A “economia da partilha”, o futuro dos empregos e a crise do capitalismo

 

 

Adam Booth (*)

 

 

Na segunda metade da segunda década do século XXI, estamos a ser assaltados por uma onda de inovação tecnológica, com carros sem condutor, impressão a 3D e a emergente "internet das coisas”, conetando pessoas e objetos através do Globo. Tecno-utopistas e capitalistas libertários prometem-nos um mundo de abundância; um sistema supereficiente de produção e de distribuição; e uma vida de lazer. No entanto, qual é a realidade para os 99%? Crise ecológica, "estagnação secular" e uma desigualdade excruciante.

 

Para a vasta maioria, o progresso tecnologico não foi acompanhado por padrões de vida melhorados, salários aumentados ou alguma redução no horário semanal de trabalho. Apesar do incrível potencial tecnológico e científico ao alcance da sociedade, os problemas mais básicos – de doença, pobreza e gente sem casa - não estão sequer perto de ser resolvidos.

 

Longe de se darem por satisfeitas com o que o capitalismo tem para oferecer, no ano de 2015, após sete anos de crise económica global, milhões de pessoas se levantaram, organizaram, e rebelaram contra governos e elites que defendem este sistema senil.

 

Não obstante, a propaganda continua. No período de forte crescimento do pós-guerra, com base numa industrialização e automação maciças, afirmou-se que "somos todos classe media agora". Hoje, apesar das projeções sombrias dos economistas burgueses mais sérios, dizem-nos que a próxima mudança “revolucionária" está mesmo ao virar da esquina. Em breve - assim diz esta fábula - todos nós seremos capitalistas livres, autónomos, empreendedores!

 

Este é o mito que está a ser vendido através de todo o mundo capitalista avançado, enquanto uma suposta “nova” forma de economia emerge das cinzas da crise de 2008: a economia da "partilha" (ou "por pedido").

 

Alguns, como os utopistas e libertários acima mencionados, proclamaram otimisticamente que estamos testemunhando o nascimento de uma nova era, rejuvenescida, para o sistema capitalista. Outros, como Paul Mason, no seu novo livro Postcapitalism, sublinharam (mais sobriamente) as contradições que as modernas tecnologias da informação e a economia da "partilha" colocam dentro dos limites do capitalismo - isto é, dentro dos limites da propriedade privada, produção e troca de mercadorias e produção para o lucro.

 

Mas qual é a realidade? Com uma infinidade de serviços por pedido agora apenas a um clique de distância, estaremos asssistindo ao início de uma nova era, impulsionada pelos telefones inteligentes (“smartphones”)? Será que a “economia da partilha” realmente representa mudanças fundamentais na forma como a sociedade está organizada e é dirigida? E com uma combinação de tecnologias da informação, automação e redes de alta densidade, terá a natureza do trabalho e do emprego sido transformado radicalmente para melhor?

 

Apenas a um clique e um toque de distância

 

AirBnB e Uber são apenas os exemplos mais conhecidos. Mas eles são apenas a ponta do icebergue quando se trata do mundo da economia da "partilha" ou "por pedido". Para além de quartos (ou apartamentos inteiros e casas), é possível agora "partilhar" tudo o que existe sob o sol, de carros e bicicletas a ferramentas e livros didáticos.

 

Da mesma forma, não são apenas as corridas de táxi que se podem encomendar a qualquer momento; agora existem aplicativos para encomendar produtos de limpeza (Handy), géneros alimentíceos (Instacart), ou refeições de restaurante entregues à sua porta (Deliveroo), tudo em minutos. Na verdade, empresas como TaskRabbit reunem um exército de "tarefeiros" preparado para desempenhar qualquer tipo de trabalho manual - seja ele a montagem de móveis, a reparação de computadores, a entrega de encomendas ou a aparagem de relva – para quem requeira estes serviços.

 

Embora sejam muitas vezes confundidas, as economias da "partilha" e "por pedido" têm entre si diferenças fundamentais. Ambas subiram à proeminência ao mesmo tempo, com base numa proliferação de telefones inteligentes, aplicações informáticas (“apps”) e de uma população jovem, tecnologicamente informada e conectada. A primeira, no entanto, centra-se na chamada "partilha" de bens; a segunda, na prestação de serviços "por pedido".

 

O potencial revolucionário de tais tecnologias e modelos é claro. Em vez de produzirmos, com enorme desperdício, casas e automóveis que são usados somente numa fração do seu tempo de vida, podemos eficientemente partilhar os nossos recursos, a fim de maximizar a sua utilização efetiva. E com a possibilidade de solicitar toda uma enorme gama de serviços com nada mais que alguns toques num ecrã, aqueles que dispõem das necessárias habilidades e tempo livre podem ser colocados eficazmente em situação de dar resposta às necessidades dos usuários individuais.

 

O mundo orwelliano da economia da "partilha"

 

Mas enquanto o potencial e as possibilidades oferecidas pelas economias da "partilha" e "por pedido" são evidentes, dentro dos limites do capitalismo, elas não são nenhuma revolução.

 

O capitalismo, como Karl Marx explica em sua magnum opusO Capital’, é definido pela sua natureza como um sistema de produção e troca universal de mercadorias. Uma mercadoria, explica Marx, é um bem ou um serviço produzido com a finalidade da troca (e não para consumo individual ou social). Enquanto as mercadorias têm existido em todas as formas de sociedades de classes, é apenas sob o capitalismo que a produção de mercadorias se torna generalizada.

 

Inerente a este conceito de mercadoria está a questão da propriedade privada, outro pilar fundamental do sistema capitalista. Pois que, se um produto pode ser oferecido para a troca, ele deve primeiro pertencer ao produtor ou proprietário que está buscando esse intercâmbio.

 

A soma total dos intercâmbios entre proprietários de mercadoria, entretanto, forma o mercado capitalista. Dinheiro e crédito são os lubrificantes do sistema, mantendo a circulação de mercadorias em movimento. E, finalmente, vemos a força motriz por trás do capitalismo, ligado à questão da propriedade privada: a concorrência entre produtores individuais na busca do lucro, obtido através da exploração da classe trabalhadora.

 

Aqui estão, pois, os elementos fundamentais do sistema capitalista: produção e troca de mercadorias; propriedade privada; o mercado; dinheiro e crédito; lucro e a relação capital - trabalho assalariado.

 

É preciso perguntar: Quais foram os aspetos do capitalismo que foram "revolucionados" pela economia da "partilha" ou "por pedido"? Os lucros, certamente que não desapareceram, pois como relata o jornal Guardian:

 

"Juntar-se à economia da partilha como um provedor de serviços - alojamento, transporte ou qualquer outra coisa que o mercado peça - lhe dá uma chance de ganhar dinheiro enquanto faz parte de um "movimento". Parece tremendamente atraente, não é?...

"Mas não se engane: é um negócio. E se você esquecer isto, os perigos são por sua conta, independentemente da forma como você é participante na economia da partilha.

 

"O ponto fundamental a reter é: nenhuma das empresas que surgiram para servir a economia da partilha é... entidade sem fins lucrativos. Pelo contrário, são empresas cujo objetivo é fazer lucro a partir de uma muito menos formal economia da partilha, que já existia...

 

"...Você não conseguiria tornar-se um dos negócios capitalistas de risco mais valiosos do mundo, como a Airbnb conseguiu, nem valer, em estimativa, US$10 bilhões (A) ao ano (mais do que algumas cadeias de hotéis) se tudo o que você fizesse fosse participar de um "movimento". Nem pensar, você tem de encontrar uma maneira de se fazer pagar, muitíssimo bem mesmo, como intermediário - e isso é 101% capitalismo, não um movimento" (1).

 

A propriedade privada continua lá, é claro: experimente só ficar num apartamento AirBnB para além das datas acordadas e verá o que lhe acontece. E continua a ser, fundamentalmente, uma economia baseada no mercado, com dinheiro trocado por bens e serviços - isto é, mercadorias. Se isto é "partilhar", então poderíamos muito bem considerar todos os setores e indústrias do capitalismo como integrantes da economia da partilha, já que esta suposta "partilha" - ou seja, a troca de dinheiro por mercadorias - é uma caraterística fundamental de todos os mercados.

