Teses sobre a catástrofe (ecológica) iminente e as formas (revolucionárias) de evitá-la

  

 

Michael Löwy (*)

 

I.

A crise ecológica já é a questão social e política mais importante do século XXI. Sua importância só aumentará nos próximos meses e anos. O futuro do planeta e, portanto, da humanidade, será decidido nas décadas vindouras. As projeções de alguns cientistas para o ano 2100 não são muito úteis, por duas razões: a) científica: considerando todos os efeitos cumulativos, impossíveis de calcular, é muito arriscado fazer projeções de um século; b) política: no final do século todos nós, os nossos filhos e netos, teremos partido, então qual é o objetivo?

 

II.

A crise ecológica tem vários aspetos, com consequências perigosas, mas a questão climática é sem dúvida a ameaça mais dramática. Como nos explica o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), se a temperatura média superar em mais de 1,5 grau o padrão registrado no período pré-industrial, é provável que um processo irreversível de mudança climática seja posto em marcha. Quais seriam as consequências? Quanto a temperatura subirá? A partir de que temperatura a vida humana no planeta estará ameaçada? Ninguém tem uma resposta para essas perguntas.

 

III.

Não há precedentes na história da humanidade para os riscos catastróficos em jogo. Teríamos de voltar ao Plioceno, há alguns milhões de anos, para encontrar uma condição climatológica semelhante à que poderá ocorrer no futuro como resultado da mudança climática. A maioria dos geólogos defende que ingressamos numa nova era geológica, o Antropoceno, na qual as condições do planeta foram alteradas pela ação humana. Que ação? A mudança climática começou com a Revolução Industrial do século XVIII, mas foi depois de 1945 que ela deu um salto qualitativo. Em outras palavras, a civilização industrial capitalista moderna é a responsável pela acumulação de CO2 na atmosfera e, portanto, pelo aquecimento global.

 

IV.

A responsabilidade do sistema capitalista pelo desastre iminente é amplamente reconhecida. O papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, sem pronunciar a palavra “capitalismo”, denunciou um sistema estruturalmente perverso de relações comerciais e de propriedade, baseado exclusivamente no “princípio da maximização do lucro”, como responsável tanto pela injustiça social como pela destruição da nossa casa comum, a natureza.

 

V.

A natureza sistêmica do problema é cruelmente ilustrada pelo comportamento dos governos, todos eles (com raríssimas exceções) a serviço da acumulação de capital, das multinacionais, da oligarquia fóssil, da mercantilização geral e do livre comércio. Alguns – Donald Trump, Jair Bolsonaro, Scott Morrison (Austrália) – são abertamente ecocidas e negacionistas do clima. Os outros, os “razoáveis”, dão o tom nas reuniões anuais da COP (me pergunto se a sigla corresponde a Conferência das Partes ou Circo Organizado Periodicamente), que se caracterizam por uma vaga retórica “verde” e inércia total.

 

VI.

O “capitalismo verde”, “mercados de crédito de emissões”, “mecanismos de compensação” e outras manipulações da chamada “economia de mercado sustentável” provaram ser completamente ineficazes. Enquanto a “ecologização” é feita a cada curva, as emissões estão disparando e a catástrofe se aproxima rapidamente. Não há solução para a crise ecológica no quadro do capitalismo, um sistema inteiramente dedicado ao produtivismo, ao consumismo, à luta feroz pelas “cotas de mercado”, à acumulação de capital e à maximização do lucro.

 

VII.

As únicas alternativas realmente capazes de evitar o desastre são as radicais. “Radical” aqui qualifica uma alternativa que ataca as raízes do mal em questão. Se a raiz é o sistema capitalista, precisamos de alternativas antissistêmicas, ou seja, anticapitalistas – tais como o ecossocialismo, um socialismo ecológico que esteja à altura dos desafios do século XXI. Outras alternativas radicais, como o ecofeminismo, a ecologia social (Murray Bookchin), a ecologia política (André Gorz) ou o decrescimento anticapitalista têm muito em comum com o ecossocialismo: nos últimos anos, desenvolveram-se relações de influência recíprocas.

 

VIII.

