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Velhas e novas andanças do imperialismo
Prabhat Patnaik (*)
A crise agrária
A hegemonia do imperialismo está invariavelmente associada a uma crise agrária nos países do Sul global; de facto, a crise agrária é apenas a outra face da ascendência do imperialismo. Isto é evidente no caso da agricultura indiana. Durante o período colonial, assistiu-se a uma crise agrária mais ou menos perpétua, cuja manifestação mais flagrante se traduziu em fomes recorrentes. O domínio colonial na Índia começou com a aquisição pela Companhia das Índias Orientais dos direitos de coleta de receitas sobre Bengala ao imperador mogol Shah Alam, em 1765. No espaço de cinco anos, em 1770, Bengala foi devastada pela fome, talvez a pior fome de sempre na história mundial, na qual, segundo os próprios funcionários da Companhia, morreram 10 milhões de pessoas de uma população total de 30 milhões. O domínio britânico terminou com mais uma fome maciça, em 1943-44, na qual se calcula que tenham morrido pelo menos 3 milhões de pessoas em Bengala.
A fome no início do domínio britânico deveu-se a exigências de receitas exorbitantes; a fome no final do domínio britânico deveu-se também a exigências excessivas ao povo de Bengala, sob a forma de inflação causada por um nível anormalmente elevado de financiamento do défice, para além da cobrança de impostos, tudo para financiar as despesas de guerra dos Aliados no Sul da Ásia. As vítimas da fome foram sempre, predominantemente, a população rural, constituída pelos camponeses e pelos trabalhadores agrícolas. Mas, para além da fome, o endividamento, a miséria e a expropriação dos camponeses eram características comuns do domínio colonial.
Esta rapacidade dos governantes coloniais não era apenas um fenómeno arbitrário; estava necessariamente ligada ao desenvolvimento do capitalismo na Grã-Bretanha e nas metrópoles em geral. O capitalismo na metrópole necessita de uma série de bens primários, constituídos por matérias-primas e cereais alimentares, de que não pode prescindir e que, ao mesmo tempo, não pode cultivar dentro das suas fronteiras, de todo, em quantidades suficientes, ou durante todo o ano. É muito discutido caso do petróleo, do qual apenas onze por cento do total das reservas conhecidas no mundo estão localizadas nas regiões temperadas que constituem a base do capitalismo. Mas frequentemente se perde de vista a existência de uma mesma dependência em relação ao resto do mundo, especialmente as terras tropicais e subtropicais, com respeito a uma grande variedade de produtos agrícolas.
O capitalismo, por exemplo, surgiu com a revolução industrial do final do século XVIII e início do século XIX; e a indústria que esteve no seu centro foi a dos têxteis de algodão. Mas a Grã-Bretanha, o país que assistiu a esta revolução, não podia cultivar algodão; tinha de se abastecer de algodão em bruto através de importações de terras tropicais e subtropicais. Para satisfazer a procura de todas estas matérias-primas por parte da metrópole, era necessário, em primeiro lugar, introduzir nestas terras longínquas a produção de mercadorias, isto é, produção de mercadorias no verdadeiro sentido do termo, em que as decisões de produção são tomadas exclusivamente com base nos sinais do mercado, sem qualquer preocupação com a autossuficiência alimentar, quer a nível familiar, quer a nível local ou nacional. Em segundo lugar, para que a metrópole pudesse abastecer-se de tais materiais em quantidade suficiente, era necessário que a procura local desses produtos nas regiões produtoras (ou dos produtos cultivados nas mesmas terras) fosse comprimida, dada a exiguidade da sua superfície cultivável.
O sistema de tributação colonial atingiu estes dois objetivos para a metrópole. A passagem da tributação da produção, existente na Índia mogol, para um imposto fundiário em dinheiro, no colonialismo britânico, juntamente com a imposição de prazos rígidos de pagamento dos impostos neste último, obrigou o campesinato a contrair empréstimos junto dos comerciantes para efetuar o pagamento dos impostos; e os comerciantes, por sua vez, insistiam em que os camponeses produzissem culturas específicas e as vendessem a preços pré-contratados, como condição para a concessão desses empréstimos. A produção de mercadorias foi assim introduzida na agricultura camponesa, não diretamente, mas de forma refratada, uma vez que os próprios comerciantes respondiam aos sinais do mercado. Simultaneamente, a própria imposição de pesados impostos ao campesinato, juntamente com a desindustrialização que se verificou na sequência da importação de produtos fabris da metrópole, reduziu os rendimentos dos trabalhadores, impondo-lhes assim uma compressão da procura que libertava os bens procurados pela metrópole. Desta forma, ambos os objetivos do imperialismo foram cumpridos pelo sistema de tributação colonial, que tinha ainda a "vantagem" de obter estes bens para a metrópole de forma substancialmente livre de custos.