 

Então, qual é o aspeto "revolucionário" da economia da "partilha"? Na realidade, não há partilha alguma a ocorrer aqui. Partilha implica algum tipo de reciprocidade altruísta e/ou propriedade comunal. Na verdade, a reciprocidade de gentileza estava (e ainda está) presente nos antecessores de empresas como a AirBnB; por exemplo, em comunidades em linha como CouchSurfer, que permitiu a muitos viajantes encontrar uma cama gratuita para pernoitar graças à bondade de outros.

 

Não, o que temos aqui não é partilha; não houve abolição da propriedade privada ou estabelecimento de propriedade comunal em massa. Em vez disso, o que temos é uma conversão maciça de produtos apropriados privadamente e bens consumidos em serviços alugados.

 

O grande truque da economia da "partilha" foi mudar o nome das coisas, sem alterar a coisa em si. Alugueres e trabalho assalariado – que já existiam desde os primórdios do capitalismo - foram simplesmente rebatizados como "partilha". A propriedade privada, e todas as leis capitalistas que fluem a partir dela, não foram abolidas nem alteradas. A economia da "partilha" é apenas a típica troca de mercadorias, a que foi dado um novo brilho e uma vibração apetecível, moderna e na moda, para a idade da internet. Este é um mundo de eufemismos, no qual o Big Brother, da distopia clássica de Orwell 1984, teria tido orgulho.

 

Anthony Kalamar, num artigo em OpEdNews.com, descreve este zeitgeist da "partilha" como uma "lavagem pela partilha" (“sharewashing”), por meio da qual as empresas escondem a sua verdadeira natureza lucrativa por trás da máscara aprazível e sorridente da "partilha". Nesse processo, a possibilidade de uma verdadeira economia de partilha - a economia socialista baseada na propriedade comum e num plano de produção - é posta de lado. E enquanto estas empresas podem ajudar a reduzir o desperdício em determinados setores, ao nível da sociedade como um todo elas agem para expandir o mercado.

 

"A diferença chave entre as promessas da economia da partilha real, e a enxurrada de empresas de «lavagem pela partrilha» (sharewashing) que procuram se esconder sob o seu manto, é que estas últimas estão inevitavelmente envolvidas em trocas monetárias, visando o lucro, em contraste gritante com qualquer definição de "partilha" que a sua mãe, presumivelmente, lhe ensinou em tempos...

 

"A própria promessa de uma economia baseada na partilha é assim desarticulada, pelo roubo da própria linguagem que usamos para falar sobre isso, transformando uma resposta fundamental para a nossa iminente crise ecológica em apenas um outro rótulo para a mesma lógica econômica que nos trouxe a própria crise...

 

"...De há mais de cem anos a esta parte, tudo tem sempre girado à volta do crescimento - encontrar novos mercados, desenvolver novos produtos, encontrar novas maneiras de levar as pessoas a consumir. Essa economia tem que crescer, pá! E todas as empresas lucrativas de «lavagem pela partilha» já mencionadas estão a crescer, em grande estilo. Elas não contrariam o rolo compressor do crescimento da economia convencional - acrescem a ele, porque participam da mesma lógica económica de interminável crescimento através do lucro mercantil. Esses quartos vagos, assentos de carro vazios e mãos ociosas podem ser traduzidos em dinheiro, uma vez que sejam trazidos para o mercado. As relações sociais que poderiam ter sido caraterizadas por uma verdadeira partilha são refreadas sob a égide do cálculo monetário e da lógica do crescimento" (2).

 

Tom Slee, por seu turno, expõe aproximadamente o mesmo argumento, em um artigo para a revista em linha da esquerda radical The Jacobin:

 

"As análises feitas mostram claramente que a ala empresarial deste movimento domina as iniciativas de espírito mais comunitário. Esta tensão conduziu rapidamente a uma mudança de modelo de negócios, deixando as ideias originais de partilha comunitária cada vez mais para trás, à medida que os modelos de economia de partilha se tornaram atraentes para as grandes empresas...

 

"A «economia da partilha» tem assistido a um rápido deslize para longe da partilha colaborativa, em direção a um emprego ainda mais desregulamentado e precário - a consequência direta do financiamento pelo capital de risco e do imperativo de crescimento que acompanha esse dinheiro. Um tal projeto não vai conduzir-nos, em tempo algum, mais perto da sociedade mais equitativa que queremos ver" (3).

 

Ascenção dos rentistas

 

A “economia da partilha" é assim caraterizada pela conversão da propriedade em rendas. Por sua vez, as empresas que gerem estes alugueres entre pares (“peer-to-peer”) – fazendo a correspondência entre oferta e procura – tomam para si uma percentagem da renda como o seu lucro. A este respeito, há uma outra diferença importante entre a “economia da partilha" e a do capitalismo arquetípico: em vez de os lucros dos capitalistas serem uma fatia da mais-valia criada na produção, as empresas no centro da "econiomia da partilha" derivam os seus lucros da apropriação de uma proporção das rendas, as quais, por sua vez, são uma parte da mais-valia gerada na produção real.

 

Marx explica em O Capital como todo novo valor, em uma economia, é criado através da aplicação do trabalho humano. A mais-valia, por sua vez, é simplesmente o trabalho não pago da classe trabalhadora - o valor criado pelos trabalhadores acima e para além dos seus custos salariais próprios, do qual os capitalistas se apropriam de graça.

 

Esta mais-valia é dividida, em seguida, entre lucros, juros e rendas. Os donos de dinheiro (os bancos e financeiros), que cobram juros, e os donos de imóveis (os senhorios), que cobram rendas, não criam assim novos valores, limitando-se a redistribuir o valor (e a mais-valia) que já havia sido criado no processo de produção de mercadorias.

 

Com a ascensão da “economia da partilha", estamos portanto vendo a ascensão do capitalismo rentista, parasitário, a uma vasta escala. A principal "revolução" da "economia da partilha" tem-se limitado a transformar bens pessoais em propriedade privada - ou seja, em transformar bens pessoais de milhões de pessoas comuns (casas, carros, etc.) em fonte de lucros para os capitalistas. Simplificando, é a conversão em massa de propriedade pessoal de pequena escala em capital.

 

Enquanto a AirBnB e outras empresas similares podem ajudar na alocação mais eficiente de alguns recursos específicos, elas não estão a reinvestir os seus lucros na resolução do problema da escassez, onde ele existe. Por outras palavras, elas não estão fazendo nada para desenvolver as forças produtivas.

 

O caso da AirBnB é um exemplo perfeito. Este ator maior da “economia da partilha” beneficia do facto de haver falta de casas e acomodações acessíveis na sociedade. Mas em vez de reinvestir os seus lucros na resolução do problema da falta de alojamento, como aconteceria com um plano de produção socialista, a AirBnB gasta simplesmente os seus ganhos em marketing e publicidade, de forma a expandir a sua fatia do mercado. Essa é a base de todo o seu modelo de negócio.

 

Enquanto isso, existem muitos exemplos de como a AirBnB, em vez de ajudar a resolver a crise da habitação, na verdade é responsável por exacerbá-la. Muitos proprietários que anteriormente alugavam a inquilinos a longo prazo, escolhem agora faturar no imediato, transformando as suas casas em residências de curto prazo e lares para férias, a preços muito superiores aos do mercado de arrendamento a longo prazo. O resultado é expulsar os locatários de certas áreas que eles anteriormente podiam pagar, reduzindo a oferta de moradias disponíveis para arrendamento. Assim, em vez de alocar eficientemente os recursos, a Airbnb na verdade promove o aumento da escassez.

 

O exemplo da Uber ilustra o mesmo ponto. Aqui está uma empresa que beneficia extraordinariamente do mau estado dos transportes públicos em muitas cidades em todo o mundo. Mas ao invés de aplicar os seus lucros no investimento em transporte público, a Uber - como a AirBnB - gasta o seu dinheiro em publicidade e marketing. Claro que, uma vez que a Uber é uma empresa de propriedade privada com fins lucrativos, isso faz todo o sentido. Uber, Airbnb e outros negócios afins estão apenas seguindo as leis e a lógica do sistema capitalista, que é impulsionado pela concorrência e pela busca do lucro.

 

Da mesma forma, as empresas na economia “por pedido”, ao classificarem os seus trabalhadores como “empreendedores”, em lugar de empregados, evitam qualquer obrigação de fornecer treino ou equipamento. Em vez de investir para melhorar as habilidades e ferramentas da força de trabalho “por pedido” e, assim, ajudar a aumentar a produtividade em todo o setor, estas empresas limitam-se a tirar partido do desemprego em massa e do trabalho improdutivo e mal pago que existe em largos setores, por toda a sociedade, em resultado da crise do capitalismo. Em vez de ajudar a desenvolver as forças produtivas, estas empresas são, na verdade, aproveitadoras dos sintomas de estagnação da sociedade.

