ser logicamente atribuído a uma soma de escolhas individuais. A ideia básica da mútua independência de decisões é simples: se eu prefiro presunto a salame, e venho a saber que você prefere salame a presunto, seria irrazoável pensar que isso pudesse produzir uma mudança nos meus gostos (nas minhas preferências). Isto é completamente razoável, mas assim que você for para além de exemplos deliberadamente elementares, descobre-se facilmente que, na constituição das próprias preferências, as escolhas determinadas pela comparação com as escolhas dos outros representam uma parte poderosa das escolhas no mundo real. Sem ir aos extremos da ideia de um desejo essencialmente mimético, apoiada por René Girard (7), é certo que uma fonte de desejos, ou da modificação de desejos anteriores, também é fornecida por componentes relacionais como a emulação, a inveja ou a competição. Uma parte muito significativa das nossas escolhas reais é feita levando em consideração como elas são configuradas em comparação com as escolhas dos outros. Existem numerosos bens (não apenas bens de luxo) que derivam uma parte significativa do seu valor da exclusividade, ou seja, da imposição de concorrência para acessá-los (escolas prestigiosas, honras, reconhecimentos) e, em geral, em todos os caminhos de carreira, desde a Antiguidade (o cursus honorum romano), é mais o aumento do prestígio do que o da riqueza que é crucial para alimentar a ambição. Além de tudo isto, mesmo na forma de mercado que mais se aproxima do modelo do “mercado perfeito”, ou seja, o mercado financeiro, as escolhas muitas vezes são operadas de uma forma predominantemente emulativa (eu vendo se vendem os outros, eu compro se os outros comprarem), como nos lembram os episódios recorrentes de bolhas financeiras. Por conseguinte, esta segunda suposição também, apesar da sua aparência de inofensivo bom senso, é na verdade uma descrição compreensão extremamente inadequada dos comportamentos de pessoas reais em mercados reais.
Ad 3, 4, 5, 6). Este grupo de condições reúne aquelas em que é praticada de forma mais constante e coerente a intervenção política visando explicitamente aproximar os mercados reais do “mercado perfeito”.
Muitos Estados ocidentais há muito que abandonaram o modelo de laissez faire em favor de um papel intervencionista do Estado, intervencionista não na forma de Estado empreendedor, mas como Estado regulador, que molda legalmente as condições de mercado. As leis antitrust são, provavelmente, a primeira intervenção nesse sentido, a partir do Sherman Antitrust Act de 1890, servindo para prevenir ou limitar a capacidade de agentes económicos individuais para influenciar os preços. Outras normas tentam aumentar as informações que os produtores são obrigados a fornecer sobre o produto aos consumidores. É, então, possível tentar reduzir as tarefas burocráticas e as condições económicas que limitam o acesso de novos concorrentes ao mercado. Quanto à mobilidade dos fatores de produção, o processo conhecido como “globalização”, ao longo do último meio século, ilustra bem a forma como os Estados liberais têm trabalhado para induzir graus cada vez maiores de “abertura”: para os bens, para o capital e também para as pessoas. Redução ou cancelamento de direitos, a criação de um mercado de capitais global, o aumento dos processos de transferência de força de trabalho, dentro dos Estados e entre Estados, são todos características distintivas da fase histórica mais recente.
Naturalmente, também aqui a distância entre o modelo e a realidade é considerável. A informação perfeita continua a ser um conceito utópico, nem remotamente aproximável: na verdade, a assimetria de conhecimento do produto entre produtor e consumidor permanece intransponível. Apenas em alguns setores, como pequenos restaurantes, a entrada no mercado é relativamente fácil; na maioria dos casos, a entrada no mercado está condicionada à disponibilidade de grandes quantidades de capital. A mobilidade dos fatores de produção é sempre altamente assimétrica: embora o capital possa beneficiar de uma mobilidade quase absoluta graças à tecnologia atual (e à legislação que a permite), as mercadorias têm necessariamente tempos e custos de transferência muito maiores, e a força de trabalho, sendo incidentalmente constituída por seres humanos, nunca pode mover-se física ou legalmente com uma velocidade comparável à do capital (sobretudo) ou das mercadorias. Como, no sistema de mercado, a velocidade do movimento envolve a capacidade de explorar as melhores oportunidades de ganhos, essas velocidades diferenciais, por si só, explicam como o retorno sobre o capital tende a ser superior às margens de lucro das mercadorias, e, mais ainda, das margens de ganho para a força de trabalho.