Com o fim do colonialismo, este sistema terminou; além disso, o regime dirigista no domínio da economia que foi criado na Índia independente atenuou a perpétua crise agrária que tinha caracterizado o colonialismo. É claro que a concentração na posse da terra não terminou; o latifúndio continuou, com vários dos terratenentes a converterem-se em proprietários capitalistas à maneira dos junkers prussianos; a exploração do campesinato manteve-se. Mas a crise agrária, quer sob a forma de fomes devastadoras, quer sob a forma de endividamento debilitante, de migração em massa para as cidades ou de suicídios em massa, deixou de caraterizar a agricultura camponesa.
No entanto, as coisas mudaram novamente com a adoção de políticas neoliberais, o que significou submeter a economia à hegemonia da finança globalizada, com a qual a grande burguesia indiana se integrou intimamente. A hegemonia metropolitana no domínio da economia estava de volta, agora com a conivência da grande burguesia nacional. E a crise agrária regressou, desta vez não sob a forma de fome, mas sob a forma de uma crescente miséria camponesa, de um endividamento pesado que levou a suicídios em massa e à migração para as cidades, em busca de empregos que eram poucos e distantes, tudo isto devido ao declínio da rentabilidade da agricultura indiana. Este declínio foi tão acentuado que tornou a agricultura camponesa mais ou menos inviável; e foi exercida ainda uma pressão adicional sobre o campesinato através da privatização de serviços essenciais como a educação e os cuidados de saúde, que os tornou muito mais caros.
A razão para esta mudança de política em relação à agricultura camponesa, para além do desejo geral do grande capital de invadir a pequena produção, que tem agora uma oportunidade de se concretizar, é a reafirmação dos dois objetivos mencionados anteriormente. Estes são: atrair os camponeses para o âmbito da autêntica produção de mercadorias; e impor uma compressão da procura na nossa economia, de modo a que sejam disponibilizados fornecimentos adequados à metrópole. Essa compressão da procura é agora efetuada através de medidas de austeridade fiscal e de uma política monetária rigorosa, impostas pelos programas do FMI. É claro que isto não dá à metrópole os bens tropicais e subtropicais de que necessita gratuitamente, como nos velhos tempos coloniais (embora permaneça um elemento de "drenagem", numa escala limitada, mesmo depois da descolonização, através da troca desigual, do pagamento de patentes e de outros meios do mesmo género); mas assegura que sejam disponibilizados fornecimentos adequados à metrópole sem causar qualquer inflação, quer nas metrópoles quer na periferia.
O outro objetivo da metrópole, o de impor a produção de mercadorias, visa que a produção seja feita de acordo com o que o mercado dita. Exige, nomeadamente, o abandono de todas as considerações como a autossuficiência alimentar (mesmo a um nível baixo de rendimentos e de poder de compra). Uma mudança importante em relação à época colonial é o facto de os países metropolitanos se terem tornado produtores excedentários de cereais alimentares, o que, do seu ponto de vista, exige ainda mais urgentemente que os países da periferia, como a Índia, abandonem a sua autossuficiência em cereais alimentares. A Índia já abandonou a sua política de apoio governamental aos preços das culturas de rendimento; mas, no caso dos cereais alimentares, os mecanismos de apoio e os preços de aquisição garantidos continuam a manter-se, assim como as operações de aquisição para alimentar o sistema público de distribuição, apesar de todas as pressões da Organização Mundial do Comércio (OMC), porque nenhum governo se atreveu ainda a ceder nessa matéria.
O governo Modi pensou que, a coberto do discurso distrativo do Hindutva, e tirando partido da pandemia, poderia levar a bom porto esta agenda metropolitana. As suas três infames leis agrícolas tinham precisamente esse objetivo. Destinavam-se a eliminar o sistema de preços de apoio para os cereais alimentares e a abrir caminho a uma empresarialização da agricultura, tudo em nome da melhoria da sorte dos camponeses! Mas a luta determinada do campesinato frustrou este plano.
