A revolução de setembro de 1836 (*)

   

 

 

Victor de Sá 

Victor de Sá

 

 

I

Povo e oligarquia

 

 

Composição social no conceito de «povo»

 

Os cronistas dos acontecimentos ocorridos em Lisboa nos dias 9 e 10 de Setembro de 1836 referem-no-los sob a designação de uma revolução democrática ou popular, mas não dilucidam convenientemente as camadas sociais que participaram nesse conjunto maciço abrangido pelo conceito de «povo».

 

Qual a composição social do «povo», a quem os historiadores liberais atribuem a Revolução de Setembro? Como se comportaram na luta as diferentes camadas e como reagiram à perspectiva da vitória?

 

Que os acontecimentos se desenrolaram sob a pressão da grande maioria da população da capital e com o apoio das mais largas camadas sociais, isso é inegável. Confirmam-no tanto os testemunhos da época como a circunstância muito significativa de ter sido impraticável o plano esboçado na Corte de a rainha se refugiar na esquadra inglesa surta no Tejo - pela dificuldade de lá chegar através da cidade sublevada. O povo e as forças sublevadas dominavam inteiramente a capital. Isso demonstra, na realidade, a extensão democrática do movimento e a intensidade do apoio popular que recebeu.

 

Mas qual o carácter, o conteúdo objectivo, da Revolução? E quais as forças motrizes, as classes que a impulsionaram?

 

Isso não nos diz a historiografia portuguesa tradicional, que geralmente assenta a explicação dos acontecimentos na acção individual, providencialista, das personagens neles envolvidas, de mistura com motivações psicológicas, atribuindo a surpreendentes inconsequências que caracterizam a natureza humana ou a outras razões indeterminadas as situações aparentemente paradoxais que não cabem nesse quadro simplista de explicações.

 

O prejuízo individualista da historiografia liberal, que implica explicações de fundo subjectivo, torna-a incompatível com as exigências modernas da historiografia.

 

Que realidades sociais, mais sólidas e perduráveis que o simples capricho ou vontade individual, são capazes de mobilizar as multidões e pô-las a agir historicamente?

 

Precisamos de descobrir por detrás da actuação das personagens as forças sociais que elas representam e cujos interesses reflectem. A partir daí, tornar-se-ão compreensíveis muitas aparentes incongruências do proceder individual.

 

Cremos que, no caso que nos ocupa, essa via nos conduzirá à compreensão de tão complexo e importante fenómeno da história recente de Portugal - A Revolução de Setembro -, que a historiografia tradicional nos apresenta de um modo tão inconsequente e contraditório.

 

Consideremos portanto a situação do liberalismo português em que se insere a Revolução de Setembro.

 

Transferência da propriedade sob o liberalismo

 

A primeira fase do liberalismo português (1820-1823) não tinha sido suficientemente radical e renovadora para garantir a consolidação da nova ordem burguesa. E depois da subsequente reacção absolutista - irregular mas persistente, entre 1823 e 1834 -, durante a qual o País viu agravado, até pela guerra civil que adveio, o seu atraso económico e social (1), também o triunfo da causa de D. Pedro (1834) não correspondeu às aspirações das mais amplas camadas da própria burguesia. Até a fundamentação legal do novo regime estava comprometida desde o seu início. Na verdade, a Carta de 1826, imposta como estatuto fundamental, mesmo salvaguardando os privilégios reais contra as manifestações democráticas expressas na Constituição de 1822, foi desrespeitada pelo próprio «dador» ao usurpar em seu favor pessoal a regência nomeada durante a menoridade da rainha sua filha. Os direitos outorgados pela Carta seriam desrespeitados pela plutocracia dominante sempre que fosse necessário à defesa dos seus interesses imediatos.

 

Assim, se a Carta era, politicamente, a expressão de uma ditadura burguesa, por outro lado a vitória liberal de 1834 não deu a todas as camadas da burguesia as mesmas possibilidades de expansão económica.

 

A concentração da propriedade manteve-se sob o regime liberal, assim como subsistia na vigência do antigo, se bem que a extinção das ordens religiosas e a venda dos bens nacionais tivessem permitido desamortizar imensas parcelas do território nacional. Mas, na realidade, pela lei das indemnizações (de que foram beneficiários os emigrados, presos e homiziados durante o governo de D. Miguel) e pela política de empréstimos ao Estado, a propriedade transferiu-se dos antigos senhores feudais para os monopolistas do liberalismo.

 

Como se operou essa transferência de domínio económico? Fundamentalmente, através das leis de indemnizações, de extinção das ordens religiosas e da venda dos bens nacionais, bem como da política de empréstimos ao Estado.

 

Pela primeira delas, referendada por Agostinho José Freire em 1833 (31 de Agosto), os adeptos da ordem monárquico-absolutista eram declarados responsáveis pelas suas pessoas e bens de todos os prejuízos que os emigrados, presos e homiziados tivessem sofrido durante os cinco anos da emigração e governo de D. Miguel, atribuindo às câmaras municipais funções de magistratura para decidirem sobre estas causas em última instância.

 

A extinção das ordens religiosas foi decretada em 1834 (28 de Maio) pelo ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, com o apoio pessoal de D. Pedro e sob pressão dos credores do Estado. Por ela, os bens de 510 conventos de ambos os sexos, cujo rendimento total (dízimos, juros, esmolas, foros, capelas, etc.) foram avaliados em 1.162.112.000 réis (2), passaram à posse do Estado e foram incorporados nas vendas dos bens nacionais.

 

O decreto de venda dos bens nacionais, do mesmo ano (18 de Junho), da autoria do ministro da Fazenda, Silva Carvalho, que justificou esta medida como necessária para valer ao deficit do Estado, punha à venda em hasta pública os bens de mão morta acumulados durante o regime feudal - dos conventos, das capelas, das comendas, da Coroa, da Patriarcal, da Casa das Rainhas e da do Infantado. Por este processo, iriam reverter a favor dos capitalistas admitidos à sua compra todos os bens expropriados pelos decretos anteriores. Pela admissão dos títulos das indemnizações foram particularmente beneficiários desta transferência de propriedade os mais dedicados adeptos de D. Pedro, em especial os que o serviram desde a primeira hora e lhe aprovaram as suas medidas usurpadoras.

 

Grande burguesia latifundiária e financeira

 

A desamortização dos bens nacionais, por exemplo, iria atingir somas consideráveis. Até 1836 já tinha produzido 5.266,3 contos de réis; porém, o valor real das propriedades transaccionadas nesse regime subia ao duplo daquela quantia (3).

 

Em meados do século, Herculano, tomando em consideração o «péssimo método com que tais bens foram e têm sido incorporados na Fazenda e depois alienados», calculou entre 50 e 60 mil contos o produto geral da venda desses bens (4).

 

Os principais beneficiários desta transferência de propriedade foram, porém, os grandes capitalistas, e em número quase tão reduzido como o dos conventos extintos: 623 foi o número dos compradores de bens nacionais até 1836, enquanto as congregações religiosas extintas dois anos antes foram em número de 510.

 

Estes números mostram bem como a antiga concentração da propriedade feudal pouco se alterou no novo regime. Herculano não deixou passar em claro a circunstância de essa massa enorme de riqueza territorial ter caído «geralmente nas mãos de homens opulentos»: «Em muitos casos - diz - foi o rico proprietário que conglobou nos seus extensos prédios vastos prédios nacionais [...]. Outra parte serviu para converter muitos capitalistas em proprietários. Assim se anularam os mais importantes resultados que se deviam ter tirado da reivindicação parcial dos bens da Coroa para o património público e da extinção das ordens religiosas» (5).

 

A concentração da propriedade liberal substituiu-se à concentração feudal, diferindo apenas quanto aos titulares seus detentores e ao estatuto da propriedade, agora capitalista.

 

No despique pela apropriação destes bens imensos, que outrora eram pertença tanto da nobreza tradicional como da aristocracia eclesiástica, naturalmente que os senhores da nova ordem liberal, os que dispunham de pesada influência política e facilidades de crédito, foram os grandes beneficiários. Bem apregoou Silva Carvalho, no relatório do decreto de venda dos bens nacionais, que essa alienação favoreceria a multiplicação dos pequenos proprietários, oferecendo ao pequeno capital um emprego seguro e promovendo o progresso da agricultura. Ao contrário disso, porém, já no ano seguinte (Decreto de 3 de Novembro de 1835) o mesmo ministro abria praça para venda «por junto e num só lote» das lezírias do Tejo e Sado, para que fossem arrematadas por uma companhia para esse efeito especialmente constituída (6).

 

A repartição dos benefícios da venda dos bens nacionais pouco se alargou às camadas inferiores da burguesia liberal, que não puderam competir com os grandes senhores na partilha dos enormes domínios territoriais confiscados. Desse modo se constituiu uma grande burguesia latifundiária, que monopolizou em seu exclusivo proveito a Revolução Liberal, produzindo o descontentamento das restantes camadas burguesas.

 

Apenas a aristocracia financeira partilhava com a alta burguesia latifundiária o contrôle sobre o novo Estado liberal. E essa exercia um sólido domínio, graças ao deficit crescente, à Dívida Pública.

 

A dependência do novo Estado liberal perante a aristocracia financeira vinha já do tempo da emigração, e de modo algum se circunscrevia a um grupo de financeiros portugueses. Em Londres foram contratados sucessivos empréstimos: de dois milhões de libras, em 1833, com a firma M. Agustin Ardoin; de quatro milhões, em 1834, com a mesma firma e a J. & S. Ricard & Co.; de dois milhões, no ano seguinte, com a casa Rotschild; e de mais quatro milhões com esta mesma firma, em Abril de 1836, antes, pois, da Revolução de Setembro (7). Em 1835, o total da Dívida Pública atingia 55 mil contos de réis, e um ano mais tarde 70 mil (8).

 

A gravidade da Dívida Pública tinha servido para justificar as expropriações decretadas no início da monarquia constitucional. A acumulação dos empréstimos e dos encargos inerentes, produzindo uma situação de penúria crónica, colocava o Estado sob a dependência do poder financeiro crescente da alta burguesia. Quando da extinção do papel-moeda, em 1834, os títulos da Dívida Pública passaram a ser consignados aos rendimentos dos conventos extintos. Em 1836, mais de metade do produto da venda dos bens nacionais tinha sido paga nesses títulos: de 5.266,3 contos de réis, que fora o produto líquido da venda, o Tesouro só recebeu em dinheiro 2.158, e o restante em títulos.

 

Pela atribuição de títulos do Estado aos grandes beneficiários da venda dos bens nacionais identificaram-se as fracções da grande burguesia latifundiária e da grande burguesia financeira, igualmente empenhadas no domínio político do Estado como forma de assegurar a defesa dos seus privilégios económicos. A Carta constitucional era a sua bandeira comum.

 

O enriquecimento pela expropriação de riquezas, anteriormente acumuladas por outros, tem o seu complemento na concentração avara de todos os benefícios políticos e económicos alcançados pela Revolução Liberal. Essa preocupação faz que a oligarquia dominante hostilize quaisquer tentativas de reforma que possam subtrair à sua influência o poderoso contrôle exercido sobre o Estado.

 

Mobilização das camadas populares pela classe média

 

O monopólio exercido pela grande burguesia sobre o novo Estado liberal atirou para a vala comum do descontentamento público as restantes camadas burguesas, empenhadas na expansão económica dos sectores produtivos a que estavam ligadas. Esses interesses expressavam-se pela reivindicação de várias reformas: normalização da administração pública; equilíbrio orçamental; fomento da indústria; criação, enfim, de um verdadeiro mercado nacional, quer pela expansão das vias de comunicação e transporte quer pela integração dos domínios coloniais, etc.. Não terá sido por acaso que o programa político da Revolução de 1836 foi traçado na revista O Industrial Civilisador nas vésperas do levantamento popular de Setembro: reforma do Conselho do Estado, da Câmara Alta, do sistema eleitoral, e revogação do artigo que facultava aos ministros celebrarem tratados sem a aprovação das Cortes...

 

Reivindicar estas reformas no sistema político correspondia, na realidade, a arrancar as alavancas do Estado das mãos dos seus detentores. As camadas da burguesia afastadas da direcção do Estado exigiam reformas e providências administrativas que permitissem expandir as novas forças produtivas, latentes ainda em Portugal. Não encontrando no governo satisfação às suas exigências de reforma, tiveram de lançar-se à conquista do Poder em ataque frontal aos seus detentores.

 

Os interesses privados da burguesia industrial, pouco numerosa mas crescente, como os das camadas da média e da pequena burguesia, identificavam-se desse modo com as necessidades de progresso do País. Se a oligarquia governava à sombra da Carta, a oposição ergueria como bandeira a Constituição de 1822 e o inerente princípio da «soberania nacional».

 

Na oposição ao governo alinham industriais e artesãos, agricultores, pequenos comerciantes e gente nova acabada de sair da Universidade - médicos, advogados, magistrados, literatos, as capacidades, enfim, da classe média. Os advogados e os jornalistas exercem a função de doutrinadores, quer no Parlamento quer na imprensa.

 

Os interesses da grande burguesia não eram os interesses de toda a burguesia. Para resolver a contradição que se vai agudizando entre as duas facções opostas, a média vai atrair à sua causa a pequena burguesia e as camadas populares, mobilizando em proveito próprio o descontentamento generalizado à escala nacional. A classe média consubstancia então os conceitos de nação e de povo e considera-se chamada a desempenhar o seu papel histórico.

 

Essa mobilização, para a qual a média burguesia foi impulsionada pela crise económica de 1836, processou-se através de campanhas políticas e da imprensa, que nesse ano agitaram profundamente a opinião pública. Os clubes políticos dar-lhe-ão expressão orgânica preparando a Revolução.

 

Os abusos do Poder e os escândalos financeiros dos homens que o detinham mantinham a pequena burguesia moralmente indignada, o que emprestava à Revolução um sentido de justiça. A aliança daqueles homens com poderosos círculos financeiros e políticos exteriores imprimia a esta revolta um sentido nacional.

 

 

II

O ascenso popular em 1836

 

 

No dia 9 de Setembro de 1836 o povo de Lisboa respondeu aos apelos dos dirigentes democráticos saídos da actividade aglutinadora dos clubes políticos: a despeito das ordens e prevenções repetidas do governo, no sentido de impedir quaisquer manifestações ou festejos populares, ainda na manhã desse mesmo dia renovadas, a população da capital veio para a rua e dispensou entusiástica recepção aos deputados desembarcados no cais do Tejo, chegados do Norte para os trabalhos parlamentares da nova Câmara, que iam iniciar-se a 11.

 

O plano das manifestações tinha sido cuidadosamente estabelecido: elas tinham em vista desautorizar o governo e promover uma alteração constitucional que retirasse à oligarquia dominante a base legal do seu poder político. Nesse sentido, as manifestações começaram por ser de acolhimento festivo aos deputados do Norte, onde a oposição conseguira ganhar em dois círculos - Douro e Beiras - nas eleições de Julho (vitória que o governo se esforçava por fazer anular, contestando-a), e desenrolavam-se sob a consigna de vivas à Constituição, com o objectivo de criar um estado insurreccional que promovesse a queda do governo e da Carta em vigor desde a vitória, em 1834, das hostes de D. Pedro. À sombra da Carta tinha-se constituído uma poderosa oligarquia, que substituíra a antiga nobreza feudal e que se afirmava hostil a todas as tendências liberalizadoras; o seu derrubamento, reclamado por representantes políticos da média e da pequena burguesias, representaria um triunfo da ala democrática do liberalismo português.

 

Circunstâncias particulares tinham facilitado que aquelas consignas políticas polarizassem o descontentamento popular e se transformassem em móbil de acção: uma remodelação ministerial operada seis meses antes tinha colocado à frente do governo a facção mais conservadora do liberalismo, ao mesmo tempo que a pressão da crise económica daquele ano de 1836 causava perturbações sociais no País.

 

A constituição do gabinete ministerial de 20 de Abril, presidido pelo duque da Terceira, na realidade não tinha deixado dúvidas quanto ao carácter oligárquico e ao objectivo repressivo e ditatorial que o animava: Agostinho José Freire, Silva Carvalho, Manuel Gonçalves Miranda, o conde de Vila Real, tinham-se tornado impopulares, assim como o seu presidente, no exercício de administrações anteriores. Desde 1834, eram acoimados de devoristas, pela sofreguidão insaciável que tinham manifestado de enriquecimento pessoal. Joaquim António de Aguiar, o único membro do gabinete a quem não eram atribuídas graves acusações, esse mesmo não gozava da simpatia popular, por ser um homem politicamente comprometido com aqueles outros.

 

As acusações mais generalizadas tinham fundamento nas especulações em que as pessoas dos ministros estavam envolvidas: açambarcamento dos bens nacionais, sinecuras que se tinham atribuído a título de serviços prestados durante as lutas civis, docilidade manifestada perante a Inglaterra, cujos banqueiros e políticos controlavam a actividade financeira e política do governo de Lisboa.

 

O presidente do Ministério, que sobraçava também a pasta da Guerra, tinha, por exemplo, integrado no seu morgadio, em 1834, pela apresentação de um simples requerimento e sem qualquer prova, o Convento de Alverca e respectivo território (9); auferia honorários como presidente do Conselho e como ministro da Guerra, como conselheiro de Estado, como marechal-general do Exército, como membro do Supremo Conselho Militar, como governador da Torre de Belém e como estribeiro-mor da rainha; além disso, tinha recebido, antes mesmo do triunfo do liberalismo, cem contos de réis pela sua fidelidade à causa de D. Pedro (10).

 

O ministro do Reino, Agostinho José Freire, tinha-se celebrizado como autor da famosa lei das indemnizações, que em 1833 facilitou o esbulho dos vencidos, tornando-os responsáveis pelas suas pessoas e bens das usurpações efectuadas desde 1828; acumulava os ordenados de director do Colégio Militar, de conselheiro de Estado e de ministro.

 

José da Silva Carvalho, ministro da Fazenda, tinha decretado em 1834 a supressão do papel-moeda, operação denunciada como ruinosa, à sombra da qual contraiu o empréstimo de um milhão de libras esterlinas, com que empenhou o Tesouro Público. A título de ministro «honorário», correspondente a todo o tempo em que não foi ministro efectivo (1823-1832), tinha recebido 10.346$666 réis, uma fortuna nessa época. Acumulava ordenados na sua qualidade de ministro, de presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de conselheiro de Estado. Pelas manobras financeiras que operou passou a ser conhecido por José do Chapelório.

 

Manuel Gonçalves de Miranda, por uma pasta ministerial que sobraçou durante meio ano antes da Vilafrancada (1823), foi habilitado a receber 50.000 cruzados como pensão de ministro «honorário» desde então até 1835. Na emigração foi, com Silva Carvalho e outros, negociador de um empréstimo de dois milhões de libras, o primeiro grande empréstimo liberal, contraído junto de banqueiros de Londres e sob a intervenção e a administração do agente espanhol Mendizabal. Em 1833 e 1834 tornara-se impopular como prefeito da província do Douro. Um agente secreto do governo de D. Pedro já por essa altura informava que os antipedristas do Porto, dele, «entre outras bagatelas, dizem ladrão e riquíssimo à custa do empréstimo» (11). Agora era ministro da Marinha.

 

No que respeita a cupidez, apenas o ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, não era acusado de acumulações e prebendas, como os seus colegas. Mas a sua honestidade pessoal não bastava para modificar o conceito público em que era tido o Ministério.

 

O ministro dos Estrangeiros, o conde de Vila Real, completava as razões da impopularidade do Ministério. Ascendera ao título nobiliárquico em 1823, após a Vilafrancada. Antigo ajudante-de-campo de Beresford (1809), conselheiro da Embaixada Portuguesa em Londres depois de 1814, tinha colaborado em 1827 com o governo inglês de Wellington nos preparativos diplomáticos para o regresso de D. Miguel, e, depois da «usurpação», foi ministro no governo absolutista.

 

A constituição do Ministério de 20 de Abril agravara, pois, o sentimento nacionalista dos liberais, tanto pelas operações especulativas a que os seus membros estavam ligados como pela docilidade à influência política, económica e financeira que a Inglaterra se esforçava por manter sobre Portugal. Sobretudo a partir das invasões napoleónicas, essa influência tinha-se transformado num domínio absoluto, só interrompido durante o curto período (Agosto de 1820 - Maio de 1823) em que durou o surto democrático da Revolução Liberal (12).

 

Tentativas para a instauração de uma ditadura militar

 

Mas não eram essas apenas as razões que tornavam impopular o Ministério de Abril. Já nos curtos meses da sua vigência (19 de Abril a 9 de Setembro) se tinha apressado a entregar a uma nova companhia as lezírias do Tejo e do Sado, cujo negócio escandaloso provocara, no ano anterior, a queda do Ministério Saldanha, também com Silva Carvalho na Fazenda. As povoações desta ampla região ficavam desse modo submetidas à exploração imposta pela  companhia.

