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Os movimentos populares globais estão conduzindo a luta pelo nosso planeta
Ashley Dawson (*)
O que é que você quer dizer com "ecologismo desde abaixo"? E como é que você o contrastaria com o tipo de "ecologismo de cima" ao qual talvez estejamos mais acostumados no Norte global?
"Ecologismo desde abaixo" descreve o tipo de movimentos populares que estão reagindo a ameaças aos ecossistemas dos quais os visados dependem de forma imediata para seu sustento, mas também para sua herança cultural. Esses são movimentos que combinam lutas em torno da proteção dos "comuns" num sentido material com a defesa dos seus laços culturais com o meio ambiente ao seu redor.
Nessa definição, estou elaborando numa tradição de análise que vem de historiadores e críticos localizados no Sul global. Ramachandra Guha, por exemplo, escreveu extensivamente sobre os movimentos para defender as florestas indianas do Serviço Florestal Nacional, uma burocracia iniciada na Índia pelo império britânico. Esse departamento florestal foi encarregado de assumir terras controladas comunitariamente e transferir a sua propriedade, inicialmente para o poder colonial e depois, após a independência, para o Estado indiano. Na década de 1970, tornou-se óbvio que o Estado indiano estava desmatando essas florestas de uma forma completamente insustentável. Em resposta, a população local, principalmente as mulheres, foi até às florestas e defendeu as árvores com os seus corpos. Elas se colocaram fisicamente entre as motosserras e as árvores porque estavam habituadas a colher de forma sustentável parte dos produtos da floresta, mas também porque as florestas eram vistas, de alguma forma, como sagradas, pelas comunidades locais, e eram parte de sua identidade coletiva. Esse exemplo do movimento Chipko na Índia é o que quero dizer quando uso a frase "ecologismo desde abaixo".
Podemos contrastar isso com o "ecologismo de cima", onde isso assume duas expressões diferentes. Primeiro, no contexto do colonialismo de povoamento nos E.U.A., por exemplo, temos uma abordagem histórica preservacionista. Aqui, quando os colonos chegam a uma fronteira, eles expulsam os povos indígenas e começam a desenvolver a terra por meio da agricultura e, em seguida, da industrialização. Eventualmente, isso conduz a esforços para colocar uma parte dessa terra em reservas, pois ela se torna reconhecida como particularmente bela e parte do património nacional. Por essa via, testemunhamos a invenção da Rede de Parques Nacionais que, nos E.U.A., se expressa por meio de Yellowstone e todos os outros "grandes" parques nacionais.
A ideia central por trás dessa abordagem é a de que precisamos de conservar alguns lugares "selvagens". Mas essa preservação da natureza selvagem é baseada na imposição de um certo tipo de dicotomia entre pessoas e natureza. A natureza deve ser vista como algo "lá fora", separada das comunidades humanas. E a natureza, nessa condição assumida, precisa de ser preservada de alguma forma pelo Estado. Nessa atitude com relação à natureza selvagem, você precisa de ter a certeza de que não há seres humanos vivendo em áreas de preservação. Nos E.U.A., esse processo exigiu a desapropriação dos nativos norte-americanos, que foram violentamente expulsos de parques nacionais como Yellowstone.
Noutra abordagem, você poderá tolerar a presença de humanos em tais áreas de preservação erigidas, mas a preferência será por pessoas brancas ricas - historicamente, caçadores como Theodore Roosevelt e, hoje em dia, principalmente moradores brancos de classe média que conduzem desde São Francisco ou de qualquer outro lugar até Yosemite. Essa visão ambiental neocolonial é um produto direto do colonialismo de povoamento. Ela reforça a falsa dicotomia entre as pessoas e a natureza, um sintoma da alienação que o capitalismo fomenta. É também uma ilustração poderosa da "cisão metabólica" que o sistema cria entre a sociedade e a ecologia. Da perspetiva do ecologismo desde abaixo, acho que a construção neocolonial da natureza selvagem é uma tradição altamente racista, tanto historicamente quanto no próprio presente. Examino num capítulo próprio do livro a longa história e genealogia desse tipo de construção e conservação de áreas selvagens, bem como os seus impactos e como os povos estão resistindo, em geral, ao colonialismo de povoamento.