No entanto, este recuo do governo é apenas temporário. Comprometido como está o governo Modi com o neoliberalismo e, portanto, com a agenda de remover toda a intervenção do governo nos mercados, incluindo o mercado de grãos alimentares, ele voltará certamente com as mesmas medidas, uma vez mais, quando surgir uma oportunidade adequada; por trás de sua conversa bombástica de "nacionalismo" está a rendição mais abjeta às exigências imperialistas, a mais covarde submissão ao diktat imperialista. No entanto, a aplicação de tais medidas não só reduzirá a produção de cereais alimentares no país, como também implicará a liquidação do sistema de distribuição pública, uma vez que nenhum programa destes pode ser gerido de forma significativa com base em cereais importados. O que isto significará para a Índia é demonstrado pelo exemplo africano, onde o abandono da autossuficiência alimentar tornou vários países dependentes das importações e vulneráveis à fome, inclusive agora mesmo, na sequência da guerra da Ucrânia, que perturbou o abastecimento mundial de cereais.
Por conseguinte, tanto a superação da crise agrária como a preservação da autossuficiência alimentar exigem que o campesinato seja defendido contra as exigências do imperialismo.
Os recursos naturais
Existe uma enorme assimetria entre o nível de "desenvolvimento" e a posse de recursos naturais entre os países do mundo. Tomemos como exemplo o grupo dos países mais avançados, o G-7, que inclui os E.U.A., o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Itália, o Japão e o Canadá. Este grupo, embora represente apenas 10% da população mundial, possuía em 2020 mais de metade da riqueza líquida global e cerca de dois quintos do produto interno bruto do mundo (tomei, por conveniência, o ponto médio de uma série de estimativas que se situam entre 32 e 46%). O seu poder económico é indubitável; no entanto, em termos de reservas de recursos naturais, é bastante mal dotado.
Consideremos o recurso natural mais importante da atualidade, o petróleo e o gás natural. As estimativas das reservas mundiais de petróleo e gás variam muito, tal como as estimativas da sua distribuição pelos países. No entanto, certos pontos são tão claros que as variações nas estimativas não afetam a sua veracidade. De acordo com a Energy Information Administration (EIA) dos Estados Unidos da América, do total das reservas petrolíferas comprovadas no mundo, os países do G-7 possuem apenas cerca de 13%, principalmente devido ao Canadá (que possui quase 10% das reservas mundiais de petróleo). É verdade que este número exclui o petróleo de xisto, para o qual os Estados Unidos da América têm vindo a encaminhar-se ultimamente, porque as reservas de petróleo de xisto da maioria dos países ainda não são conhecidas; mas mesmo a inclusão do petróleo de xisto não faria grande diferença para o facto básico de que a maior parte das reservas mundiais de petróleo se encontra fora das fronteiras dos países mais avançados.
Consideremos agora as reservas de gás natural. Também aqui temos variações significativas nas estimativas das reservas totais e na sua distribuição pelos vários países. Mas se considerarmos as estimativas da Agência Internacional de Energia (AIE) para os países do G-7 no final de 2020 e as dividirmos pelo total das reservas mundiais de gás, estimadas em 188 biliões de metros cúbicos, verificamos que a quota-parte do G-7 nas reservas mundiais é de pouco mais de 8%. Mais uma vez, o gás de xisto é excluído destas estimativas, mas a conclusão é inequívoca: a maior parte das reservas mundiais de gás encontra-se fora dos países mais avançados. E, no entanto, a dependência destes países em relação ao petróleo e ao gás é esmagadora. É verdade que, ultimamente, alguns deles têm feito esforços para se afastarem destes combustíveis, com a França a tornar-se mais dependente da energia nuclear; e os receios das alterações climáticas têm acelerado um pouco esta diversificação. Mas o facto é que, atualmente, a dependência dos países avançados em relação ao petróleo e ao gás continua a ser muito substancial, enquanto a disponibilidade destes recursos dentro das suas fronteiras continua a ser extremamente limitada.