 

Uma outra diferença significativa entre a "economia da partilha" e um verdadeiro plano socialista de produção deve também ser aqui sublinhada. Enquanto uma “economia de partilha" poderá ser capaz de alocar recursos de forma mais eficiente e reduzir o desperdício dentro de um setor, o papel da democracia dos trabalhadores e de uma economia planificada dentro do socialismo é dirigir e alocar recursos (em última análise o tempo de trabalho social) no conjunto de toda a economia, conforme haja escassez ou necessidade na sociedade.

 

Sob o capitalismo, são os sinais dos preços e o mercado que desempenham um papel equivalente na alocação de recursos, principalmente através da direção dada ao investimento. No entanto, isso é feito - no capitalismo - não com base nas necessidades, mas devido a um desencontro entre a oferta e a procura de algumas mercadorias, e a consequente possibilidade de os capitalistas fazerem super-lucros dirigindo capital para este ou aquele setor .

 

Dentro dos setores cobertos pela “economia da partilha", portanto, a alocação de recursos pode ser mais eficiente. Mas as empresas de referência na “economia da partilha" (ou na economia capitalista em geral) não operam para atender às necessidades sociais, visando apenas fazer lucros. A alocação de recursos entre diferentes setores e na economia como um todo, entretanto, ainda é deixado à anarquia do mercado, que é, de fato, altamente ineficiente - daí o fato de existirem contradições absurdas no seio do sistema capitalista: desemprego em massa ao lado de excesso de trabalho; gente sem abrigo ao lado de casas vazias; austeridade ao lado de um excesso de capacidade e de pilhas de dinheiro ocioso nas mãos das grandes empresas. Longe de ser um sistema eficiente, portanto, há um grande desperdício de recursos sob o capitalismo, devido às suas próprias contradições internas.

 

O facto de os investidores estarem canalizando rios de dinheiro para a “economia da partilha" - uma economia puramente rentista - é ainda outro reflexo do enorme espetro de sobreprodução ("excesso de capacidade") que está assombrando a economia mundial. Com a desigualdade em níveis sem precedentes, existem enormes pilhas de lucros acumulados nas mãos dos 1%. Mas com níveis maciços de sobreprodução ainda existentes à escala mundial, há pouco a ganhar com o investimento desses lucros na produção real - daí o aumento da especulação, o crescimento de bolhas de ativos e a crescente instabilidade nos mercados de ações.

 

Esta ascensão da economia rentista, na forma de crescimento da "economia da partilha", deste modo, não assinala uma nova etapa dinâmica para o capitalismo; em vez disso, ela demonstra o contrário: o impasse que o capitalismo atingiu na sua capacidade para desenvolver as forças de produção - indústria, ciência, tecnologia e técnica.

 

Em suma, a chamada “economia da partilha", longe de sinalizar o início de uma nova era de cooperação, igualdade e propriedade comum, é simplesmente o crescimento do capitalismo parasitário, com um pouco de bâton nos lábios para o tornar mais atraente. Como as prostitutas de outros tempos, que escondiam os sintomas de suas doenças com maquilhagem, transformando feridas em pontos de beleza, o sistema capitalista putrefacto, na época da sua decadência senil - não sendo já capaz de desenvolver as forças produtivas e transportar a sociedade para diante - tentou mascarar as suas características mais repulsivas como algo digno de ser reverenciado.

 

"Micro-empresários" ou "precariado"?

 

A par com o prolífico aparecimento da "economia da partilha" está a meteórica ascensão da economia "por pedido". O foco em tais serviços por pedido tem sido colocado, até agora, principalmente, nos benefícios para os consumidores, com os entusiastas jorrando encómios sobre as maravilhas de se poder encomendar um produto de limpeza barato para o apartamento ou uma viagem de táxi de baixo custo, às duas da manhã, com nada mais do que o toque de um iPhone.

 

Este aspeto das aplicações informáticas (“apps”) por pedido não é realmente assim tão revolucionário. Na verdade, elas nada mais são do que umas Páginas Amarelas glorificadas (um diretório gigantesco de telefones locais de negócios, organizado de acordo com os serviços que eles oferecem). A diferença é que, no mundo da economia por pedido, um negócio pode ser qualquer coisa ou pessoa – mesmo apenas uma pessoa solitária, oferecendo um serviço específico (ou uma variedade de serviços). Como tal, através de empresas como TaskRabbit, os clientes podem solicitar qualquer serviço imaginável da população cada vez maior de tarefeiros ("taskers") que se inscreveram para oferecer o seu tempo e as suas capacidades.

 

Enquanto isso, os capitalistas libertários exaltam as virtudes da economia por pedido aos seus trabalhadores. A economia por pedido, também conhecida como "economia de biscates” (“gig economy”), assim no-lo dizem, oferece a uma nova geração de jovens a oportunidade de romper com a tradição do dia de trabalho das 9 às 17h e com as amarras de ser empregado por uma única empresa. Os jovens trabalhadores querem apenas "liberdade", está a ver? A liberdade para escolher quando trabalhar e o que fazer. Já não temos de ser definidos por uma única ocupação, nem ser forçados a realizar as mesmas tarefas monótonas, a cada hora de cada dia; agora, o trabalhador moderno pode ser um homem dos sete instrumentos, desenvolvendo-se a si próprio como um indivíduo completo, com várias paixões e ambições de vida.

 

Estes trabalhadores "livres" são, diz-se, a dinâmica força motriz por trás da economia por pedido; "micro-empresários" que estão empurrando para a frente o capitalismo com a sua criatividade e engenho. A beleza da economia por pedido é que qualquer um pode agora começar o seu próprio negócio, ser seu próprio patrão, e ser um homem que se faz a si próprio ("self-made man").

 

Há, no entanto, mais uma vez, um grande abismo separando esta promessa da realidade. Como nota o New York Times, em um artigo intitulado "Na economia da partilha, os trabalhadores encontram tanto a liberdade como a incerteza":

 

"Em um clima de contínua alta taxa de desemprego, no entanto, [os trabalhadores por pedido] são menos microempresários e mais micro-recebedores. Muitas vezes eles trabalham sete dias por semana, tentando compor um salário mínimo a partir de uma série de biscates intermitentes. Eles têm muito pouca capacidade de resposta quando o serviço para o qual estão disponíveis altera o seu modelo de negócio ou as suas tabelas de pagamentos. Para reduzir os riscos, muitos trabalhadores alternam entre múltiplos serviços” (4).

 

Longe de ser emancipados pela economia por pedido (ou de biscates), portanto, estes trabalhadores estão a ter de recorrer a trabalho autónomo (“freelance”) precisamente porque a crise capitalista e a resultante falta de empregos retirou-lhes todo o poder. Estes auto-empregados "tarefeiros" não representam um exército de aspirantes a empresários. São, na verdade, o oposto: a camada mais precária da classe trabalhadora, ainda forçada a vender a sua força de trabalho - a única mercadoria que eles realmente possuem.

 

A diferença, agora, é que estes trabalhadores devem vender a sua força de trabalho em quantidades cada vez menores, sem qualquer certeza ou segurança; sem a garantia de um contrato ou de ganhar o suficiente para viver. Empresas como TaskRabbit, observa a revista The Jacobin, são apenas uma "agência de trabalho a tempo parcial glorificada" (5).

 

A ascensão do rabalhador auto-empregado, de biscates, a este respeito, espelha a ascensão do contrato de horas-zero. É um retorno aos "salários tempo" e "salários à peça" que Marx descreve em O Capital (6). Como o New York Times comenta, no mesmo artigo acima citado:

 

"O trabalho às migalhas dificilmente pode ser considerado um fenómeno novo. No entanto, acelerado pela tecnologia e empacotado como aplicações informáticas (“apps”), ele assumiu um verniz mais brilhante sob novas rubricas: a economia da partilha, a economia entre pares, a economia colaborativa, a economia de biscates" (7).