Visto da perspetiva do ecologismo desde abaixo, há um segundo legado problemático que flui do desenvolvimento do próprio movimento ecologista. O movimento ambientalista ocidental das décadas de 1960 e 1970 em diante foi altamente importante e impactante, e, é claro, teve um componente muito populista. Nos E.U.A., por exemplo, Rachel Carson testemunhou perante o Congresso para defender com sucesso a proibição dos pesticidas DDT. Isso levou à criação de várias agências reguladoras governamentais, como a Agência de Proteção Ambiental e de legislação positiva como o Clean Air Act. Todos esses desenvolvimentos foram vitórias tremendas que ainda ressoam, mas dependem crucialmente do Estado para proteger os bens comuns ambientais.
Desde a eleição de Ronald Reagan nos E.U.A. e de Margaret Thatcher no Reino Unido, há muitas décadas atrás, tivemos um ataque consistente da direita ao Estado, o que mobilizou muitas pessoas politicamente, porque elas vêm o Estado como, de alguma forma, hostil aos seus interesses. Uma parte dessa animosidade é baseada no racismo, mas também acho que não é totalmente infundado ser cético sobre o Estado burguês e, por extensão, sobre o falhado tipo do ecologismo de cima, que coloca todos os ovos na cesta da regulamentação ambiental do Estado. Acho que é certamente um projeto problemático em comparação ao que o ecologismo desde abaixo implica - mobilização em massa de pessoas que querem defender os bens comuns ambientais, dos quais dependem.
Hoje, a importância do ecologismo desde abaixo não se restringe aos mais pobres do Sul global - aqueles a quem o historiador Ramachandra Guha se referiu como as "pessoas do ecossistema" - mas a todos nós. Em algum nível, hoje todos somos "pessoas do ecossistema", enfrentando ecocídio, mudança climática e extinção em massa. Então, o que eu argumentaria, e faço-o no livro, é que há muita potência política numa ideia de ecologismo desde abaixo e nos tipos de movimentos que o sustentam, pois eles estão se espalhando por todo o mundo hoje em dia. Precisamos de prestar atenção a eles e ao que estão fazendo, principalmente porque as principais instituições que achamos que caracterizam a chamada civilização ocidental - capitalismo, Estado e urbanização - são todas muito inadequadas para o momento atual.
Nas próximas décadas, provavelmente passaremos por uma série de pontos de inflexão (“tipping points”) importantes, do colapso da Corrente do Golfo até níveis de aquecimento global que forçarão o deslocamento de entre um terço a metade da humanidade. E isto não são especulações atrevidas, mas sóbrias avaliações científicas atualizadas. Então, estamos passando por todos esses pontos de inflexão e todas essas instituições que a modernidade ocidental criou e exportou para o resto do mundo - como o Estado-nação - estão totalmente desajustadas. As pessoas precisarão de ser capazes de se mover e precisarão de ser capazes de se envolver em formas de ajuda mútua de baixo para cima e de comunismo de desastre. É a essa análise que está dedicado o meu livro Environmentalism from Below: como as pessoas já estão realmente fazendo esse tipo de coisas numa variedade de diferentes formas organizacionais, numa variedade de diferentes escalas e levando esse tipo de projeto muito a sério.
Vindo do Ocidente, uma das coisas que é percetível em torno do ecologismo de cima é que temos versões oficiais de ambientalismo, sancionadas pelo Estado, como você diz. Elas poderiam se expressar por meio dos chamados órgãos ambientais independentes, mas financiados pelo Estado (a Environmental Protection Agency nos E.U.A., ou a Natural Resources Wales de onde estou a falar). Pode-se argumentar que eles foram, em grande parte, desarmados nas últimas décadas, por meio da "captura regulatória" e foram virados para o outro lado. Mas, ao lado desses órgãos, a outra forma aceite de ambientalismo parece ser aquela baseada em ONGs. A maioria delas tem suas origens nas convulsões da década de 1960 - como Friends of the Earth, a Greenpeace e a World Wide Fund for Nature - mas mesmo onde elas são apoiadas por uma base de massas, às vezes parece que estão presas numa forma de ecologismo de cima para baixo e substitucionista. A abordagem delas em relação à sua base parece ser quase transacional, onde os seus membros fornecem dinheiro, mas o ativismo direto e o engajamento político são realizados pela ONG - do lobby político à escalada de um arranha-céu ou de uma plataforma de petróleo. O tipo de ecologismo desde abaixo que você está delineando no seu livro oferece uma abordagem mais capacitadora e uma tradição enriquecedora para a política ambiental?
Eu diria que sim, mas não estou tentando argumentar que não pode haver um papel para que organizações sem fins lucrativos façam pressão sobre o Estado ou para que ambientalistas se mobilizem por meio de algumas dessas organizações sem fins lucrativos existentes. Mas se essas ONGs, grupos de pressão e movimentos políticos progressistas não estiverem conetados às pessoas que estão realmente se mobilizando no local, eles correm o risco de se tornarem entidades cooptadas, atuando de cima para baixo.