 

O governo do duque da Terceira, além disso, representava uma tentativa no sentido de institucionalizar uma ditadura militar.

 

Era o caso da investidura do príncipe real, o rei consorte Fernando de Saxe-Kohary Coburgo, no cargo de supremo comandante do Exército. Sobrinho do rei Leopoldo da Bélgica e da duquesa de Kent, parente por afinidade da rainha Vitória da Inglaterra, Fernando de Coburgo era o segundo marido da jovem (16 anos) rainha Maria lI. O seu casamento efectuara-se, ainda por procuração, na pessoa do duque da Terceira, em 1 de Janeiro, e foi ratificado, já na presença do príncipe consorte, a 9 de Abril. Neste lapso de tempo tinha a Corte procurado dar cumprimento a uma das cláusulas secretas do contrato de casamento, nomeando-o - mas através de um decreto (29 de Janeiro) mantido em sigilo (até 15 de Abril) - marechal-general, cargo, porém, que também não existia na estrutura do Exército. Anunciava-se então um projecto de organização militar, através do qual se procuraria instituí-lo.

 

As irregularidades desta nomeação explicam-se pela oposição acérrima das Cortes. Mas em fins de Março, a pretexto dos feriados da Semana Santa e dos festejos do casamento da rainha, um decreto adiou as sessões da Câmara para 6 de Abril, quando se sabia que a sessão ordinária acabaria a 10, havendo ainda muitos projectos para discutir. Assim se reduzia ao silêncio a oposição parlamentar à investidura. Com sucessivas alterações de governo que posteriormente se verificaram e a convocação urgente de uma nova assembleia esperava-se tornar efectiva a nomeação que tantos protestos suscitava.

 

Com efeito, quando o Ministério Terceira ficou constituído, a 20 de Abril, o seu programa estava traçado, e não tardou nada a pô-lo em execução. Logo no dia 22 foi decretada uma convocação extraordinária das Cortes. Esta convocação tinha sido anunciada quando do encerramento da sessão ordinária. Mas agora enumeravam-se exactamente os assuntos sobre que as Câmaras haviam de pronunciar-se, numa tentativa evidente de afastar da discussão os problemas mais incómodos para o governo. No dia 27 ficou assente em Conselho de Ministros a dissolução do organismo político mais activo daquela época, a Sociedade Patriótica Lisbonense, que em Março tinha representado contra a criação do posto de marechal-general do Exército.

 

Outras medidas teve o Ministério urgência em adoptar, que há quatro meses vinham sendo forçadamente adiadas. Um decreto de 30 de Abril ordenava que o príncipe Fernando de Coburgo entrasse imediatamente no exercício do posto de marechal. E, a 3 de Maio, um outro decreto completava a organização do comando supremo do Exército com o restabelecimento das repartições de ajudante-general e quartel-mestre-general. A nomeação de todo um estado-maior composto por oficiais da confiança do governo coroou esta primeira parte do programa ministerial - a criação de uma estrutura de comandos militares que permitisse ao Paço enfrentar e vencer a oposição das Cortes e da opinião democrática, cada vez mais agitada.

 

Uma nova força: a opinião pública

 

À política de força que se pretendia impor com a nomeação do novo marechal-general do Exército respondia a oposição liberal mobilizando a seu favor a opinião do País. É à volta desta nomeação, sobretudo, que toma corpo e expressão a hostilidade crescente aos detentores do Poder. A rainha, o seu marido, os duques de Palmela e da Terceira, o marechal Saldanha, enfim, os chefes da situação, são os alvos mais apetecidos dos políticos e dos literatos da média e da pequena burguesias, que se lançam à porfia numa campanha de descrédito do governo.

 

A imprensa periódica prolifera nessa altura. Dezenas de jornais são fundados durante todo o ano de 1836. Uma autêntica batalha jornalística faz surgir na vida pública nacional uma nova força: a opinião pública, alimentada e conduzida por uma imprensa partidarista. O Industrial Civilisador aparece a denunciar os perigos de uma ditadura conservadora, evocando casos significativos de detentores absolutos da chefia dos exércitos - Cromwell, Bonaparte, D. Miguel. Contrapõe as medidas emancipadoras do marquês de Pombal à desastrosa política financeira pela qual o País se enfeuda à Inglaterra. O Português Constitucional, que Almeida Garrett, mal chegado de Bruxelas, funda por essa mesma altura, ocupa posição idêntica de hostilidade à política palaciana. A Luneta, O Toureiro, o Diário do Povo, o Movimento, são outros tantos jornais que surgem a engrossar o coro de hostilidade ao governo.

 

Aos ataques da oposição respondia a imprensa governamental, também por essa altura ampliada com novos órgãos. Os seus títulos eram geralmente estridentes: por exemplo, O Raio e o Artilheiro. E os argumentos da dialéctica, nem sempre convincentes, eram reforçados pela acção repressiva: o Farol Lusitano, que protestava, é processado pelo governo; e o próprio administrador da Imprensa Nacional é denunciado por ter permitido a publicação de alguns novos jornais que se distinguiam nos ataques ao governo.

 

A linguagem jornalística desta época é violenta e desbragada. A lógica e a serenidade dos juízos são sacrificados às insinuações muitas vezes alegóricas e às adjectivações de sabor gongórico. Mas, utilizando um estilo de efeito nessa época e intervindo nas questões candentes da actualidade, a imprensa polemizava com sucesso e conquistava um público ávido.

 

A opinião pública, despertada a partir de 1820, agora avassaladoramente mobilizada pelos partidários das duas grandes facções que se opunham, passa a constituir uma nova força a tomar em conta na condução dos negócios políticos.

 

A opinião pública, é certo, não abrangia ainda o povo tomado na sua mais larga expressão. O estado de analfabetismo geral colocava fora da discussão as multidões de homens e mulheres anónimos que eram constrangidos à luta pela sustentação diária. Mas uma élite de gente letrada, emanada da classe média e por vezes recentemente saída da Universidade, passou desde então a impor o peso das suas opiniões, a participar por meio da imprensa na marcha dos negócios públicos, na orientação política dos governos, e a esforçar-se por alcançar, através dela, o mais amplo apoio público para as suas posições.

 

Esta é a nova força que vai fomentar a consciencialização política de massas que até aí jaziam mais ou menos passivas, ao sabor ou à margem dos acontecimentos. O papel preponderante que as massas populares de Lisboa vão desempenhar no desenvolvimento da Revolução de Setembro tem atrás de si uma preparação política. Ela alcançou o mais alto ponto aquando das campanhas de opinião que agitaram o País e desacreditaram os sucessivos governos, que pretendiam impor uma política de força hostil às aspirações democráticas da facção liberal.

 

Crise económica e agitação social

 

A crise económica agudizava ainda mais a situação política, já de si grave, como acabamos de ver.

 

1836 foi um ano de crise. Crise de superprodução na Inglaterra, onde o capitalismo industrial triunfava, essa circunstância repercutia-se no mercado desprotegido da velha aliada continental. A pressão da concorrência industrial dos produtos estrangeiros sobre a débil indústria artesanal portuguesa exacerbava os sectores de produção e inquietava as classes médias, que se erguiam contra a ausência de medidas proteccionistas.

 

Se na Inglaterra a crise tinha a sua origem na superprodução industrial, em Portugal ela sentia-se na concorrência do mercado e na carência da produção agrícola. As colheitas tinham sido escassas, agravando o custo da vida, que se tornou insuportável para todos quantos tinham necessidade de vender a sua força de trabalho para alcançar os meios necessários à subsistência.

 

A crise económica acarretava, portanto, perturbações sociais. Factos ocorridos desde a Primavera revelam o mal-estar das camadas proletárias e artesanais e a sua predisposição para a luta. Em fins de Abril, cerca de duas centenas de operários entalhadores assaltaram os cais de desembarque na cidade do Porto e destruíram os móveis de origem alemã que estavam a ser descarregados. E depois houve manifestações hostis em frente de algumas firmas estrangeiras instaladas na praça comercial. A situação de desespero das camadas operárias e artesãs não sofria mais as promessas das autoridades de que seriam tomadas providências destinadas a proteger a indústria nacional. As promessas já não satisfaziam ninguém.

 

A concorrência da indústria estrangeira, por um lado; por outro lado a defesa dos interesses da burguesia agrária do País, aos quais se sacrificava o preço do pão, estes eram os dois gumes que faziam agitar os sectores industriais.

 

Posteriormente aos tumultos nos cais nova agitação se operou, agora na praça da farinha, onde a multidão forçou os negociantes de cereais a baixarem o preço do milho. O alqueire desceu de 900 para 480 réis (13), e das aldeias logo acorreu à cidade muito povo, faminto de pão a baixo preço. As forças policiais não intervieram.

 

Os incidentes deram lugar a uma reunião de autoridades e altas personalidades portuenses, que, urgentemente, pediram ao governo autorização para lançar no mercado os cereais estrangeiros arrecadados no entreposto alfandegário, isentos de direitos. A situação era grave: o governo apressou-se a comunicar a sua concordância.

 

E não era só o Porto a reclamar contra a falta de cereais. A Câmara de Lisboa representou ao governo no mesmo sentido. E a 3 de Maio o Conselho de Ministros decidiu que «se admitissem em Lisboa 600 moios de milho e no Porto 400 moios de milho dentro de dois meses sucessivos» (14).

 

A agitação social produzida pela carestia obrigava o governo a tomar medidas que atenuassem o mal-estar, sobretudo dos grandes centros urbanos, onde os tumultos populares podiam criar situações mais delicadas.

 

A concorrência dos cereais estrangeiros, por sua vez, ia descontentar os proprietários agrícolas: por um lado, porque fazia descer o preço dos seus produtos; por outro lado, porque as medidas adoptadas em relação a Lisboa e ao Porto faziam afluir aí camadas da população rural, que deixavam de constituir as reservas de mão-de-obra com que os proprietários mantinham a estabilidade dos salários. Desse modo, não só os preços dos produtos agrários baixavam como os salários rurais tendiam a subir.

 

Não admira, pois, que a burguesia agrária estivesse por esse motivo solidária com o governo e mantivesse uma expectativa benevolente perante as medidas de força que se anunciavam.

 

O governo, da sua parte, contava com esse apoio para remodelar o Parlamento, por meio de novas eleições que lhe permitissem dispor de uma sólida maioria e com o apoio dela suster energicamente a crescente agitação pública que se fazia sentir.

 

Eleições escandalosas

 

Não teve outro fim a convocação extraordinária das Cortes, decretada em 22 de Abril. Prevista a sua abertura para 28 de Maio, já na véspera o Conselho de Ministros encarava a sua dissolução imediata, e no dia 2 de Junho tomou a resolução definitivamente (15).

 

O conflito entre a Câmara e os governos constitucionais estava aberto desde a vitória liberal com a adopção da Carta, isto é, desde a tomada do Poder pelas facções conservadoras do liberalismo. Mas as medidas adoptadas pelo Gabinete do duque da Terceira só podiam tê-lo agravado. Nas duas únicas sessões de trabalho que se realizaram (uma anterior tinha consistido na solenidade da abertura) a oposição da Câmara afirmou-se com uma tenacidade ainda mais acentuada que nas assembleias anteriores.

 

No dia 3 de Junho era, pois, dissolvida, mandando-se proceder a novas eleições. O governo mantinha a ofensiva contra as veleidades democráticas da Câmara e ia fazer tudo para afastar dela os elementos que perturbavam os seus planos (16).

 

Para esse efeito foram amplamente utilizadas todas as possibilidades de manobra e coacção que a máquina burocrática do Estado oferecia.

 

O afastamento de autoridades locais e funcionários de pouca confiança, os aparatos de força militar e todos os demais processos de que o governo pôde valer-se foram utilizados sem medida nem escrúpulos (17).

 

O batalhão portuense da Guarda Nacional, que inquietava o governo, foi dissolvido. Em contrapartida, uma viagem do príncipe real realizou-se, nas vésperas das eleições, ao Norte do País, durante a qual o marido da rainha, acompanhado pelos marechais Terceira e Saldanha, se fez aclamar no Porto, em Braga e em Coimbra.

 

As eleições que se iniciavam a 17 de Julho eram, conforme as disposições da Carta constitucional em vigor, eleições indirectas. Assembleias paroquiais, compostas por eleitores com rendimentos mínimos de 100$000 réis de propriedade, indústria, comércio ou emprego, começavam por designar os eleitores que, em colégios provinciais, elegeriam por sua vez os deputados. Para eleitor nos colégios provinciais só podia ser designado quem tivesse o mínimo de 200$000 réis de rendimentos. Quanto aos deputados, não podiam sê-lo senão com rendimentos acima de 400$000 réis.

 

Era um regime censitário, altamente restritivo, que limitava a uma percentagem mínima o número de eleitores em relação à população. Ainda vinte e oito anos mais tarde, quando se elaborou o primeiro recenseamento eleitoral, com censo mais baixo, o quociente de representação era apenas de 11,1. Numa população total de quase quatro milhões, o número de eleitores, maiores de vinte e cinco anos, não chegava a 345 mil. Cerca de 95 por cento da população adulta do País não tinha direito a voto.

 

Essa percentagem ainda decrescia mais à medida que se passava das assembleias primárias para as de apuramento final.

 

O sistema indirecto permitia, além disso, que se promovessem combinações e arranjos nas assembleias finais, quando nas primárias fosse difícil alcançar os resultados desejados.

 

Nas eleições de Julho, as coacções exercidas sobre as assembleias finais não respeitaram sequer as conveniências da aparência. Em Lisboa, por exemplo, onde todo o peso da máquina burocrática não foi suficiente para garantir a vitória nas eleições primárias, o apuramento final, em 31 de Julho, realizou-se em casa do próprio chefe do Gabinete, duque da Terceira: o governo, inicialmente derrotado, acabou por sair vitorioso.

 

No apuramento final do continente, 79 deputados eleitos eram da confiança do governo, e os outros 41, considerados da oposição, representavam as províncias do Douro, Beiras e Algarve. O aumento de uma dúzia de votos sobre os que dispunha na antiga Câmara era um ganho diminuto, que o resultado das eleições nas ilhas podia ainda comprometer, o que precipitou o governo a tentar anular as eleições na Beira Alta, alegando irregularidades cometidas.

 

A polémica que esta tentativa desencadeou, as fraudes cometidas pelos agentes do governo, que por toda a parte se patenteavam, o resultado final de Lisboa, onde a oposição liberal se viu vencida pela primeira vez a despeito da sua força crescente, predispuseram os ânimos para o desfecho insurreccional da crise.

 

A despeito do carácter burguês do colégio eleitoral, exclusivamente recrutado na escala social dos possidentes e bem instalados, com exclusão das camadas mais amplas do povo português, quer se tratasse de trabalhadores agrários ou artesanais, modestos funcionários ou dos mais pequenos proprietários, comerciantes ou lavradores, a despeito mesmo da ausência de escrúpulos com que o governo se empenhou para triunfar, a magra vitória oficial reflectia a gravidade da conjuntura nacional. O resultado eleitoral atestava a divisão da própria classe burguesa e a existência no seu seio de interesses antagónicos que não cabiam na fraca representatividade governamental. O governo não podia dispor do apoio incondicional da burguesia. Só as facções rural e financeira da alta burguesia apoiavam as directrizes do Gabinete.

 

A política de força preconizada esbarrava, pois, em dificuldades que a crise económica e as suas consequências sociais tornavam insuperáveis.

 

Por outro lado, a experiência eleitoral de Julho tornava evidente à oposição a impossibilidade de praticar com êxito uma resistência legal à omnipotência do governo. O sofisma representativo da Carta constitucional, à sombra da qual se realizaram as eleições, tornava-se patente. As fraudes cometidas agravaram irremediavelmente o já abalado sistema cartista. A Constituição democrática de 1822 passou, por isso, a ser evocada como ideal democrático a contrapor ao cesarismo da Carta. Abolir esta e regressar à Constituição votada em Cortes - eis a aspiração que se generalizou após as eleições de Julho.

 

Estado insurreccional na Península

 

Acontecimentos externos, ocorridos na vizinha Espanha, vinham por sua vez reforçar essa aspiração e contribuir para transformar em estado insurreccional o sentimento de hostilidade crescente ao governo cartista. Através de uma experiência diferente, mas paralela da portuguesa, também a oposição democrática espanhola concluía pela necessidade de abolir o código que a oprimia, o Estatuto Real, correspondente, no seu espírito autoritário, à Carta constitucional portuguesa.

 

Era o resultado do desenvolvimento, de um e do outro lado da fronteira, de uma nova burguesia comercial e industrial, cujos interesses se contrapunham aos interesses agrários, tradicionalmente dominantes.

 

Coincidindo com as operações finais do acto eleitoral português, um movimento insurreccional agitou a Espanha. O retorno à Constituição democrática de 1812 foi a sua principal reivindicação política. Málaga, Cádis, Sevilha, Córdova e as demais cidades do Sul foram as primeiras a proclamar aquela Constituição. De nada valeu a resistência tentada pelo Governo Espanhol e pela rainha regente quando as próprias forças governamentais se sublevaram: a revolta dos sargentos, no próprio local onde se refugiara a Corte (Granja), ocorrida a 12 de Agosto, permitiu que a revolução democrática se alargasse a Madrid e ao resto do país. A rainha D. Isabel II viu-se então forçada a jurar ela também a Célebre Constituição de Cádis, que em 1820 tinha servido de modelo aos liberais portugueses.

 

O exemplo estava dado. O surto democrático avassalava toda a Península. A abolição do regime cesarista espanhol apontava o caminho à oposição liberal portuguesa.

 

As providências adoptadas pelo gabinete do duque da Terceira confirmam o agravamento da situação interna em Portugal, depois dos referidos acontecimentos em Espanha.

 

A disciplina dentro das fileiras do Exército era o pretexto do Ministério, que já em 19 de Julho recomendara ao comandante supremo que tomasse as providências necessárias para se assegurar dela. Em 9 de Agosto, uma exposição à rainha insistia no mesmo sentido. No rascunho para ela, mais espontâneo que a redacção definitiva, escreveu o ministro que a elaborou «O mau espírito que ataca as outras classes tem penetrado no Exercito e concorrido para a indisciplina que geralmente se manifesta em todo ele pelos repetidos actos de desobediência, e até de insubordinação, que diariamente aumenta pela impunidade dos seus autores e frouxidão dos comandantes e autoridades militares, com raríssimas excepções» (18). Em 22 de Agosto eram suspensas as licenças militares e mandava-se «que aquelas concedidas a título de doença sejam impreterivelmente cumpridas dentro do hospital ou [...] fora de Lisboa» (19).

 

Na realidade, a capital do Reino causava particulares apreensões ao governo. Em 9 de Agosto, uma verba extraordinária de 2.000$000 reis foi posta à disposição do governador civil, destinada a intensificar as medidas de segurança, em 25 mandava-se reforçar com tropa de linha a guarda da cadeia do Limoeiro; em 30 decidia-se a expulsão dos estrangeiros «perturbadores do sossego público»; e, em 2 de Setembro, a verba destinada às medidas de segurança do governador civil era de novo extraordinariamente reforçada, agora com 2.064$000 réis.

 

Lisboa era, efectivamente, o foco da sublevação que se preparava. Os clubes políticos que aí fervilhavam eram os seus órgãos.

 

Lisboa, centro de agitação política

 

Lisboa era um centro de grande agitação política, que se destacava do resto do País.

 

Além de uma burguesia comercial e industrial mais evoluída que nos outros centros urbanos, concentrava-se aí um grande número de gente assalariada, ocupada em armazéns e escritórios, transportes, serviços técnicos, arsenais de construção naval, actividades marítimas, etc.. A força da plebe fazia-se sentir na capital mais intensamente que em qualquer outro burgo do Reino, e o movimento internacional do seu porto dava à população lisboeta um acesso mais fácil e rápido às informações relativas aos acontecimentos que estavam a ocorrer na Península. A afluência habitual de estrangeiros permitia também que aí chegassem muitos agentes revolucionários espanhóis.

 

As tradições de agitação política estavam, de resto, mais radicadas em Lisboa que em qualquer outra cidade do País, nomeadamente o Porto, a despeito de ter sido na capital nortenha que se iniciou o movimento liberal de 1820.

 

Com efeito, nos movimentos políticos do Porto a burguesia liberal manifestou sempre uma grande preocupação em afastar deles a participação activa das massas populares. Em 1820, a revolta de 24 de Agosto foi apenas um golpe militar, e ainda a vitória não estava assegurada já de madrugada se prevenia à tropa para «coibir os tumultos» e «abafar a anarquia», para que o movimento se restringisse aos quadros da burguesia, personificada nos magistrados, comandantes militares, intelectuais e comerciantes, que para esse efeito se tinham conjurado. Em 1828, quando o Norte se sublevou contra a usurpação absolutista, os chefes burgueses da resistência preferiram capitular a contribuir para uma vitória que traria como consequência a ascensão popular aos destinos políticos do País.