 

Uma elevada taxa de desemprego, a competição pelos empregos e a pressão descendente sobre os salários serviram para intensificar a corrida para o fundo para os trabalhadores, criando termos e condições cada vez mais precários. Um novo termo foi mesmo cunhado para descrever aqueles que sofrem os efeitos do surgimento de um tal emprego extremamente precário: "O Precariado". Como explica o New York Times:

 

"Se estes mercados estão ganhando força junto dos trabalhadores, dizem os economistas sociais, é porque muitas pessoas que não conseguem encontrar emprego estável se sentem compelidas a assumir tarefas ad hoc. Em julho, 9,7 milhões de norte-americanos estavam desempregados e uns adicionais 7,5 milhões estavam desempenhando empregos a tempo parcial, porque não conseguiam encontrar trabalho a tempo inteiro, de acordo com estimativas do Bureau of Labor Statistics..."

 

"Sendo os biscates isolados mais fáceis de encontrar do que emprego a longo prazo, uma nova classe de trabalhadores está a emergir, dependente de trabalho e de salários precários. Em vez de ‘proletariado’, o economista social Guy Standing chama-lhe o 'precariado'..."

 

"As empresas, essencialmente, canalizam tarefas de pegar e largar para o tomador mais rápido, ou o que se oferecer pela menor paga, diz ele, opondo-se os trabalhadores uns aos outros numa espécie de jogo laboral eliminatório" (8).

 

Embora os benefícios da economia por pedido para os consumidores tenham sido muito elogiados, são os benefícios para os capitalistas que são muito mais claramente visíveis. Não têm as empresas de pagar baixas por doença, subsídios de férias, de contribuir para o seguro de trabalho ou para fundos de pensões. Na verdade, esta tendência no sentido de classificar os trabalhadores como "auto-empregados" já tem sido observada na Grã-Bretanha (9), onde o número de trabalhadores por conta própria tem vindo a aumentar desde o início da crise de 2008. Os sindicatos têm lutado contra o “falso" auto-emprego por empresas do sector da construção, que tentam reduzir os custos do trabalho através da subcontratação e pelo emprego de trabalhadores "por conta própria" através de agências.

 

Mais importante, ainda, ao se inscrever individualmente e interagir através do portal de uma aplicação informática (“app”), os trabalhadores da economia por pedido foram isolados e atomizados - retirados do ambiente coletivo de um local de trabalho e da tendência daí decorrente para a organização. Atomizados e destituídos de organização, os condutores da Uber e "tarefeiros" do TaskRabbit são matéria bem afeita para a exploração pelos capitalistas. Como salienta, uma vez mais, o New York Times:

 

"A Uber recolheu mais de US$ 1,5 bilões entre investidores; a Lyft já recolheu US$ 333 milhões; e a TaskRabbit, US$ 38 milhões. Parte da atração para os investidores é que estas empresas podem evitar grandes folhas de pagamento de empregados, por funcionarem efetivamente como corretores de trabalho" (10).

 

Tal como a “economia da partilha", a economia por pedido não é assim nenhum desenvolvimento revolucionário, progressista, no ciclo de vida do capitalismo, sendo antes mais um reflexo distópico da natureza senil e propensa a crises deste sistema. É a mesma velha história de exploração, desigualdade e insegurança, retocada e reempacotada para a geração dos telefones inteligentes (“smart-phones”).

 

Por um lado, vemos uma "corrida contra a máquina", com os trabalhadores a enfrentarem a ameaça de "desemprego tecnológico” em resultado da tecnologia da informação e da automação. Um estudo realizado por acadêmicos da Universidade de Oxford (11) previu que quase metade de todos os empregos no mundo capitalista avançado serão tornados obsoletos até 2034 devido à automação, incluindo muitos empregos de colarinho branco, como contabilistas e agentes imobiliários (12). No mesmo processo, foi criada toda uma enorme faixa de desempregados jovens, altamente qualificados, que não conseguem encontrar um emprego, e devem portanto procurar à volta por trabalho inseguro e precário.

 

Como sublinha um artigo em TechCrunch.com :

 

"...Estamos postados em um cruzamento, onde trabalhadores do conhecimento sobre-educados e sub-experimentados se encontram com um afluxo de tarefas de biscates. Parece que o presente excesso de trabalhadores do conhecimento tem apenas uma opção de carreira disponível: tornar-se um trabalhador de biscates...

 

"O que acontece, então, quando o trabalhador do conhecimento sobre-educado e sub-qualificado entra na economia da partilha? Dá-nos uma boleia para o aeroporto ou entrega ao domicílio comida para cães, por pedido. Isto, pelo menos, enquanto a condução não for automatizada” (13).

 

Por outro lado, em sumultâneo com a competição entre trabalhadores e tecnologia, há a intensificação da competição entre os próprios trabalhadores. E isto são dois lados da mesma moeda: aqueles que são jogados fora do trabalho - no curto prazo pela crise e, a longo prazo, pela automação - são forçados a competir uns contra os outros. O resultado é um abismo cada vez maior entre os super-ricos e o resto. Auto-emprego precário, contratos de zero horas, salários às migalhas: este é o futuro real do trabalho sob o capitalismo, para os 99%.

 

Alienação e exploração

 

Com a ascensão de serviços por pedido, alimentada por uma abundância de indivíduos auto-empregados, os capitalistas criaram o máximo sonho libertário de corrida de ratos: competição pura e dura entre trabalhadores dá alimento ao mito de que eles foram "libertados" do cumprimento das obrigações de contratos em forma e horários estabelecidos.

 

É verdade, porém, que alguns jovens trabalhadores aceitaram esta retórica da "liberdade" e da "libertação", propalada pelos capitalistas à frente da economia por pedido. Mas isto não faz prova da força das ideias libertárias burguesas. Pelo contrário, o acolhimento do estilo de vida autónomo (“freelance”) reflete o oposto: a alienação do trabalho que muitos sofrem em resultado de suas experiências de labuta em trabalhos de entorpecimento mental dentro de empresas capitalistas gigantescas e sem rosto. Como explica, uma vez mais, o New York Times:

 

"Os biscates mantêm a perspectiva de auto-gestão e variedade, com os trabalhadores a assumirem diversas tarefas de sua escolha e a construir os seus próprios horários. Em vez de labutar a mando de alguma corporação sem rosto, eles trabalham para os seus pares" (14).

 

Em vez de ser apenas mais uma peça na máquina, há um forte desejo de estar ao comando de nossas próprias vidas - algo que, evidentemente, não estamos, ao trabalhar das 9 às 17 e vendendo a nossa força de trabalho para os grandes monopólios que têm realmente a sociedade sob o seu controlo. A decisão - a "escolha" - de trabalhar na economia por pedido, portanto, está a ser tomada por muitos como um ato de rebelião; uma tomada de posição contra o sistema.

 

Mas esta rebelião é a do indivíduo – e como indivíduos, somos impotentes. Enquanto alguns poderão encontrar uma salvação temporária, pessoal, na vida como "tarefeiro", não há qualquer salvação para a grande maioria por este caminho de concorrência intensificada. O trabalho autónomo (“freelance”) não nos dá qualquer controle real - não enquanto os bancos e as grandes empresas permanecerem em mãos privadas, tomando todas as decisões importantes na sociedade. E, mesmo ao nível individual, tudo o que o auto-emprego e o trabalho autónomo fazem é substituir o domínio esmagador e a exploração de um trabalhador na empresa, por uma vida de insegurança, concorrência e precariedade.

 

Ao mesmo tempo que aliena os trabalhadores do trabalho, a economia por pedido e da "partilha" tem aumentado a nossa alienação uns dos outros. Nossas interações com os outros agora têm cada vez mais lugar através de uma aplicação informática (“app”) e uma lista de preços ou de perfis. Marx explicou, ao longo de seus escritos, como uma tal alienação era inerente dentro de uma sociedade dominada pelo dinheiro e pelas mercadorias. Agora tudo tem sido - ou pode ser - mercantilizado, transformando todas as relações humanas em relações de dinheiro.

 

Como observa o antropólogo anarquista David Graeber, o capitalismo hoje parece ser caracterizado por uma proliferação de "empregos de merda" (“bullshit jobs”) (15) - aparentemente sem sentido, tremendamente chatos e que não desempenham qualquer função socialmente útil. Mas como explica The Economist na sua resposta a Graeber (16), esses empregos desempenham efetivamente um papel na sociedade – as empresas capitalistas não empregam pessoas nem gastam dinheiro em folhas de salários desnecessariamente, pois que isso iria subtrair aos seus lucros. Muitos dos trabalhos que Graeber identifica como sendo “de merda” estão em setores que, claramente, são necessários apenas sob o capitalismo, devido à concorrência e à propriedade privada: o obeso sector jurídico; a publicidade e marketing; empresas financeiras e fundos de risco, etc.. E, claramente, tais empregos e sectores desapareceriam sob uma sociedade socialista, com o tempo de trabalho liberado nesse processo a ser canalizado para a resolução de grandes necessidades, tais como pesquisa científica, saúde, educação e energia verde.

