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O Islão e o Marxismo
Leila Ghanem (*)
Por que estamos debatendo esse tema hoje?
Porque o problema é muito atual e premente. Foi colocada em primeiro plano pelos nossos inimigos de classe, que desde 2003 trabalham com todo o seu arsenal para manipular as sociedades do Médio Oriente usando a questão religiosa como aríete. Em minha opinião, o conceito islâmico como ideologia de luta contra o poder central sempre esteve latente nas sociedades de fé muçulmana. Ligou-se, contudo, ao socialismo no final da década de 1970, com a ascensão do movimento de libertação nacional nos “3As” da Ásia, América Latina e África, que culminou em Bandung com predominância do “discurso socialista”.
Aconteceu isso numa nova fase, a que chamarei (inspirada na caverna de Ali Babá de As Mil e Uma Noites) de “Abre Sésamo!”. Naquela altura, a “abertura económica” do mercado tinha minado o sector público, a indústria pesada e a soberania alimentar ao derrotar a reforma agrária… para entrar no infernal ciclo McNamara da dupla dívida-pobreza. Nesse preciso momento começou o retorno pós-moderno à predominância do “discurso religioso”.
O facto de hoje os E.U.A. e Israel designarem a resistência libanesa, neste caso o Hezbollah, como um inimigo estratégico, a ser derrotado prioritariamente, e de a maior parte da sua política externa ser dirigida contra o eixo constituído pela Síria, o Irão e a resistência libanesa, mostra que nós, como marxistas, estamos atrasados na análise dos atuais movimentos de resistência que lutam com armas no Líbano, na Palestina, no Iraque e no Iémen, contra o imperialismo ianque em primeiro lugar, contra os seus lacaios e contra o estado colonial de apartheid israelita, bem como contra as monarquias petrolíferas do Golfo.
Citarei brevemente o exemplo do Hezbollah, que é a vanguarda destes movimentos de resistência. A questão que nós, marxistas, enfrentamos é como avaliar estes movimentos de resistência anti-imperialistas e que atitude devemos adotar perante eles com base nesta análise.
Notemos aqui que não se trata apenas de analisar as teologias da libertação islâmicas, mas também de avaliar as experiências que até agora permaneceram à margem dos nossos debates, mesmo dentro da esquerda árabe, que tem atitudes desencontradas sobre o assunto, que advêm em parte da influência das ideias antirreligiosas do Iluminismo na esfera dos intelectuais de esquerda.
O marxismo e a dimensão cultural
Partimos da premissa de que o marxismo não tratou da dimensão cultural por razões que exigem uma análise separada das correntes de pensamento da época e da dinâmica do movimento social; Mas nem Marx (contra uma leitura dogmática da sua obra) nem os marxistas antidogmáticos propõem que as ideias, as religiões, as crenças não tenham influência no curso da História.
Esta é uma das teses fundamentais defendidas por Maxime Rodinson, que reivindica uma interpretação marxista para o Islão, referindo-se ao Karl Marx que proclamou num texto famoso que “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; É, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência.” (Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política). Por outras palavras, são as condições materiais em que os seres humanos vivem e produzem que determinam a forma como pensam (e agem). Rodinson salienta que “aqueles que debatem se o Islão tem sido favorável ou desfavorável ao capitalismo partilham 'a mesma suposição implícita', como homens de uma determinada época e região, de que as sociedades obedecem estritamente a uma doutrina anterior, constituída fora delas, seguem seus preceitos, impregnam-se do seu espírito, sem uma transformação essencial, sem adaptá-la às suas condições de vida e às formas de pensamento que lhes são por elas implicitamente sugeridas”. (Maxime Rodinson: Islam y capitalismo; Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1973).
Rodinson analisa detalhadamente não apenas a relação entre o Islão e o capitalismo, mas também entre o socialismo e o Islão. O carácter anticolonial é suficiente para analisar o impacto de certos movimentos de teologia da libertação, incluindo os movimentos de resistência de obediência islâmica, na dinâmica da história e da luta de classes, ou é necessário que estes últimos tenham um programa socioeconómico favorável à distribuição da riqueza, como afirmam muitos partidos comunistas?
A questão parece crucial hoje em dia, considerando quão distantes parecem ser as perspetivas de uma revolução anticapitalista e que o islamismo radical visa principalmente os movimentos anticoloniais. Trago aqui o exemplo da batalha assassina travada pelo Daesh, pela Al Nusra, pelos Wahhabitas, pela Irmandade Muçulmana contra o Hezbollah e que ainda não terminou. Por trás de todos eles está o apoio financeiro e logístico de uma aliança tripartida: o Ocidente imperialista, Israel e as monarquias petrolíferas. Por outras palavras, será a luta anticolonial e anti-imperialista independente da questão ideológica inscrita na luta de classes? Esta é a essência do nosso debate aqui.