Até agora não falámos de produtos agrícolas. Neste caso, a capacidade dos países avançados é limitada por considerações geográficas. A indústria têxtil do algodão foi o prenúncio da revolução industrial na Grã-Bretanha e, por conseguinte, do capitalismo industrial; mas a Grã-Bretanha não pode cultivar qualquer algodão em bruto, que foi inteiramente importado. Da mesma forma, as metrópoles capitalistas, localizadas principalmente nas regiões temperadas do mundo, simplesmente não podem cultivar toda uma gama de espécies, ou não podem cultivá-las em quantidades adequadas, ou durante todo o ano; as regiões tropicais e subtropicais, por outro lado, podem cultivar essas espécies e fornecê-las à metrópole. Por conseguinte, a metrópole continua a depender fortemente das regiões tropicais e subtropicais para um abastecimento estável, ao longo de todo o ano, de uma série de culturas, desde bebidas a fibras e produtos alimentares. É verdade que, nos últimos anos, os países avançados começaram a produzir um excedente de cereais alimentares, mas este facto não altera a sua forte dependência das regiões tropicais e subtropicais. Com efeito, os seus excedentes em grãos alimentares foram utilizados para forçar os países do Terceiro Mundo, situados principalmente nas regiões tropicais e subtropicais, a abandonarem a produção de cereais e passarem a produzir as culturas que as metrópoles desejam.
O facto indubitável é, portanto, que os países mais avançados do mundo dependem esmagadoramente do mundo "exterior" para toda uma série de produtos de base, tanto minerais como agrícolas. Têm de obter um abastecimento constante destes produtos a preços baixos. Sob o colonialismo, obtiveram uma parte substancial destes bens do exterior sem qualquer pagamento, ou seja, gratuitamente, como forma física de "drenagem dos excedentes" das colónias e semicolónias; mas a sua necessidade de tais fornecimentos continua a ser primordial, quer possuam ou não colónias.
É o imperialismo, de que a fase colonial fez parte, que assegura um fluxo suave, a preços baixos (ou nulos), de toda uma série de bens essenciais do "exterior" para as metrópoles, que simplesmente não podem produzir tais bens. A instalação, nos países do Terceiro Mundo, incluindo os produtores de petróleo, de regimes que se submetam às metrópoles, é uma forma de estas imporem a sua vontade. O sequestro desses países numa ordem mundial neoliberal, na qual são obrigados a renunciar a qualquer proteção para as suas economias nacionais e forçados a tornarem-se dependentes do comércio, é uma tática mais geral para o mesmo fim.
A remoção de regimes "desobedientes" no Terceiro Mundo é efetuada através de uma variedade de meios, que vão desde golpes patrocinados pela CIA até à imposição de sanções contra países com tais regimes. É uma marca da crescente resistência contra o imperialismo o facto de o número de países alvo de sanções ter vindo a aumentar ultimamente; e é aí que reside o calcanhar de Aquiles do imperialismo.
Se as sanções forem impostas contra apenas um ou dois países, então podem ser eficazes para o imperialismo; mas se o número de países afetados pelas sanções aumentar, isso representa uma séria ameaça para a ordem mundial imperialista. Os países visados podem unir-se para escapar aos efeitos adversos que as sanções têm para eles individualmente; e mesmo outros países que não pertencem nem às metrópoles nem à lista dos países sancionados terão um incentivo para contornarem as sanções, a fim de evitar consequências prejudiciais para as suas próprias economias. Do mesmo modo, se o país sancionado for grande e bastante diversificado, então as sanções contra ele têm uma boa hipótese de se voltarem contra o imperialismo, como tem acontecido ultimamente com as sanções contra a Rússia.
Os meios de comunicação ocidentais apresentam a guerra da Ucrânia como se tivesse começado há apenas um ano e fosse o resultado do comportamento agressivo de uma grande potência em relação a um vizinho mais pequeno. Na realidade, porém, o conflito começou há quase uma década, quando Viktor Yanukovych, o presidente democraticamente eleito da Ucrânia, foi derrubado numa operação planeada pelos neoconservadores e apoiada pela CIA. Subjacente ao atual conflito existe, portanto, um conflito mais fundamental entre o imperialismo ocidental e a Rússia, que possui vastas reservas de gás natural, que ascendem a um quinto do total das reservas mundiais e constituem as maiores de todos os países; e possui também cerca de 5% das reservas mundiais de petróleo.