Começo o livro refletindo sobre a Conferência Mundial dos Povos sobre Justiça Climática e os Direitos da Mãe Natureza, realizada em Cochabamba, Bolívia, em 2010, mas ao escrever também estava pensando sobre o Novo Pacto Verde (Green New Deal), que estava sendo promovido porque Cochabamba estava acontecendo num momento de entusiasmo em torno da economia ambiental, após a Grande Recessão de 2008. Houve muita discussão sobre um Novo Pacto Verde ocorrendo da Grã-Bretanha e da Europa, e ela pegou mesmo, até certo ponto, aqui na barriga da besta, que são os E.U.A., mas depois recuou quando uma série de governos de direita foram eleitos em todo o mundo. Isso resultou na implementação de mais economia de austeridade e todas aquelas discussões sobre o Novo Pacto Verde pareciam ter acabado.
Mesmo antes desse recuo, eu tinha preocupações e estava escrevendo sobre o Novo Pacto Verde, preocupando-me com o seu keynesianismo de cima para baixo e com a falta de qualquer consciência de que precisamos de controlar o crescimento capitalista. Este problema com o keynesianismo vem das suas origens num momento histórico diferente - uma época em que as pessoas não estavam pensando sobre a precariedade dos ecossistemas planetários, da maneira como estamos hoje. Mas eu também estava preocupado sobre como esses planos do Novo Pacto Verde tendiam a ser enquadrados dentro dos limites e suposições do Estado-nação. Suas abordagens e soluções eram, consequentemente, não apenas limitadas e de cima para baixo, mas também neocoloniais no seu desígnio.
As propostas do Novo Pacto Verde ressurgiram no período de 2017 a 2019, quando políticos progressistas se mobilizaram em torno da campanha de Bernie Sanders, aqui nos E.U.A., e Jeremy Corbyn, no Reino Unido. Essas campanhas produziram algumas propostas políticas interessantes. Mas eu senti que, mais uma vez, elas não estavam abordando os nossos problemas ambientais em termos do sistema planetário e, acima de tudo, não estavam orientadas em torno do que é necessário para o Sul global e comunidades na linha de frente da crise climática.
O que tento fazer no livro é corrigir esse desequilíbrio explorando uma variedade de questões diferentes que são de importância primária no Sul global, começando pela agricultura - que, como você sabe, quase nunca é discutida nos planos ocidentais do Novo Pacto Verde - seguida pela urbanização, transição energética, conservação da biodiversidade e migração. Em todos esses capítulos temáticos, tento analisar uma variedade de formas diferentes de organização em diferentes escalas. Por exemplo, com o capítulo sobre "Descolonizando a Alimentação", analiso o movimento global de camponeses, La Via Campesina, que é uma organização transnacional que tem as suas próprias formas de governança representativa incorporadas. Esse movimento não parece sofrer do tipo de substitucionismo que você caracterizou como típico do setor ambiental sem fins lucrativos no Ocidente. Ele realmente tenta mobilizar as pessoas de uma forma democrática bastante direta, incluindo um forte componente de igualdade de género.
La Via Campesina estará provavelmente na extremidade mais organizada do espetro dos movimentos que analiso no livro. Também olho para grupos que alguns podem ver como "desorganizados", no sentido de que não estão utilizando estruturas representativas hierárquicas e modelos de governança transnacionais. Estou falando de coisas como grupos de invasores nos bairros das cidades do Sul global, onde as pessoas estão lutando contra os despejos.
Ao aplicar essa abordagem mais ampla, de baixo para cima, estou realmente interessado em explorar os tipos de tradições que se originaram com a historiografia radical britânica incorporada, por exemplo, por The Making of the English Working Class, de E. P. Thompson. Tentei emular toda essa ideia de fazer história de baixo para cima, levando a sério as formas de organização das pessoas, como ele fez. Num lugar como a Índia, essa tradição levou aos Estudos Subalternos, uma abordagem da história que expôs como os camponeses se mobilizaram e resistiram às incursões feitas em suas terras pelas forças imperiais britânicas. Na historiografia convencional de cima para baixo, nunca ouviríamos essas vozes porque sempre foram os funcionários imperiais que escreveram sobre os "motins" populares.