Aqueles que investigaram estas questões, especialmente a partir do terceiro mundo, viram a necessidade de levantar outra questão já formulada no século XIX pelo bolchevique tártaro Sultan Galiev, ao qual voltaremos mais adiante. Esta questão é a seguinte:
O marxismo era eurocêntrico?
Em 1961, no seu livro Os Condenados da Terra, Frantz Fanon escreveu: “As análises marxistas devem sempre ser ligeiramente distendidas sempre que o problema colonial é abordado”. Esta ideia é um excelente ponto de partida para reexaminar a problemática pós-colonial no quadro daquilo que o historiador indiano Dipesh Chakrabarty chamou de “provincialização da Europa”.
Há, por um lado, uma conceção segundo a qual a provincialização é sinónimo de particularização, e, portanto, de relativização, do “pensamento europeu eurocentrista” e, em particular, do pensamento marxista. Há, por outro lado, uma conceção de “provincialização como distensão” que enfatiza a necessidade de uma extensão e de um deslocamento das fronteiras da teoria marxista para além da Europa como condição de possibilidade de uma sua autêntica universalização.
Assim, uma das questões que precisa de ser elucidada é a da nacionalização do marxismo, cuja identificação habitual com uma “simples” questão de “adaptar o marxismo a condições singulares” não retrata toda a complexidade da operação, na medida em que, como foi demonstrado por Gramsci, esta “nacionalização” implica verdadeiros processos de reformulação teórica e prática. O exemplo mais famoso continua a ser o da “sinicização do marxismo” empreendida por Mao Zedong. Na verdade, como escreve Arif Dirlik – que também é um crítico incansável dos estudos pós-coloniais – “uma das maiores forças de Mao como dirigente foi a sua capacidade de traduzir o marxismo para um idioma chinês”.
Sultan Galiev ou o nacional-comunismo
Neste quadro, analisando a carreira do bolchevique tártaro Mirsaid Sultan Galiev, é interessante referirmo-nos a uma experiência pouco conhecida: a do "comunismo nacional muçulmano", tal como se desenvolveu na Rússia Soviética, e depois na U.R.S.S., de 1917 a final da década de 1920.
1. Como o próprio nome indica, trata-se de um comunismo muçulmano que levanta, mais do que nunca, a questão da relação entre, por um lado, os movimentos de emancipação europeus ou de “origem branca” e, por outro, o Islão e os grupos que o integram, com respeito às suas próprias reivindicações políticas;
2. Estamos perante um movimento de emancipação anti-imperialista que se desenvolveu ligado a um processo revolucionário no próprio coração do império (russo), uma situação histórica cujo precedente mais ilustre é o da ligação entre as revoluções francesa e haitiana, na transição entre os séculos XVIII e XIX;
Na sua época, Sultan Galiev assentou os fundamentos teóricos e ideológicos do nacional-comunismo muçulmano, que podem ser divididos em três pontos:
– O primeiro refere-se às relações de classe e, correlativamente, à relação entre a revolução social e a revolução nacional. Reiterando a oposição leninista entre as nações opressoras e oprimidas, ele apela à “vingança dos oprimidos contra os opressores” e declara que “todos os povos muçulmanos colonizados são povos proletários”.
– O segundo ponto refere-se à relação entre a revolução socialista e o Islão. Se Sultan Galiev defende a ideia de que “como todas as outras religiões do mundo”, o Islão está “condenado a desaparecer”, sublinha, no entanto, que “de todas as grandes religiões do mundo, o Islão é a mais jovem, portanto, a mais sólida e a mais forte pela influência que exerce" e que a lei islâmica (a Sharia) apresenta prescrições verdadeiramente "positivas" e progressistas: a "obrigatoriedade do ensino", "o dever de comerciar ou de trabalhar", "a ausência de propriedade privada de terra, água e florestas”, etc., – prescrições que, como sugere Galiev, sem o dizer explicitamente, poderiam ser incorporadas e sustentar uma futura sociedade comunista.
