Introdução

 

 

 

Os E.U.A. e todas as trinta e quatro potências a eles coligadas receberam um tremendo pontapé nos dentes desferido pelo povo afegão. É o golpe de misericórdia na “guerra ao terrorismo” proclamada por George W. Bush, na sequência dos enigmáticos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. A partir de agora, a iniciativa no Médio Oriente passará para a “frente da resistência”, sendo previsível que, mediante uma constante guerra posicional, de paciência e fricção, acabemos por assistir à queda conjunta de Israel e das corruptas monarquias árabes da região. Isso será, enfim, o dobre de finados pelo domínio global do ocidente. O fim do mundo que conhecemos, em auspiciosa antecipação do fim do mundo tout court. Perante as mutações climáticas catastróficas em curso, aquilo a que assistimos, da parte das elites dirigentes ocidentais, é muito, muito pior do que a indiferença hipócrita a que já nos habituaram. Não. O que se passa é nada menos que uma ativa e efetiva conspiração destruidora, cinicamente camuflada com palavras de ordem calculada e estudiosamente fraudulentas, como “neutralidade climática” ou “balanço carbónico zero”. É por aí que estamos seguindo. Estes senhores defenderão encarniçadamente o seu mundo, qualquer que seja o mundo que daí sobeje, ou não. O confronto é inevitável, vital, sem limites, sem quartel. Qualquer aliado será bem-vindo nesta luta existencial para a humanidade.

 

Uma parte muito importante da luta pelo derrube do sistema imperialista ocidental vai decorrer na América Latina e no mundo muçulmano. Em ambos estes ambientes, desempenham importante papel as clivagens ditadas por diferentes tradições culturais. Neste particular, é importante que ninguém se deixe seduzir (ou intimidar moralmente) pelo engodo do falso “progressismo” filo-imperialista. Os exploradores nunca trouxeram libertação a ninguém, menos que todos às mulheres (das quais só reconhecem existência e direitos a uma ínfima minoria) e ao povo em geral. A libertação dos oprimidos nunca caiu do céu. É uma tarefa a prosseguir pelos próprios oprimidos, dentro do seu particular universo cultural. As luzes emancipadoras não irradiam de Paris, Londres ou Nova Iorque, velhos centros de acumulação de pilhagem imperialista. Irrompem de todo o lado para todo o lado, por obediência a uma universal aspiração humana. O imperativo da libertação nacional dita que os povos tomem em mãos o seu próprio destino, não que o entreguem a tutelas externas, com benefício exclusivo para pequenas castas corruptas e traidoras. Luz e treva são um. Entre elas teremos hoje que achar o caminho da sobrevivência, antes do da liberdade.

 

Os donos disto tudo (DDT), no mundo ocidental, são uma minúscula camada detentora do controlo sobre o imobiliário, as finanças e os monopólios. Para Michael Hudson, esta nova aristocracia rentista, com a conivência do poder político por elas corrompido, exerce uma tamanha punção sobre a mais-valia socialmente criada que sufoca a economia real produtiva, arrastando-a para um marasmo depressivo, superficialmente mascarado com alguns artifícios estatísticos. A dar crédito aos propagandistas burgueses da imprensa económica, viveríamos numa era de contínua e feérica inovação. A verdade é que estamos, há décadas, mergulhados numa profunda estagnação, imposta pelo império indiscutível e indiscutido das relações de produção capitalistas. O jovem ensaísta norte-americano Jason E. Smith desenreda um pouco esta meada, em diálogo com o consagrado académico marxista Tony Smith. Do nosso editor Ângelo Novo, publicamos a sexta parte do seriado histórico “Outubro e nós”, que desta feita aborda o movimento internacional terceiro-mundista, a contraofensiva capital-imperialista neoliberal que se iniciou a partir do final dos anos 1970 e as perspetivas que se abrem com o impasse a que esta chegou, na viragem para a segunda década deste novo milénio.

 

O conceito de imperialismo deixou de ser de bom tom. A palavra, simplesmente, desapareceu do vocabulário académico durante décadas. Regressando embora, timidamente, muitos autores continuam a esquivar-se a reconhecer o que ela significa de extorsão violenta e exploração brutal. Neste número de O Comuneiro vamos dar voz a alguns autores que nunca abdicaram de dizer as coisas como elas são e de atuar de forma consequente. John Smith é um dos valores novos mais seguros nesta área de estudo. Por isso nos orgulhamos de publicar aqui uma pequena peça representativa da sua linha de pesquisa, que parte de uma hipótese colocada (mas não desenvolvida) por Marx, em O Capital, para mergulhar diretamente no mundo contemporâneo da superexploração laboral global. Os mexicanos Raúl Delgado Wise e Mateo Crossa Niell debruçam-se especificamente sobre os mecanismos do monopolismo tecnológico como um dos aspetos centrais do imperialismo de hoje. Tokil Lauesen e Zak Cope põem a hipótese de as gigantescas transferências de valor da periferia para as metrópoles imperialistas se acoitarem sob o mecanismo da “transformação dos valores em preços”, que muitos autores relegam, com menoscabo, para o campo da “mera circulação” do capital.

 

O antropólogo Richard B. Lee sempre se preocupou em expandir as fronteiras do materialismo histórico até ao tempo das sociedades sem classes. Da sua reflexão resultou uma teoria inovadora e apaixonante sobre a ascensão das sociedades estratificadas, que é simultaneamente um guia e um desafio para quem se propõe hoje encarar a tarefa histórica simétrica, da abolição das classes sociais. Kevin B. Anderson é um incansável investigador da obra de Marx, em especial da mais tardia. Como meritória introdução à sua monumental obra Marx at the Margins, temos o grato prazer de publicar, deste autor, um artigo que analisa as preocupações do último Marx com toda a integridade e variedade da experiência de opressão e exploração entre seres humanos. Não começamos ainda a medir tudo o que devemos a Samir Amin, recentemente desaparecido de entre nós. Um pequeno e denso texto seu, de entre os últimos, oferece um oportuno resumo das suas reflexões teóricas sobre uma possível transição histórica ao socialismo. Ivonaldo Leite debruça-se sobre a último descalabro militar norte-americano, situando-o no contexto de um fim de ciclo imperial.

 

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Os Editores

 

Ângelo Novo

 

Ronaldo Fonseca

 

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