 

O que a abundância de "empregos de merda" demonstra, realmente, afirma The Economist, é o imenso e insondável nível de divisão do trabalho que o capitalismo moderno criou na economia, com os processos de produção a ser divididos e decompostos em tarefas repetitivas e aparentemente triviais. É esta incrível divisão do trabalho, com os trabalhadores a ser escravizado puramente no interesse dos lucros dos patrões, que levou ao aumento do sentimento de alienação que os trabalhadores hoje sentem em relação aos seus empregos.

 

Como Marx e Engels explicam em A Ideologia Alemã:

 

“... a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de como, enquanto os homens se encontram na sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência...” (sublinhado meu, A.B.)

 

Sob o socialismo, porém, como Marx e Engels explicam logo de seguida:

 

"... cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico” (17) (sublinhado meu, A.B.).

 

De fato, para muitos, a promessa de "variedade", "liberdade" e "libertação" oferecida pelo auto-emprego na economia por pedido pode até soar como a máxima de Marx e Engels acima citada sobre o socialismo e a capacidade para fazer uma coisa hoje e outra amanhã; caçar pela manhã, pescar à tarde, criar gado à noite, fazer crítica depois do jantar.

 

Todavia, como Engels sublinha em outro lugar, a "ascensão do homem do reino da necessidade para o reino da liberdade" só é possível, quando "a anarquia na produção social for substituída por uma organização sistemática e definitiva"; só então "a luta pela existência individual desaparecerá"; só então a humanidade será "finalmente separada do resto do reino animal, emergindo da simples condição animal de existência para uma condição verdadeiramente humana” (18).

 

Somente quando a humanidade for livre seremos todos livres individualmente. Somente quando houver um plano democrático e racional de produção poderemos garantir a todos um futuro seguro, com uma casa, um emprego e um salário decente. E só quando tivermos o controlo dos meios de produção - da tecnologia e da riqueza na sociedade - estaremos realmente no controle de nossas próprias vidas.

 

“As condições que cercam o homem e até agora o dominam, colocam-se, a partir desse instante, sob seu domínio e seu comando e o homem, ao tomar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são agora aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na história colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então, ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade” (19).

 

Porquê agora?

 

O facto de as economias por pedido e da "partilha" terem ganho proeminência na sequência do colapso de 2008 não é coincidência. Para começar, como explicamos acima, são as crescentes fileiras do "exército industrial de reserva" e a chaga permanente do desemprego em massa que têm alimentado a oferta aparentemente infinita de trabalho barato, por conta própria, de que tanto depende a economia por pedido.

 

Como sublinha Jeff Tennery de PSFK.com:

 

"Em 2008, quando o mercado colapsou e os empregos a tempo inteiro se evaporaram, a geração do milênio que se formou na faculdade ficou com escassas oportunidades de garantir um emprego seguro. Este grupo particular ficou com muito poucas escolhas, para além de se mudar para a cave dos pais e trabalhar em empregos à experiência que não correspondem às suas habilitações ou interesses" (20).

 

Enquanto isso, a demanda por serviços por procura disparou; não porque as pessoas estejam mais ricas ou mais "preguiçosas", mas porque anseiam desesperadamente por alguma conveniência e lazer. Apesar da proliferação de dispositivos de "economia de tempo", estamos mais ocupados, estressados e ansiosos do que nunca. O aumento da produtividade oferecido pela automação e pela tecnologia significou maiores lucros para uma pequena elite, não mais tempo de lazer para as massas. Todos os benefícios se concentraram no topo, tanto em termos de tempo como de dinheiro.

 

Os trabalhadores, em todos os lugares, estão tão espremidos no seu tempo, pela cadência e ritmo intensos da vida sob o capitalismo, que estão dispostos a pagar a alguém de fora, mesmo pelo mais básico dos serviços. O tempo tornou-se um luxo para os privilegiados. Daí o apelo da economia por pedido para as pessoas comuns.

 

Em termos de economia da "partilha", fica claro que a crise em curso do capitalismo empobreceu milhões e abalou estilos de vida. Em resultado disso as pessoas estão procurando maneiras alternativas, mais baratas, de viver e consumir. Famílias da classe trabalhadora - anteriormente dependentes de uma bolha de crédito em expansão para fazer quaisquer grandes compras - são agora obrigadas a alugar (perdão, a "partilhar"), como nota The Economist:

 

"Não é por acaso, certamente, que muitas empresas de aluguer entre pares foram fundadas entre 2008 e 2010, no rescaldo da crise financeira global. Alguns vêem a partilha, com o seu mantra de que «o acesso supera a propriedade», como um antídoto pós-crise ao materialismo e ao consumo excessivo" (21).

 

Para os tecno-utopistas, a ascensão da economia da "partilha" / por pedido é apenas a realização de uma boa ideia tornada realidade. Alguns codificadores inteligentes e empreendedores entusiastas bateram na cabeça e - voilà! - nasceu uma nova economia!

 

Mas o que o acima exposto demonstra, pelo contrário, é que a tecnologia por trás da economia da "partilha" / por pedido não se limita a cair do céu, como um maná divino. Como marxistas, somos materialistas - ou seja, entendemos que todas as ideias na sociedade (incluindo as de ciência e tecnologia) podem operar apenas dentro dos limites impostos pelas condições materiais. Por outras palavras, para que qualquer tecnologia se firme na sociedade, as condições materiais para o seu crescimento e desenvolvimento devem existir.

 

Um exemplo comum dado para provar este ponto é o do motor a vapor. Apesar das alegações de que foi James Watt, o engenheiro escocês, que desenvolveu o motor a vapor, foi, de facto, Heron de Alexandria, um matemático grego antigo, o primeiro creditado por ter inventado um motor a vapor. Mas a máquina a vapor de Heron, inventada na viragem para o primeiro milênio, não era nada mais do que um brinquedo.

 

Dentro de uma economia baseada num abundante fornecimento de escravos, ferramentas para melhorar a produtividade - como o motor a vapor - não desempenham qualquer papel. Só com o desenvolvimento do capitalismo e do trabalho assalariado, no qual a capacidade do trabalhador para trabalhar é adquirida por um período definido de tempo (em vez de se comprar o próprio trabalhador, como é o caso sob a escravatura), é que passou a haver um incentivo para investir em dispositivos e técnicas propulsores da produtividade.

 

No caso da economia da "partilha" / por pedido, como explicamos acima, o colapso e a crise foram necessários para criar as condições em que novos modelos de negócios pudessem florescer: desemprego em massa; austeridade e empobrecimento; e crescente desigualdade. A este respeito, a ascensão da economia da "partilha" e da economia por pedido não são o produto de um qualquer génio individual, como os capitalistas gostariam de reivindicar, mas sim - de novo o dizemos - um reflexo do impasse, estagnação e crise do sistema capitalista.

 

O pequeno é bonito (“Small is beautiful”)

 

Com o crescimento da economia da "partilha" / por pedido, houve uma ressurgência da retórica do “pequeno é bonito” que era popular há umas décadas atrás. A ideia, nessa altura, abraçada pela burguesia liberal e pela pequena burguesia, era que a economia seria impulsionada, não por multinacionais gigantescas, mas por uma vaga de empresas menores e mais inovadoras.

 

A ascensão da economia baseada na internet e nas aplicações informáticas (“app”), onde empresas neófitas (“startups”) podem chegar a avaliações de bilhões com uma equipa esquelética de pessoal, deu um novo sopro de vida ao movimento "small is beautiful". Como nas corridas ao ouro norte-americanas do século XIX, a promessa é feita hoje de que qualquer jovem empreendedor pode ficar rico rapidamente - tudo o que ele precisa é ter uma boa ideia e um montão de entusiasmo e audácia. Como escreveu Mark Twain: Há ouro nessas estuporadas montanhas! (“There’s gold in them thar hills!”)

 

Estes apelos eufóricos e jubilosos são ouvidos frequentemente, no início de cada nova bolha especulativa. Marx descreveu a natureza e a dinâmica de tais bolhas, em O Capital, lembrando que elas decorrem da natureza anárquica do mercado capitalista: um novo mercado se abre; os pioneiros extraem superlucros, na ausência de concorrência; cria-se uma mentalidade de rebanho, com hordas de investidores a precipitarem-se em tropel, com medo de perderem a festa; o sector torna-se inchado, com excesso de capacidade; e a crise se instala, encontrando-se os capitalistas sobrecarregados com dívidas que não podem pagar, em resultado de empréstimos pedidos no pressuposto de lucros que não poderão nunca ser realizados.