– Em terceiro lugar, para Galiev, a singularidade do Islão reside, por outro lado, no facto de “durante o século passado, todo o mundo muçulmano ter sido explorado pelo imperialismo da Europa Ocidental”. O Islão foi e continua a ser uma “religião oprimida empurrada para agir na defensiva”, uma opressão que gerou um profundo “sentido de solidariedade” juntamente com um forte desejo de emancipação. Para o Sultan Galiev, não há incompatibilidade entre a revolução socialista e o Islão: não devemos trabalhar para a destruição do Islão, mas sim para a sua desespiritualização, a sua “marxistização”.
– A última abordagem refere-se à exportação da revolução bolchevique ou, nas palavras do próprio Sultan Galiev, à canalização da “energia revolucionária” nascida na Rússia para além das suas fronteiras. Para Galiev, o “foco revolucionário” europeu já se extinguiu, enquanto o Oriente constitui “um material muito rico e muito ‘inflamável’”. Nesta perspetiva, a revolução anticolonial torna-se a condição de possibilidade da revolução europeia e mundial, e não o contrário: “Privado do Oriente e isolado da Índia, do Afeganistão, da Pérsia e de outras colónias asiáticas e africanas, o imperialismo ocidental perecerá e morrerá de morte natural”.
Lenine: os povos orientais e a questão nacional
Um estereótipo persistente postula que, encurralado pelas derrotas da revolução na Europa, depois de 1917, Lenine virou-se para o Leste e abandonou a ideia sagrada do "berço (europeu) da revolução mundial" por despeito.
Para Matthieu Renault, que tem se interessado muito pelo assunto, esta é uma perceção infundada. Embora seja verdade que o pensamento de Lenine sobre os limites da revolução manifestava uma afinidade singular com aqueles que afirmam intransigentemente a necessidade de uma "revolução colonial", na realidade ele apostava nas nações oprimidas, nos camponeses pobres, na rotura da relações coloniais, como condição para sinergia com a revolução socialista.
O interesse de Lenine pelas lutas de libertação nacional remonta aos seus primeiros escritos sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, marcados, como corretamente observou C. L. R. James - e não é casualidade que tenha sido um teórico marxista não europeu, neste caso caribenho, quem o apontou - pela imperativa e progressiva descentralização revolucionária, de uma tradução do marxismo num contexto diferente do da Europa Ocidental, sem lhe ser radicalmente estranho.
É o itinerário dessa descentralização que deve ser explorado através de duas fontes: a primeira refere-se às reflexões de Lenine, antes de 1917, sobre a questão da autodeterminação nacional e das lutas pela independência, e a segunda, a forma como, depois de 1917, tentou responder à exigência de descolonização do Império Russo a partir do caso das colónias muçulmanas da Ásia Central.
As lutas de libertação nacional ou a revolução impura
Em julho de 1903, nas vésperas do Segundo Congresso do Partido Social-democrata dos Trabalhadores da Rússia, Lenine publicou um artigo no jornal Iskra, intitulado “A questão nacional no nosso programa”. Aí se tratava da defesa do direito à autodeterminação das nações, do direito à separação política de um Estado, que não deve ser confundido com o (suposto) direito à autonomia nacional-cultural dentro de um Estado, ao qual Lenine se opôs veementemente. O “Direito das Nações à Autodeterminação” é uma crítica poderosa ao eurocentrismo que rege a abordagem da questão nacional por Rosa Luxemburgo e seus seguidores.
Para Lenine, “afirmar que o imperialismo exerce agora o seu domínio sobre o mundo inteiro, transgredindo todos os limites territoriais estabelecidos” não deveria conduzir a uma negação, mas antes a uma insistência no problema premente das “fronteiras dos Estados estabelecidas com base na opressão nacional”.
Se Lenine nunca questiona o papel de vanguarda do “proletariado avançado”, não nega, dialeticamente, que as guerras nacionais e periféricas têm o poder de introduzir germes de contágio revolucionário no próprio coração das potências imperialistas: “A dialética da história faz com que que as pequenas nações... desempenhem o papel de um dos fermentos, um dos bacilos, que favorece a entrada da força verdadeiramente capaz de lutar contra o imperialismo, a saber: o proletariado socialista”.
Lenine e os muçulmanos da Rússia
Em 20 de novembro de 1917, um dia após a tomada do poder pelos bolcheviques, Lenine apelou a “todos os trabalhadores muçulmanos na Rússia e no Oriente” para se juntarem a eles na revolução em curso:
“Muçulmanos da Rússia, tártaros do Volga e da Crimeia, quirguizes e sartanos da Sibéria e do Turquestão, turcos e tártaros da Transcaucásia, chechenos e montanheses do Cáucaso! Todos vocês cujas mesquitas e casas de oração foram destruídas, cujas crenças e costumes foram pisoteados pelos czares e opressores da Rússia! A partir de agora, as vossas crenças e costumes, as vossas instituições nacionais e culturais são livres e invioláveis. Organizai a vossa vida nacional livremente e sem obstáculos! É vosso direito. Sabei que os vossos direitos, como os de todos os povos da Rússia, são protegidos pelo poder da Revolução, pelos sovietes de deputados operários, soldados e camponeses”.