 

Certo é que, em Lisboa, também as forças conservadoras do liberalismo procuraram muitas vezes suster o ímpeto popular. Mas a coexistência aqui de combativas facções radicais da média e pequena burguesias opostas à grande burguesia dominante favorecia a participação das massas populares nos acontecimentos políticos.

 

A participação do povo da capital salientou-se em muitos momentos críticos da Revolução Liberal: na Martinhada, em 1820; na resistência oposta ao golpe da Vilafrancada, em 1823; em manifestações de rua, em 1826; na formação das milícias de voluntários constituídas no mesmo ano para combater as invasões absolutistas que irrompiam da Espanha; através das muitas tentativas de revolta fomentadas durante o período do terror absolutista, etc..

 

Depois do triunfo liberal, em 1834, as facções mais progressivas da média e da pequena burguesias, vendo frustradas as suas aspirações pela concentração do Poder e das grandes riquezas nas mãos de uma oligarquia hostil ao progresso económico e ao desenvolvimento democrático do País, mantiveram-se politicamente vigilantes e activas. As galerias destinadas ao público, no Palácio das Cortes, regurgitavam frequentemente de uma assistência ávida de acompanhar e muitas vezes de intervir com aplausos nos trabalhos parlamentares.

 

Fora da Câmara, eram os clubes os grandes centros da agitação política. Quer pela acção que desenvolveram nos preparativos para o levantamento popular de Setembro quer pelo estrato social a que pertenciam os seus aderentes. Os clubes mais representativos eram o dos Camilos e o do Arsenal.

 

O Clube dos Camilos e as milícias populares

 

O Clube dos Camilos, assim chamado por estar instalado no Hospício de S. Camilo de Lelis, na Praça da Figueira, confundia-se com a Sociedade Patriótica Lisbonense, que tinha aí a sua sede. Reunia uma facção aguerrida de burgueses influentes. Os seus membros possuíam uma grande experiência política, que lhe advinha tanto da sua participação nas antigas lutas civis como da intervenção constante nas questões públicas. No seu seio formavam-se comissões especializadas, que se ocupavam do estudo de problemas de diversa natureza, com debates e votações formais.

 

A influência deste centro político mede-se pela capacidade em fazer chegar ao Parlamento as suas opiniões sobre a questão do comando supremo do Exército, através da representação que um deputado leu sob a forma de proposta. A sua capacidade de agitação política era tão ameaçadora para os intentos políticos do gabinete do duque da Terceira que uma das primeiras medidas adoptadas foi ordenar o encerramento da Sociedade Patriótica, sob o pretexto fútil de não possuir estatutos aprovados. Mas a dificuldade de pôr em execução esta medida hostil relativamente a um organismo influente como era, produziu no Conselho de Ministros algumas hesitações: o encerramento ficou assente em 27 de Abril, foi confirmado em nova resolução adoptada em 6 de Maio e só em 9 foi publicada a respectiva portaria.

 

O encerramento da Sociedade Patriótica teve como efeito o recrudescimento da actividade conspirativa do Clube dos Camilos, cujo funcionamento, por ser um organismo clandestino, não estava sujeito ao mesmo contrôle das autoridades. Nele se congregavam os mais activos elementos da Sociedade Patriótica. Ribeiro Saraiva, um dos seus mais influentes dirigentes, que depois do triunfo da Revolução de Setembro iria presidir à sessão solene de reabertura da Sociedade, desempenhou funções de chefia no movimento revolucionário: com o capitão Rodrigues França, do Arsenal, encarregou-se da ocupação militar da parte baixa da cidade.

 

Outros membros deste clube, pertencentes à pequena e à média burguesias, desempenharam também importantes missões, mais ou menos confidenciais, sobretudo no aliciamento de elementos militares. Seis meses depois do triunfo da Revolução, o secretário da Sociedade Patriótica, Inocêncio Francisco da Silva, que se celebrizaria pelo empreendimento do Dicionário Bibliográfico Português, de que foi o primeiro redactor, pôs em relevo, num relatório que elaborou, o papel preponderante dos seus membros, que contribuíram para o sucesso da Revolução de Setembro.

 

De feição popular mais acentuada era o Clube do Arsenal. Dirigido por elementos oriundos sobretudo da pequena burguesia, aí se defendiam as posições mais radicais do liberalismo português. As massas proletárias de Lisboa, que nele se aglutinavam, fizeram aí a sua iniciação no intervencionismo político, prejudicada embora pela demagogia de oradores como Costa Cabral, que nele pontificavam por essa altura.

 

O Arsenal da Marinha, o Arsenal do Exército, o Arsenal Real da Fundição e a Fábrica de Cordoaria Nacional, administrada pelo Ministério da Marinha, eram núcleos de concentração operária onde se recrutavam os adeptos dos clubes populares arsenalistas. Além dos debates e discussões políticas que animavam estes clubes, muitos dos seus frequentadores tinham-se constituído em milícias armadas, sob o impulso e a organização do capitão-tenente da Armada Ricardo França, inspector do Arsenal da Marinha: eram os voluntários do Batalhão dos Artífices do Arsenal. As massas proletárias de Lisboa tiveram por esse motivo uma influência fundamental no resultado vitorioso da Revolução de Setembro.

 

A Guarda Nacional era o principal núcleo armado em que se apoiava a oposição liberal ao governo autoritário do duque da Terceira. Reserva armada da burguesia, nela se alistavam desde 1834 os elementos mais activos e dedicados à causa liberal. Constituída pela primeira vez em 1823, foi então dissolvida pela reacção da Vilafrancada, antes mesmo da sua organização. Restabelecida após a vitória liberal, os membros que a constituíam eram geralmente recrutados nos meios sociais da média e pequena burguesias. O serviço não era contínuo, mas os elementos da Guarda Nacional deviam considerar-se em disponibilidade permanente. À semelhança da Guarda Nacional francesa, os seus oficiais eram eleitos pelos batalhões, que periodicamente reuniam em assembleia. Isto imprimia às milícias uma feição democrática acentuada Os clamores da oposição, erguidos contra a prática discricionária do governo, encontravam aí um grande apoio.

 

Durante a ofensiva do governo do duque da Terceira alguns batalhões foram dissolvidos, o do Porto nomeadamente. Em Lisboa, o governo tentou fazer eleger comandantes da sua confiança, nas eleições que para esse efeito se realizaram no dia 7 de Julho. Mas, contrariamente ao seu empenho, os oficiais eleitos eram adeptos da oposição liberal.

 

Os batalhões do Arsenal representavam a facção mais radical da oposição liberal; por intermédio deles, o sector mais avançado do povo de Lisboa e elementos proletários encontravam-se armados e organizados em milícias. Constituíam, por isso, um sólido apoio da Guarda Nacional, em oposição às pretensões governamentais.

 

Na Revolução de Setembro, a Guarda Nacional vai desempenhar um papel de extrema importância.

 

Ofensiva da oposição ao governo

 

O governo do duque da Terceira tinha-se mantido numa ofensiva repressiva desde a sua nomeação, em Abril. Mas, depois das eleições de Julho, a despeito da sua formal vitória, a ofensiva governamental foi ultrapassada pelos acontecimentos e por aquela que a própria oposição empreendeu quando se tornou evidente que a resistência legal era ineficaz dentro do sistema cartista.

 

O mês de Agosto decorreu sob o signo de preparativos conspiratórios, estimulados pelo exemplo da vizinha Espanha. O governo, na previsão do pior, adiou para 11 de Setembro a sessão de Cortes que devia iniciar-se em 15 de Agosto. No dia do aniversário da Revolução Liberal, 24 de Agosto, tentou a oposição do Porto erguer o grito da revolta, como fizera dezasseis anos atrás.

 

Mas a oposição do Porto não tinha uma forte base popular a sustentá-la e os seus chefes não estavam interessados em promover a revolução. Passos Manuel, a figura mais destacada da oposição nortenha, irá ufanar-se, cinco meses mais tarde, de ter ele próprio impedido que ela rebentasse naquele dia (20).

 

Em Lisboa, ao contrário, a chefia da oposição liberal estava nas mãos de elementos mais radicais e dispunha de forte apoio nos clubes populares e nas milícias arsenalistas. Fracassadas as esperanças de revolta no Porto, intensificaram-se os preparativos para o levantamento na capital.

 

A par dos actos conspiratórios e dos aliciamentos militares conduzidos em segredo, de que especialmente se ocuparam os membros do Clube dos Camilos, a pequena burguesia foi mobilizada pelos dirigentes da oposição com preparativos de manifestações festivas - vivas, músicas, foguetes - para a ocasião da chegada dos deputados oposicionistas que vinham do Norte por via marítima e chegavam ao Tejo no dia 9 de Setembro, para os trabalhos da nova Câmara.

 

Quando, portanto, no dia 9 de Setembro, o povo de Lisboa veio para a rua receber festivamente os deputados do Norte e vitoriar a Constituição, num claro desafio às autoridades e ao governo, que expressamente tinham proibido as manifestações, o movimento insurreccional tinha atrás de si:

 

a) um profundo descontentamento nacional que solidarizara as mais amplas camadas populares - trabalhadores rurais e artesanais, industriais e pequenos comerciantes, pequena e média burguesias -, numa hostilidade crescente à grande burguesia liberal, que se instalara e se mantinha no Poder à sombra dos privilégios políticos da Carta;

 

b) a experiência de frequentes lutas populares, que tinham irrompido sob a pressão de dificuldades económicas;

 

c) uma politicização do descontentamento popular, através da agitação da opinião pública em polémicas, debates e denúncia das arbitrariedades governamentais;

 

d) o exemplo estimulador da acção revolucionária em Espanha, que por sua vez afastava o perigo de uma intervenção repressiva por parte do país vizinho;

 

e) o descrédito da Quádrupla Aliança, constituída em 1834 para garantir os regimes constitucionalistas na Península, mas que se revelara inoperante em face da revolução espanhola de Agosto;

 

f) a aliança das forças militares com as forças populares, forjada nas reuniões dos clubes políticos, muito frequentadas por elementos da Guarda Nacional, e reforçada pela existência de batalhões arsenalistas, constituídos por voluntários recrutados no sector operário de Lisboa;

 

g) finalmente, uma cuidada planificação da acção popular a desenvolver à chegada dos deputados, de modo a transformar as manifestações em levantamento insurreccional, que permitisse dominar pela força a resistência da oligarquia à satisfação da vontade nacional já claramente manifestada.

 

Foi o adequado aproveitamento desse conjunto de circunstâncias favoráveis que garantiu o triunfo do possante movimento, consagrado pela historiografia liberal sob a designação de Revolução de Setembro. Dirigiram o movimento chefes políticos saídos da pequena e da média burguesias, que habilmente souberam mobilizar a seu favor as mais largas camadas populares da capital: ajudantes de artesãos, trabalhadores braçais, proletários sem consciência de classe, gente de misteres humildes sem cultura nem haveres, a plebe, enfim, disposta a tudo dar na luta, porque nada tinha para perder. A pequena burguesia e o proletariado constituíram assim a ponta de lança que feriu o governo que importava derrubar.

 

A vitória, das forças democráticas, em 10 de Setembro, foi, pois, o resultado de uma luta que conjugou no mesmo sentido os esforços de várias camadas económico-sociais atingidas pelo descontentamento antigovernamental.

 

O cônsul francês no Porto teve o cuidado de as discriminar no que se referia à parte nortenha do país: «O Partido Democrático ligava a si todos os fabricantes e artesãos do Porto, quase todos os pequenos proprietários liberais das províncias do Norte, os advogados que não tinham alcançado lugares, os médicos, todo o grupo de empregados e funcionários públicos e uma grande parte dos pequenos comerciantes. Vila Nova, a despeito da influência que aí exerce o comércio inglês sobre os empregados dos seus imensos armazéns de vinho, pertencia também a esta facção.» Por isso o Prof. A. Silbert, de quem colhemos a transcrição do cônsul, conclui - e justamente - que «os interesses industriais não eram suficientemente fortes numa cidade como o Porto (e por maioria de razão no resto do País) para sustentar por si só um movimento político e conduzi-lo ao Poder. A vitória de 1836 não pode explicar-se senão pelo apoio que lhes deram outros elementos sociais» (21).

 

Mas a concretização das aspirações das classes médias acima referidas -cumpre sublinhar - não alcançou expressão revolucionária senão em Lisboa.

 

Porquê esta transferência para a capital de um triunfo que se auguraria mais fácil de alcançar no Porto, onde a oposição acabava de ganhar as eleições, a despeito de todos os esforços do governo?

 

É que em Lisboa havia, como já vimos, um princípio de concentração proletária, cuja potencialidade de luta foi corajosamente mobilizada pelos dirigentes revolucionários, fazendo decidir a seu favor o resultado da sublevação cuidadosamente planeada. Não era ainda um proletariado possuído de consciência de classe, e por isso mesmo não desempenhou uma função dirigente na Revolução. Mas era a reserva, por certo a mais aguerrida e disposta à luta, para o derrubamento de um governo que era igualmente odioso a todas as classes (maioria da Nação) que não eram beneficiárias do Poder.

 

 

III

Alteração na correlação de forças

 

 

Vitória, ou a conjugação das forças populares e militares

 

O governador civil de Lisboa mandara afixar profusamente editais pelas ruas da cidade a proibir quaisquer manifestações. O governo pusera de prevenção as tropas da sua confiança e, encarregara as da Guarda Municipal de reprimir as contravenções que pudessem verificar-se. Tudo esteve preparado, do lado das autoridades, para impedir qualquer tentativa de levantamento popular.

 

Mas à chegada dos deputados nortenhos, desembarcados no vapor Napier ao meio da tarde do dia 9 de Setembro, foguetes estralejaram em diversos sítios, embarcações no rio embandeiraram, a regurgitar de gente, e até algumas bandas de música fizeram ouvir os seus acordes. As manifestações populares irromperam, e formou-se um cortejo que atravessou a cidade até ao Palácio das Cortes, aos vivas à Constituição, a Constituição democrática de 1822. «O programa, tal e qual foi disposto pela comissão, executou-se»—orgulhar-se-á, ao recordar o acontecimento, um dos organizadores da manifestação (22).

 

Enquanto as manifestações populares prosseguiam através das ruas da capital, os chefes do movimento procederam à mobilização das forças militares e das guardas nacionais. Toques a rebate atraíram aos quartéis grande número de soldados, ao mesmo tempo que muitos populares se ofereciam como voluntários e neles se armavam, conduzidos e chefiados por sargentos.

 

As forças repressivas do governo tinham acudido, mas a resistência popular impediu-as de actuar com sucesso. Ao fim do dia, as manifestações populares transformavam-se em insurreição militar.

 

A princípio, três batalhões da Guarda Nacional ocuparam o Largo do Rato, na parte alta da cidade. Mas, já noite, oito batalhões formaram as suas forças no Rossio. O governo pôs em campo tropas de linha para tentar ainda dominar a situação. Comandava-as o coronel Pimentel, barão de Campanhã, que lhes dirigiu uma alocução a lembrar os deveres da disciplina. Mas os soldados não esperaram que ele concluísse o discurso, e irromperam também aos vivas à Constituição. Desobedecendo às ordens dos seus comandantes, e aderindo por sua vez à insurreição, as forças regulares impossibilitaram qualquer resistência efectiva à revolta popular.

 

As forças públicas confraternizavam com o povo. O governo não tinha quem o defendesse. O movimento estava triunfante.

 

As operações tinham-se desenvolvido simultaneamente nos dois sectores - o popular e o militar. A conjugação das manifestações públicas com a insubordinação das forças armadas logrou reduzir à impotência o governo e colocar na defensiva a rainha.

 

Forças militares e povo, concentrados no campo de Ourique, decidiram não se dispersar antes que a queda do governo fosse definitivamente anunciada e proclamada a Constituição.

 

A rainha protelava ainda a sua decisão, numa tentativa dilatória, animada por projectos - que o estado insurreccional da cidade tornou aliás impraticáveis - de se fazer recolher à esquadra britânica estacionada no Tejo e de lá solicitar a intervenção estrangeira para sufocar o levantamento popular.

 

Rumores correram entre a multidão sobre manobras que os navios ingleses estariam a fazer para um possível desembarque das suas forças. Então, o povo armado e as forças sublevadas não esperaram mais no campo de Ourique pela decisão da rainha: marcharam sobre o Palácio das Necessidades, onde a Corte e o corpo diplomático se encontravam reunidos.

 

Nesta emergência, quebraram-se as últimas resistências da rainha, que só então assinou os decretos que, um, punha em vigor a Constituição de 1822, e, outro, nomeava novo Ministério. Os conselheiros da rainha tinham-lhe assegurado a impossibilidade de conter «aquele povo» (23): não havia, com efeito, mais um soldado para a proteger nem defender.

 

Aquele povo foi a ponta de lança com que os dirigentes da oposição liberal derrubaram o governo repressivo da burguesia financeira e latifundiária.

 

Significado político-social da Revolução de Setembro

 

O triunfo da Revolução de Setembro tem um alto significado político-social; pela primeira vez, desde a eclosão do liberalismo em Portugal (1820), as massas populares, atraídas à luta política, desempenharam uma acção decisiva. Sem a sua comparticipação, nem as forças militares teriam desertado das fileiras governamentais nem os dirigentes políticos da classe média teriam logrado desferir tão profundo golpe na oligarquia cujos interesses eram hostis às conveniências do desenvolvimento económico nacional.

 

No decurso da luta, nos dias 9 e 10, as massas populares cresceram em importância e em consciência da sua própria força, levando a burguesia a reconhecer que, «após catorze anos de incessantes vicissitudes, o povo de Lisboa devia uma vez encher de assombroso brilho uma das memoráveis páginas da história nacional» (24).

 

Num folheto publicado na semana seguinte à do triunfo liam-se estas expressivas passagens: «A revolução da noite de 9 mudou tudo em Portugal, o dia de hoje não é o dia de ontem, e grandes acontecimentos se anteciparam. A Nação desde ontem é uma vitória e não uma conquista; a causa desde ontem é uma nacionalidade, e não uma oligarquia; a liberdade desde ontem é nossa, e não importada [...] o povo entra pela primeira vez em cena e a liberdade está consumada [...] o povo escravo de sete séculos foi romano uma noite e soberano no outro dia. Tal é a história da revolução das 12 horas - da revolução de Portugal» (25).

 

É certo que o despertar da consciência política das camadas populares não era ainda o de uma consciência específica da classe proletária, capaz de imprimir coesão, objectivo preciso e direcção própria a essa capacidade de luta exuberantemente manifestada. Por isso não se distinguiram chefes proletários a determinar o prosseguimento da luta no sentido de se atingirem objectivos mais radicais. Num país de economia rural e de indústria tradicional, onde o estado de analfabetismo estava generalizado, os porta-vozes das camadas populares eram elementos da pequena burguesia, e como tais frequentemente inconsequentes na sua acção.

 

A actuação revolucionária das camadas populares da capital produziu mesmo a estupefacção dos monarcas estrangeiros. Ao dar conta da «penosa impressão» que a notícia dos acontecimentos de 9 e 10 de Setembro produziu no rei Leopoldo, o seu ministro Goblet comunicavava ao embaixador da Bélgica em Lisboa: «A revolução que acaba de rebentar em Lisboa não era coisa absolutamente inesperada, mas a grandeza do flagelo ultrapassou todas as previsões de Sua Majestade» (26).

 

A grandeza do movimento susteve os entusiasmos populares dos próprios dirigentes burgueses da Revolução de Setembro; a capacidade e disposição de luta que durante ela se manifestaram excederam a medida por eles requerida. A partir da Revolução de Setembro e das novas forças que nela se revelaram, as camadas da média burguesia perdem a sua capacidade revolucionária e decidem-se por uma posição cada vez mais conservadora, procurando uma aliança tácita com a Corte, que lhes permita resistir e opor-se à pressão crescente das forças populares.

 

O Setembrismo orientar-se-á por isso mesmo num sentido oposto ao sentimento popular da Revolução de Setembro. Uma táctica nova e uma ideologia adequada irão procurar frustrar os objectivos mais radicais da Revolução. Esta, no que tinha de essencialmente popular, fora vencida pelo compromisso dos comandos militares no Quartel do Carmo, na madrugada do próprio dia que ia ser o da vitória.

 

Aliança anti-revolucionária

 

Na madrugada de 10 de Setembro, os chefes militares do movimento triunfante, depois de reunidos várias horas no Quartel do Carmo, acordaram enviar à rainha uma mensagem, a pedir-lhe - em «respeitosa súplica, bem persuadidos que V. M. nada deseja tanto como a felicidade da Nação Portuguesa» - a «imediata proclamação da Constituição de 1822 com as modificações que as Cortes Constituintes julgarem por bem fazer-lhe», assim como a nomeação de um novo Ministério. A mensagem era expedida em nome de «a leal Guarda Nacional e a leal guarnição de Lisboa», e terminava pela declaração de que os signatários esperavam «ansiosos, no lugar em que se acham, que V. M. haja benignamente de anuir aos seus votos».