A alegada constituição económica de entidades não económicas
As duas últimas cláusulas (7 e 8) são de particular interesse porque idealizam a natureza racional das trocas e, em geral, das transações económicas. Para poder garantir que os benefícios da troca sejam os mesmos que aparecem aos contratantes, e que nada mais são do que isso, é necessário assumir que as transações não têm “excedentes” nem “atritos”: nem efeitos externos preterintencionais, nem elementos impeditivos internos. Naturalmente, o mundo real está a anos-luz de distância dessas condições descritivas. Que o conjunto das transações económicas livres produz, recorrentemente, externalidades negativas, mudanças involuntárias em detrimento das relações sociais ou dos equilíbrios ambientais é um facto demasiado conhecido para necessitar de ser realçado.
Quanto aos custos de transação, surge aqui um ponto de grande importância, nomeadamente, a forma como, a partir da teoria económica neoclássica, a ideia de um “agente supra-individual”, de uma entidade que intervém, mediando, quando as relações de livre comércio, deixadas a si mesmas, são incapazes de realizar as trocas para benefício mútuo que, potencialmente, poderiam fazer. Esta é a passagem que parte do famoso artigo de Ronald Coase sobre a natureza da “empresa” (8), em que o autor pretendia explicar a existência daquela entidade intermediária suprapessoal que é a firma ou empresa, uma entidade cuja existência deveria parecer supérflua num mundo onde existem relações de troca ideais entre indivíduos no mercado perfeito. A empresa define um papel necessário, para si própria, porque a condição de ausência de custos de transação é irreal e, na presença de tais custos, os contratantes potenciais não entrariam de todo numa relação de troca. A empresa surge como organizadora de trocas na presença de custos de transação que tornariam impraticáveis muitas trocas individuais livres (9). Mas o que Coase argumenta inicialmente para a empresa aplica-se de facto a todos os intermediários institucionais, e assim através do raciocínio de Coase se faz espaço, na crónica idealizada da Economia neoclássica, para entidades como o Estado e para poderes estatais específicos, como o judiciário.
O quadro geral de máximas definido pelos axiomas do comportamento do consumidor e, depois, pelos princípios do mercado perfeito, é uma estrutura cujo caráter vigorosamente abstrato e irrealista deveria resultar manifesto. É preciso dizer também que esse caráter de idealização não é negado por ninguém e não é uma questão controversa. O ponto controverso é qual o papel que desempenha tal idealização numa ciência peculiar como a Economia.
Como já foi observado por diversas vezes, a organização do edifício conceitual da Economia moderna depende de um firme desejo de qualificar a Economia como uma ciência em sentido forte, no modelo das ciências da natureza. O famoso debate entre a escola historicista e a escola marginalista, que ocorreu entre os séculos XIX e XX, na Alemanha, e ficou conhecido como Methodenstreit, sancionou o abandono progressivo do modelo histórico-descritivo como base da ciência económica em favor de um modelo axiomático-matemático (10). A essência da chamada "revolução marginalista" consiste, precisamente, na definição de axiomas e princípios de partida adequados para a formulação, com base neles, de equações capazes de calcular lucros ou perdas, riscos ou oportunidade.