Os tipos de mobilizações que tenho em perspetiva precisam de uma abordagem de baixo para cima. Seria difícil entendê-las claramente sem isso porque elas têm um modo de organização muito flexível e, pode-se até dizer, espontâneo. No livro, tentei revelar esse espetro mais amplo de formações de mobilização que estão se desenvolvendo num contexto do Sul global.
No contexto desse amplo espectro de mobilizações e das suas formas, você acha que há algumas forças organizacionais compartilhadas que sejam reveladas por meio do ecologismo desde abaixo? Por exemplo, sejam elas explicitamente conscientes em termos de classe (como no caso da Via Campesina) ou mais espontâneas, essas mobilizações têm maior resiliência democrática e, portanto, princípios orientadores mais fortes? Se sim, elas estão melhor posicionadas para resistir a serem pressionadas a servir oficialmente ao neoliberalismo, em contraste com algumas ONGs ambientais ocidentais que são cooptadas?
Bem, os movimentos populares são locais de fermentação política e contestação. Enquanto esses movimentos lutam para defender os bens comuns ambientais, eles também estão sempre sob pressão de interesses da elite e do Estado. Às vezes, os dirigentes podem ser comprados, e as pessoas podem ser intimidadas ao silêncio. Mas o que eu descobri, em termos de um conjunto de princípios, é que muitos desses movimentos estão pensando sobre o ambientalismo num sentido muito amplo. De forma oposta, os interesses da elite estão tentando estreitar a visão do ambientalismo. As elites podem admitir que temos uma crise climática, mas procuram estreitar o seu escopo, para focar simplesmente no dióxido de carbono. Isso lhes permite argumentar que a crise pode ser resolvida por meio de soluções tecnológicas, como a captura e armazenamento de carbono. Ou podem promover soluções estreitas como os mecanismos neoliberais de compensação de carbono. Esse estreitamento operado pela elite esconde a verdade da nossa crise ambiental, com as suas inúmeras facetas diferentes, interligadas e cruzadas.
Acho que a complexidade real das questões ambientais é melhor compreendida pelas pessoas nos locais de base onde, por exemplo, a crise climática está realmente causando danos. Apenas em virtude de suas circunstâncias materiais, elas e seus movimentos têm entendimentos mais precisos.
Como um exemplo específico, no capítulo do livro sobre transição energética, exploro o caso da África do Sul, onde o governo do ANC, pelo menos, aceitou o discurso de uma "transição energética justa". Mas a maneira como eles estão tentando fazer isso é muito estreita: eles estão apenas trazendo empresas privadas contratadas para construir energia renovável. Muitas dessas empresas são do Norte global, especificamente da Europa, então há muitas questões a ser colocadas por movimentos populares sobre equidade - uma consideração importante, dados os altos níveis de desemprego existentes num país como a África do Sul. Então, a questão crucial é saber quais são as implicações de termos uma transição energética a ser executada por um bando de consultores e engenheiros corporativos, provindos de algum lugar da União Europeia?
Essa é uma questão importante porque, enquanto isso, há movimentos populares no local que estão bloqueando estradas porque suas comunidades estão sofrendo constantes apagões - quedas repentinas nas magnitudes de voltagem das redes elétricas. Essas sérias interrupções refletem o facto de que a autoridade nacional de energia, a Eskom, está num estado de crise política. As pessoas nos locais de base vêm que estão ameaçadas, em termos de habitação, porque não podem pagar as tarifas que o fornecedor de serviços públicos do Estado está impondo. Elas também vêm a pobreza e o fornecimento de energia como questões de vida ou de morte, no contexto do aumento das temperaturas urbanas relacionado com a crise climática. Esses movimentos vêm uma conexão entre as questões sobrepostas da habitação, acesso à energia, clima e pobreza. Além disso, por causa da abordagem do governo do ANC em relação à transição energética, eles têm consciência da captura do Estado pelos interesses corporativos. Todas essas questões são vistas como sendo interconectadas, e os movimentos então lutam contra esses tipos de questões por meio de ação direta. Mais importante ainda, por causa dessa interconexão, eles também estão pressionando os sindicatos, tentando trazê-los para o seu lado e para suas lutas.
Os movimentos por justiça na transição energética são apenas uma das muitas lutas diferentes, em contextos muito diversos, que analiso no livro. Se há um conjunto de princípios unificadores em todas essas lutas, então ele é o tipo de ambientalismo interseccional onde as pessoas estão realmente fazendo conexões porque estão diretamente expostas a essas crises multifacetadas nos locais de base. Esse tipo de ambientalismo contrasta fortemente com o tipo de cima para baixo e de estreitamento - onde os esforços são despendidos para salvar uma parte ou um problema específico no meio ambiente - que é tão facilmente cooptável pelo discurso neoliberal.