 

São significativos os termos da mensagem que os chefes militares dirigiram à rainha no momento exacto em que triunfava a causa popular. O objectivo adoptado desde o início do movimento tinha sido a proclamação pura e simples da Constituição. Jamais se levantara o problema de a modificar ou rever. Como surgiu agora essa ideia? Com que fins foi introduzida?

 

José Arriaga depara-se-nos perplexo perante esta ressalva contida na mensagem e interroga-se sobre o que se teria passado na reunião de oficiais que a adoptou. Mas nenhuns testemunhos da época dão conta das discussões ou considerarações que aí se terão desenvolvido. E não lhe parecendo crível «que os revolucionários pensassem nessa ocasião em retroceder, ou modificar a constituição proclamada em sentido retrógado», admite que se tenha considerado, pelo contrário, a necessidade de se dar «ainda mais amplitude às formas democráticas e liberais, pondo aquela Constituição em harmonia» com o «espírito do século e da época» (27).

 

É uma interpretação que nenhum facto ou documento abona. É uma hipótese desmentida pelo desenvolvimento subsequente dos acontecimentos. Admitir a possibilidade de modificações à Constituição, no próprio momento em que era vitoriada, sem expressamente as indicar, só podia obedecer ao propósito de criar um terreno equívoco, favorável à defesa de interesses ou posições não confessáveis.

 

A introdução de semelhante ressalva acudiu à última hora no seio dos comandos militares e foi adoptada no intuito evidente de abrir as portas a todas as possíveis manobras futuras.

 

Quem a sugeriu? Não se sabe. Mas no interesse de quem? Isso importa esclarecer, para compreendermos o que, de outro modo, se nos apresenta com o aspecto de inconsequências e paradoxos. A introdução daquela ressalva na mensagem dos oficiais à rainha marca a primeira posição de compromisso dos dirigentes setembristas, entre o impulso popular revolucionário e as forças reaccionárias e conservadoras da Corte; ou a apropriação do triunfo por uma determinada classe ou grupo particular de interesses.

 

A partir do momento em que a vitória popular não oferecia mais dúvidas a ninguém, os dirigentes do movimento cuidaram de suster as próprias consequências a que esse triunfo podia conduzir e apressaram-se a criar condições para frenar o seu impulso. Toda a história posterior do Setembrismo é um claro documentário desta preocupação e das consequências a que conduz essa táctica. A ressalva para a introdução de modificações na Constituição nunca mais deixou de ser referida em todos os documentos oficiais. À sombra dela se concertarão os arranjos possíveis e desejados até ser anulada a própria reivindicação popular quanto à Constituição.

 

Que não era legítimo aos chefes militares, se estivessem identificados com a base popular do movimento, manterem-se nessa posição de respeito e confiança na soberana («bem persuadidos de que V. M. nada deseja tanto como a felicidade da nação portuguesa») comprova-se pela reacção que os acontecimentos populares produziam no seio da Corte, instalada no Palácio das Necessidades.

 

Para lá tinham acorrido os ministros, os conselheiros de Estado e os representantes diplomáticos da Bélgica e da Grã-Bretanha. Havia conferências amiúde e um movimento constante de emissários, altas personagens e ordenanças. A Corte mantinha-se em activa correspondência com o governo civil, os quartéis-generais, as legações estrangeiras e a esquadra britânica surta no Tejo.

 

A ansiedade crescia com as notícias sobre o desenrolar dos acontecimentos, e as opiniões dividiam-se quanto às medidas a tomar para sufocar a sublevação. Numa reunião presidida pela rainha tornou-se patente a desorientação dos elementos afectos à Corte: os ministros achavam que devia resistir-se, mas não atinavam quanto às medidas a adoptar para esse efeito. O ministro da Bélgica, Van de Veyer, que já antes tomara a iniciativa de chamar o ministro inglês Lord Howard, entendia que D. Fernando devia colocar-se à frente das tropas de linha.

 

Foi nesta altura que apareceu o barão de Campanhã a dar notícia da deserção das suas tropas, o que mais complicou o estado de espírito já bastante alterado de todos.

 

Novos planos tiveram de ser propostos, mas a divergência mantinha-se. Enquanto o ministro belga e o príncipe consorte eram de parecer que a rainha devia retirar-se para a esquadra inglesa, como único meio de se manter a ordem e salvaguardar o que eles chamavam a sua dignidade, os ministros e conselheiros de Estado consideravam a dificuldade prática de executar o plano, por não ser já possível chegar à esquadra inglesa através da cidade sublevada. Por outro lado, também não lhes sorria a ideia de a rainha abandonar o Reino à revolução vitoriosa. O perigo desta retirada, no momento preciso em que o povo estava triunfante nas ruas da capital, podia ser de consequências bem funestas para a própria instituição da monarquia.

 

Foi a consciência deste perigo que determinou na Corte uma táctica de prudente defensiva, aliás facilitada e encorajada pela mensagem dos chefes militares da sublevação.

 

A formação de novo Ministério chamado a substituir o que a Revolução derrubou seria a imediata oportunidade da contra-revolução.

 

Um ministério que não é órgão da revolução

 

O Ministério de 10 de Setembro não emanou da sublevação triunfante, nem representava as facções que nela participaram. Foi um governo nomeado pela rainha, escolhido em resultado das circunstâncias críticas em que o Paço se encontrava depois que as tropas aderiram à sublevação popular. Constituído para dar uma satisfação aparente às reclamações populares mais imediatas, serviu também para desmobilizar a sua força e quebrar-lhe o ímpeto revolucionário.

 

Após a entrega da mensagem à rainha, expedida do Quartel do Carmo, o Conselho de Estado decidiu recomendar a substituição do governo. Sancionava-se desse modo uma situação de facto e procurava-se salvaguardar o princípio da autoridade real. Mas foram os ministros demissionários que indigitaram os seus próprios sucessores - segundo um testemunho não contestado (28): os ministros demissionários aconselharam, antes de se retirarem do Palácio Real, que a formação do novo Gabinete devia ser confiada ao visconde de Sá da Bandeira e ao velho conde de Lumiares.

 

A escolha destas personalidades obedecia às conveniências da táctica defensiva adoptada no Paço após a transformação das manifestações populares em insurreição e da deserção das forças armadas. Uma vez que a oligarquia instalada no Poder não podia por mais tempo sustentá-lo, mudava o governo para as mãos de outra facção rival, é certo, mas solidária pelos interesses de classe em opor-se às turbas populares. Na luta de interesses que opunha duas facções da burguesia, uma delas beneficiava da crise política aberta pela sublevação.

 

A oposição de interesses entre as duas facções, por sua vez, traduzia-se numa diferenciação de tácticas políticas, que iam agora confrontar-se. À política de força adoptada pela facção vencida ia suceder uma política demagógica, tendente a mostrar que era a mais indicada para evitar os surtos revolucionários e de ascendência política das camadas populares.

 

É neste momento que vai ter oportunidade de revelar-se como estadista o chefe do constitucionalismo monárquico, Sá da Bandeira, que logo em 1820 tinha sido um dos mais activos conspiradores contra a Revolução iniciada no Porto a 24 de Agosto. O antigo capitão Bernardo de Sá Nogueira, responsável da conspiração militar da Martinhada, em Novembro daquele ano, pela qual fora preso e condenado, irá agora praticar no próprio seio do governo, ao qual acede como ministro dos Estrangeiros e da Fazenda, toda uma política antipopular, porém cuidadosamente acobertada por medidas e afirmações demagógicas, estilo político de que foi o grande mestre português e chefe de fila de uma longa corrente de sucessores.

 

Sá da Bandeira nada tinha que ver com a sublevação triunfante, a não ser na oportunidade que ela lhe oferecia de vencer a facção rival que ocupava ciosamente o Poder. A sua oposição ao gabinete que a sublevação popular derrotou tinha levado os conspiradores a tentarem aliciá-lo para a sua causa; chegaram mesmo a convidá-lo para chefiar o movimento (29). Mas na hora decisiva em vão esperaram por ele enquanto as forças sublevadas se concentravam no Largo do Rato, e foi por isso que teve de assumir o comando militar o próprio chefe da conspiração, o coronel Soares Caldeira, aclamado pelas forças da Guarda Nacional. O visconde de Sá, que não atendeu aos apelos dos conspiradores, que lhe ofereciam o comando, acorreu porém ao Paço, logo que a rainha o mandou chamar. Era natural. Mas assim como se tinha deixado insinuar no ânimo dos revoltosos, com respostas vagas, também ia fazer-se rogado às solicitações da Corte, e desse modo encontrar a melhor maneira de se impor aos dois campos em luta. A rainha e o rei consorte tiveram de insistir com ele para que aceitasse formar Ministério, ainda «que não fosse senão por pouco tempo», sacrifício a que acedeu só depois de muito instado, e então «com o fim de fazer prevalecer os princípios proclamados pela Revolução - escreveu ele 34 anos mais tarde (30) -, procurando contudo harmonizar tanto quanto possível a Constituição de 1822 com a Carta Constitucional de 1826». Na realidade, por detrás desta aparente tentativa de conciliar dois estatutos por sua essência irredutíveis encobria-se o objectivo político fundamental, que o visconde ia impor com o apoio da maçonaria militar, de que era um antigo e categorizado elemento (31).

 

Foi assim que, quando a rainha ainda hesitava em assinar os decretos que o próprio visconde lhe apresentava, enquanto as forças populares marchavam sobre o Palácio das Necessidades, Sá da Bandeira teria insistido nestes expressivos termos: «Assine, Vossa Majestade, que não podemos conter aquele povo.» Para conter aquele povo é que Sá da Bandeira aceitou o encargo de formar governo. E aceitou o encargo da parte da rainha, contra quem a Revolução se fez, e não da parte dos sublevados, a quem recusara o seu apoio.

 

Esta singela reconstituição das circunstâncias em que Sá da Bandeira foi chamado a formar Ministério permite compreender que o Gabinete constituído no dia 10 não foi de modo algum o governo da Revolução. Embora tão comezinha constatação, por evidente, pareça dispensar comentários, a verdade é que o Ministério de Setembro tem sido sempre considerado pelos historiadores liberais como um Ministério revolucionário, sendo até alguns dos ministros apresentados com os heróis da Revolução. Daí o gerar-se uma série de paradoxos, que torna extraordinariamente confuso o fenómeno do Setembrismo.

 

Se, depois disso, sublinharmos o paralelismo entre a condição posta por Sá da Bandeira para formar governo - harmonizar a Constituição de 1822 com a Carta de 1826 - com a ressalva de carácter constitucional aposta pelos oficiais na reunião do Quartel do Carmo, então passamos a compreender inteiramente a razão de semelhante «coincidência», que aliás nenhum historiador esclarece: a presença oculta de uma outra força ou organização que actuou com grande eficiência neste momento crítico, durante o qual as camadas da burguesia se viram ultrapassadas pelo ímpeto revolucionário das forças populares.

 

A Maçonaria terá sido o elemento orgânico através do qual se processou a modificação na correlação das forças decorrentes da vitória revolucionária. Se tivermos presentes o papel decisivo que a Maçonaria exerceu desde as primeiras tentativas para a implantação do liberalismo em Portugal, cremos não ser ousado nem gratuito sugerir essa hipótese, que factos posteriores ajudarão a confirmar.

 

Por outro lado, o Ministério de Setembro, que não emanou do seio da Revolução, também não foi declarado governo provisório, encarregado de preparar eleições através das quais se constituísse um gabinete correspondente às tendências manifestadas pelos eleitores nas urnas. Se os objectivos do Ministério não fossem outros, essa seria a via normal que deveria seguir - declarar-se governo provisório.

 

Mas assim não aconteceu.

 

Este equívoco Ministério de Setembro iria governar em ditadura, conforme expressamente foi resolvido no dia 11 de Setembro - dia imediato ao da vitória - durante uma reunião efectuada no gabinete do ministro da Guerra.

 

Mas comecemos por analisar a constituição do Ministério.

 

Composição do Ministério de Setembro

 

O Ministério ficou assim constituído: conde de Lumiares, presidente, acumulando com a pasta da Guerra e, interinamente, com a da Marinha, em princípio atribuída a A. C. Correia de Vasconcelos (32); visconde de Sá da Bandeira, Fazenda e Negócios Estrangeiros; Manuel da Silva Passos (Passos Manuel), com a pasta do Reino; o P.e Vieira de Castro, com a da Justiça e Negócios Eclesiásticos.

 

A primeira constatação que pode fazer-se ao observarmos essa lista de novos ministros é que nenhum deles participara na Revolução por força da qual eles alcançavam as cadeiras do Poder. E também nenhum deles representava os clubes políticos que a tinham fomentado.

 

A estas verificações negativas tem de opor-se uma pergunta: quem representavam então os novos ministros? Ou: quais seriam as facções que dominavam através deles?

 

Há um primeiro aspecto que fere a atenção do observador atento: um só homem acumula nas suas mãos, além da presidência do Ministério, as pastas da Guerra e da Marinha. Isso significa - parece legítimo aventar - que este era o homem de confiança da oficialidade reunida no Quartel do Carmo, que na madrugada do dia 10 tinha enviado à rainha a mensagem de compromisso. E, na realidade, o conde de Lumiares, ministro e presidente do Ministério, era o pai do oficial que nessa madrugada chefiara a delegação de militares que a levara à presença real (33).

 

Além desta ligação de sangue, em si já significativa, que representava mais o conde de Lumiares? Senhor de grandes domínios - do Vimieiro, de Alcoentre, do morgado de Paio Pires e Cachoeiras -, ele era par do Reino desde a nomeação, por D. Pedro, da Câmara Alta, quando da outorga da Carta, em Abril de 1826.

 

Se aceitássemos a tese tradicional de que o Ministério de Setembro foi o Ministério da Revolução, tropeçaríamos neste paradoxo: ser nomeado para fazer parte de um Ministério, que em princípio devia consolidar a supressão da Carta - abolida por sublevação popular -, um dignitário que por ela subira ao pareato, que com ela se conformava e sempre a defendera ao lado de D. Pedro, como era o caso do conde de Lumiares.

 

Essa anomalia compreende-se, porém, se soubermos que esta personagem central do Ministério pertencia à Maçonaria portuguesa e foi um dos grão-mestres do Oriente de Saldanha e Passos Manuel, dissidente desde 1828 (34).

 

A partir do conhecimento destes factos poderemos então compreender tanto a razão dos termos da mensagem dos oficiais do Carmo à rainha, que não correspondiam às reivindicações políticas aclamadas na rua pelo povo vitorioso, como a razão de se ter constituído um Ministério que não contava entre os seus elementos qualquer ministro representativo do sector popular da Revolução.

 

Que um tal Ministério tenha sido aceite pelos chefes burgueses da Revolução explica-se pela dupla circunstância da solidariedade maçónica, por um lado, a qual, por outro, correspondia à identidade de interesses no que toca à conveniência de fazer gorar o surto revolucionário popular.

 

Que os agentes deste desvio do sentido democrático da Revolução agiram orientados por uma linha de hostilidade a ela mostra-se pela sucessão destes três factos, cuja coerência é patente: os termos da mensagem dos oficiais à rainha; a constituição do Ministério, com a acumulação da pasta da Guerra com a presidência do governo; e a reunião no gabinete do mesmo ministro da Guerra, onde se decidiu que o Ministério governasse em ditadura. A aproximação destes factos, todavia, não aparece na historiografia liberal, modo esse, quanto a nós, de evitar a contradição que ela patenteia com a tese favorita, a qual procura acentuar o carácter pretensamente democrático do Ministério de Setembro.

 

Para atingir os seus objectivos, Sá da Bandeira chamou ao Ministério dois homens que podiam dar uma aparência de satisfação às reivindicações populares: Vieira de Castro e Passos Manuel, chegados na véspera a Lisboa entre os deputados aclamados nas ruas da capital. Eleitos por círculos onde o governo derrubado perdera as eleições, ambos devotados à rainha, é certo, mas considerados desafectos ao Paço pela atitude de hostilidade que tinham adoptado perante a regência de D. Pedro, os seus nomes imprimiam ao Ministério uma coloração que o tornava favorável à aceitação popular.

 

o P.e Vieira de Castro, desapossado pela Revolução Liberal dos rendimentos da sua rica abadia de S. Clemente de Basto, podia apresentar-se como um caso de isenção na sua fidelidade aos princípios políticos que abraçara. Por eles nenhum benefício acumulou, antes perdeu os privilégios feudais que a sua condição de eclesiástico lhe assegurava anteriormente. Os seus amigos ainda tentaram recompensá-lo dos prejuízos que a extinção dos dízimos lhe causara, nomeando-o governador temporal do bispado de Viseu. Mas o governo do duque da Terceira depressa o afastou dessas funções, desde que, em Abril, tinha assumido o Poder.

 

Eleito pela Beira Alta, na lista organizada em oposição ao governo, era, no entanto, possuído «de não vulgar moderação e prudência» (35).

 

Reunia, portanto, as qualidades julgadas convenientes para que fosse aceite pelo povo sublevado contra os «devoristas», ao mesmo tempo que pela sua moderação constituía uma garantia para a Corte e seus adeptos.

 

Mais complexa era a personalidade de Passos Manuel, de quem Sá da Bandeira se apressou a socorrer-se, em primeiro lugar.

 

A personalidade política de Passos Manuel

 

Passos Manuel era o ministro mais novo do gabinete - 35 anos - e ia ser o mais activo mobilizador de capacidades demagógicas, com o fim de hostilizar a Revolução e neutralizar os efeitos democráticos que o seu triunfo poderia acarretar.

 

Apresentando-o, ao contrário disso, como ministro da Revolução (36), e confundindo «Setembrismo» com Revolução de Setembro, é que a historiografia liberal desvirtuou e inverteu a significação deste momento crucial da sociedade portuguesa no século XIX.

 

A curva ideológica e política de Passos ajuda-nos a definir a significação do Ministério de Setembro e a inteligir a complexa encruzilhada do liberalismo português, cujas contradições bem se personificam nele. Essa curva é paralela, no fundamental, à dos mentores do constitucionalismo monárquico, fossem eles intelectuais, como Garrett ou Herculano, tribunos, como José Estêvão ou Rodrigues Sampaio, políticos, como os Cabrais ou Rodrigo da Fonseca Magalhães: entusiasmo na juventude, luta pelo Poder, sobretudo a partir da emigração, representatividade parlamentar depois do triunfo de 1834, funções ministeriais por vezes, ascensão na hierarquia das dignidades, títulos nobiliárquicos, por fim a Regeneração, vitoriosos amplexos dos constitucionais, cansados de tanto terem lutado contra as tentativas populares de intervencionismo político. O ministro chamado ao Poder em resultado da Revolução de Setembro foi isso tudo. Só não fez uso do título nobiliárquico, que porém aceitou e veio a ser usado pela filha mais velha, a viscondessa de Passos.

 

A riqueza pessoal, herdada ou adquirida, era condição necessária para alcançar os altos postos do Estado constitucional; a fidelidade à rainha e à Carta era o denominador comum político que identificava todos os partidários do sistema. Passos Manuel reunia todos esses requisitos, nomeadamente o da fidelidade à Carta, ao contrário das suas ambiguidades setembristas e do que por vezes têm pretendido inculcar os seus émulos. O passado político de Passos está ligado ao Partido Cartista de um modo tão íntimo que não podemos falar de um sem termos de referir o outro.

 

Manuel da Silva Passos, que os políticos designavam simplesmente por Passos Manuel, para o distinguirem do seu irmão mais velho, José, formava com este uma parelha política, que precedeu a dos irmãos Cabrais, celebrizados uma dezena de anos mais tarde. Pertenciam à sólida burguesia nortenha que assentava a sua prosperidade na combinação da propriedade rural estável com as vantagens de posições comerciais. A família de que eram oriundos (de S. Martinho de Guifães, Bouças, na Maia) dispunha de uma fortuna constituída por propriedades rústicas e avultadas disponibilidades financeiras. Em 1828 tinha colocados 60.000 cruzados na Companhia das Vinhas do Alto Douro, além de outros interesses em várias casas de comércio no Porto.

 

As ambições de ascensão social correspondente a uma tal prosperidade económica tinham-se afirmado já sob o antigo regime, quando o pai comprou o priorado de Cedofeita com vista ao filho mais velho, inicialmente destinado à carreira eclesiástica. Quando a Revolução liberal se iniciou, em 1820, os dois irmãos, ainda estudantes de Direito, aderiram ao novo regime e fundaram até um jornal de propaganda política, o Amigo do Povo (Coimbra, 1822-1823). Foi o período fácil do entusiasmo juvenil, com adesão às posições mais avançadas do liberalismo português dessa época, defendendo ali a Constituição de 1822.

 

Mas já em 1826 aparece Passos Manuel ao lado de Saldanha, como adepto e defensor da Carta que D. Pedro acabava de outorgar. O Partido Cartista conta desde aí com os dois irmãos como seus elementos preponderantes.