Mesmo os comentadores de assuntos internacionais que situam a guerra da Ucrânia no âmbito de um conflito entre o imperialismo ocidental e a Rússia, vêm este conflito inteiramente como uma tentativa de transição da unipolaridade para a multipolaridade; o desejo ocidental de controlar os vastos recursos naturais russos quase nunca figura nessas discussões. Mas a força deste desejo não pode ser subestimada. O imperialismo conseguiu controlar Boris Ieltsin que, segundo consta, esteve sempre rodeado por dezenas de elementos da CIA; com Putin, porém, independentemente dos seus outros defeitos, este domínio ocidental sobre os assuntos russos chegou ao fim. Não é de surpreender que o Presidente dos E.U.A., Joe Biden, tenha dito no outro dia que o objetivo norte-americano na guerra da Ucrânia era uma mudança de regime na Rússia, ou seja, a instalação de um regime "obediente" às metrópoles capitalistas.
Mas a imposição simultânea de sanções a tantos países, incluindo mesmo um grande país como a Rússia, está a começar a ter consequências para o imperialismo ocidental. Não são apenas as populações dos países visados que estão a sofrer os seus efeitos, mas também os trabalhadores dos países que impõem as sanções. As dificuldades para que foram empurrados devido à ausência de importações de gás natural levaram milhares de trabalhadores às ruas em toda a Europa, em manifestações contra a guerra e a inflação cuja escala não tem paralelo desde a década de 1970. E, contrariamente ao que se esperaria, quando são impostas sanções, ou seja, uma desvalorização da moeda do país visado e uma aceleração da inflação nesse país, o rublo subiu efetivamente em relação ao dólar e os países que impõem sanções estão, eles próprios, a ser devastados pela inflação. Não restam dúvidas de que o imperialismo entrou atualmente no que para ele são tempos difíceis.
Um equívoco comum acerca do capitalismo
Há uma visão muito generalizada de que, embora o capitalismo, em seus estádios iniciais, gere desemprego e, portanto, uma acentuação da pobreza, esse dano inicial é posteriormente revertido à medida que continua crescendo. Os desempregados são amplamente absorvidos pelas fileiras do exército ativo de trabalhadores e, com a redução da taxa de desemprego, os salários começam a subir; e elevam-se de forma impressionante à medida que a produtividade do trabalho aumenta.
À primeira vista, essa visão parece ser apoiada por provas históricas: a pobreza na Grã-Bretanha é estimada pelo historiador marxista Eric Hobsbawm como tendo aumentado com o início do capitalismo industrial; mas certamente a partir de meados do século XIX as coisas mudaram para melhor no que diz respeito aos trabalhadores. Isso sugeriria que o capitalismo, independentemente das dificuldades de transição que possa causar aos trabalhadores, acaba sendo benéfico até mesmo para eles.
Toda esta conceção, no entanto, é errónea. Não há absolutamente nenhuma razão teórica para esperar que o capitalismo reverta os danos que causa inicialmente às condições materiais dos trabalhadores; e a razão para a melhoria realmente observada nessas condições, em um estádio posterior, não tem nada a ver com qualquer tendência espontânea do capitalismo.
Esta ideia de que, embora o capitalismo inicialmente prejudique os trabalhadores, depois melhora a sua condição, pode ser atribuída ao economista inglês David Ricardo, que apresentou o argumento no contexto da introdução da maquinaria. Ele argumentou que tal introdução inicialmente desloca trabalhadores causando muitas dificuldades, mas aumenta a taxa de lucro e, portanto, a taxa de acumulação de capital, por causa da qual os trabalhadores deslocados são reabsorvidos no emprego; na verdade, os trabalhadores como um todo podem até experimentar uma melhoria nos seus salários, se não se reproduzirem muito rapidamente e, assim, controlarem a taxa de crescimento da força de trabalho.
O argumento de Ricardo tem duas falhas óbvias. Primeiro, ele estava falando sobre uma introdução única de maquinaria; mas o capitalismo introduz novas máquinas e métodos de produção de forma contínua. Mesmo se aceitarmos o seu argumento de que o efeito de criação de desemprego de uma introdução única de maquinaria seria revertido, eventualmente, por meio de uma maior taxa de acumulação de capital e, portanto, uma maior taxa de crescimento da procura de trabalho, essa eventual ocorrência nunca se materializaria, pois que, nesse ínterim, novas rodadas de máquinas são introduzidas.
A questão, portanto, deve ser encarada em termos dinâmicos. Se g é a taxa de crescimento do estoque de capital e também da produção (assume-se que a razão entre produção e estoque de capital permaneça inalterada apesar do progresso técnico cujo principal efeito é suposto ser uma redução no custo do trabalho) e p a taxa de crescimento da produtividade do trabalho, então a taxa de crescimento da procura de trabalho é g - p. Se isso for menor que a taxa natural de crescimento da força de trabalho n, a taxa de desemprego continuará aumentando ao longo do tempo. Não há nada no funcionamento do capitalismo que faça g - p exceder n.