O que é o socialismo? Para muitos marxistas, é a transformação das relações de produção – através da apropriação coletiva dos meios de produção – para permitir o livre desenvolvimento das forças produtivas. O ecossocialismo, apesar de reivindicar Marx, rompe explicitamente com esse modelo produtivista. É claro que a apropriação coletiva dos meios de produção é indispensável, mas as próprias forças produtivas devem ser radicalmente transformadas. Por exemplo, a) mudando suas fontes de energia (renováveis, em lugar de combustíveis fósseis); b) reduzindo o consumo energético global; c) promovendo o “decrescimento”, isto é, reduzindo a produção de bens e eliminando atividades desnecessárias (publicidade) e pragas (pesticidas, armas de guerra); d) pondo fim à obsolescência programada. O ecossocialismo também implica a transformação dos padrões de consumo, das formas de transporte, do planejamento urbano, do modo de vida. Em suma, é muito mais que uma mudança nas formas de propriedade: é uma mudança civilizacional, baseada em valores de solidariedade, igualdade-liberdade (egaliberté) e respeito pela natureza.

 

IX.

A transição para o ecossocialismo requer um planejamento democrático, orientado por dois critérios: a satisfação das necessidades reais e o respeito ao equilíbrio ecológico do planeta. São as próprias pessoas – uma vez livres da propaganda e da obsessão consumista fabricadas pelo mercado capitalista – que decidirão, democraticamente, quais são as verdadeiras necessidades.

 

X.

Reformas parciais não bastam para realizar o projeto ecossocialista. Seria necessária uma verdadeira revolução social. Como deve ser definida essa revolução? Aqui podemos nos reportar a uma nota feita por Walter Benjamin à margem das suas teses “Sobre o conceito de história” (1940). Invertendo os lugares-comuns da esquerda “progressista”, ele desenha a seguinte imagem profana: “Marx disse que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Talvez as coisas sejam diferentes. Pode ser que as revoluções sejam o ato pelo qual a humanidade que viaja em um trem puxa os freios de emergência”. Traduzido em termos do século XXI: todos nós somos passageiros de um trem suicida chamado “civilização industrial capitalista moderna”. Esse trem se aproxima, a uma velocidade crescente, de um abismo catastrófico: as mudanças climáticas. A ação revolucionária visa pará-lo – antes que seja tarde demais.

 

XI.

O ecossocialismo é tanto um projeto para o futuro como uma estratégia para a luta aqui e agora. Não se trata de esperar até que “as condições estejam maduras”: é necessário estimular a convergência entre as lutas sociais e ecológicas e o combate às iniciativas mais destrutivas dos poderes a serviço do capital. É o caso do “Blockadia”, teorizado entre outros por Naomi Klein. É no contexto de mobilizações desse tipo que a consciência anticapitalista e o interesse pelo ecossocialismo podem emergir nas lutas.

 

XII.

Qual é o tema dessa luta? O dogmatismo operário/industrialista do século passado não é mais atual. As forças que hoje estão na linha de frente do confronto são os jovens, as mulheres, os povos indígenas, os camponeses. As mulheres estão muito presentes na tremenda revolta da juventude lançada pelo chamado de Greta Thunberg – uma das grandes fontes de esperança para o futuro. Os sindicatos também começam a se envolver, aqui e ali. Isso é importante porque, em última análise, o sistema não pode ser derrotado sem a participação ativa dos trabalhadores urbanos e rurais, que constituem a maioria da população.

 

XIII.

Temos chance de ganhar essa batalha antes que seja tarde demais? Ao contrário dos pretensos “colapsólogos”, que proclamam em alto e bom som que a catástrofe é inevitável e que qualquer resistência é inútil, nós acreditamos que o futuro permanece aberto. Não há garantia de que esse futuro seja ecossocialista: é objeto de uma aposta, no sentido pascaliano, na qual se engajam todas as forças para “trabalhar para a incerteza”. Mas, como disse Bertolt Brecht, com grande e simples sabedoria: “Aquele que luta pode perder. Aquele que não luta já perdeu”.

 

 

 

 

(*) Michael Löwy (n. 1938) é um sociólogo e filósofo marxista franco-brasileiro, diretor emérito de pesquisas em Ciências Sociais no Centro Nacional de Pesquisas Científicas, da França (CNRS). A sua extensa obra articula-se em torno da teoria da revolução e da sociologia do conhecimento, abrangendo ainda temas como o romantismo anticapitalista, o nacionalismo e o internacionalismo, o marxismo na América Latina, a dimensão utópica do judaísmo, a sociologia das religiões, totalidade e dialética, a subversão literária, a teologia da libertação e o ecossocialismo. É coautor, como Joel Kovel, do Manifesto Internacional Ecossocialista (2001) e, com o mesmo Joel Kovel e Ian Angus, da Declaração Ecossocialista de Belém (2009), também conhecido como Segundo Manifesto Ecossocialista Internacional. O presente texto foi publicado no 2.º número do volume 1 da Revista Rosa, S. Paulo/SP, Brasil, em 25/05/2020.