Se é verdade que as relações entre o poder soviético e as populações muçulmanas do Império Russo, durante e depois da revolução, se revelaram muito mais tumultuadas do que sugere este apelo a uma união livre (revolucionária), ele exprimiria, ainda assim, o desejo profundo de Lenine de uma rotura radical com as políticas de opressão das minorias nacionais e religiosas que marcaram toda a história do czarismo. O símbolo inaugural deste desejo foi a restituição, por ele ordenada, do Alcorão de Othman, uma das cópias mais antigas do texto sagrado, aos muçulmanos da Rússia.
Lenine desempenhou então um papel importante nos processos, mais ou menos tempestuosos, de criação das primeiras repúblicas soviéticas muçulmanas, particularmente na crise de bachkire de 1919-1920, mas estava especialmente interessado no caso do Turquestão Russo (Ásia Central), conquistado na segunda metade do século XIX pelos exércitos czaristas e submetido à exploração colonial em sentido estrito. Ali observáramos o desenvolvimento das monoculturas (particularmente do algodão), a divisão espacial entre as cidades-povoações de indígenas, por um lado, e as de colonos, por outro. O número destes aumentou consideravelmente após a conclusão, em 1906, da construção da ferrovia que ligava Moscovo a Tashkent. Assistiu-se também a uma oposição frontal entre os ocupantes - russos, ucranianos, alemães (étnicos) e judeus, nacionalmente divididos no resto da Rússia, aparecendo aqui, acima de tudo, unidos, como brancos - e os autóctones muçulmanos. Lenine percebeu progressivamente que, mais do que em qualquer outro lugar, é no Turquestão que o desafio de descolonizar o Império Russo deve ser assumido.
Em 22 de abril de 1918, Lenine e Estaline enviaram uma mensagem de saudação "Ao Congresso dos Sovietes do Território do Turquestão em Tashkent", assegurando a este último o apoio do Conselho Geral.
Na opinião de Lenine, o processo revolucionário na Ásia Central deveria servir de modelo, fonte de inspiração e "importação" para os movimentos de libertação nacional a nível internacional, especialmente no Oriente muçulmano. É um laboratório da combinação indispensável entre revolução socialista e as lutas anticoloniais. Não é apenas o derrube do poder burguês existente, mas também a destruição definitiva de todos os vestígios do legado deixado pelas práticas colonialistas.
Tudo isto são elementos teóricos que deveriam permitir analisar um movimento de luta armada anticolonial com obediência islâmica: o Hezbollah, como anunciei no início.
Hezbollah, a última resistência armada
O Hezbollah nasceu em 1982, após a ocupação israelita do Líbano. Os seus membros são muçulmanos xiitas que povoam o sul do Líbano e o vale de Bekaa, que são as regiões do país que fornecem a maioria absoluta da mão-de-obra na indústria agrícola e no setor terciário. Os xiitas do Líbano são predominantemente de origem proletária ou camponesa. A revolução islâmica iraniana liderada pelo Aiatolá Khomeini contra o Xá do Irão, fantoche do imperialismo e membro da NATO, iria desempenhar um papel de trampolim para os militantes xiitas, até então marginalizados e não organizados em sindicatos.
É preciso lembrar que esta mesma população constituiu a base dos militantes da esquerda libanesa. Infelizmente, esta última não tinha um verdadeiro programa de luta armada contra o ocupante. Em 1982, durante a invasão colonial israelita do Líbano e a saída forçada do braço armado da resistência palestiniana, dirigido por Yasser Arafat, para a Tunísia, exigida pelos Estados Unidos e por Israel, enquanto os militantes de esquerda libaneses atiravam as suas armas para as ruas, para escapar à retaliação, os militantes do Hezbollah recolheram-nas, para se prepararem para o combate.