Mas esta abordagem, aplicada a uma ciência como a Economia, que na sua origem, não por acaso, foi incluída entre as moral sciences, não é desprovida de implicações muito problemáticas. Ao contrário da Física, a Economia não pode realizar experiências em sistemas controlados sem introduzir simplificações que, para o seu objeto de estudo, são drásticas: tais simplificações tornam a extensão dos resultados microeconómicos aos sistemas históricos complexos uma aposta pura. As variáveis com as quais a Economia lida são materiais históricos e/ou antropológicos que, em essência, nunca existem de forma estritamente replicável e raramente podem ser tratados em partes isoladas sem alterar a substância do que é avaliado. Além dessas questões estruturais, a ciência económica difere das ciências naturais num segundo ponto, crucial: é uma ciência normativa, como a ética, isto é, um conhecimento que não se limita a fazer previsões, mas que recomenda comportamentos que estejam de acordo com as expectativas e idealizações que amadureceram dentro dele. Isto teve um efeito estrutural muito particular. Idealizações abstratas, que em Física têm o único significado de simplificações capazes de tornar sistemas complexos gerenciáveis analiticamente, em Economia tornaram-se ideais normativos, situações desejáveis para se aproximar da realidade na medida do possível. Assim, por exemplo, os princípios ideais do “mercado perfeito” deram origem a algo muito diferente da axiomática física: eles não são simplesmente abstrações para se aproximar de uma descrição de transações voluntárias, mas certamente também se tornaram condições a serem perseguidas com intervenções políticas e legislativas. Às vezes, algumas condições ideais são explicitamente definidas como metas a serem perseguidas, por exemplo, com legislação antitrust, mais frequentemente, às imposições regulatórias diretas são preferidas formas indiretas de pressão
Assim, por exemplo, a existência de interações entre sujeitos que podem concordar sobre as suas escolhas é, em si mesmo, uma violação indireta do princípio de independência mútua das decisões. Nesse sentido, o padrão ideal de ideia do mercado perfeito levaria (e levou no passado) a objetar à existência de forças políticas e organizações sindicais no local de trabalho. Na verdade, essas forças e interações visam coordenar as ações dos trabalhadores, fazendo com que estes não operem como agentes individuais nas relações de troca competitivas de uns contra os outros. Em geral, a própria existência de uma esfera "política", independente da esfera das trocas económicas livres, é aqui considerada suspeita, uma vez que, se se assumir que a otimização das trocas voluntárias entre indivíduos gera espontaneamente o bem-estar coletivo, parece que nada de significativo resta a fazer ao Estado e os representantes políticos chamados a governá-la.
Mas, como dizíamos, justifica-se a esfera estatal, segundo o modelo de Coase, onde há custos de transação significativos. Num mundo ideal, livre de custos de transação, a qualquer momento um trabalhador poderia renegociar o seu cargo, as suas tarefas, as suas condições de trabalho. Num mundo sem custos de transação, qualquer problema de externalidades poderia ser internalizado através da negociação: por exemplo, se a minha empresa produz pó de carvão que impede o seu negócio de lavandaria, você poderia me oferecer dinheiro para eliminar as emissões com filtros (sem intervenção de terceiros). Segundo Coase, se o seu negócio é lucrativo o suficiente para pagar o meu ónus, então valerá a pena você pagar e, assim, o lucro geral será otimizado. Se, em vez disso, a minha vantagem em não ter filtros for maior que a sua vantagem em havê-los, então nenhuma transação económica ocorrerá e será melhor para você também encontrar alternativas menos dispendiosas ou mudar o negócio. Do ponto de vista da produtividade global, na ausência de custos de transação, um acordo entre as partes deve sempre resolver cada questão de forma otimizada (naturalmente, neste modelo, prescinde-se de questões de justiça ou de poder). Mas, no mundo real, onde cada negociação custa tempo e recursos, é impensável que condições de recontratação capilar sejam tão generalizadas. Não pode haver negociação contínua entre trabalhador e empregador, nem entre trabalhadores em colaboração, nem entre empregadores em competição. Assim, segundo Coase, a única razão para a existência de órgãos intermediários (empresas, Estados) entre indivíduos interagentes seria a existência de custos de transação: os corpos sociais intermediários seriam soluções utilitárias para problemas de troca individual.
Um raciocínio complementar a este é o desenvolvido por Douglass North com referência à existência de usos e costumes sociais, hábitos coletivos, normas religiosas, isto é, à existência daquela esfera de lealdade e solidariedade inter-humana que vincula os sujeitos a comportamentos que não são meramente de oportunismo egoísta. Segundo Douglass North, a existência desta esfera de crenças e comportamentos de valor supraindividual é motivada pela impossibilidade de gerir relações de correta concorrência económica entre indivíduos que são puros maximizadores racionais dos seus próprios interesses (de acordo com os axiomas microeconómicos). Na verdade, sob as premissas “normais” do indivíduo que maximiza a sua utilidade pessoal deve se esperar uma explosão de comportamentos de free rider, ou seja, comportamentos onde cada agente tenta escapar às suas obrigações em todas as situações em que ele não possa ser "apanhado em flagrante": o exemplo canónico do free rider é o de alguém que não paga o bilhete apesar de utilizar o serviço de transporte público, mas pode ser estendido a um número infinito de comportamentos sociais, tanto no trabalho quanto na vida quotidiana fora do trabalho. Um mundo de oportunistas buscando continuamente a sua própria vantagem pessoal seria um mundo onde os custos de transação explodem, já que cada ato deve ser monitorizado por um controlador pronto para sancionar, que, além disso, deve ele próprio ser monitorizado, por sua vez, para evitar que o seu controlo seja posto à disposição do melhor licitante e assim por diante. Nesta perspetiva, concluiu Douglass North, os laços morais, as lealdades interpessoais, o sentido de dever, etc., devem ser entendidos como expedientes indispensáveis para permitir o funcionamento das relações de mercado (11). Toda esta esfera de decência moral humana é interpretada como uma forma de capital, essa forma chamado capital social.