 

Durante a emigração política (1829-1832) essa posição reforça-se na cisão que opôs o general Saldanha ao conde de Palmela. Ocorreu ela em 1829, quando os maçãos portugueses instalados em França, entre eles os dois irmãos, que habitaram em Eaubonne, perto de Paris, criaram um novo Oriente (oposto ao que actuava a partir da Inglaterra, onde se encontravam Palmela e Silva Carvalho), e elegeram o general seu grão-mestre Ao secretário que o conde, na Primavera desse ano, enviou de Londres com ordens suas, Saldanha teria respondido «que não reconhecia mais autoridade de Palmela para o mandar» (37). A partir de então os irmãos Passos aparecem como mentores intelectuais da facção política de Saldanha, adeptos fervorosos da Carta e da filha do seu outorgante, a princesa Maria da Glória, futura rainha Maria II (38). É por essa altura que eles afirmam sem equívocos: «A Carta (por nós jurada) satisfaz todos nossos escrúpulos» (39).

 

Depois da sua adesão ao Partido Cartista, a ascensão política dos Passos foi tão célere que em 1834, ano da vitória liberal, a Maçonaria dissidente aparece com dois grão-mestres eleitos: Saldanha, para o Sul, e Passos Manuel, para o Norte, tendo este o seu irmão José como lugar-tenente no Porto (40).

 

Passos Manuel era um típico representante da burguesia despeitada pelo monopólio do Poder que a alta burguesia financeira e monopolista praticou. Quando se opunha aos seus exageros e mesmo às suas ilegalidades, dominava-o, por outro lado, a preocupação de evitar as consequências revolucionárias que desses exageros podiam resultar.

 

Alguns dos seus apologistas, após Latino Coelho (41), têm atribuído a Passos Manuel os louros da oposição parlamentar à lei das indemnizações, quando esta foi atacada no Parlamento por alguns deputados. Mas se lermos o discurso que a tal respeito ele pronunciou a 28 de Janeiro de 1835 pasmamos com a ousadia de tais apologistas.

 

Passos Manuel não se opôs à lei das indemnizações, pelo contrário, pretendeu colaborar nela, mantendo-lhe os mesmos propósitos expropriadores, mas camuflando-lhe o aspecto de «lei odiosa» por uma simples transferência de funções nas ordens de demanda. Assim, explicava ele na tribuna, com um cinismo fingido de ingenuidade, já a lei «não lança sobre o governo executivo o ódio dessas abomináveis categorias; porque só o jurado é que as faz, e ninguém pode queixar-se do juízo da Nação» (42)!

 

Ao contrário do que pretende esta tradição, até foi defensor, desde 1832, da necessidade das indemnizações «para todos os emigrados, presos, degredados e homiziados por fiéis à rainha e à Carta» (43).

 

Quando a Revolução já se preparava, ainda no Porto recusou, como Sá da Bandeira o fez em Lisboa, o convite que lhe dirigiram para nela participar. Ele próprio se ufanará dessa recusa, quatro meses depois da Revolução: «opus-me a que ela se fizesse no Porto no dia 24 de Agosto». «Eu não fiz a revolução nem a aconselhei - disse ele claramente no mesmo discurso - porque uma revolução é uma calamidade» (44).

 

Porque aceitou então fazer parte de um Ministério que era consequência de uma revolução? Ele o diz sem rodeios noutra passagem do mesmo discurso: «não conspirei, mas a revolução estava feita e era mister aceitá-la; dirigi-Ia nos interesses do País e da Nação» (45).

 

Modificação na correlação de forças

 

Este Ministério não correspondia de modo algum, pois, às aspirações populares da Revolução de Setembro, e, pelo contrário, fora constituído para se lhe opor. Por seu intermédio - como bem notou José Arriaga (46) numa afirmação de que nem sempre tirou as devidas consequências - «a revolução democrática acabava de receber a primeira imposição e influência do Paço».

 

Não sendo representativo das diferentes camadas sociais que participaram na Revolução, nem reflectindo as suas diferentes correntes, também evitou revestir-se do carácter de governo provisório. Logo no dia seguinte à sua constituição reuniram-se os ministros com os seus amigos políticos no gabinete do ministro da Guerra - do Ministério da Guerra, note-se - e aí se decidiu governar em ditadura.

 

O Ministério de Setembro foi, na realidade, uma ditadura imposta pelos chefes militares conservadores. Através dela pretendeu-se quebrar o ímpeto revolucionário, que se pressentia ameaçador, sob o impulso das camadas populares. E ao mesmo tempo que estas se enfraqueciam com a retirada da média burguesia ia tentar-se afastar a rainha da influência exclusiva da alta burguesia dominante na Corte.

 

Com a formação do novo Ministério ensaiava-se novo alinhamento de forças: a média e a alta burguesias, aliadas da Corte, para um lado; para o outro, as camadas populares, constituídas pelos sectores proletários, plebeu e da pequena burguesia mais radical.

 

A modificação na correlação de forças não se manifesta apenas na cisão operada no bloco unitário da Revolução, no momento em que se tornou manifesto o seu triunfo Ela vai manifestar-se em sucessivas alterações de condutas que se processarão através das crises políticas posteriores E pode documentar-se em face de um manifesto publicado acto contínuo à Revolução, dirigido aos ministros da Coroa e à Nação (47).

 

Um programa, denúncia e isolamento do Ministério de Setembro

 

Pelo programa que preconiza e pela posição que adopta - pretende-se simultaneamente «amigo dos ministros e do Povo» -, o autor do manifesto reflecte as perplexidades do sector mais radical da burguesia e algumas das suas aspirações.

 

Sublinhando muito justamente a importância da Revolução, pela qual, diz, «o povo entra pela primeira vez em cena», um povo que pode não saber expressar com clareza o que pretende, mas que «está cônscio da sua força» e que soube já proclamar a Constituição de 1822, põe em dúvida a capacidade dos ministros para corresponder às suas aspirações: «Ele sabe já mais do que os seus governos», e «eu não sei bem quem saberá ser ministro constitucional.»

 

«Ministros de Sua Majestade – adverte -, vós sois sábios, mas quanto é homem falha: vós sois livres, mas quanto toca o Trono degenera, ouvi, pois, o homem do povo, ó homens do estado.» Acentuando esta oposição dos «homens do estado» e do «homem do povo», acrescenta noutra passagem: «o povo manifestou enfim que tinha uma alma, e hoje se os ministros a tinham é que começa a duvidar-se».

 

A posição dúbia do Ministério é denunciada através de um significativo incitamento: «Senhores do Ministério, nem à direita, nem à esquerda, nem atrás, é dado a ninguém olhar, ao alvo, só ao alvo - os princípios são o alvo, nada mais [...] não há pois que hesitar: franqueza-progresso-direitura aos princípios - eis aqui a legenda da revolução.»

 

Então passa a expressar o que aspirava que a Revolução fosse para si - homem radical da burguesia, considerando como interesses do «povo» o que eram os interesses da sua classe e as suas aspirações.

 

Eis os princípios que desejava ver decretados:

 

1.º Quatro poderes constitucionais - «três populares e um do trono»: eleitoral, judicial, municipal, competindo ao trono o quarto poder, o executivo. Nada mais de julgados reais nem de administrações reais. «O ministério do Reino deve corresponder hoje ao poder eleitoral - o da Fazenda ao poder municipal - o da Justiça ao poder judicial.»

 

2.º O poder eleitoral é o geral responsabilizador para todos os poderes.

 

3.º Nenhuma função representativa haverá mais que a popular, acabando os poderes soberanos de convocação, prorrogação e dissolução.

 

4.º Não haverá escrutínio secreto. Defende o método preconizado por Silvestre Pinheiro Ferreira («o publicista Pinheiro») no Droit Publique (aliás Principes du droit public constitutionnel, Paris, 1834): em voz alta ou listas assinadas.

 

5.º A habilitação a deputados será feita pela notabilidade de espírito ou de carácter, não pelo elemento de riqueza, considerada esta como uma «espécie de aristocracia».

 

6.º «O poder judicial é um poder popular, e não do Estado». Exige a cessação do poder moderador, que tinha servido para abolir a Constituição.

 

7.º O poder administrativo é popular, e não do Trono: não haverá pois desde hoje mais administração do que a municipal (câmaras e juntas), pelo que os diferentes ramos da administração central deviam ser incorporados nas municipalidades.

 

8.º Devem ser desde já eleitas as novas câmaras municipais, reintegradas nos seus foros.

 

9.º Abolição de todos os governadores civis e de todo o poder administrativo central, bem como dos recebedores e dos magistrados policiais.

 

10.º Proibição de acumulação de empregos.

 

11.º Obrigatoriedade de concurso na admissão a funções públicas. A habilitação como condição prévia.

 

12.º Igualdade de honorários, com máximo de dotação.

 

13.° Direito de livre associação e incitação a ela.

 

14.º A Guarda Nacional «à ordem do poder eleitoral» e dotada com a arma de artilharia. Redução do Exercito a metade.

 

15.º As tropas de linha devem aquartelar-se nos pontos de interesse militar; as guardas e os batalhões nacionais nas vilas e cidades.

 

16.º Aprazamento para apresentação das praças e oficiais que se tenham afastado sem motivo justificado.

 

17.º Venda dos bens nacionais com preço para os lotes de 20 a 100 réis para as terras pobres, de 100 a 1000 para as de boa fertilidade. «Nas terras e bens, em que se não obtiver pronta venda, propor-se-á o aforamento, o terço dos fundos assim obtidos formará os bancos rurais em todos os distritos.»

 

18.º Que se decrete a lei das hipotecas para esse efeito.

 

19.º Extensão à indústria dos títulos de fidalguia até então conferidos ao serviço e ao merecimento. Limite até 2000 braços empregados na indústria, com obrigação «a empregar com preferência os braços que o movimento de regeneração há-de necessariamente deslocar».

 

Termina com um apelo aos ministros, considerados como «depositários da opinião», «sancionadores das leis» e «protectores da liberdade», para que apreciem as suas propostas, apresentadas no exercício dos «direitos da liberdade e opinião».

 

Reflectindo algumas aspirações progressivas de mistura com os prejuízos idealistas da época, este manifesto assinala claramente - e é esse o aspecto que aqui nos interessa sobrelevar - a falta de confiança do sector radical da burguesia na capacidade do Ministério para concretizar as aspirações progressivas por ele preconizadas.

 

Se a grande burguesia foi incapaz em 1834, pelo seu egoísmo e sofreguidão de riqueza, de promover as medidas de desenvolvimento que o País reclamava após o triunfo da Revolução Liberal, a burguesia setembrista, já pela posição de compromisso político em que o governo se colocou, já pela timidez dos seus representantes no governo, revelou-se igualmente incapaz de uma acção profundamente renovadora.

 

À incapacidade e inépcia do Ministério de Setembro juntava-se a sua preocupação em reprimir o impulso revolucionário das massas populares. Este afastamento e divórcio das camadas mais aguerridas, e as únicas que podiam consolidar o governo no Poder, havia de ser fatal para o movimento triunfante em Setembro.

 

A preocupação de travar o impulso revolucionário atraiu a burguesia setembrista para a órbita de influências do Paço e seus agentes. Pela intriga, pela conspiração e pela conivência estrangeira, particularmente dos ministros inglês e belga, a contra-revolução entrou em vias de facto.

 

 

IV

Contra-revolução: a Belènzada

 

 

Inépcia governativa do Ministério de Setembro

 

A posição de compromisso do Ministério de Setembro, a sua incapacidade governativa, o divórcio das mais genuínas aspirações populares e a ausência de medidas para defender o novo regime, tudo isso facilitou o caminho à reacção e encorajou os conspiradores partidários da Carta.

 

O Ministério, na realidade, não tomou medidas para consolidar a sua posição no Poder: a substituição de algumas autoridades civis, de alguns comandos militares e o reforço da Guarda Nacional não foram suficientes para desencorajar qualquer tentativa contra-revolucionária.

 

No dia 6 de Outubro houve uma tentativa de sublevação de Caçadores 5, a pretexto de uma partida de tropas para o Algarve, a combater as guerrilhas miguelistas do Remexido. A intervenção rápida da Guarda Nacional frustrou a intentona e o oficial inculpado foi preso. Mas quando as tropas partiram, D. Fernando compareceu, na esperança ainda de que as forças se insurgissem.

 

O rei consorte, aliás, nunca dissimulou a hostilidade ao governo setembrista. Quando em 14 de Setembro se despediu do Exército teceu um elogio da Carta que o movimento popular acabava de fazer caducar, e terminava com a promessa de que em breve retomaria o comando supremo. E numa carta dirigida à rainha, que os jornais cartistas nessa altura publicaram, afirmava que se demitia de comandante-chefe e de coronel de Caçadores 5, em virtude de as tropas se terem reunido sem ordem sua, de terem deliberado na praça pública e de terem praticado actos de violência e insubordinação arrogando-se o direito de despedirem os seus oficiais (48).

 

A rainha, por sua vez, recusou assinar decretos que promoviam e premiavam os autores do movimento de Setembro.

 

Os altos funcionários seguiam o exemplo da rainha e do esposo, protestando contra a nova situação e instigando o funcionalismo a não jurar a Constituição. Vinte e sete pares do Reino fizeram mesmo publicar num jornal estrangeiro (o Times) uma declaração de recusa da Constituição: os duques de Palmela e da Terceira eram os primeiros signatários.

 

Pois a despeito desta intensa actividade conspirativa contra o movimento setembrista e de o próprio jornal governamental, o Nacional, ter chamado a atenção dos ministros para a necessidade de se afastarem do rumo dos seus antecessores e de não transigirem com os cartistas, que andavam a conspirar tanto no País como no estrangeiro, nenhumas medidas foram tomadas para preservar o regime das consequências desta alarmante actividade hostil.

 

Nos postos capitais da representação diplomática foram mantidos os ministros nomeados pelo anterior governo. O barão de Moncorvo, ministro em Londres, não hesitou mesmo em pedir, em nome da rainha, auxílio ao Gabinete Britânico para conjurar as consequências do movimento de Setembro e para restaurar a Carta.

 

A imprensa cartista hostilizava a situação frontalmente, e não só numa posição de crítica como de calúnia e de instigação contra a Constituição proclamada. Alguns jornais cartistas se fundaram então. A esta hostilidade da imprensa o governo respondeu com uma declaração do mais absoluto respeito pelos princípios sagrados da liberdade de imprensa, como que a instigar e a encorajar essa acção demolidora!

 

Em resumo: o governo setembrista, pela sua inépcia (ou conivência), encorajava a actividade conspirativa do Paço e da aristocracia contra a nova situação estabelecida; e pela sua posição de classe, indiferente à situação das camadas laboriosas, isolou-se das camadas mais amplas do povo e desprezou o seu apoio.

 

Não admira, por tudo isso, que as forças reaccionárias da alta burguesia, instaladas no Poder por D. Pedro IV em 1834 e defendidas pela sua filha e sucessora D. Maria II, se sentissem encorajadas a tentar o golpe de Estado contra o movimento que temporariamente lhes retirou das mãos as rédeas do governo.

 

Mas o fracasso da tentativa de restauração da Carta vai mostrar que o impulso popular de Setembro, ainda que desencorajado e mesmo atraiçoado pelo Ministério, se mantinha bastante vigoroso para que as conspirações palacianas pudessem resultar facilmente.

 

Apoio estrangeiro à conspiração cartista

 

De resto, graves contradições opunham os vários sectores interessados na restauração da Carta. Se a oposição às consequências do movimento popular de Setembro os juntava no mesmo bloco conspirativo, a oposição de interesses diferenciados não permitia uma perfeita coesão nesse bloco.

 

Os cartistas eram uma minoria isolada no País. A sua causa não era uma causa nacional; não tinha outros adeptos que não fossem os próprios interessados numa política de privilégios. A sua força advinha do apoio estrangeiro.

 

E, na realidade, podiam dispor da simpatia tanto da casa reinante da Bélgica - que pelo contrato matrimonial do príncipe D. Fernando com D. Maria II se tornara protectora dos monarcas portugueses - como dos governos monarco-constitucionais da Inglaterra e da França, que pelo tratado da Quádrupla Aliança tinham colocado sob a sua estreita influência os tronos constitucionais das monarquias peninsulares.

 

Mas o equilíbrio de interesses que, dois anos antes, tinha permitido aquela partilha de interesses no Ocidente europeu estava agora comprometido.

 

O rei Leopoldo I, da Bélgica, pretendeu fazer valer também a sua influência: as novas ligações de parentesco com a coroa portuguesa facultavam-lhe essa intromissão, facilitada ainda por outras relações de parentesco com a coroa britânica, através da duquesa de Kent.

 

Nesse sentido tomou a iniciativa de expedir para Londres um enviado especial, o general Goblet, encarregado de fomentar uma expedição, cujo financiamento Portugal retribuiria pela cedência de territórios coloniais (49).

 

Mas a Inglaterra, abalada pela crise económica, estava por sua vez interessada em manter e reforçar as vantagens de mercado que uma administração dócil em Portugal lhe facultaria, e de modo algum lhe convinha partilhar com outras potências a influência exclusiva que tradicionalmente exercia sobre a sua aliada continental.

 

Ora, a influência belga sobre a monarquia portuguesa representava uma concorrência perigosa à tradicional influência da Grã-Bretanha. As ligações de parentesco não bastavam para a dissimular.

 

Por isso Lord Palmerston se mostrou sempre tão reservado e renitente em aceitar as insistentes diligências do Governo Belga: desculpava-se com as circunstâncias da política interna inglesa, que não lhe permitiam comprometer o governo numa empresa pela qual o Parlamento lhe pediria contas.

 

Porém, o chefe do Gabinete Britânico, ao mesmo tempo que procurava não se comprometer com a táctica perigosa de uma intervenção armada, preconizada pelo monarca belga, esforçava-se por atingir esse mesmo fim, mas por meios diferentes. Se a diplomacia belga lhe pedia tropas para desembarcar em Portugal, desculpava-se com as dificuldades parlamentares e com a circunstância de não ter forças bastantes na esquadra ancorada no Tejo; se a Bélgica oferecia soldados e se declarava apenas carecida de transporte, ele obstinava-se numa negativa absoluta, preconizando que era preciso preparar o terreno em Lisboa, de modo que as forças que aí interviessem fossem chamadas de uma maneira «mais ou menos regular» (50).

 

É que Palmerston, cioso de preservar os interesses britânicos, tinha adoptado uma táctica própria, que não era a mesma do rei dos Belgas, e que Goblet deixa transparecer nesta curta passagem: «il parle d'une impossibilité absolue et des chances assez nombreuses de voir modifier, légalement Ia Constitution de 1822» (51).

 

Na realidade, a diplomacia inglesa buscava apoio à sua intervenção através da acção política de estadistas portugueses que constituíssem uma boa garantia para a defesa dos interesses britânicos.

 

Por isso Saldanha, que a Revolução de Setembro surpreendera em Sintra dedicado aos seus negócios privados (52), aparece logo em seguida em Lisboa e dedica-se a conciliábulos privados com os representantes diplomáticos da Inglaterra e da Bélgica, a quem expõe um balanço das limitadas possibilidades da contra-revolução: «Podemos, com as nossas próprias forças, derrubar o partido da revolução, mas jamais nos poderemos manter sem a protecção da Bélgica e da Inglaterra» (53).

 

Foi só quando Goblet deu conhecimento a Palmerston do despacho diplomático que transmitia aquela opinião do marechal (54) que o chefe do Gabinete Britânico aceitou aderir ao plano belga de intervenção, a pretexto de um hipotético perigo de retorno de D. Miguel.

 

Em fins de Outubro, Palmerston comunicava ao rei Leopoldo a opinião de que a rainha de Portugal, para mudar de sistema e de ministros, precisava de estar ao abrigo de perigos pessoais, mudando-se para Belém, visto que no Palácio das Necessidades era impossível enviar-lhe tropas de bordo da esquadra; e que, se houvesse ministros que acompanhassem a rainha e assinassem um apelo às forças da Grã-Bretanha, a protecção inglesa podia também estender-se ao governo, desde que este tivesse apoio interno.

 

A partir deste momento, a conspiração ia consumar-se. Goblet recomendou ao seu compatriota e colega em Lisboa que apressasse os últimos preparativos (55).

 

O rei Leopoldo tentou ainda obter a coadjuvação da França, a pretexto de que o restabelecimento de um governo cartista em Portugal encorajaria por sua vez a reacção em Espanha. Mas a França estava ocupada com outros problemas cujo interesse se sobrepunha aos negócios peninsulares: a questão argelina. O gabinete estava dividido. Enquanto Thiers, que se colocara na posição extremista de preconizar a subjugação a todo o custo do surto revolucionário na Península, se vira forçado a pedir a demissão, Louis Philippe foi circunspecto na colaboração que lhe solicitou Leopoldo I: limitou-se a aceitar que três navios de guerra já postados nas água do Tejo cooperassem com a esquadra inglesa, mas deixando a esta a exclusiva responsabilidade da iniciativa.