É claro que alguns argumentariam, em defesa de Ricardo, que se a produtividade do trabalho continuasse a crescer enquanto a taxa de desemprego também aumentasse (de modo que a taxa de salário permanecesse ligada a um nível de subsistência), então a taxa de lucro que poderia ser obtida da produção se manteria crescente e que isso continuaria a aumentar a taxa de acumulação até que a taxa de desemprego caísse significativamente. Mas é aqui que entra o segundo problema com o argumento de Ricardo, ou seja, que ele supõe que nunca haveria uma restrição da procura sobre a realização do produto potencial e, portanto, sobre a taxa de lucro e a taxa de acumulação. Ele assume, por outras palavras, que a Lei de Say, que afirma que “a oferta cria sua própria procura”, invariavelmente se mantém. Mas uma vez que reconheçamos que há um “problema de realização”, que a taxa de lucro, que emerge da taxa de salário, em dadas condições de produção, não é necessariamente “realizada”, e que a taxa de acumulação do estoque de capital, e com ela a taxa de crescimento da procura de trabalho, não continuará necessariamente a aumentar sem limites, então fica claro que não há nenhum mecanismo dentro do capitalismo para reabsorver no exército ativo de trabalhadores todos aqueles que são dele deslocados pela introdução contínua de progressos técnicos.
Ambos os argumentos acima expostos foram desenvolvidos por Marx em crítica à afirmação de Ricardo de que a introdução da maquinaria teve apenas um efeito negativo transitório no nível de emprego e na condição dos trabalhadores. Uma vez que esses argumentos sejam levados em conta, não há absolutamente nenhuma base teórica para a crença de que o capitalismo, embora inicialmente prejudicial ao emprego e à condição dos trabalhadores, venha eventualmente a melhorar a sua sorte.
Como explicar, então, o fato histórico indubitável de que houve uma reviravolta nas condições de vida dos trabalhadores metropolitanos ao longo do desenvolvimento do capitalismo? A resposta, aqui, está na emigração em larga escala de trabalhadores europeus para o “Novo Mundo” que ocorreu no curso do que é chamado de “longo século XIX” (isto é, o período até a Primeira Guerra Mundial). Entre o fim da guerra napoleónica e a Primeira Guerra Mundial, segundo o economista W. Arthur Lewis, aproximadamente cinquenta milhões de trabalhadores europeus migraram de seus países de origem para outras regiões temperadas de colonização branca, como os Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul.
Tratava-se de uma migração de “alta remuneração”, pois os salários, tanto nos países de origem como nos países de destino, eram elevados, ao contrário do que acontecia noutra onda migratória que ocorria simultaneamente. Esta segunda onda foi de países tropicais e semitropicais como Índia e China para outros países tropicais e semitropicais como Fiji, Maurício, Índias Ocidentais, África Oriental e Sudoeste dos Estados Unidos da América; esses migrantes tropicais, que faziam parte de uma migração de baixos salários, não foram autorizados a mover-se livremente para as regiões temperadas de assentamento branco (ainda não o são até hoje).
Lewis explica essa diferença entre os fluxos de migração de altos e baixos salários, sugerindo que houve uma revolução agrícola na Grã-Bretanha (que se espalhou para outros lugares) que aumentou os rendimentos da população rural em seus países de origem. Mas há muito poucas provas de uma tal revolução agrícola. A verdadeira razão para os altos salários associados à primeira das ondas migratórias atrás referidas foi que estes migrantes simplesmente tomaram à força as terras pertencentes à população tribal indígena e se estabeleceram como agricultores com altos níveis de rendimento, o que elevou o nível salarial tanto nos países de onde vieram como nos países para onde se deslocaram.