Parece que o ecologismo desde abaixo envolve uma abordagem mais holística. Quanto disso se deve ao radicalismo - no sentido de que, para manter o holismo, é preciso cavar até as raízes causais de uma crise e reconstruir para encontrar as conexões com outras tendências, fatores, problemas e movimentos de massa?
Se essa avaliação for relevante, como é que o radicalismo holístico é capaz de combater o tipo de ambientalismo de questão única que herdamos da ciência ocidental e das escolhas políticas decorrentes da cimeira do Rio de Janeiro de 1992 - quando os dirigentes políticos do mundo impulsionaram uma agenda que dividiu a crise ambiental emergente numa série de "questões" ambientais discretas - biodiversidade, clima, desertificação, poluição e assim por diante?
O tipo de abordagem de baixo para cima e radical-holístico que você explora contém a chave para infundir em ambientalistas sérios um novo sentido de otimismo radical? Será que essa perspetiva seria útil, em particular, para os jovens que se descrevem como “a última geração”?
Só venceremos a luta ambiental se envolvermos os movimentos de massa. Essa é a única maneira de fazer as coisas porque o ambientalismo de cima, apesar de alguns de seus sucessos, sempre será claramente vulnerável à reação política. E, claro, esse perigo de reação política fica cada vez mais forte à medida que o clima e o meio ambiente entram em crise mais profunda.
Os principais políticos "liberais" do Norte global estão lidando com a crise climática prometendo acelerar a transição energética a partir de cima, despejando dinheiro público em corporações privadas como a Ørsted, a grande desenvolvedora de energia eólica offshore. Nos E.U.A., é isso que o Inflation Reduction Act do presidente Biden está fazendo, e sei que coisas semelhantes estão acontecendo com o European Green Deal da U.E.. O problema é que, mesmo enquanto essas iniciativas são desenvolvidas de cima para baixo, estamos num momento de expansão sem precedentes para os combustíveis fósseis. Os políticos, incluindo "liberais" como Joe Biden, não estão fazendo nada sério sobre essa contradição. Por um lado, estão dizendo aos ambientalistas que estão fazendo tudo o que é necessário, ao promover os Novos Pactos Verdes. Entretanto, por outro lado, a mensagem que eles estão enviando aos industriais dos combustíveis fósseis e seus especuladores financeiros associados é: não se preocupem, o vosso capital estará seguro, continuaremos a extrair combustíveis fósseis e vocês ficarão bem.
Enquanto estamos neste momento perigoso no Ocidente, há um tipo de situação paralela no Sul global. Políticos como o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, afirmam que a Índia precisa de aumentar a sua independência energética e a sua soberania energética, para promover o desenvolvimento económico. Para esses fins, o governo indiano está construindo projetos significativos de energia solar, mas também pretende abrir à extração milhões de toneladas em veios de carvão e construir novas fábricas de energia a carvão.
Estou usando como exemplo Modi e a Índia, mas este é um problema em todo o Sul global, porque esses países sentem que o seu espaço para o desenvolvimento foi bloqueado pela poluição que o Ocidente colocou na atmosfera historicamente. Há raiva no sentido de que as elites, nalgumas nações do Sul global, estão argumentando que é agora a hora de se desenvolverem economicamente, e que não vão cortar nos combustíveis fósseis que consideram necessários para isso.
A horrenda ironia é que o poder económico alcançado dessa forma pelos combustíveis fósseis beneficia apenas uma fração limitada da população, num país como a Índia, sendo ele próprio um dos lugares mais vulneráveis do planeta ao apocalipse ambiental que se está formando. Vejo essas contradições como um dos grandes perigos que enfrentamos, em termos da atual ordem política e das suas abordagens de cima para baixo.
Para piorar as coisas, há a ameaça da extrema direita e dos fascistas que estão utilizando a xenofobia explícita para demonizar certas populações e os migrantes. Esse ecofascismo é mais evidente em países ricos como os da U.E., mas também se reflete no Sul global, onde um dirigente como Modi está visando os muçulmanos de maneiras explicitamente modeladas pela islamofobia ocidental.
Acho que, se vamos pensar seriamente sobre otimismo, então, devemos ser capazes de montar algum tipo de oposição significativa, de baixo para cima, a ambas estas tendências políticas - a duplicidade liberal que incentiva o capital fóssil e a transição energética simultaneamente, e a resposta fascista à crise climática, que ataca cada vez mais os migrantes.