 

Este é o padrão de todas as bolhas, dos casos mais recuados, como a febre holandesa das tulipas no início do século XVII, ao caso contemporâneo do gás de xisto norte-americano (22). Agora, com grandes tesouros em dinheiro acumulando-se nas mãos dos capitalistas, sem qualquer via aberta para investimento rentável, os preços nos mercados de ações e o dinheiro apostado nas “startups” começam a estar cada vez mais separados do estado real da economia.

 

Não temos que recuar muitos anos para encontrar o mais recente exemplo na indústria da tecnologia: o da bolha da internet na virada para o novo milênio - uma bolha que estourou, deixando na sua esteira uma aguda recessão económica.

 

Hoje, novas empresas baseadas em tecnologia informática são avaliadas em montantes copiosos. Pinterest, WhatsApp, Snapchat e Instagram foram avaliadas, respetivamente, em US$11 bilhões, US$19 bilhões, US$20 bilhões e US$35 bilhões - e no entanto nenhuma delas tem qualquer fonte de rendimento. Todos os sinais de uma nova bolha tecnológica estão aí; novamente, outro reflexo do enorme excesso de produção existente à escala mundial e da escassez de lugares verdadeiramente rentáveis para os ricos colocarem o seu dinheiro.

 

Entretanto, os investidores estão despejando dinheiro na economia da "partilha" / por pedido. A AirBnB e a Uber, avaliadas, respetivamente, em US$26 bilhões e US$41 bilhões, recolheram cada uma delas US$8 bilhões em fundos (23), sem ainda terem produzido qualquer lucro para os seus investidores. Todo esse dinheiro está sendo adquirido dos investidores com a promessa de que estas empresas vão solidificar para si próprias uma posição de monopólio e, consequentemente, ser capazes de gerar super-lucros num futuro não muito distante.

 

Na verdade, o facto de empresas como AirBnB e Uber terem de se estabelecer como monopólios antes de poderem dar um lucro é um potente soco na cara do argumento "small is beautiful". A indústria da tecnologia, tantas vezes elogiada pelas suas “start-ups” dinâmicas e de rápido crescimento, ainda é - como todos os outros sectores - dominada por monopólios. Apple, Google, Facebook e Amazon: todos estes nomes estabelecidos e gigantes multinacionais têm uma posição de quase-monopólio em seus respectivos mercados. E, como demonstra a compra da Instagram e da WhatsApp pelo Facebook, o pequeno irá sempre acabando por ser engolido pelo grande.

 

O mesmo vale também para a economia "da partilha". Por exemplo, a Zipcar, uma empresa de "partilha" de carros, pioneira na economia "da partilha", foi comprada pela Avis, uma enorme multinacional de aluguer de automóveis, no início de 2013. Entretanto, enquanto empresas como a AirBnB se promovem a si próprias como sendo plataformas para as pessoas comuns fazerem algum dinheirito alugando os seus quartos vagos, um estudo dos negócios dessa mesma AirBnB em Nova York (24) descobriu que aproximadamente 50% da receita gerada nesta grande metrópole veio daqueles com várias ofertas de imóveis - ou seja, senhorios tradicionais. Da mesma forma, três quartos dos negócios da Airbnb são para locação de casas inteiras - claramente não são pessoas comuns fazendo algum dinheirito de bolso para arredondar o fim do mês.

 

A revista The Economist sublinha esta perspectiva de dominação da economia da "partilha" / por pedido pelos grandes negócios:

 

"O que parece ser um novo modelo disruptivo provavelmente vai acabar por ser misturado em modelos existentes e abraçado pelos operadores dominantes, como tem acontecido frequentemente no passado. Tim O'Reilly, da O'Reilly Media, observador há longo tempo de tendências da internet, diz que essa consolidação é inevitável. "Quando surgem novos mercados, frequentemente parecem mais democratizantes do que eles acabam se tornando", diz ele. A ideia de alugar a uma pessoa, em vez de a uma empresa sem rosto, vai sobreviver, ainda que o mesmo não aconteça com o idealismo inicial da economia da partilha" (25) (sublinhados nossos, A.B.).

 

A economia da "partilha" / por pedido dá uma ilusão de descentralização, por causa da sua natureza entre pares, porque o trabalho é distribuído a trabalhadores independentes e porque toda a interação se produz através de uma aplicação informática (“app”); a realidade, porém, é que estes mercados são ainda dominados por monopólios. Além disso, embora as coisas se passem entre pares, há ainda um nível incrível de programação e centralização envolvido, como há em qualquer grande negócio: planejamento interno da produção, para aumento da eficiência, redução de custos e aumento dos lucros.

 

Esta é ainda outra contradição absurda do capitalismo: enormes níveis de programação dentro das empresas, em termos de trabalho, infraestruturas e recursos (tudo em nome do lucro, é claro); e no entanto completa anarquia entre empresas, com a alocação de recursos à escala social sendo deixada ao cuidado da "mão invisível" do mercado.

 

Como em qualquer empresa com fins lucrativos, existe certamente planejamento e centralização dentro dos principais monopólios da economia da "partilha" / por pedido, como AirBnB e Uber; a diferença é que muita dessa programação é automática (devido ao software inteligente e aos algoritmos) e espacialmente distribuída. Um planejamento está ainda em operação; ele simplesmente não está localizado sob o mesmo teto, claramente visível e identificável, como no caso de uma fábrica ou um escritório.

 

Acima de tudo, isto serve para demonstrar o potencial existente para a programação de toda a economia de uma forma racional e democrática, se ao menos os monopólios fossem arrancados às mãos privadas e colocados sob propriedade comum. Empresas como a AirBnB e TaskRabbit provam que existe já hoje a tecnologia indispensável para termos um planejamento genuinamente democrático da produção; para sermos capazes de compartilhar efetivamente a riqueza e os recursos da sociedade de uma forma eficiente e equitativa; para que as pessoas comuns possam participar directamente na direção da sociedade, sem a necessidade de um aparato estatal burocrático.

 

Onde quer que olhemos, nossas vidas estão dominados por monopólios; e são estas multinacionais gigantes que atualmente tomam todas as decisões reais na sociedade. A introdução da internet, a mídia social e os telefones inteligentes não fizeram nada para mudar isto. Podemos estar mais ligados em rede uns com os outros do que nunca, mas as redes ainda são, todas elas, possuídas e controladas pelo grande capital. Apenas temos que olhar para a indústria da mídia (26) - propriedade de oligarcas e dominada por apenas um punhado de empresas - para ver como, apesar de uma infinidade de blogues independentes, etc., as notícias e informações que recebemos ainda são o produto de um grupo de gângsteres, tais como Murdoch e companhia.

 

Ao mesmo tempo, a desigualdade está a aumentar e a riqueza está mais concentrada do que nunca, como demonstrado pelos recentes números publicados pela Oxfam (27). Esta entidade relatou que, até ao final de 2015, está previsto que os 1% mais ricos do mundo tenham tanta riqueza quanto o resto da população do planeta junto.

 

Tudo isso é uma demonstração impressionante da análise do capitalismo feita por Marx; de como as leis e a dinâmica da concorrência conduzem necessariamente à concentração e centralização; da tendência orgânica para o mercado livre se transformar no seu oposto monopolista. Maugrado toda a conversa de que "o pequeno é bonito", parece que o mundo continua ainda, muito claramente, a ser dominado pelos grandes.

 

A solução: boicotes; a lei; ou organização?

 

No mundo da economia da "partilha" / por pedido, uma série de "soluções" têm sido apresentadas numa tentativa de promover o lado progressivo destes modelos recém-desenvolvidos, ao mesmo tempo que são abolidos os seus piores excessos e sintomas mais feios.

 

A solução mais simplista proposta é a de que os clientes e usuários boicotem as empresas aproveitadores que estão no coração da economia da "partilha" / por pedido. No entanto, tais ações individuais, ainda que cheias de boas intenções e moral elevada, fazem pouco para resolver as principais contradições no âmago destes crescentes modelos e plataformas. Com efeito, ao boicotar, o lado progressivo destes métodos e tecnologias potencialmente revolucionários é perdido completamente - o bebê é jogado fora com a água do banho.