A escala dessa migração de países temperados para países temperados foi muito grande: para a Grã-Bretanha, por exemplo, estima-se que, entre 1820 e 1915, cerca de metade do aumento anual da população emigrou, simplesmente. Isso, em termos de escala, seria análogo a cerca de 500 milhões de pessoas emigrando da Índia no período desde a independência. A possibilidade de migração numa tal escala simplesmente não está disponível para pessoas no Terceiro Mundo hoje em dia. Mas é o facto de essa possibilidade ter sido facultada à população das metrópoles que explica a reviravolta na sorte dos trabalhadores europeus no século XIX. Não são as tendências espontâneas do capitalismo que explicam uma tal reviravolta, mas o facto de que um grande segmento da população pôde, simplesmente, migrar para o exterior e, apoderando-se das terras dos habitantes originais, estabelecer-se aí como fazendeiros razoavelmente abastados. Esta possibilidade de arrebatar terras aos habitantes originais surgiu devido ao fenómeno do imperialismo.
O imperialismo ajudou esse processo de reviravolta nas condições materiais de vida dos trabalhadores metropolitanos também de uma segunda maneira. Mencionei acima que o sistema, sendo limitado pela procura, impede a reabsorção dos trabalhadores deslocados pela maquinaria. Mas uma restrição da procura pode ser quebrada com a venda de produtos feitos à máquina às custas dos produtores artesanais nas colónias e semicolónias, como de fato aconteceu historicamente. Isso teria como efeito reduzir ou manter baixo o nível de desemprego na metrópole; na verdade, isso equivaleria, de facto, a uma exportação de desemprego da metrópole para as colónias e semicolónias, que são impotentes para proteger suas economias de tais importações desindustrializantes, uma vez que são governadas pelas metrópoles.
Segue-se que, em lugar do equívoco de que o próprio capitalismo tenderia a superar os danos iniciais que inflige à população trabalhadora das metrópoles, é o fenómeno do imperialismo - garantindo, tanto uma grande apropriação de terras à volta do mundo, quanto uma exportação de desemprego para as colónias e semicolónias - que fundamenta a reviravolta na sorte de seus trabalhadores domésticos. Isso não deve significar que os trabalhadores das metrópoles sejam cúmplices do projeto imperialista; é apenas a maneira como o sistema funciona.
As ciências sociais e a mente colonizada
Um componente crucial do sistema imperialista é a colonização de mentes do Terceiro Mundo que ajuda a sustentá-lo. Essa colonização é generalizada, mas aqui trataremos apenas da colonização académica e também da relacionada com as ciências sociais.
As ciências sociais são de importância crítica porque os problemas do Terceiro Mundo são, acima de tudo, problemas sociais. Uma vez que a colonização das mentes do Terceiro Mundo tem o efeito de inculcar nelas a crença de que o imperialismo, na era colonial, nada teve a ver com esses problemas (pelo contrário, se algum, teve até um impacto benéfico), e que o imperialismo, na era atual, nem sequer existe, incapacita o pensamento do Terceiro Mundo de trabalhar sobre como resolver esses problemas sociais, ou seja, como ir além da situação existente.
O passo inicial dessa colonização é a urdidura de uma narrativa sobre o desenvolvimento social, tanto nos países colonizados quanto, necessariamente, por implicação, também nas metrópoles, que não vê absolutamente nenhum papel do colonialismo ou do imperialismo nesse desenvolvimento. Uma ilustração do campo da Economia esclarecerá esse ponto. A teoria mais influente do crescimento sob o capitalismo, na Economia “convencional” (“mainstream”), desenvolvida por Robert Solow, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), é aquela que vê o crescimento como sendo limitado por (e, portanto, no longo prazo, igual a) uma taxa de crescimento da força de trabalho doméstica dada independentemente; apesar de abordagens mais recentes para o crescimento (que continuam a evitar qualquer referência ao imperialismo), esta teoria continua a permanecer dominante, como é evidenciado pela sua aceitação por parte de Thomas Piketty, no seu recente e amplamente aclamado livro O Capital no Século XXI.
Esta teoria do crescimento, no entanto, de uma penada, torna incompreensível o movimento maciço de escravos, totalizando pelo menos vinte milhões, da África para o “Novo Mundo”, na primeira metade do século XIX. Torna incompreensível a movimentação maciça de coolies e trabalhadores contratados, da China e da Índia, respetivamente, totalizando cerca de cinquenta milhões, na segunda metade do “longo século XIX” (entre 1850 e 1914). Torna incompreensível o movimento maciço de trabalhadores, no período pós-Segunda Guerra Mundial, da Índia, Paquistão e Índias Ocidentais, para a Grã-Bretanha; da Argélia e de outras ex-colónias francesas para a França; da Turquia para a Alemanha; e assim por diante. Em suma, o capital moveu historicamente milhões de pessoas à volta do mundo para satisfazer as suas necessidades de força de trabalho; ele não fica apenas quieto em casa, ajustando a sua acumulação para baixo, no caso de uma escassez de mão-de-obra que o confronta dentro das suas próprias fronteiras. E, no entanto, é exatamente isso que a teoria do crescimento “convencional” nos diz.