É com referência a este modelo interpretativo que podemos compreender operações como a de Robert Nozick, segundo a qual o Estado (mínimo) pode ser explicado como um construto a partir da concorrência entre agências de proteção privadas (12), que se presume estarem a funcionar num “mercado original”, um mercado do qual nem a história nem a antropologia jamais tiveram conhecimento. Que esta conceituação é flagrantemente sem fundamento empírico nunca abalou Nozick, nem os seus apoiantes, uma vez que a ideia subjacente não era descrever a realidade tal como ela é, mas sim a realidade como deveria ter sido ou como deverá ser no futuro. Este impulso “utópico” baseia-se na operação paradoxal de tomar a idealização a partir da qual a economia neoclássica arranca pela idealidade num sentido normativo e axiológico, uma condição que a sociedade deveria almejar.
Assim como as conexões morais são concebidas como capital social, também tudo o que pertence à formação humana, ao estudo, à educação e o desenvolvimento do sujeito são, por sua vez, lidos como outra forma do capital: o capital humano. Na conceitualização económica a formação, o romântico Bildung, o grego παιδεία, foram progressivamente traduzidos em formas simples de estar à altura das funções produtivas futuras.
No geral, cada sujeito humano, enquanto agente económico, é implicitamente convidado a conceber cada evento, cada pessoa, cada situação, como uma contribuição maior ou menor para o bem-estar privado, entendido em termos monetários (13). Foi assim que Gary Becker pôde falar, sem ironia, sobre os filhos como “bens de consumo duráveis” (durable consumer goods) (14).
Conclusões
A economia neoclássica, com as suas pretensões científicas, acabou por criar uma nova retórica, modificando e reduzindo à sua própria conceitualidade áreas inteiras previamente analisadas com ferramentas conceituais autónomas. Este processo, que tem sido denominado pelos críticos (15) e pelos proponentes (16) como imperialismo económico, consiste na tendência a transportar categorias do económico para todos os campos humanos. Este processo de “redução ao económico” de tudo o que pertence à esfera antropológica e social, produz, em segundo lugar, um efeito peculiar. Mudando radicalmente o significado que a axiomática e os princípios têm em outras ciências, as abstrações iniciais da ciência económica são transformadas em ideais normativos.
Assim, em primeiro lugar, entidades tipicamente extra-económicas, como a moral, os costumes ou o Estado foram relidos de modo a concebê-las como soluções para problemas definidos pelas imperfeições do mercado, que é assim, portanto, concebido como originário. A óbvia falsidade histórica desta evolução foi considerada irrelevante. Com desprezo tanto pela lógica como pela história, a condição de mercado foi imaginada como um dado originário ideal, quando na verdade um mercado (que não é uma troca ocasional) só pode existir na presença de um quadro pré-existente de proteção jurídica (direitos de propriedade, contratos, etc.) e, portanto, de um Estado e de sujeitos respeitosos da lei.
Como resultado deste movimento, as idealizações que definem o quadro da troca e do mercado tornaram-se implicitamente formas “utópicas” a perseguir e, em última análise, momentos de uma autêntica distopia, em processo de explicitação secular. Este processo comporta uma dupla tendência.
Em primeiro lugar, aquilo de que temos experiência primária, aquilo que nos é apresentado como dotado de sentido num quadro concreto e intersubjetivo é transformado em algo completamente diferente. Coisas, situações, bens, relacionamentos, experiências pessoais são transformadas em meras ocasiões de se dar "utilidade". A pluralidade do mundo traduz-se na homogeneidade quantitativa de um “valor” anónimo e cumulativo. Esta metamorfose pode, em princípio, encontrar corporificação em apenas duas entidades: o dinheiro como valor externo quantificável e o prazer, como alegada apreciação interior: uma espécie de substância sensível homogénea. Conceber atos e eventos, no mundo e na história, como encarnações de uma dessas entidades (ou de ambas) leva inadvertidamente, mas fatalmente, a alimentar uma perspetiva niilista, de esvaziamento de todas as dimensões éticas. Tanto o dinheiro como o prazer são, de facto, estruturalmente indiferentes à forma como são obtidos, são independentes de boas ou de más razões, funcionam de maneira indiferente à esfera dos significados ou das perspetivas sentido.