 

Sim, existe a possibilidade hipotética de criar novas versões, menos moralmente duvidosas, de alguns serviços por pedido e restaurar o espírito original da reciprocidade altruísta para a economia da partilha. Mas, como com todos os experimentos utópicos de pequena escala, tais tentativas permanecerão ilhas de socialismo num mar de capitalismo, incapazes de competir com as grandes empresas de fins lucrativos dos setores "partilha" / por pedido, com seu acesso ao capital, salários mais baixos, e economias de escala.

 

De forma importante, uma tentativa de boicotar as maçãs podres e promover os melhores exemplos, em última análise, não faz nada para resolver a questão fundamental: a da propriedade privada e da anarquia do mercado. São estas, e não a moral deste ou daquele capitalista, que são a força motriz por trás das tentativas de espremer os trabalhadores na economia por pedido. E não é a ação individual mas a ação coletiva que irá permitir aos trabalhadores que ripostem na luta. Como Marx afirmou, "a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras" (28).

 

Na verdade, a fim de resistir à corrida para o fundo que a economia por pedido acelera, fala-se de tentar organizar e sindicalizar aqueles que atualmente trabalham - atomizados - neste setor. Tem havido histórias de motoristas Uber em algumas cidades formarem sindicatos. Noutro local, um sindicato de "freelancers" (29) foi formado para tentar proteger dos níveis mais extremos de exploração as pessoaas sujeitas à economia por pedido.

 

Neste momento, os trabalhadores independentes que oferecem seus serviços por via destas aplicações informáticas (“apps”) estão competindo entre si, em preço e qualidade, com classificações sendo dadas aos "tarefeiros", etc., pelos seus clientes, significando que uma intensa concorrência entre trabalhadores é assim explícita. A regulação e / ou sindicalização têm sido sugeridas para resistir a isto, incluindo-se entre as possibilidades discutidas a introdução de um salário mínimo para todos aqueles que trabalham na economia por pedido. Qualquer que seja a forma como se olha para a questão, as regras do jogo estão atualmente firmemente dispostas em favor dos capitalistas.

 

Como comentou o economista Dean Baker ao New York Times, "Há pessoas que estão a ser conduzidas à auto-exploração por formas para as quais há regulamentações preventivas em vigor contra os empregadores" (30). Stanley Aronowitz, um pesquisador da City University de Nova Iorque, afirmou, neste mesmo artigo, que "poderia muito bem chamar-se-lhe escravatura assalariada, em que todas as cartas são detidas, por intermédio da tecnologia, pelo patrão, quer seja a empresa intermediária ou o cliente".

 

Sugestões semelhantes têm sido feitas em relação à economia da "partilha". Atualmente, as grandes empresas na economia da "partilha" não oferecem qualquer proteção para os seus fornecedores ou clientes. Por exemplo, os anfitriões ou convidados da Airbnb são responsáveis por danos que seriam normalmente cobertos pelo hotel ou albergue num negócios hoteleiro normal. A mesma situação existe na economia por pedido, com os motoristas Uber a terem toda a responsabilidade pela manutenção e seguro dos seus veículos. Mais uma vez, são os trabalhadores que são obrigados a pagar todos os custos, enquanto os patrões colhem os lucros. E, novamente, a solução proposta por alguns, como Juliet Schor, uma acadêmica de Boston que escreve para o sítio The Great Transition, é organização e regulamentação:

 

"Uma alternativa... é aquela em que as entidades partilhantes se tornam parte de um movimento mais amplo que procura redistribuir a riqueza e promover a participação, a proteção ecológica e a conexão social. Isso só acontecerá através de organização, até mesmo a sindicalização, dos usuários. Na verdade, a questão de saber se os prestadores devem organizar-se está agora firmemente na ordem do dia, embora seja ainda muito cedo para saber como as coisas vão evoluir".

 

"A Airbnb começou a incentivar os usuários a organizarem-se... A empresa quer que estes grupos façam pressão por regulação favorável. Mas eles podem desenvolver agendas próprias, inclusive formular exigências à própria empresa, como a definição de preços mínimos para os fornecedores, fazer com que o risco corra por conta das plataformas ou reduzir as margens de lucro excessivas dos empresários e investidores capitalistas. Nas relações de trabalho, onde a necessidade de organização é talvez ainda mais aguda, os prestadores poderiam exigir salários mínimos" (31).

 

O capitalismo tem sido sempre uma história, por um lado, de os patrões fazerem tudo em seu poder para atomizar e explorar os trabalhadores; e, por outro lado, de os trabalhadores, ao princípio desorganizados, se juntarem, tomarem ações coletivas e ripostarem na luta.

 

Por exemplo, no início do século XX, o trabalho nas docas foi caraterizado pelas sua natureza extremamente precária, sendo os trabalhadores obrigados a apresentarem-se todos os dias na esperança de serem selecionado para os poucos empregos oferecidos. Na década de 1970, porém, o estivadores estavam altamente organizados - uma das seções mais militantes da classe trabalhadora. Hoje, entretanto, vemos nos E.U.A. greves dos trabalhadores da indústria da restauração rápida (“fast food”), anteriormente conhecida por ser um dos sectores laborais mais difíceis de organizar.

 

Em todos estes casos, é através da luta que a organização ocorre. Empurrados para um canto pelo insaciável apetite de lucros dos capitalistas, os trabalhadores não organizados na economia por pedido de hoje poderão ser um componente poderoso do movimento laboral de amanhã.

 

Fala-se muito, neste momento, da utilização de métodos legais para melhorar a sorte dos que estão no setor por pedido. Em particular, há uma variedade de casos a serem prosseguidos com vista a tratar da situação jurídica dos trabalhadores na economia por pedido - por exemplo, a Uber está sendo levada a tribunal por não classificar os seus motoristas como empregados, mas sim como "contratantes independentes". A diferença não é trivial, pois que o estatuto de trabalhador é acompanhado de algumas garantias, provisões e transferência de responsabilidades para a empresa.

 

É importante, no entanto, manter um certo sentido das proporções. Enquanto os processos judiciais individuais podem ser favoráveis aos trabalhadores envolvidos nesta ou naquela empresa por pedido, tais vitórias seriam em grande medida pírricas, tendo lugar, como têm, no meio de um ataque frontal completo e global contra os trabalhadores, os seus salários, empregos e direitos sindicais. Como nota Juliet Schor no seu artigo para The Great Transition:

 

"Parte da dificuldade em avaliar o impacto destas novas oportunidades de renda é que elas estão sendo introduzidas durante um período de alto desemprego e rápida reestruturação do mercado de trabalho. As condições de trabalho e proteções legais já estão sendo erodidas, os salários reais estão em declínio e a participação do trabalho na renda nacional nos E.U.A. caiu para mínimos históricos. Se as condições no mercado de trabalho continuarem a piorar para os trabalhadores, as suas condições continuarão a deteriorar-se, e não vai ser por causa das oportunidades de partilha. Alternativamente, se os mercados de trabalho melhorarem, os partilhantes poderão exigir mais das plataformas, porque terão melhores alternativas" (32).

 

Em última análise, enquanto alguns grupos poderão ser capazes de melhorar as suas condições através dos tribunais, a lei continua a ser uma parte do Estado capitalista, destinada a proteger os direitos de propriedade privada e os lucros dos ricos.

 

Face ao ataque geral contra a classe trabalhadora pela classe dominante, portanto, é necessário que haja uma resistência geral e um contra-ataque por parte dos trabalhadores, concebido não apenas para ganhar este ou aquele caso judicial, esta ou aquela reforma particular; mas como movimento político de massas que tenha como alvo a abolição do Estado capitalista e das relações de propriedade burgueses, com a introdução de um plano socialista de produção que envolva a propriedade comum e o controlo democrático dos trabalhadores.

 

Como primeiro passo, a exigência devia ser que as grandes empresas lucrativas da economia da "partilha" / por pedido fossem nacionalizadas e transformadas em serviços públicos. Se a Uber for parte de uma rede nacionalizada, democraticamente controlada, de transportes públicos (incluindo os trens, ônibus e bicicletas de aluguer), então o transporte público poderá ser planejado com níveis extraordinários de eficiência a um baixo custo. Aos condutores poderão ser garantidas condições decentes e um salário razoável, sem necessidade de competir uns contra os outros. Eventualmente, com a automação e o advento dos carros sem condutor, estes poderão ser substituídos e providos de educação e treino para se deslocarem para outros trabalhos.