 

Internamente, os aliados da rainha conspiravam com o à-vontade que o governo conivente de Sá da Bandeira e Passos Manuel lhes consentia: a quinta do duque da Terceira, na margem esquerda do Tejo, era o quartel-general da contra-revolução.

 

Com o apoio declarado dos Governos Belga e Inglês, com a complacência do Governo Francês e a cumplicidade do Governo setembrista, a conspiração para o restabelecimento da Carta executou-se no dia 2 de Novembro, menos de dois meses volvidos sobre a Revolução

 

Golpe de Estado: 2 e 3 de Novembro

 

Escreveu Passos Manuel (56) que o mês de Novembro começou medonho e que os ministros passaram muitas noites sem dormir. Isso terá sido verdade.

 

Em Lisboa foram postos a correr boatos ameaçadores: dizia-se que os ministros iam ser assassinados, que a Inglaterra queria a Carta com o governo anterior, que a bordo das esquadras estavam as tropas prontas para desembarcar e que em Beja já tinha rebentado a contra-revolução.

 

Sobre a névoa confusa dos boatos começou a desenhar-se o contorno da ofensiva cartista: o visconde de Sá da Bandeira recebeu no dia 2 uma nota do ministro inglês a participar-lhe que as tropas desembarcariam da esquadra se a rainha fosse considerada em perigo.

 

Os ministros foram ao Paço, e lá disseram-lhes que a Carta teria de ser restaurada. Passos Manuel apresentou a demissão do Ministério, o que só podia trazer como consequência facilitar e encorajar o passo da conspiração. Esta ineptidão do ministro setembrista deve ter deixado a rainha tão surpreendida que ela nem aceitou nem recusou a demissão.

 

Ao lusco-fusco terão sido presenciados sinais luminosos que se faziam da residência do ministro inglês dirigidos à esquadra, e à noite os batalhões da Guarda Nacional ocuparam posições na cidade até de madrugada.

 

No dia 3 este ambiente de tensão manteve-se.

 

Depois de participar ao conde de Lumiares a sua resolução, a rainha abandonou o Paço das Necessidades e instalou-se em Belém, com a justificação de estar aí mais tranquila. Acompanharam-na regimentos de Lisboa anteriormente aliciados. Os ministros não reagiram. Era como se entrassem na conjura, mas de um modo passivo, a coberto de uma demissão aparentemente de protesto.

 

À noite, os ministros receberam ordem para comparecerem em Belém, juntamente com o administrador-geral (Soares Caldeira), o governador militar e outras autoridades setembristas, com o fim de serem tratados assuntos importantes. Os ministros estavam reunidos em casa de Passos. Delegaram em Vieira de Castro, a quem a rainha e o marido intimaram que o Ministério fizesse de novo proclamar a Carta.

 

Vieira de Castro voltou com a notícia de que a contra-revolução se tinha consumado. E os ministros regozijaram-se por não terem acorrido todos ao chamamento, pois convenceram-se de que havia um plano para os prender.

 

A situação tornara-se delicada. Mas a Guarda Nacional pusera-se em armas.

 

A Guarda Nacional, desde o movimento de Setembro, transformara-se num elemento decisivo que importava ter em conta na condução dos negócios políticos. Era a força da causa democrática. Os seus soldados, e sargentos identificavam-se com as mais radicais aspirações da vontade popular.

 

Além disso, os corpos de voluntários e as milícias do Arsenal eram a expressão do povo em armas e alinhavam com as forças da Guarda Nacional. As tropas estavam possuídas de uma elevada consciência da sua força, consideravam-se «cidadãos-soldados». Atrás de si tinham o exemplo próximo dos sargentos da Granja, que, pela sua iniciativa, tinham modificado a situação política em Espanha.

 

Tendo acorrido às armas logo que a conspiração se iniciou, as tropas da Guarda Nacional modificaram a situação que os ministros tão passivamente encaravam, e instigaram-nos a agir. Estes decidiram então, com efeito, ir a Belém. Mas logo ficou assente que Sá da Bandeira ficaria em Lisboa, a pretexto de defender a retirada dos seus colegas, se estes corressem perigo.

 

Entretanto, o golpe de Estado tinha-se na realidade consumado, através, da nomeação de um novo Ministério (57) - constituído por «gente nova», como preconizavam os chefes da conspiração -, que por sua vez decretou a restauração da Carta.

 

Quando os ministros de Setembro chegaram, a rainha limitou-se a notificá-los das modificações operadas.

 

Nesta contingência, Passos Manuel apelou mais para sentimentos de magnanimidade que para os de dignidade e altivez: antes de se retirar pediu que fosse concedida uma amnistia a todos os implicados na Revolução (58), cujos termos ele próprio redigiu (59).

 

Inacção do Ministério

 

Vexados, os ex-ministros retiraram-se. Não tiveram qualquer outra reacção, nem Passos Manuel nem qualquer dos seus colegas.

 

E, de volta à cidade, dirigiram-se para a casa de Sá da Bandeira, que aguardava os acontecimentos na companhia de alguns amigos políticos.

 

Os ex-ministros não recuperaram ânimo desde Belém até Lisboa. Tão vencidos se sentiam ao comunicarem em casa de Sá o que sucedera que entre os circunstantes houve a princípio um silêncio geral.

 

Mas o silêncio dos que em casa de Sá da Bandeira ouviram o relato dos ex-ministros não era só de consternação pelos factos consumados. Por parte de alguns dos circunstantes seria também de estupefacção pela falta de perspectivas e pela aparente incapacidade directiva daqueles homens que se tinham apoderado dos destinos do movimento de Setembro.

 

Depois do silêncio inicial, ergueu-se subitamente a voz indignada de um oficial da Guarda Nacional. Terá dito que a Guarda não cederia e que o seu batalhão estava disposto a morrer, mas não a ser infiel ao juramento que todos tinham feito de fidelidade à Constituição.

 

Pela voz deste oficial,[ Rio Tinto (60), comandante do 15.º batalhão], que se pronunciou pela resistência armada, em contraste com o vencidismo dos ministros, exprimia-se a vontade de luta daquela multidão de populares que acorreu ao campo de Ourique a pedir armas. E essa decisão de luta era tão manifesta que ninguém se opôs aos dizeres do oficial. Esta decisão de resistência foi, aliás, acompanhada pela rejeição expressa da amnistia (61).

 

Logo que uma tal decisão foi adoptada, Passos Manuel correu a falar a sós com o oficial que altivamente se pronunciara, e fez-lhe uma declaração de fidelidade à causa popular, de apreço pela sua coragem e de oferecimento dos seus serviços Era estranho o procedimento deste ministro, a quem ninguém reclamara semelhante declaração, e muito menos nas condições de confidência em que ela foi feita.

 

Que factores subconscientes agiram no seu espírito para proceder dessa maneira? Sentia que a direcção política escapava das suas mãos? Receava ser ultrapassado pelos acontecimentos e temia o futuro?

 

Talvez o receio de que a causa popular triunfasse lhe tenha aconselhado esta oportunista declaração. E, tendo sido feita a sós, sem testemunhas, não ficava por ela comprometido se o destino da resistência armada fosse diferente...

 

De qualquer modo, a situação era inquietante. O povo em armas constituía um perigo de extrema gravidade. Era preciso agir sem perda de tempo. E Passos Manuel pôs-se em campo, cioso da sua liderança política.

 

Reacção popular

 

No dia 4, o campo de Ourique transformou-se num grande arraial de gente empenhada na defesa dos princípios democráticos que tinham impulsionado o movimento de Setembro. O povo de Lisboa compareceu a solicitar armas. Além dos batalhões da Guarda Nacional concentraram-se aí forças da Guarda Municipal, o Batalhão do Arsenal e muitos milhares de populares armados.

 

Era o renascer da revolta de Setembro, para além da falência do Ministério então nomeado.

 

Ao sinal de perigo, o povo de Lisboa voltou a erguer-se. Além do ódio aos homens da Carta movia-o ainda a falta de confiança na decisão dos ministros. Os boatos tinham alarmado a capital durante dois dias, sem que o governo agisse ou providenciasse em qualquer sentido. A concentração popular no campo de Ourique revelava disposição de luta e confirmava a justeza da posição do oficial que se erguera em casa de Sá da Bandeira a proclamar a resistência armada.

 

O povo e as tropas ali reunidas confraternizaram mais uma vez. O povo armou-se e os soldados juntaram a sua voz à do povo.

 

Foi perante esta situação que os comandantes militares e alguns cidadãos tomaram a iniciativa de se reunirem para tomar decisões sobre o comportamento a adoptar.

 

Esta reunião tem muita importância.

 

As personalidades que nela participaram eram chefes militares e cidadãos distintos, no dizer dos cronistas. Isso significa que era gente da classe alta, a mesma gente que em Setembro se apropriara do movimento popular e o dirigiu. Estes dirigentes voltaram agora a agir, e mais uma vez pressionados pelo impulso da decisão popular. A reunião foi promovida para decidir o procedimento a adoptar - perante a atitude do povo e das tropas.

 

Na reunião decidiu-se enviar à rainha uma mensagem a informá-la sobre o estado de espírito que reinava na capital e a convidá-la a desistir dos seus intentos; que se ela não anuísse então se marchasse sobre Belém, a fim de se defender a Constituição que em todo o País tinha sido jurada Também foi eleita uma junta de resistência, e Sá da Bandeira foi unanimemente aclamado comandante-chefe de todas as forças (62).

 

No momento em que a mensagem começava a redigir-se chegou Passos Manuel na companhia de Ribeiro Saraiva, e ofereceu-se para se desempenhar ele da redacção. Mas como estivesse a desincumbir-se dessa tarefa que lhe confiaram em forma de carta particular desaprovaram-lhe essa modalidade e foi-lhe exigido que escrevesse a carta em nome de todos.

 

Era curial que assim fosse.

 

Mas Passos Manuel tinha as suas razões, os seus planos preconcebidos. Não lhe sendo permitido escrever a carta como desejava fazê-lo, propôs dirigir-se à rainha verbalmente, o que foi aceite.

 

E como, entretanto, tivessem chegado emissários do Paço a pedir que uma deputação fosse a Belém, a fim de parlamentar com a rainha, para lá seguiu sem mais demora Passos Manuel, acompanhado do mesmo Ribeiro Saraiva, que com ele viera.

 

A descrição que até nós chega do que se passou na reunião não pormenoriza as considerações aduzidas para justificar esta reviravolta na posição da assembleia, inicialmente tão decidida nos seus propósitos, e por fim tão incongruente nas suas últimas decisões.

 

Porque foi aceite a proposta de Passos Manuel se dirigir verbalmente à rainha, quando, momentos antes, não lhe tinha sido permitido escrever em nome pessoal? Não viram os participantes na reunião que permitir-lhe desempenhar-se da missão verbalmente era abrir a porta a todas as manobras que os parlamentários concebessem nas costas daquela assembleia?

 

A incongruência deste procedimento mostra, no nosso entender, a presença de forças contraditórias nessa pequena assembleia de dirigentes. Do ponto de vista burguês, devia estar lá gente a mais, isto é, além dos dirigentes burgueses, empenhados em suster o levantamento popular, estariam presentes outros elementos não burgueses, possivelmente representantes dos batalhões de voluntários do Arsenal, ou outros. Teria sido sob a vigilância destes elementos combativos que a carta não pôde ser escrita em nome individual.

 

Mas, entretanto, chegaram os emissários do Paço com propostas pacificadoras e disfarçados em amigos do povo (63). Os elementos burgueses, a quem, nestes apuros, sempre convém uma política de contemporização, teriam aproveitado a ocasião para confundir os conjurados mais radicais, e, explorando o estado de hesitação produzido, Passos Manuel avançou com a proposta de se ocupar verbalmente da missão, isto é, pediu carta branca para agir. E obteve-a. Artes da demagogia!

 

Obteve-a porque a maioria burguesa que aí preponderava tinha mais interesse em encontrar uma solução que permitisse desmobilizar o povo em armas do que em colocar-se em hostilidade com a rainha e todas as instituições da ordem estabelecida sob a forma monárquica. Agir sob o impulso popular, sob a pressão de gente sem nome, sem teres nem haveres, sempre poderia conduzir a consequências absolutamente indesejáveis e inconvenientes.

 

Foi no entendimento ou subentendimento destas conveniências burguesas que Passos Manuel logrou oportunidade de afirmar todas as astúcias da sua demagogia.

 

Duas posições, duas tácticas

 

A contradição das forças representadas na reunião reflecte-se também na diferença de tácticas adoptadas. Enquanto os chefes burgueses do movimento pretendiam evitar a luta e que corresse sangue, os sectores radicais dispunham-se a esmagar sem contemplações a conspiração dos cartistas contra a vontade popular.

 

A indignação perante a insolência do golpe de Estado manifestou-se violentamente em diferentes pontos da cidade. Foi o caso, por exemplo, do que se passou com o ministro cartista Agostinho José Freire. Ao passar num posto da Guarda Nacional, metido numa sege em direcção a Belém, foi interceptado e preso. Reconhecido pela farda que envergava, ao apear-se da sege um tiro derrubou-o mortalmente. E a cólera popular não se conteve sem que novos tiros crivassem de balas o cadáver, até que desprezivelmente foi enterrado.

 

«Essa fúria da populaça - comentou Oliveira Martins -, vitimando o ministro fazia-o expiar os crimes de multa gente» (64).

 

A notícia da morte de Agostinho José Freire, quando chegou alvoroçadamente a Belém, certificou os conspiradores da intensidade de indignação popular que o golpe contra-revolucionário produzira.

 

Um terror pânico espalhou-se entre todos, cuidando cada um de se pôr a salvo, indiferentes ao destino da rainha (65).

 

Outro ministro cartista, António Augusto de Aguiar, mais prudente, seguiu disfarçado em direcção a um cais, para aí embarcar com o mesmo destino. Foi reconhecido, apesar dos seus cuidados. E só escapou devido à agilidade dos remadores do seu barco, que dificilmente fugiu aos botes que correram a persegui-lo.

 

No campo de Ourique, também um chefe militar afecto ao Paço teria estado prestes a ser executado.

 

Os batalhões da Guarda Nacional não cessavam entretanto de bradar: a Belém, a Belém!

 

No apuro desta agitação extrema, Sá da Bandeira, não podendo desarmar o povo, cuidou ao menos de iludir a sua impetuosidade combativa. Era esta a modalidade táctica que se opunha àquela, de acção ofensiva.

 

Mandou formar a Guarda Nacional em três colunas e retardou as manobras para evitar o assalto a Belém: ordenou a uma das colunas que se dirigisse para a ponte de Alcântara (hoje Rotunda), que ficava a caminho do Palácio, e que aguardasse lá novas ordens; as duas restantes seguiram outros destinos intermédios; e uma ordem foi despachada aos comandantes para que permitissem aos milicianos irem jantar para as suas casas!

 

Sá da Bandeira dispersou deliberadamente as forças que estavam ao lado do povo, para que a vontade popular ficasse inoperante. Ele próprio o confessa: que ficou «mais para conter do que para guiar o povo armado» (66).

 

E aliando a sua acção militar à acção civil, que Passos Manuel consumava entretanto no Paço da rainha, a causa setembrista morria aí às mãos dos seus próprios ministros.

 

Mas tanto Passos Manuel como Sá da Bandeira não exprimiam de modo algum a disposição de luta quer do povo quer das tropas. Eles não puderam evitar um recontro sangrento entre um batalhão da Guarda Nacional e a brigada da Marinha que alinhou em Belém, ao lado dos cartistas: alguns mortos e feridos, entre os da brigada, saldaram a indignação produzida nas forças populares.

 

Mitificação histórica

 

A historiografia liberal desfigurou os principais acontecimentos da época. Apresentando-os através de explicações confrangedoramente simplistas, redu-los ao subjectivismo de motivações psicológicas determinantes, ou afeiçoa-os às suas teses predilectas de idealismo histórico e de «harmonia» social, em cujo processo os elementos perturbadores da tese aparecem como meros acidentes de importância secundária. Além disso, de feição predominantemente individualista, elimina tudo o que represente ou signifique o papel das massas populares na história.

 

Esta tradição desfigurativa foi nas últimas décadas consagrada e oficializada através de dois monumentos editoriais, diversos na sua estrutura, mas convergentes nesse objectivo: a História de Portugal comemorativa do 8.º centenário da nacionalidade (67) e a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (68).

 

Posteriormente, as histórias menores e os compêndios do ensino oficial ou silenciam os acontecimentos que comprometem aquelas teses ou desvirtuam-nos mais ainda, reduzindo-os a meras caricaturas sem lógica nem sentido.

 

A Revolução de Setembro, e subsequentes acontecimentos - nó górdio do liberalismo português -, é exactamente o caso que mais tem perturbado os historiógrafos dessa corrente. Daí que as contradições nela manifestadas tenham sido submetidas a um aturado trabalho de mitificação, do que resultou uma autêntica subversão da história, quer pela eliminação de referências a factos capitais ou particularmente significativos, quer pela proeminência dada a factos secundários, para através deles esconder os primeiros ou desvirtuar-lhes a sua significação.

 

Assim foi que Passos Manuel, que explicitamente chegou a repudiar toda a responsabilidade na Revolução de Setembro, se transformou no seu herói, a quem, além de tantos outros serviços em prol da democracia e da pátria, se deveria ainda a frustração do golpe de Estado da Belènzada (69).

 

Segundo a edição monumental de Barcelos, por exemplo, Passos Manuel foi o herói que, «após brevíssimo descanso das fadigas de tão agitada noite», partiu para o campo de Ourique, sem que os «seus restantes colegas» lhe imitassem o exemplo, e, uma vez lá chegado, «reuniram-se com ele os membros da Junta, para estudarem o que mais conviria fazer», e, tendo-se decidido enviar à rainha uma mensagem, «Passos recebeu o encargo de redigir o referido documento» (70), etc..

 

Através desta escamoteação sucessiva da realidade elimina-se o papel das massas no desenrolar da história, reduzindo-a à intervenção iluminada de um só homem.

 

Porque isto desvirtua inteiramente os factos e inverte a sua significação, impedindo uma correcta interpretação deles, importa determo-nos em alguns pormenores que nos permitam reconstituir a história e ver como se processou a sua mitificação.

 

Além dos acontecimentos revolucionários de Setembro, que já vimos, estes outros eventos contra-revolucionários de Novembro são dos que mais baralhados e confundidos se têm apresentado.

 

Segundo os relatos tradicionais, quando Passos Manuel e Ribeiro Saraiva entravam em Belém foram recebidos com apupos e ameaças à entrada do Palácio (71). E o duque da Terceira dirigiu-se-lhes a responsabilizá-los por qualquer atentado que as personalidades ali reunidas pudessem sofrer.

 

À hostilidade desta primeira recepção sucedeu a solenidade do cortejo real que desfilou aos olhos da deputação do campo de Ourique.

 

José Arriaga atribui às reacções psicológicas que estes procedimentos desencadearam a causa da traição do ministro setembrista: «Passos Manuel acobardou-se diante de tão altos personagens e potentados e perdeu a presença de espírito indispensável à sua importante missão em nome do povo. Perturbado, beijou respeitosamente a mão da rainha; e em vez de lhe expor verbalmente a representação de que fora incumbido disse-lhe que, tendo recebido recado dela, vinha da parte de seus súbditos receber as suas ordens!» (72)

 

Conduta de Passos Manuel

 

Não foram estas, porém, as razões do procedimento posterior de Passos Manuel. Ele não estava junto da rainha a desincumbir-se de uma missão «em nome do povo», como pretende Arriaga. Não partira para Belém por decisão de uma assembleia do povo reunido no campo de Ourique, mas apenas de uma sua fracção muito reduzida: os «comandantes dos corpos e os cidadãos mais distintos aí reunidos» - segundo o seu próprio dizer (73). Além disso, a reunião destes elementos, por sua vez, foi convocada para deliberar também sobre -nos precisos dizeres de Arriaga - «o que se devia fazer em presença da atitude do povo e das tropas» (74).

 

Temos, portanto, de distinguir três fases na deliberação que conduziu Passos Manuel ao Paço: 1) a atitude do povo e das tropas; 2) a reunião dos chefes do movimento, preocupados em estabelecer o que se devia fazer em presença daquela atitude; 3) a deliberação de enviar uma mensagem à rainha. Só depois da sua resposta se consideraria a conveniência de marchar sobre Belém. Esta foi a primeira tentativa de fazer esfriar o ímpeto popular.

 

Passos Manuel não foi, portanto, «em nome do povo», mas em nome de uma fracção de «comandantes» e «cidadãos distintos», que eram, afinal, os representantes da burguesia que se apropriara do movimento de Setembro.