Que o dinheiro esteja em minha posse por acaso, sorte, fraude ou qualquer outra causa é irrelevante na determinação do seu valor: apenas a quantidade disponível para mim, aqui e agora, contam. E que o prazer que eu possa obter seja conseguido em resultado de ações louváveis ou vergonhosas, frutíferas ou estéreis, sensatas ou sem sentido, seja ele o resultado de um sucesso pessoal ou da injeção de morfina, é igualmente indiferente. A metamorfose da dimensão do valor nestas quantidades abstratas (dinheiro ou prazer) esvazia a perceção comum do valor nas ações de nossas vidas e a substitui por um sucedâneo tragicamente empobrecido.
Em segundo lugar, o utopismo abstrato implícito na teoria neoclássica (e sobretudo no seu uso político neoliberal) produz uma inversão ontológica sistemática, já eloquentemente sublinhada por Marx (17). Como vimos, ocorre aqui uma tradução sistemática de cada entidade dotada de significado numa função (ou forma) de capital. As pessoas tornam-se, portanto, força de trabalho, as suas virtudes e competências tornam-se capital humano, os seus hábitos, costumes e normas comuns tornam-se capital social, os Estados-nação tornam-se firmas ou empresas e, naturalmente, o "valor" por excelência reduz-se ao capital por excelência, o dinheiro.
O significado desta tradução sistemática é reverter o sentido vivido das experiências humanas, invertendo sistematicamente meios e fins. Na verdade, o capital é essencialmente o meio universal que pode ser dedicado a usos posteriores, sem por si predeterminar nenhum deles. O capital é, portanto, essencialmente um mero “reenvio”, “instrumento disponível”, condição vazia de possibilidade, meio neutro, que deveria derivar o seu próprio significado do objetivo a que está dedicado. Mas já que tudo isso que poderia pertencer à esfera dos usos, das finalidades (pessoas, virtudes, costumes, nações, valores em geral), é constantemente conceitualizado na forma de capital, segue-se que toda a existência se apresenta como um perpétuo adiamento vazio, uma referência a infinitas outras referências posteriores, um poder a crescer tendo em vista outro poder a acumular. A perspetiva existencial aberta pelo imperialismo conceptual da teoria económica neoclássica é, portanto, a perspetiva distópica de um niilismo rigoroso: uma visão do mundo onde o cálculo optimizador preencheu todas as lacunas, enquanto a reflexão sobre as razões, boas ou menos boas, do porquê calcular e porquê otimizar são deixados num lugar nulo de idiossincrasias privadas e arbitrariedades.
(*) Andrea Zhok (n. 1967), natural de Trieste, é licenciado e doutorado em filosofia pela Universidade de Milão, onde é neste momento professor de Metafísica (Filosofia Teórica) e Filosofia Moral. Possui ainda um mestrado pela Universidade de Essex (2000). Entre os seus numerosos livros publicados destacamos Il concetto di valore: dall’etica all’economia, Mimesis, Milano 2002, Lo spirito del denaro e la liquidazione del mondo. Antropologia filosofica delle transazioni, Jaca Book, Milano 2006, Introduzione alla storia come narrazione e come azione, Cuem, Milano, 2007, Libertà e natura. Fenomenologia e ontologia dell’azione, Mimesis, Milano, 2017 e Critica della ragione liberale. Una filosofia della storia corrente, Meltemi, Milano, 2020. O presente ensaio foi originalmente publicado no volume coletivo in Il prezzo della verità. Percorsi tra filosofia, economia, antropologia, editado por B. Bonato e F. Scaramuzza, Milano, Mimesis, 2019, pp. 57-74. Pode ser acessado livremente em Academia.Edu. A tradução é de Ângelo Novo.
______________________ NOTAS:
(1) Adam Smith, An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, ed. por E. Cannan, The University of Chicago Press, 1977, p. 73 e seguintes.
(2) Ludwig von Mises, L’azione umana. Trattato di economia (1949), UTET, Torino, 1959, pp. 93-94.