 

Entretanto, uma AirBnB gerida de forma pública - juntamente com a nacionalização das principais empresas de hotelaria e um programa de habitação social de massas - poderia ser usada para fornecer um lar para toda a gente e alojamentos de férias baratos para todos. Combinando isto com um programa de nacionalização dos bancos e das firmas financeiras, o investimento poderia ser canalizado para o transporte público, habitação e muitos outros setores. A escassez nas necessidades básicas da sociedade e o flagelo do emprego precário poderiam ser eliminados de um só golpe.

 

Os grilhões do capitalismo e a necessidade de uma revolução

 

Ao mesmo tempo, questões legais relacionadas com a economia da "partilha" estão sublinhando as contradições do capitalismo; em particular, o grilhão em que a propriedade privada se tornou, em termos de progresso. Por um lado, com a ascensão da economia da "partilha", existe um claro potencial para organizar e distribuir os recursos da sociedade de uma forma racional, justa e eficiente. Por outro lado, sob o capitalismo, as empresas como AirBnB deram origem a toda uma série de processos judiciais, com inquilinos sendo processados por proprietários por subarrendarem os seus quartos. A necessidade de distribuir de forma eficiente - por exemplo – o alojamento, está assim entrando em conflito com as leis, que foram concebidas para proteger os direitos de propriedade (privada) dos proprietários e os seus rendimentos em rendas.

 

Tais processos judiciais só vêm provar o argumento geral de Marx, esboçado no Prefácio a Para a Crítica da Economia Política, de que:

 

"Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas" (sublinhados nossos, A.B.) (33).

 

Por outras palavras, as relações jurídicas - isto é, as relações de propriedade – que temos dentro da sociedade capitalista não são coerentes com o potencial científico e tecnológico criado por esse mesmo capitalismo. E a presença de uma tal contradição assinala, observa Marx, a aurora de "uma época de revolução social".

 

Como Juliet Schor explica em seu artigo intitulado "Debatendo a Economia da Partilha":

 

"...estas novas tecnologias de atividade económica entre pares são potencialmente ferramentas poderosas para a construção de um movimento social centrado em práticas genuínas de partilha e cooperação na produção e consumo de bens e serviços. Mas realizar esse potencial exigirá democratizar a propriedade e gestão das plataformas."

 

"A economia da partilha tem sido movimentada por excitantes novas tecnologias. A facilidade com que indivíduos, mesmo estranhos, podem agora se conectar, trocar entre si, partilhar informações e cooperar é verdadeiramente transformadora. Essa é a promessa das plataformas de compartilhamento acerca da qual praticamente todos concordamos. Mas as tecnologias são apenas tão boas quanto o contexto político e social em que elas são empregues. Programação (“software”), financiamento coletivo (“crowdsourcing”), e a informação livre (“information commons”) dão-nos ferramentas poderosas para a construção de solidariedade social, democracia e sustentabilidade. Agora, a nossa tarefa é construir um movimento para aproveitar esse poder" (sublinhados nossos, A. B.) (34).

 

A Professora Schor dá-nos uma perspetiva materialista perspicaz sobre a questão dos novos modelos e tecnologias que estão surgindo. Como já discutimos anteriormente, e como Schor sublinha aqui, sob o capitalismo, o potencial destas tecnologias permanecerá apenas isso mesmo: um potencial.

 

"Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução" (35).

 

Estas palavras de Marx retratam a situação de hoje. O potencial é enorme, como Paul Mason (36) e outros têm apontado: a possibilidade de alocar recursos eficientemente e de forma equitativa; de gerir democraticamente a produção e a sociedade de uma forma racional; e de aumentar consideravelmente o nível de vida, enquanto simultaneamente se reduzem as horas do dia de trabalho. A máxima de Marx “de cada um conforme as suas capacidades; a cada um conforme as suas necessidade", poderia ser facilmente alcançada.

 

Mas enquanto estivermos presos dentro do capitalismo, este potencial será desperdiçado. Enquanto os gigantescos monopólios - do mundo das tecnologias informáticas, do setor financeiro e outros - permanecerem em mãos privadas, a anarquia do mercado vai continuar a reinar.

 

Todas as tentativas de "democratizar" e "socializar" estas novas plataformas e tecnologias entrarão em conflito com as relações legais, sociais e de propriedade que existem atualmente - projetadas para defender a propriedade privada e os lucros dos 1%. Uma ruptura revolucionária com o capitalismo será necessária. Convidamos a que se juntem a nós na luta pela revolução, para que possamos libertar o potencial criativo e tecnológico que se perfila diante da humanidade no nosso tempo.

 

 

 

 

 

 

(*) Adam Booth envolveu-se pela primeira vez em política por altura das grandes manifestações de protestos contra a guerra no Iraque, em 2003. Foi muito ativo no movimento estudantil britânico. Fundou a Cambridge Marxist Society e participa atualmente na formação da sociedade marxista da London School of Economics, para além de ser frequentemente orador em reuniões de sociedades marxistas em universidades por todo o Reino Unido. Há cerca de uma década tem sido ativista e redator da revista Socialist Appeal, da International Marxist Tendency, sendo atualmente seu editor. Foi nesta revista que surgiu este ensaio, dividido em três partes, de que traduzimos na íntegra as duas primeiras e apenas parcialmente a última. Por esse motivo, o título do conjunto foi alterado de acordo com o autor. Adam tem por interesses principais a economia marxista, o ambiente e a relação entre capitalismo, ciência e tecnologia. A tradução é de Ângelo Novo, em trabalho de (esta sim, genuína) partilha com os nossos companheiros brasileiros de Esquerda Marxista.

 

 

 

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NOTAS:

 

(A) [NOTA DO TRADUTOR] Em todo este artigo traduzimos billion por bilhão, com o significado de mil milhões ou 109.

 

(1) Suzanne McGee, “Tempted to make money off Airbnb or Uber? Know the risks first”

 

(2) Anthony Kalamar, "Sharewashing is the New Greenwashing". Sublinhado meu (A.B.).

 

(3) Tom Slee, “Sharing and Caring”.

 

(4) Natasha Singer, “In the Sharing Economy, Workers Find Both Freedom and Uncertainty” .

 

(5) Tom Slee, “Sharing and Caring” .

 

(6) Adam Booth, “Marx’s Capital: Chapters 16-22 – Wages”.

 

(7) Natasha Singer, “In the Sharing Economy, Workers Find Both Freedom and Uncertainty”.

 

(8) Ibid.

 

(9) Sam Ashton e Adam Booth, “Inflation, wages, and unemployment: lies, damn lies, and statistics”.

 

(10) Natasha Singer, “In the Sharing Economy, Workers Find Both Freedom and Uncertainty”.

 

(11) Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, “The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation?”

 

(12) The Economist, “The onrushing wave”.

 

(13) Don Charlton, “The Rise Of The Gig Worker In The Sharing Economy”.

 

(14) Natasha Singer, “In the Sharing Economy, Workers Find Both Freedom and Uncertainty”.

 

(15) David Graeber, “On the phenomenon of bullshit jobs”.

 

(16) The Economist, “On «bullshit jobs»".

 

(17) Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, I. Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista.

 

(18) Friedrich Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico.

 

(19) Ibid.

 

(20) Jeff Tennery, “Is the Sharing Economy Creating Quality Jobs?”

 

(21) The Economist, “All eyes on the sharing economy”.

 

(22) The Economist, “In a bind”.

 

(23) The Economist, “To fly, to fall, to fly again”.

 

(24) Tom Slee, “Airbnb in New York: Economical With the Truth”.

 

(25) The Economist, “All eyes on the sharing economy”.

 

(26) Daniel Morley, “Our Cherished Freedom of Speech Myth”.

 

(27) Jon Slater, “Richest 1% will own more than all the rest by 2016”.

 

(28) V. Estatutos Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores.

 

(29) V. Independents. United.

 

(30) Natasha Singer, “In the Sharing Economy, Workers Find Both Freedom and Uncertainty”.

 

(31) Juliet Schor, “Debating the Sharing Economy”.

 

(32) Ibidem.

 

(33) Prefácio a Karl Marx, Para a Crítica da Economia Política.

 

(34) Juliet Schor, “Debating the Sharing Economy”.

 

(35) Karl Marx, Prefácio a Para a Crítica da Economia Política.

 

(36) Paul Mason, Pós-capitalismo. Guia para o nosso futuro, Objectiva, Lisboa, 2016.