Há alguns bons sinais de que a necessidade de ação radical está repercutindo no Ocidente e que as pessoas aqui estão se radicalizando ambientalmente. Como um indicador, podemos pensar no facto de o livro de Andreas Malm, How to Blow up a Pipeline, se ter tornando um best-seller, sendo adaptado para o cinema. O seu trabalho foi retratado no The New York Times e, assim, alcançou um público muito mais amplo. Ao mesmo tempo, você tem a organização Extinction Rebellion, no Reino Unido, que tem liderado esse tipo de protesto radical de baixo para cima e jovem. O tipo de radicalização e perspetivas holísticas sobre as quais temos falado estão definitivamente acontecendo, mas a repressão daí resultante também é um problema sério.
É claro que esse padrão vem acontecendo há muito tempo no Sul global. Na verdade, o que eu argumento no livro é que os movimentos no Sul global têm vindo a explodir oleodutos e a defender os bens comuns ambientais há muito tempo. A ação militante, incluindo a resistência armada de pessoas cujo ambiente foi ameaçado, está em andamento há décadas nos países do Sul global. Essa resistência nem sempre é rotulada de "ecologismo", mas geralmente é uma forma de defesa dos bens comuns ambientais. A repressão daí resultante, por forças pós-coloniais, incluindo atores estatais burgueses e interesses internacionais, como empresas de combustíveis fósseis, também vem se desenrolando por meio dessa política ambiental há muito, muito tempo.
Essas grandes forças políticas que estão em ação no atual momento global estão se desenrolando num momento em que tudo o que tomamos como garantido, na relativa estabilidade climática do Holoceno, está a ser derrubado. No futuro, todas as certezas políticas às quais nos acostumamos - Estados-nação, fronteiras nacionais e as megacidades do mundo - estão prestes a ser lançadas ao ar, provavelmente ainda durante as nossas vidas, mas certamente até 2100. Preparar-se para essa reconfiguração massiva - enquanto ainda tentamos construir desde abaixo aquilo de que precisamos para sobreviver e fazer a transição energética acontecer no máximo grau possível - é, acho eu, o conjunto-chave das lutas ambientais que temos diante de nós.
Entrando nesse mundo incerto, quão importantes são ainda os princípios tradicionais de lutas políticas e mobilização de massas? Por exemplo, qual o papel do internacionalismo em termos de criar a massa crítica do ecologismo desde abaixo; unindo todas as lutas que você descreveu e tornando-as politicamente holísticas ao unir o ambientalismo a lutas mais amplas por justiça social e paz também?
Além disso, vinculado a esse internacionalismo e novamente vindo de tradições de luta, quão significativos são os princípios da consciência de classe e da solidariedade de classe? O ecologismo desde abaixo tem bons exemplos de organizações com consciência de classe como a Via Campesina, mas quão importante é que as conexões sejam forjadas entre esses movimentos ambientais e a classe trabalhadora urbana?
Acho que internacionalismo e solidariedade de classe, são ambas questões extremamente importantes. Começo o livro com a minha experiência de ida a Cochabamba, para a Conferência Mundial dos Povos sobre Justiça Climática e os Direitos da Mãe Natureza. Esse evento foi convocado por movimentos, em resposta à COP do Clima de 2009, em Copenhague, onde as elites globais basicamente se recusaram a concordar com cortes obrigatórios nas emissões de gases com efeito estufa - o início do caminho fracassado que nos levou ao Acordo de Paris. Evo Morales e outros dirigentes de várias nações do Sul global ficaram tão enojados com essa direção que concluíram que precisávamos de um movimento popular - um tipo de resposta de classe global, baseada no ambientalismo de base - uma Internacional Verde. Sinto-me muito afortunado por ter estado lá e ter tomado parte nas deliberações que ocorreram em Cochabamba. Gostaria que o processo tivesse continuado, mas, você sabe, as circunstâncias políticas mudaram. O retrocesso dos governos da Maré Rosa, na América Latina, e a eleição de fascistas em lugares como o Brasil significaram que esse projeto passou por grandes dificuldades. Mas acho que é um movimento que vale a pena apoiar e pelo qual vale a pena lutar. Então continuo a fazer parte dos esforços para ajudar a organizar esse tipo de Internacional Verde.
Para que isso tenha sucesso, deve ser consistentemente ancorado na maioria global, para que reflita as exigências dos movimentos populares no Sul global. Precisamos de garantir que a história das tradições de luta pela justiça global - os combates contra o neoliberalismo que ocorreram em oposição a todos os acordos comerciais internacionais na década de 1990 e à O.M.C. - esteja bem entrelaçada com as formas emergentes de solidariedade ambiental internacional.