(3) De acordo com a definição clássica de Stevens: “Measurement is the assignment of numbers to objects or events according to a rule” (A medição é a atribuição de números a objetos ou acontecimentos de acordo com uma regra) (S. S. Stevens, On the theory of scales of measurement, em “Science”, 103, 1946, pp. 677-680). Para uma análise mais aprofundada dos axiomas de completude e transitividade ver A. Zhok, On value judgement and the ethical nature of economic optimality, em M. D'Agostino, F. Laudisa, G. Giorello, T. Pievani, C. Sinigaglia (eds.), New Essays in Logic and Philosophy of Science, College Publications, London 2010, pp. 433-446.
(4) Ver P. Slovic, The Construction of Preference, em “American Psychologist”, Vol. 50, 5, 1995, pp. 364-371.
(5) “É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspeto" (Aristóteles, Metafisica, trad. de G. Reale, Rusconi, Milano 1992, p. 184, 1005b).
(6) H. Simon, A Behavioral Model of Rational Choice (1957), in Models of Man, Social and Rational: Mathematical Essays on Rational Human Behavior in a Social Setting, Wiley, New York.
(7) R. Girard, Menzogna romantica e verità romanzesca (1961), trad. de L. Verdi ti, Bompiani, Milano 2002.
(8) R. Coase, The Nature of the Firm, em “Economica”, Blackwell Publishing, 4 (16), 1937, pp. 386-405.
(9) B. Fine, D. Milonakis, From Economics Imperialism to Freakonomics. The Shifting Boundaries Between Economics and Other Social Sciences, Routledge, London-New York 2009, p. 81.
(10) G. M. Hodgson, How Economics Forgot History. The Problem of Historical Specificity in Social Science, Routledge, London-New York 2001, pp. 207-208.
(11) C. North Douglass, Structure and Change in Economic History, Norton e C., New York-London 1981, p. 10 e pág. 45.
(12) R. Nozick, Anarchy, State and Utopia, Basic Books, New York 1974.
(13) Não é coincidência que, em repetidas experiências psicológicas, tenha sido encontrada uma tendência naqueles que concluíram estudos económicos para adotarem comportamentos mais egoístas (Ph. Gerlach, The games economists play: Why economics students behave more selfishly than other students, em “PLoS ONE”, 12(9), 5 de setembro de 2017). A principal razão para esta tendência parece depender da propensão dos estudantes de Economia, uma propensão derivada da conceção do indivíduo e de valor implícita na teoria económica, a assumir que as motivações dos outros não possam senão ser egoístas.
(14) G. Becker, Gary S. Becker, em R. Swedberg (ed.), Economics and Sociology, Redefining Their Boundaries: Conversations with Economists and Sociologists, Princeton University Press, Princeton 1990, p. 33.
(15) B. Fine, D. Milonakis, op. cit., pág. 3.
(16) E. P. Lazear, Economic Imperialism, em “The Quarterly Journal of Economics”, Vol. 115, n.º 1, fevereiro de 2000, pp. 99-146.
(17) “A perversão e a confusão de toda a qualidade humana e natural, a conjunção das impossibilidades, o poder divino, do dinheiro, consiste em sua essência da existência genérica alienada, despojada e alienante dos homens. Isso é o poder expropriado da humanidade. O que não posso como homem, o que não podem, portanto, todas as minhas forças individuais substanciais, posso através do dinheiro. O dinheiro, portanto, torna cada uma dessas forças essenciais, algo que ela não é, o seu oposto. […] Porque o dinheiro, como conceito existente e atual de valor, confunde e troca todas as coisas, é assim a confusão geral e a inversão de tudo, portanto, o mundo subvertido, a confusão e inversão de todas as qualidades naturais e humanas. Quem pode comprar a valentia é corajoso, mesmo que seja vil. Como o dinheiro é trocado não contra uma qualidade dada, contra uma determinada coisa, contra [algumas] das forças substanciais humanas, mas contra todo o mundo objetivo humano e natural, então ele troca - considerado do ponto de vista do seu possuidor - toda a qualidade contra toda a qualidade e todo o objeto mesmo contraditório; é a conjunção das impossibilidades, obriga os contraditórios a beijarem-se” (K. Marx, Manoscritti economico-filosofici del 1844, in Opere filosofiche giovanili, trad. de G. della Volpe, Editori Riuniti, Roma 1950, pp. 253-255).
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