O Hezbollah apresentou-se desde o início como um movimento de libertação nacional e não como um partido religioso, embora o seu discurso seja inspirado na história do movimento xiita, em particular na revolta de Hussein (século VII) que se sublevou contra o Califa Omíada com base em três grandes orientações:
1. A posse da terra; 2. A gestão das finanças e os impostos sobre o comércio; 3. A distribuição justa da riqueza.
O xiismo é contra a propriedade privada e a favor da gestão colegial das finanças, que permite uma distribuição justa da riqueza a todos os muçulmanos, sem distinção de classe. Para os omíadas, ceder terras aos insurgentes ia contra o desenvolvimento da sociedade e do comércio. Hussein e os seus homens foram horrivelmente massacrados em Carbala, no Iraque, num confronto heroico. Isso deveu-se a que o equilíbrio de poder não lhes era favorável no Iraque. Desde esse acontecimento, a batalha de Carbala entrou na mitologia de todos os xiitas. Quando Nasrallah anuncia firmemente nos seus discursos que “não deporemos as armas mesmo que todos os imperialistas se unam contra nós”, ele evoca, nas mentes dos seus combatentes e da população que protege a resistência, o exemplo do mártir Hussein.
Na carta de fundação do Hezbollah há fragmentos das exigências de Al-Imam Hussein, por justiça social e proteção para os “desfavorecidos”. Mas o Hezbollah radicalizou-se no terreno, adaptando os seus princípios às necessidades da época. Encontramos assim uma flexibilização do conceito religioso, entre a carta de 1985 e a de 2009. Esta última carta centra novamente os objetivos e a visão do Hezbollah no “papel das mulheres na sociedade, na independência do poder judicial, na defesa do multicomunismo, na luta contra a corrupção, na descentralização e na preservação de todas as liberdades públicas”.
Atualmente, é praticamente o único movimento de resistência armada anti-imperialista de grande dimensão à escala internacional, em condições difíceis marcadas pela mobilização total dos serviços de espionagem para desarmar esta resistência ou mesmo pôr-lhe fim.
Este movimento de resistência conseguiu reunir à sua volta organizações marxistas, incluindo a FPLP, que colaboram estreitamente com eles. Para o povo palestino, o Hezbollah é o verdadeiro portador de esperança para a sua libertação do jugo colonial. Os discursos de Nasrallah são acompanhados nas bases dos militantes do Hamas, Jihad e Fatha.
O Hezbollah está consciente de que um movimento revolucionário não pode ser limitado a um único país, daí a necessidade de agir para enfrentar o imperialismo em todas as frentes. É por isso que enviou tropas para lutar na Síria contra o exército mercenário do Daesh e da Al Nusra, treinados e financiados pela CIA e pelas monarquias petrolíferas do Golfo.
Em 2006 e 2009, o Hezbollah organizou dois fóruns internacionais para apelar à convergência de causas entre as lutas armadas anticoloniais no Líbano, na Palestina e no Iraque, com a luta dos povos da América Latina contra a hegemonia dos E.U.A., e as lutas contra o sistema capitalista, que ele chama, no seu jargão, de “fonte do mal”; mais de 400 delegações estiveram presentes.
O Hezbollah não conseguiu reagir a tempo durante as grandes manifestações de 2019, por razões de segurança. Ele manteve-se cético perante uma mistura díspar entre uma verdadeira revolta social e a presença ativa de ONG’s pagas pelas embaixadas, especialmente a norte-americana, para expulsar o Hezbollah do governo. Isto provocou um grande debate entre os apoiantes da resistência.
A resistência atua no campo social através de hospitais, escolas e orfanatos. No início de 2006, de acordo com um relatório do IRIN, o movimento financiava quatro hospitais, doze clínicas, doze escolas, dois centros de equipamentos agrícolas, bem como programas sociais e ambientais, prestando serviços gratuitos ou de baixo custo a algumas das regiões mais desfavorecidas do país. Uma das suas instituições, a Jihad al-binâ, desempenhou um papel importante na reconstrução do Sul do país e dos bairros xiitas de Beirute, após a guerra com Israel de julho de 2006.
(*) Leila Ghanem é uma antropóloga, analista política e dirigente do Partido Comunista do Líbano. Coordenou o Fórum Social de Beirute, bem como vários tribunais populares, designadamente contra os crimes de guerra de Israel em Sabra e Chatila e contra as depredações da Monsanto no Iraque. Este artigo está incluído no livro Marxismos y pensamiento crítico en el Sur global, coordenado por Néstor Kohan e Nayar López Castellanos e publicado em 2023 pela editora Akal, Madrid. A tradução para a língua castelhana é de Ángeles Maestro, provavelmente a partir do francês (que desconhecemos se foi a língua original de escrita). Foi a partir desta versão que se traduziu para a língua portuguesa, por Ângelo Novo. No mínimo, um duplo passe angelical, que esperamos não ter demasiado traído o rico e modulado pensamento da autora.
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