Em termos de consciência de classe, é essencial que alimentemos conexões e solidariedade entre pessoas que estão posicionadas em diferentes partes do sistema mundial capitalista. Precisamos de voltar às lições delineadas por Antonio Gramsci, que lutou por conectar o proletariado industrial do norte da Itália com o campesinato do sul do país. Esse nível de solidariedade de classe é um paradigma que precisamos de continuar a construir, para os tempos e lutas atuais. É um elemento vital para desenvolver o tipo de luta holística que já discutimos. Mas, ao desenvolver o holismo, acho que também precisamos de incluir outras lutas que se orientem em torno de diferentes elementos de identidade. Isso inclui o tipo de elementos anticoloniais e antirracistas que vieram à tona em Cochabamba, onde argumentações muito claras foram desenvolvidas no sentido de que a poluição dos bens comuns atmosféricos globais era um produto do colonialismo. Isso levou a um entendimento de que o capitalismo e o colonialismo devem ser vistos como interligados, com a conclusão de que o ambientalismo também precisa ser um tipo de movimento descolonizador, que tenha o antirracismo como seu eixo.
Almejando em direção a outras lutas, é claro que necessitamos de começar a analisar a questão do género. As mulheres estão na vanguarda das lutas ecológicas ao redor do mundo, e precisamos de tomar consciência de como a crise climática se decompõe desproporcionadamente ao longo das linhas de género, para impactar mais fortemente as mulheres. As mulheres são essenciais para a reprodução social, e o que estamos testemunhando é essencialmente o colapso da capacidade das sociedades de se reproduzirem ao redor do mundo. Para refletir a urgência dessas lutas, precisamos de fazer do feminismo e da mobilização feminista transnacional partes essenciais das lutas ambientais com as quais estamos nos engajando. Por sua vez, para que isso seja eficaz, esse elemento de género precisa de estar claramente conectado à consciência de classe e aos esforços anticoloniais internacionalistas.
O ecologismo desde abaixo necessita de ser abordado holisticamente como um movimento, mas sei que pode ser um desafio fazer isso. A esquerda política e os movimentos sociais muitas vezes encalham ao tentar manter todos esses elementos de luta em jogo e ao se esforçarem por serem o mais justos possível. Mas acho que a unidade e o holismo são aquilo por que temos que lutar, e vejo organizações como La Via Campesina como exemplos realmente bons de como isso pode ser feito.
Encontrou motivos para uma esperança significativa de que o ecologismo desde baixo pode nos ajudar nas lutas tradicionais pela unidade que precisamos de abordar? Finalmente, o plano ecológico, em si mesmo, tem algum potencial para aumentar a unidade provindo de baixo - quais benefícios que virão da incorporação de elementos radicais da luta ecológica, como a agroecologia?
Bem, como eu digo no meu livro, as pessoas não têm outra opção a não ser continuar a lutar. Aprendi muito sobre os motivos dessa determinação real de não se render ao escrever Environmentalism from Below. Por um lado, é um livro ridiculamente todo-abrangente, porque, basicamente, sentei-me para pensar sobre como é que os principais temas ambientais ilustram onde se estão desenrolando as crises hoje e como é que os movimentos estão a mobilizar-se em resposta a isso. Os capítulos temáticos do livro começam por diagnosticar o conjunto de problemas que a dinâmica exploratória capitalista está criando para um tópico ambiental e, em seguida, exploram alternativas provindas de baixo.
Por exemplo, no capítulo Decolonizing Food (Descolonizando os Alimentos), comecei por analisar a crise na agricultura e no sistema alimentar e, depois, descrevi as alternativas que vêm da agroecologia. Para esse capítulo - numa abordagem que adotei para cada tema - tentei aprender o máximo que pude sobre ecossistemas do solo, falando com o máximo de especialistas e lendo o máximo que pude. Nesse caso, essa pesquisa fez-me pensar sobre a complexidade da ecologia do solo e a imensa variedade de vida que se encontra em cada amostra quadrada de solo. Esse conjunto diverso de organismos é interconectado por meio de uma interação ecológica incrivelmente bela que, por sua vez, mantém a imensa riqueza do solo. Essa é uma analogia excelente para os tipos de política radical holística sobre os quais temos vindo a falar, mas também é exatamente o tipo de sistema natural que precisamos de descobrir como será possível sustentar por meio de nossa política radical.