 

Por outro lado, mesmo como enviado dessa fracção, Passos Manuel não estava a desempenhar-se com fidelidade do papel que lhe fora atribuído.

 

Poderemos ao menos confiar na sua lealdade e atribuir a razões psicológicas a sua infidelidade ao mandato recebido?

 

Cremos que a formação desta pergunta conduz-nos ao âmago da questão.

 

Passos Manuel não foi leal à pequena assembleia, em nome da qual se encaminhou para o Paço.

 

Não foi leal porque a assembleia já tinha deliberado e começado a redigir a mensagem à rainha quando o ministro entrou e se ofereceu para ser ele a redigi-Ia; porque estava com a preocupação de reduzir o conflito político, que era grave e envolvia largas camadas populares, a uma simples contenda a dirimir entre duas pessoas, uma a pessoa real e outra Sua Excelência o Ministro. Tanto que lhe foi dito que devia escrever a carta em nome de todos.

 

Passos Manuel acorreu, portanto, com uma ideia preconcebida e disposto a realizá-la a despeito dos obstáculos com que esbarrasse.

 

Como não lhe permitiram que a carta seguisse em seu nome pessoal, então propôs exprimi-Ia verbalmente. Ao propor esta modalidade estava necessariamente na sua intenção ficar livre de se expressar em termos que fossem do seu agrado, e foi isso o que fez. Se não o tivesse feito podia essa não ter sido a sua intenção. Mas, da maneira como procedeu, só um móbil explica a sua intervenção: era o propósito de fazer gorar o levantamento popular produzido pelo golpe de Estado.

 

Para isso precisava de se constituir parlamentário na contenda, precisava de poder apresentar-se no Paço em nome de uma força e precisava ainda de se desembaraçar dos compromissos que essa força lhe determinasse. Ora, se ele fosse portador de uma carta para a rainha, redigida em nome de todos, como lhe tinha sido recomendado, certamente que não poderia modificar os seus termos nem a advertência neles contida. Mas numa desincumbência verbal todas as modificações ao mandato se poderiam justificar por circunstâncias supervenientes.

 

Foi isto mesmo o que depois aconteceu.

 

De resto, os antecedentes de Passos Manuel como ministro justificam plenamente que se considere oportunista o seu procedimento: ele não aprovou o movimento de Setembro pelo qual foi conduzido ao Poder; ele iludiu, como ministro, as aspirações mais radicais desse movimento; ele não o defendeu da conspiração que foi tramada sob a sua complacência; ele não reagiu com virilidade quando a rainha o intimou a restaurar a Carta; pelo contrário, tomou a atitude de demitir-se, o que só facilitava a conspiração em curso; e, finalmente, aceitou resignado os vexames que sofreu no Paço quando a rainha lhe apresentou o decreto de demissão e de constituição de um novo Ministério.

 

Passos Manuel não só não era um revolucionário como agiu por uma determinação anti-revolucionária, para evitar o levantamento popular.

 

Não tendo reagido, como aliás lhe competia por dever de funções, ao golpe de Estado, começou a agitar-se logo que sentiu a disposição das forças da Guarda Nacional em resistirem pela força aos intentos do Paço. Quando viu que a resistência popular se organizaria independentemente dele e da sua vontade, então Passos Manuel correu a colocar-se à frente das forças, ou pelo menos a parlamentar em nome delas, para melhor as poder dominar e vencer.

 

Se não compreendermos isto e teimarmos em aceitar as boas intenções de Passos Manuel e a tese da historiografia liberal de que ele era um «ingénuo» e foi vítima dos laços que no Paço lhe armaram, ameaçando-o com a intervenção estrangeira, então não nos desembaraçaremos das confusões e contradições que caracterizam este período tão significativo da história contemporânea portuguesa.

 

Analisemos agora o procedimento de Passos Manuel perante a Corte, segundo a versão que sob a sua influência chegou até nós, e que mostrará por sua vez a conivência do ministro nas maquinações urdidas pela reacção cartista.

 

Depois da parada de força e luzimento - aceitemos a versão tradicional - com que a rainha teria acolhido os dois enviados do campo de Ourique, iniciou-se a conferência entre as partes.

 

Estava reunida a família real com o novo Ministério e o corpo diplomático.

 

Segundo Oliveira Martins (75), pela soberana falaram: «O inglês Howard, o belga Van der Weyer e, só depois dos estrangeiros, Vila Real, Lavradio e Palmela no fim. As falas eram mansas, continua o mesmo autor; não se aludia ao ministério dos finados (nomeado pelo golpe de Estado) porque a atitude de Lisboa, de manhã, infundira medo. Tratava-se de seduzir, não de ameaçar. S. M. não podia consentir na abolição da Carta, mas estava decidida a reformá-la; entretanto, o inglês afirmava que o seu Governo não toleraria em Portugal a Constituição quase republicana de 22. Involuntariamente, os olhos dirigiam-se para o rio, onde o vento soltava a bandeira vermelha da Inglaterra na popa das suas naus. E do lado da rainha - conclui Martins - todos continuavam a não estranhar a figura de idiotas que faziam.»

 

A historiografia liberal portuguesa tem aproveitado a conivência estrangeira na reacção cartista para, explorando o aspecto odioso da sua intromissão, diluir a acção demagógica e contra-revolucionária de Passos Manuel nesta emergência (76).

 

Na esteira de umas memórias de Teixeira de Macedo (77), amigo e panegirista de Passos, tem-se feito sobressair a altivez e desassombro de um discurso que o ex-ministro teria então proferido, atribuindo-se à magia dos seus argumentos e à altivez com que foram ditos o que se tem classificado como sendo um fracasso do golpe palaciano. Além de Oliveira Martins e da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, também Teófilo Braga (78) segue esta versão.

 

Segundo ela, Passos Manuel teria sido eloquente na sua argumentação: «Que ele fora nomeado ministro para promover a reforma da Constituição de 1822, e não da Carta de 1826; que esta Constituição tinha servido para, à sombra dela, se fazerem os maiores desbaratos na Fazenda Pública, e que o País não podia resignar-se a uma Constituição que não podia realizar as garantias que oferecia; que aos ministros anteriores a 10 de Setembro é que S. M. tinha confiado a guarda da Carta, e não a ele; que dessem esses ministros a S. M. conta do modo como a tinham defendido; que se a Carta fora abolida por uma facção, eram eles responsáveis por terem cedido diante de uma minoria; se o fora pela Nação, não era esta obrigada a ter as Constituições que os ministros quisessem, mas as que lhe convinham; que descansasse S. M., que a nova Constituição havia de satisfazer a todos; que S. M. havia de ter as prerrogativas que tinha a rainha de Inglaterra; que haveria duas Câmaras, o veto absoluto e o direito de dissolução. Voltando-se para Mr. Van de Weyer: se fizermos uma Constituição como a da Bélgica, não a podereis achar má. E respondendo a Lord Howard disse que não eram os Ingleses que podiam dar lições de lealdade aos Portugueses, que sempre tinham amado seus reis; que Portugal era uma nação independente, não devia sujeição a nenhum povo da Terra, e ele orador não estava disposto a consentir no governo do seu país a menor influência estranha; que a Nação Portuguesa pelo princípio da soberania nacional elevara ao trono a casa de Avis e a de Bragança; que por este princípio os Portugueses podiam fundar uma república como a Holanda ou a Suíça e mudar de dinastia, mas que eles não queriam senão reformar suas instituições políticas, como os Franceses tinham feito em 1830, como os Ingleses tinham feito com o bill dos católicos, e a reforma do Parlamento; que os Ingleses e Franceses tinham fundado repúblicas, mudado dinastias e justiçado reis, e, portanto, não eram as suas nações que mais habilitadas estavam a dar-lhes lições de fidelidade monárquica; que ele era muito admirador de Inglaterra, que a estimava como a pátria de Canning, de Fox, de Bentham, como a terra do júri, da imprensa livre e dos parlamentos; que tinha meditado e estudado suas instituições, fazia todos os esforços para introduzir as melhores no seu país, mas que as leis de Inglaterra haviam de ser importadas em navios mercantes, para terem despacho nas alfândegas de Portugal, porque se fossem trazidas em navios de guerra e pelos seus publicistas de farda vermelha não lhes serviriam senão para fazer cartuchos, e assim lhas devolveriam; que não receava a sua esquadra, porque não podia arremessar sobre Lisboa mais bombas e balas vasas do que ele vira em cima do Porto; que a Inglaterra devia considerar qual o desgraçado resultado da expedição que no tempo da rainha Elisabeth fora mandada contra Portugal, reinando então Filipe II, cujo comando fora confiado a Sir Francis Drake e Sir John Norris; que na guerra da Península nunca o Governo Inglês pudera pôr em campo mais de trinta mil homens, e com trinta mil homens não se submetia Portugal; que esperava tivesse S. M. assaz dignidade para rejeitar os oferecimentos de Inglaterra, pois que os não necessitava, bastando-lhe o apoio do seu povo; que nutria a esperança de que enquanto a Nação Portuguesa seguisse seus conselhos, nem Portugal seria uma prefeitura da Inglaterra, nem S. M. a rainha um comissário das ilhas Jónias.» (79)

 

O discurso de Passos Manuel, se bem repararmos no texto reproduzido, tem uma parte extensa de réplica e alusão à intervenção inglesa na política interna portuguesa, a qual merece apoio geral, e é essa que os historiógrafos liberais têm posto em evidência. Mas a primeira parte do discurso era de satisfação às reclamações do Paço, no sentido de ser abolida a Constituição de 1822, posta em vigor pela Revolução de 10 de Setembro: «que ele fora nomeado ministro para promover a reforma da Constituição de 1922»; «que descansasse S. M., que a nova Constituição havia de satisfazer a todos; que S. M. havia de ter todas as prerrogativas que tinha a rainha de Inglaterra; que haveria duas Câmaras, o veto absoluto e o direito de dissolução»... Que mais haveria de dizer para se fazer valer como interlocutor recomendável às conveniências palacianas?

 

De resto, o teor do discurso reproduzido tem a sua própria história. Oliveira Martins refere-a numa curta nota:

 

«A narrativa do episódio da Belènzada, conforme se acha no livro citado do Sr. Macedo, é transcrita do Eco Popular, jornal de José Passos, no Porto, e que Manuel, de Alpiarça, inspirava em 57 quando a notícia viu a luz. É certo, portanto, que se Manuel Passos a não escreveu, como se supõe, viu-a, emendou-a: tem pois o carácter autêntico.» (80)

 

Ora, a expressão ter carácter autêntico, neste caso, significa corresponder à versão que o próprio Passos Manuel lhe deu ou consentiu, em 1857, ou seja, vinte e um anos decorridos. Os lapsos de memória que podem ter-se produzido em tão longo decurso de tempo estariam salvaguardados, é certo, pela conservação de notas escritas que o ministro setembrista tivese redigido. Mas sem dúvida que ao aceitar a sua reprodução em 1857 Passos Manuel posava para a história, e pode bem ser que tivesse abrilhantado as palavras, quiçá os argumentos. A parte final do discurso toma o sabor de trabalho de gabinete ao pormenorizar certos factos históricos, pouco apropriada a uma oratória de emergência, como as circunstâncias determinaram.

 

Acordo secreto

 

A versão deste discurso grandiloquente serve afinal, tão-somente, para encobrir uma realidade perturbadora, de comezinho oportunismo político: o acordo firmado por Passos Manuel, a espaldas da vontade popular.

 

Na realidade, o que afligia o ex-ministro era que a população da capital se tinha manifestado com uma disposição irreprimível de lutar e defender pelas armas os princípios democráticos da Revolução de Setembro. A reacção popular sobrepusera-se à capitulação do Ministério, e isso é que não fora previsto.

 

Se não tivesse surgido essa reacção, tudo se tinha passado na melhor cordialidade: o golpe de Estado vingava e os ex-ministros retiravam-se para a tranquilidade doméstica com a garantia da amnistia e a esperança de mercês honoríficas, já que tanto aborreciam o impulso revolucionário (81).

 

Mas a impetuosidade com que se desencadeou a reacção popular, a decisão altiva com que a amnistia foi recusada e a disposição inquebrantável de resistência armada, tudo se coordenou no sentido oposto às previsões e de modo a não permitir sossego ao tranquilo burguês.

 

Passos Manuel foi a Belém para advertir a rainha da gravidade da situação e para evitar que novas provocações tornassem o movimento popular irreversível (82): acudindo à Coroa, valia ao perigo da subversão.

 

Na realidade, a reacção popular modificou os planos estabelecidos para o golpe de Estado, que o Ministério aceitou tão passivamente. Por isso foi necessário improvisar uma estratégia defensiva adequada às novas circunstâncias.

 

Como no decurso dos acontecimentos estas se modificaram várias vezes, a estratégia defensiva modificou-se também, acabando por se desenvolver em dois tempos: primeiro, conferência de Passos-Palmela, em Belém; segundo, conferência de Sá da Bandeira-Saldanha, na Junqueira. A base de compromisso, em todas as circunstâncias, consistiu no princípio da fusão da Constituição de 1822 com a Carta de 1862 (83), aceite por ambas as partes.

 

Para estabelecer a fórmula do compromisso, quando da ida de Passos Manuel a Belém, a rainha nomeou uma comissão, encabeçada pelo duque de Palmela (84). As conversações foram demoradas (85), mas o acordo ficou assegurado.

 

O acordo aceite por Passos Manuel consistia em duas cláusulas: a) convocação extraordinária de Cortes Constituintes para proceder às modificações necessárias na Carta de 1826 e na Constituição de 1822, elaborando um novo texto constitucional conveniente a «assegurar a liberdade legal da Nação Portuguesa e as prerrogativas da Coroa»; b) participação da antiga Câmara dos Pares (anterior a 10 de Setembro) na elaboração do novo texto, excepto na parte que respeitasse à organização da própria Câmara dos Pares.

 

Este acordo, nitidamente ditado pelos partidários da Carta (86), anulava os objectivos da Revolução de Setembro, tanto ao repor a Carta como base de discussão como ao convocar os antigos pares para se pronunciarem sobre o texto a elaborar. O reconhecimento de uma inefável «liberdade legal da Nação Portuguesa», expressão equívoca e de sentido abstracto, era uma forma capciosa de iludir o princípio reclamado da «soberania nacional», expressão abstracta também, mas que tinha atrás de si uma tradição de lutas, desde 1820, que convinha agora ao governo não evocar.

 

Por outro lado, este acordo era o seguimento natural das ressalvas introduzidas pelos oficiais reunidos no Quartel do Carmo na madrugada de 10 de Setembro, quando estabeleceram a previsão de modificações na Constituição de 1822. Assim ficava explicitamente entendido o significado daquela ressalva. Firmado ele, ficava solenemente consolidado o novo alinhamento de forças, que congregava as diversas facções da burguesia, em oposição às mais largas camadas populares e aos sectores mais radicais da pequena burguesia.

 

Mas esse objectivo não poderia atingir-se com o povo em armas. Se tal acordo foi possível em conciliábulos palacianos, pressionadas as partes pela preocupação comum de frustrar a ameaça de subversão, não seria, porém, exequível num momento de tensão como aquele que estava a viver-se.

 

Por isso a estratégia defensiva se desenvolveu em dois tempos.

 

Durante o percurso de regresso, Passos Manuel sofreu manifestações de hostilidade (87); e uma vez chegado ao campo de Ourique o acolhimento não foi mais lisonjeiro.

 

José Arriaga confessa que é difícil saber-se tudo o que lá se passou à chegada dos parlamentários, e muito atiladamente explica porquê: «porque os amigos de Passos Manuel, desonrado e comprometido com as suas loucas transigências em Belém, trataram de o ocultar, e aos cartistas também conveio isso» (88).

 

Mas, de toda a maneira, o acordo, rejeitado pela atitude popular de hostilidade, não alcançou confirmação na assembleia de notáveis convocada para deliberar sobre ele. A primeira cláusula, respeitante à convocação extraordinária das Cortes Constituintes, foi modificada nos seus termos; a segunda, que implicava o reconhecimento da antiga Câmara dos Pares, foi rejeitada unanimemente e sem discussão (89).

 

As resoluções da assembleia foram assinadas, e Sá da Bandeira encarregado de as comunicar à rainha, encargo de que se desobrigou mandando-as entregar ao marechal Saldanha, cerca da meia-noite.

 

A assembleia de notáveis era composta pelos comandantes das forças sublevadas e por paisanos, cidadãos dos mais distintos que se encontravam no campo de Ourique. Não era, propriamente, uma assembleia popular.

 

As suas deliberações reflectiram a indignação popular quanto ao acordo, mas não a traduziram fielmente. Tal como aconteceu na reunião de oficiais no Quartel do Carmo na madrugada de 10 de Setembro, houve a preocupação de manter aberta a porta para um acordo que, dando aparente satisfação à indignação, na realidade fizesse frustrar o seu carácter insurreccional.

 

O acordo tácito com as personalidades da Corte foi mantido através da nova redacção da primeira cláusula, que confirmava a previsão de modificações a introduzir na Constituição de 1822 (90), pensamento constantemente manifestado pelos dirigentes conservadores, pelo qual, virando costas às aspirações populares, facilitavam a sua aproximação com o sector cartista que rodeava o trono.

 

Movimento de tropas estrangeiras

 

Outro acontecimento, entretanto, modificou as negociações em curso: o desembarque de um contingente de tropas inglesas, o que produziu um grande sobressalto na população de Lisboa (91).

 

Então, o movimento entrou em nova fase. As forças da Guarda Nacional pretenderam assaltar Belém. Foi quando Sá da Bandeira as iludiu com manobras de diversão, conquistando tempo não só para refrear o ímpeto da revolta como para tentar em definitivo o almejado acordo.

 

Este foi obtido através de uma conferência no Palácio da Junqueira, proposta pelo marechal Saldanha a Sá da Bandeira, que este aceitou, em concordância com a Junta de Resistência, sob a condição prévia do reembarque das tropas inglesas.

 

Efectuado o reembarque - seguimos a versão do próprio Sá da Bandeira (92) -, o marechal declarou que a rainha havia deliberado chamar o visconde Sá da Bandeira para formar novo Ministério e perguntou se esta solução era satisfatória. Anuíram os circunstantes - visconde e membros da Junta. Os dois generais dirigiram-se para o Paço, onde a rainha confirmou a declaração do marechal. Sá da Bandeira, por sua vez, indicou para o seu Ministério os nomes de Passos Manuel e de Vieira de Castro, que foram aceites.

 

Vê-se aqui como os dirigentes setembristas, em negociações com Saldanha, não aproveitaram as circunstâncias, que lhes eram inteiramente favoráveis, para impor outras condições. Não o fizeram porque isso não lhes interessava. A sua preocupação dominante era frustrar o levantamento popular. O desembarque e o reembarque das tropas estrangeiras valeu-lhes como derivativo para iludir as disposições mais radicais das forças concentradas e dispostas para a luta.

 

Os membros da Junta partiram para Alcântara, onde se concentravam as forças amotinadas, a fim de darem a notícia à Guarda Nacional. Passos Manuel, que capitulara perante a Corte, reservara as suas energias para as opor à força popular, barrando a passagem na ponte de Alcântara à multidão que pretendia correr sobre Belém.

 

A vigorosa reacção popular e das forças da Guarda Nacional ao golpe de Estado fizeram-no gorar, pelo menos nos termos em que fora planeado. Mas o acordo estabelecido com a Corte por dirigentes setembristas que as massas populares continuaram a acatar ia permitir que a conspiração contra a Revolução de Setembro prosseguisse, a partir de agora fomentada no próprio seio do Ministério.

 

Na táctica de aproximação das camadas burguesas e de isolamento das forças radicalmente populares vão consumir-se seis anos de intensa agitação política, durante os quais a demagogia, por um lado, e o sofisma constitucional, por outro, terão largo uso. A ditadura cabralina (1842-1846) constituirá o saldo, provisório ainda, dessa luta acesa entre uma burguesia triunfante, que deseja consolidar o seu domínio, e as forças populares despertadas para uma cidadania que os senhores da nova ordem recusavam aceitar.

 

A persistência da resistência popular, que culminará na Patuleia (1846-1847), testemunha a extensão da sua força e o grau de politicização que alcançou.

 

 

 

 

 

(*) ‘A revolução de Setembro de 1836’ é um ensaio histórico de grande alcance, que poderia justamente considerar-se um clássico do marxismo português, se os houvesse. A sua primeira edição data de 1969 pelas Publicações Dom Quixote, incluindo um extenso anexo de textos e documentos. Houve reedições em 1970 e 1978, esta última incluída nas ‘Obras de Victos de Sá’ editadas por Livros Horizonte. Para além dos seus méritos de investigação, o seu arrojo interpretativo e vivacidade narrativa contribuem para fazer dele uma espécie de ‘18 do Brumário’ em paisagens lusas um tanto arcaicas. Se Victor de Sá não tivesse escrito senão este livro já teria produzido uma preciosidade.