As analogias ecológicas e políticas se expandem também noutras direções. O modelo agroindustrial de tratar o solo como um substrato neutro, no qual você pode simplesmente despejar produtos químicos sem restrições, claramente, não está mais a funcionar. Mas o domínio dessa abordagem monocultural revela muito sobre o estilo autoritário do sistema que o capitalismo está impondo ao redor do mundo. As críticas ao comunismo sempre foram de que ele é totalitário, mas se você pensar sobre o tipo de sistema ecológico que flui do capitalismo industrial, eles são tão de cima para baixo e destrutivos quanto qualquer forma de governo político totalitário que você possa imaginar.
Em contraste, se olharmos para ecossistemas naturais do tipo que vemos em solos saudáveis, podemos aprender muito sobre como um generalizado ecologismo desde abaixo pode atuar. Mas também podemos especular sobre os requisitos holísticos que serão necessários para moldar o tipo de genuíno comunismo de desastre, no qual devemos confiar cada vez mais. A esse respeito, no final de Environmentalism from Below, discuto a necessidade iminente da abolição das fronteiras e como os países ocidentais gastaram muito mais na militarização das suas fronteiras - enquanto encorajavam as nações do Sul global a interditar os migrantes - do que em reparações climáticas. A abolição necessária de Estados-nação e de fronteiras racistas é uma muito boa maneira concreta de pensarmos sobre a nossa crise ambiental e uma resposta a ela, porque quase todos nós teremos que nos mudar, à medida que as mudanças climáticas acelerarem.
Environmentalism from Below termina com uma discussão sobre as questões políticas sobre as quais temos vindo a falar e como os sistemas atuais que temos em vigor são totalmente insustentáveis, dadas as crises ambientais que estão criando. Em face de todas essas realidades, precisamos de construir outras formas de solidariedade e maneiras alternativas de ser em relação ao planeta. Numa reversão elegante do slogan thatcherista, precisamos de fazer isso porque não há alternativa.
(*) Ashley Dawson (n. 1965) é natural da Cidade do Cabo, na África do Sul, tendo emigrado para os E.U.A. ainda criança com os seus pais. Licenciado em Inglês fez estudos pós-coloniais na Universidade de Columbia com Edward Said, Rob Nixon e Anne McClintock. É atualmente professor de inglês no CUNY Graduate Center e no College of Staten Island, da City University of New York. É especialista em estudos pós-coloniais, estudos culturais e humanidades ambientais, com um interesse particular em histórias e discursos de migração. Desde 2004, tem sido um membro colaborador do coletivo Social Text. Publicou e editou numerosos livros, de que destacamos Mongrel Nation: Diasporic Culture and the Making of Postcolonial Britain, University of Michigan Press, 2007; Democracy, States, and the Struggle for Social Justice, com Heather D. Gautney, Neil Smith e Omar Dahbour, Routledge 2009; Imperial Ecologies (New Formations), com Jeremy Gilbert e Wendy Wheeler, Lawrence & Wishart, 2010; The Routledge Concise History of Twentieth-Century British Literature, Routledge, 2013; Against Apartheid: The Case for Boycotting Israeli Universities, com Ali Abunimah e Bill V. Mullen, Haymarket Books, 2015; Extinction: A Radical History, O/R Books, 2016; Extreme Cities: The Peril and Promise of Urban Life in the Age of Climate Change, Verso, 2017; People’s Power: Reclaiming the Energy Commons, O/R Books, 2020. O seu interesse em questões ambientais cresceu enquanto vivia na cidade de Nova Iorque, onde foi envolvido em movimentos de justiça ambiental surgindo nas comunidades de classe trabalhadora de cor que foram e continuam a ser desproporcionadamente impactadas pelos projetos de energia e infraestrutura poluentes da cidade. Participou na Conferência Mundial dos Povos sobre Justiça Climática e Direitos da Mãe Natureza, em Cochabamba, Bolívia, em 2010, onde os delegados lançaram um apelo global à reconstrução ecológica para e a partir do Sul global, incluindo apelos a reparações climáticas por parte dos países poluidores do Norte global que facilitariam essa reconstrução. O seu último livro, Environmentalism from Below: How Global People’s Movements are Leading the Fight for Our Planet (Haymarket 2024), abre com as suas reflexões sobre essa experiência e se baseia em muitos anos de estudo do ambientalismo de base. Esta entrevista foi conduzida, provavelmente por correio eletrónico, pelo geógrafo e militante ecossocialista galês Ian Rappel, tendo sido publicada em Climate & Capitalism, a 20 de maio de 2024. A tradução é de Ângelo Novo.
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