 

Victor de Sá - Revolucao1 Victor de Sá - Revolucao2

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NOTAS:

 

(1) O processo de crise que exigia transformações estruturais na organização da economia e do Estado portugueses desenvolvia-se desde o princípio do século. Derivava, por um lado, do desenvolvimento dos meios de produção - revolução industrial que vinha a acentuar-se desde os fins do século anterior, e que tantas alterações estava a produzir na Europa; e, por outro, da perda do monopólio do comércio com o Brasil, tornada efectiva em resultado da transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1807, e subsequentes privilégios outorgados à Grã-Bretanha, sobretudo os decorrentes da abertura dos portos brasileiros às nações amigas (Janeiro de 1808) e do tratado de comércio de 19 de Fevereiro de 1810.

Foram esses os móbiles que mais impeliram a burguesia portuguesa à conspiração triunfante de 1820, pela qual foi abolido o regime absolutista que vigorava há mais de um século.

 

(2) Gerardo A. Péry - Geographia e Estatística Geral de Portugal e Colónias, Lisboa, 1875, p. 276.

 

(3) Gerardo A. Péry - Op. cit., p. 276.

 

(4) «Os Vínculos» (1856), em Opúsculos, 2, IV, pp. 16-17 (ed. 1908).

 

(5) «Os Vínculos» (1856), em Opúsculos, 2, IV, p. 18.

 

(6) A Companhia, de que faziam parte o visconde de Picoas, Mouzinho da Silveira e outros grandes senhores do liberalismo, propunha-se comprar por 2.000.000$000 de réis (correspondente a 80.000 contos antes da II Grande Guerra), terrenos que tinham o triplo do valor, embora oficialmente estivessem avaliados apenas em 1.694.571$374 réis.

O escândalo deste negócio foi explorado junto da opinião pública e provocou um protesto assinado por quatro pares do Reino (marqueses de Fronteira e de Loulé, conde da Taipa e visconde de Sá da Bandeira) e quinze deputados, do que resultou a queda do Ministério Saldanha-Silva Carvalho e subsequente anulação, pelo Ministério que lhe sucedeu (Loureiro-Sá da Bandeira), da venda das lezírias.

Foi durante a vigência do Ministério que sucedeu a este, presidido pelo duque da Terceira (Abril de 1836), que a venda das lezírias acabou por se efectuar.

 

(7) José de Arriaga – História da Revolução de Setembro, I, Lisboa, 1892, p. 711.

 

(8) A.-A. Teixeira de Vasconcelos - Les Contemporains. I - Le Portugal et Ia Maison de Bragança, Paris, 1859, p. 457.

 

(9) J. J. Rodrigues de Freitas - O Portugal Contemporâneo do Sr. Oliveira Martins, Porto, 1881, pp. 33-34.

 

(10) António Viana - Documentos para a História Contemporânea, II, Lisboa, 1894, p. 50.

 

(11) Carta de A. Dias d'Oliveira de 30-11-1833, in António Viana - Op. cit., II, p. 144.

 

(12) Os liberais da tradição democrática de 1820-1823 possuíam um vivo sentimento da dominação inglesa como ultrajosa para a dignidade nacional. Um Tableau historique, chronologique, des révolutions nationales de Portugal, organizado por Francisco Solano Constâncio e publicado em Paris no ano de 1832, de colaboração com A. J. de Mancy, representa o período compreendido entre 1811-1820 sob a designação expressa de «Domination anglaise en Portugal, jusqu'á Ia Révolution de 1820». Nos discursos e em numerosos escritos da época, assim como em memórias publicadas, esse sentimento exprime-se geralmente com forte veemência.

 

(13) Albert Silbert - Chartisme et Septembrisme, Coimbra, 1952, p. 14.

 

(14) Actas, in A. Viana - Op. cit., II, p. 282.

 

(15) Actas. in A. Viana - Op. cit., II, p. 284.

 

(16) «Aos 7 de Junho, juntos os ministros no Tribunal do Tesouro, assentaram que depois de dissolvida a Câmara como foi, sendo nisso de acordo o Conselho de Estado, agora tratassem de dirigir as eleições de modo que as pessoas que viessem à Câmara nova fossem tais que dessem as melhores garantias para o estabelecimento da ordem, consolidação das instituições, melhoramentos em todos os ramos da administração, evitando de todo o modo os anarquistas e desorganizadores.» (Acta, ibidem, II, pp. 284-285.)

 

(17) Um agente do governo pedia do Porto, um mês antes, a nomeação de um determinado comandante para a Guarda Municipal - «lugar em que, confidenciava, pode prestar muitos úteis serviços por ocasião das eleições». (Carta ao ministro do Reino, ibidem, II, p. 271).

 

(18) In A. Viana - Op. cit., II, p. 287. (O sublinhado é nosso.)

 

(19) Acta, ibidem, II, p. 290.

 

(20) Discurso na Assembleia Constituinte, em 21 de Janeiro de 1837: «Eu não fiz a revolução nem a aconselhei, opus-me a que ela se fizesse no Porto no dia 24 de Agosto.» Discursos Parlamentares, Porto, 1880, p. 195).

 

(21) Albert Silbert – Op. cit., p. 23.

 

(22) O capitão Morais Mantas, numa memória manuscrita que forneceu a José Arriaga e de que este reproduz algumas passagens na sua História da Revolução de Setembro, Lisboa, II, pp. 25 e segs.

 

(23) Expressão do visconde de Sá da Bandeira quando o povo armado enfrentou o Palácio Real: «Assine Vossa Majestade que não podemos conter aquele povo.»

 

(24) Francisco Inocêncio da Silva, relatório de 9 de Março de 1837 (in Marques Gomes - Luctas Caseiras, Lisboa, 1894, p. 193).

 

(25) M. S. Cruz - Manifesto de Um Cidadão aos Ministros da Coroa e à Nação sobre a Revolução. Lisboa, 15 de Setembro de 1836.

 

(26) E. Goblet d'Alviella - LÉtablissement des Cobourg en Portugal, Paris, 1869, pp. 71-72.

 

(27) José de Arriaga - Op. cit., II, p. 42.

 

(28) E. Goblet d'Alviella - Op. cit., p. 61. Sá da Bandeira, que se empenhou em contestar as passagens com que discordava (in Lettre adressée au Comte Goblet d'Alviella, Lisbonne, 1870), não desmentiu o modo como se processou a sua escolha.

 

(29) Memória de uma testemunha, Morais Mantas (em parte transcrita por José de Arriaga - Op. cit., II, p. 30), que sublinha o cuidado tido pelos conspiradores em não «se lhe declarar nem o dia finalmente decidido», o que por sua vez demonstra os antagonismos subjacentes no bloco unitário da oposição. O visconde respondeu então por um modo aleatório, sem dizer que sim nem que não.

 

(30) Lettre adressée au comte Goblet d’Alviella, Lisbonne, 1870, p. 8.

 

(31) A posição na maçonaria militar era já preponderante em 1820, como se deduz do descritivo do seu biógrafo Luz Soriano, que mal encobre essa posição, a despeito do extremo cuidado que põe no emprego de palavras (in Vida do Marquês de Sá da Bandeira, I, Lisboa, 1887, pp. 41-43).

O objectivo táctico de Sá da Bandeira é definido por ele próprio numa carta de Outubro escrita em francês, que passamos a traduzir:

«Eu desejo muito e muito encontrar alguém que me substitua, mas é muito difícil encontrar alguém nas circunstâncias convenientes que queira aceitar e que ao mesmo tempo não seja obnoxe (sic) ao espírito do tempo, porque é preciso andar com ele e somente assim é que se poderão moderar as cabeças impetuosas que aparecem em todas as revoluções, porque nós estamos numa revolução, a qual, por felicidade, foi tranquila, e se não houver qualquer louca provocação, espero que as Cortes poderão reformar a Constituição de maneira conveniente, que termine as dissidências, porque eu encontro favoráveis a isso todas as disposições, mesmo por parte daqueles que parecem os mais opostos.» (Carta a Silva Carvalho, de 1 de Outubro, in A. Viana - Documentos para a História Contemporânea, II, Lisboa, 1894, p. 295.)

 

(32) Correia de Vasconcelos não chegou a assumir o exercício da sua pasta, da qual foi exonerado, a seu pedido, em 26 de Outubro.

 

(33) As histórias portuguesas identificam geralmente o conde de Lumiares, ministro, com o conde de Lumiares da reunião de militares no Quartel do Carmo. É nas memórias do conde de Goblet que as duas pessoas de família se distinguem com precisão (E. Goblet d'Alviella - Op. cit., pp. 60-61).

 

(34) Borges Grainha - História da Maçonaria em Portugal (1735-1912), Lisboa, 1913, p. 114.

 

(35) Garrett - Obras, t. II, Lisboa, 1904, p. 452.

 

(36) Por exemplo: «Passos Manuel foi chefe da Revolução de Setembro de 1836», Borges Grainha - Op. cit., p. 105.

 

(37) J. J. da Silva Maia - Memórias Históricas, Políticas e Filosóficas, Rio de Janeiro, 1841, p. 205.

 

(38) José e Manuel da Silva Passos publicaram em Paris, entre outros, os seguintes opúsculos: Memorial sobre a necessidade e meios de destruir prontamente o tirano de Portugal e restabelecer o trono da Sr.ª D. Maria II e a Carta de 1826 (1831); Segundo Memorial sobre o estado presente de Portugal, e como não há razão nem direito nem força para tirar à Sr.ª D. Maria II a sua coroa e a nós a nossa liberdade (1831); Breve razoamento, a favor da liberdade lusitana e da excelente senhora D. Maria II (1832); Resposta aos artigos publicados no «Times» contra a Ex.mo Senhor General Conde de Saldanha (1832); Courtes Remarques sur la brochure de M. Alexandre Delaborde intitulée «Voeu de Ia Justice et de l’humanité en faveur de l’expedition de D. Pedro» (1832).

 

(39) In Breve razoamento, p. 4.

 

(40) Ver «Mapa dos Diversos Orientes da Maçonaria Portuguesa», In Borges Grainha - Op. cit., pp. 126-127.

 

(41) Nota n.° 5, in Marques Gomes - Luctas Caseiras, Lisboa, 1894, p. 90.

 

(42) Passos Manuel - Discursos Parlamentares, Porto, 1880, p. 137.

 

(43) Breve Razoamento, Paris, 1-1-32, p. 21.

 

(44) Passos Manuel - Discursos, p. 195 (discursos de 21 de Janeiro de 1836).

 

(45) Idem, ibidem, p. 193.

 

(46) José de Arriaga - Op. cit., II, p. 49.

 

(47) Manifesto de Um Cidadão aos Ministros da Coroa e à Nação. Sobre a Revolução, Lisboa, 1836. (É datado de 15 de Setembro.) Publicado anonimamente, sabe-se que o seu autor, Manuel dos Santos Cruz, natural de Santarém, por onde, em 1837, foi eleito deputado às Constituintes, era formado em Medicina e Filosofia e pertenceu à Academia Real das Ciências. Publicou alguns opúsculos políticos e obras literárias, bem como vários trabalhos sobre Medicina e Direito Público.

 

(48) «Esta proclamação produziu a princípio o resultado que esperavam os conselheiros do príncipe. Atraiu os moderados, tranquilizou os tímidos e congraçou os descontentes. Todos os que receavam ser sacrificados na luta ou abandonados no perigo não hesitaram mais em alinhar ao lado da reacção, logo que viram o príncipe colocar-se na sua primeira fila.» (E. G. d'AIviella - Op. cit., p. 81.)

 

(49) Data de então o plano belga para a criação de um império seu em África: «On pensait que le Portugal aurait pu hypothéquer à Ia Belgique, pour Ia dommager de tous frais, une de ses possessions territoriales sur Ia côté d'Afrique.» (E. Goblet d'Alviella - Op. cit., p. 87.)

 

(50) Goblet, carta de 19 de Setembro de 1836, expedida para Lisboa ao seu colega Van de Weyer (E. G. d'Alviella - Op. cit., p. 74).

 

(51) Idem, p. 73.

 

(52) «Réparant dans les travaux agricoles les brèches de son patrimoine», no dizer de G. d'Alviella - Op. cit., p. 67.

 

(53) E. G. d’Alviella - Op cit., p 83.

 

(54) «Sendo o marechal Saldanha aos olhos dos Ingleses o grande homem de Portugal.» (E. G. d'Alviella - Op. cit., p. 94.)

 

(55) «Não há tempo a perder para preparar em silêncio os meios de defender e proteger Sua Majestade Fidelíssima.» (E. G. d'Alviella - Op. cit., p. 96.)

 

(56) Numa carta ao redactor do Nacional, publicada no n.° 613 e referida por José Arriaga in História da Revolução de Setembro, p. 170.

 

(57) Composição do Ministério de 3 de Novembro: marquês de Valença, Presidência e Estrangeiros; visconde de Banho, Reino; Paulo de Oliveira, Justiça; barão de Leiria, Guerra; Bressano Leite, Marinha; e barão de Porto Covo, Fazenda.

 

(58) E. G. d'Alviella comenta do seguinte modo a humilhante atitude do ministro deposto, que justamente designa por «longanimité tacite»: «Podia supor-se que Passos não tinha razão em escolher para este pedido um momento em que a Corte rompia abertamente com a legalidade e em que a rainha acabava de o demitir inexoravelmente. Mas o seu fim, reclamando esta medida, era menos o de garantir a segurança dos seus amigos na previsão de uma derrota que o de estabelecer as bases para um compromisso entre os dois campos» (Op. cit., p. 105.)

 

(59) Idem, p. 106.

 

(60) Carta de Passos Manuel ao Nacional. (J. Arriaga - Op. cit., II, p. 182.)

 

(61) E. G. d'Alviella - Op. cit., p. 109.

 

(62) Sá da Bandeira por duas vezes rejeitou o comando, declarando à Junta que não o podia aceitar «por causa da sua posição excepcional» (palavras suas, in Lettre au comte Goblet, Lisboa, 1870, p. 11).

 

(63) J. Arriaga - Op. cit., II, p. 186.

 

(64) J. P. Oliveira Martins - Portugal Contemporâneo, 1881, II, Lisboa, 1954, p. 274.

 

(65) A. G. d'Alviella - Op. cit., p. 116.

Noutra passagem, o mesmo A. descreve o que foi a atitude dos «poltrões» (p. 114) que rodeavam a rainha e dos cartistas em geral:

«Os cartistas de Lisboa fecharam-se em suas casas e os que iam a caminho de Belém dispersaram-se desembaraçando-se das suas insígnias. No palácio, o pânico atingiu o auge; não houve mais possibilidades de se arranjarem ministros; os decretos já assinados ficaram sem execução; a proclamação da rainha foi retirada da tipografia e a camarilha preparava-se para regressar secretamente a Lisboa ou para se refugiar na esquadra inglesa. O espectáculo deste pavor acabou por desmoralizar as tropas já prostradas pela sua inacção. Um oficial de artilharia havendo gritado: Viva a Constituição!, uns vinte homens corresponderam a este viva e abandonaram as fileiras levando consigo dois canhões.» (p.108.)

 

(66) In Lettre adressée au comte Goblet, p. 12.

 

(67) Edição da Portucalense Editora, Ltd.ª, 8 vols., Barcelos, 1928-1937.

 

(68) Lisboa, Rio de Janeiro, ?-1960, 40 vols.

 

(69) «Passos Manuel, o herói sublime da Revolução de Setembro, lutou diante do corpo diplomático, vencendo o embaixador inglês, que protegia a rainha, pela afirmação segura dos mais intemeratos princípios.» (Teóflio Braga - As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, I, Porto, 1892, p. 64.)

 

(70) V. VII, pp. 258-259.

 

(71) E. G. d'Alviella (Op. cit., p. 112) refere a ocorrência à saída, e não à entrada do palácio, o que pode revestir-se de um significado completamente diverso.

 

(72) José de Arriaga - Op. cit., II, p. 191.

 

(73) Idem, ibidem, p. 186.

 

(74) José de Arriaga - Op. cit., II, p. 186.

 

(75) Portugal Contemporâneo, 117, p. 276.

 

(76) Já E. G. d'Alviella escrevia em 1869: «Aujord'hui qu'à Lisbonne on rejetait en grande partie sur l'influence extérieure Ia responsabilité des derniers troubles ... » (Op. cit., P. 122)

 

(77) A. Teixeira de Macedo - Traços de História Contemporânea, Porto, 1880.

 

(78) Teófilo Braga, Op. cit., pp. 64-66.

 

(79) A. Teixeira de Macedo - Op. cit., pp. 25 a 29.

 

(80) J. P. Oliveira Martins - Op. cit., II, p. 269.

 

(81) Oliveira Martins, apoiado no testemunho de Sá da Bandeira (Lettre adressée au comte de Goblet), soube interpretar com fidelidade o estado psicológico dos dirigentes setembristas da ala conservadora: «Os mais arrependidos mas não confessos, afectando uma segurança que não possuíam, só buscavam alijar sem muita desonra um fardo que lhes pesava. Rasgar o programa ou o rótulo, sentiam que era despedaçarem-se a si próprios [...]. Destruir a revolução sem a negar; cortar a cauda incómoda dos descamisados, defendendo-se contra os inimigos da direita para não perderem o posto; equilibrar, ponderar as coisas; fazer uma Constituição tão parecida com a Carta que para o Paço fosse a mesma coisa, sem deixar de ser Constituição no nome - eis aí o pensamento dominante nos homens que, mau grado seu, se viam mandatários da revolução.» (Op. cit., II, p. 286.)

 

(82) A versão de E. G. d'Alviella confirma esta interpretação: «É nesta reviravolta que Passos reaparece em Belém para retomar as suas tentativas de conciliação. Começou por indicar à rainha os perigos de uma intervenção estrangeira, afirmando que os movimentos da esquadra inglesa faziam redobrar a irritação popular, e que o desembarque de um só destacamento tornaria impossível qualquer transacção.» (Ob. cit., p. 110.)

 

(83). E. G. d'Alviella - Op. cit., p. 111.

 

(84) Os parlamentários foram, além de Passos e Palmela Terceira Saldanha, Trigoso Morato e Ribeiro Saraiva.

 

(85) Chegou a ser planeado um Ministério misto, composto de três membros setembristas (Sá, Passos e Vieira de Castro) e três cartistas (Saldanha, Trigoso e Porto Covo), mas esse projecto foi posto de parte.

A aceitarmos a versão de Teixeira de Macedo, Passos ter-se-ia pronunciado nestes termos: «Haverá uma perfeita reconciliação entre os súbditos de S. M. a Rainha; todos lhe foram igualmente fiéis, e adictos à liberdade. O véu do esquecimento será lançado sobre nossas dissensões constitucionais. Nas lutas civis ninguém pecou. Todos somos súbditos fiéis da rainha - todos liberais.» (A. Teixeira de Macedo - Op cit., p. 32.)

 

(86) José de Arriaga comenta-o nestes justos termos: «Não foi Passos Manuel que saiu vitorioso do Paço de Belém, como se crê geralmente; mas foram a rainha e seus agentes que se impuseram e humilharam Passos Manuel» (José de Arriaga - Op. cit., II, p. 199).

 

(87) «À saída, Manuel Passos e Ribeiro Saraiva, por espaço de meio quarto de légua, foram constantemente ameaçados pelos assassinos de Belém.» (A. Teixeira de Macedo - Op. cit.. p. 34.)

 

(88) José de Arriaga - Op. cit., II, p. 201.

 

(89) José de Arriaga (Op. cit., II, p. 203), reporta-se à imprensa da época, que pormenorizadamente se ocupou deste acordo - o Provinciano e o Nacional.

Teixeira de Macedo, panegirista de Passos Manuel, escamoteia o caso através de um singelo parágrafo: «A convenção foi aprovada no campo de Ourique e remetida, durante a noite, por Manuel Passos ao marquês de Saldanha.» (Op. cit., p. 34.)

 

(90) Redacção dada à primeira cláusula da assembleia dos notáveis: «Que as Cortes Constituintes seriam convocadas em virtude do Decreto de 8 de Outubro do presente ano e que os representantes nomeados viriam autorizados para fazerem as modificações que julgassem precisas na Constituição de 1822, aproveitando-se da Carta de 1826 o que fosse aproveitável.» (J. Arriaga - Idem.)

 

(91) Referindo o depoimento de uma testemunha ocular (recolhido no folheto A Dinastia e a Revolução de Setembro), que diz não ter a população dormido toda essa noite, num movimento «tão só e unânime» que nunca um igual «foi visto noutro país». José Arriaga frisa que se despovoou a cidade, juntando-se no campo de Ourique, «além das autoridades, uma multidão de pessoas abastadas, ricos negociantes e donos de grandes estabelecimentos.» (Op. cit., II, p. 207.)

O desembarque foi decidido pelos ministros da Inglaterra e da Belgica, a pretexto de proteger a rainha, conforme estava de antemão previsto.

 

(92) In Lettre adressée au comte de Goblet, p. 15.