Mesmo se deixarmos de lado o exército de reserva de trabalho que o capitalismo sempre teve, ele tem acesso a toda a oferta de trabalho do mundo sempre que houver necessidade. A ideia de que possa ser constrangido pela escassez de mão-de-obra porque a força de trabalho doméstica não cresce com rapidez suficiente é simplesmente ridícula. E, no entanto, é isso que a Economia “convencional” sugere.
Assim, a teoria do crescimento “convencional” mais influente em Economia está palpável, descarada e impudentemente em desacordo com os factos, com a história real do modo de produção capitalista. Como é isso possível? Obviamente, porque essa teoria é “aceitável” ao pintar um quadro embelezado do capitalismo, no qual não há espaço para imperialismo, conquista, apreensão ou violência. E isso é verdade para todas as teorias sobre o funcionamento do capitalismo que constituem a economia “convencional”; a sua aceitação é devida à sua “aceitabilidade”, não por causa de seu poder explicativo.
É claro que tudo isso não deve impedir-nos de apreciar a inteligência extraordinária que existe nessas teorias, o grande brilhantismo que lhes está subjacente. Mas por trás de todo esse brilhantismo, desse deslumbrante virtuosismo técnico, há um completo vazio de poder explicativo.
Mas então como tais teorias ganham aceitação? Não necessariamente porque os autores dessas teorias estejam conscientemente agindo de má-fé ou estejam cientes do papel apologético das narrativas que estão tecendo. O termo “mentes colonizadas” não se aplica apenas às mentes do Terceiro Mundo; aplica-se também às mentes da metrópole: se a ameaça de exclusão de cargos académicos, promoções, publicações, prémios e fama, é apresentada a académicos metropolitanos, caso eles ousem explorar a verdade, caso ultrapassem os limites do “aceitável”, então eles simplesmente entram na “linha”; e logo os neófitos que foram aterrorizados pelas consequências de transgredir a “linha” desenvolvem o hábito de defender a “linha” eles mesmos, constrangendo os outros. Não há necessariamente má vontade nisso tudo; torna-se apenas a “coisa a fazer”.
Mas então como explicamos que académicos do Terceiro Mundo também sigam a “linha”? Afinal de contas, durante a luta anticolonial houve um certo abalo, não importa o quão parcial e hesitante, da “colonização da mente”; caso contrário, não teria havido luta anticolonial. Então, como explicamos uma recolonização da mente no Terceiro Mundo?
Uma razão importante é a introdução em larga escala de académicos do Terceiro Mundo nas faculdades das universidades metropolitanas, o que costumava ser extremamente raro nos dias anteriores à guerra. Tal introdução, ou a própria possibilidade dela, faz com que muitos académicos do Terceiro Mundo entrem na “linha”. E a isto acresce que, com a produção de um grande número de académicos nos países ex-coloniais após a descolonização, o seu desejo muito natural de reconhecimento dentro da “profissão”, que continua a ser dominada por académicos metropolitanos, coloca-os automaticamente sob a influência das teorias metropolitanas.
Dito de outra forma, a descolonização política não significou uma mudança na relação de poder dentro da profissão, que continuou a ser dominada pelos académicos metropolitanos. O avanço na carreira dentro dessa estrutura de poder significava aceitar, quer se queira quer não, as teorias predominantes na metrópole. A hesitante descolonização da mente que ocorreu durante a luta anticolonial foi revertida em resultado disto.
Agora, sob o neoliberalismo, até o próprio problema da colonização da mente fica completamente perdido de vista. Na verdade, pelo contrário, o trabalho académico é visto como sendo uma atividade completamente homogênea: a ideia de que uma nação do Terceiro Mundo deva ter um entendimento, digamos, de Economia, que possa ser diferente do que prevalece na metrópole parece estranha, até mesmo para o estabelecimento educacional do Terceiro Mundo. Por exemplo, Dadabhai Naoroji ou Romesh Chunder Dutt, que examinaram meticulosamente o mecanismo da exploração colonial, compreensivelmente, não são levados a sério nas universidades metropolitanas, onde nem sequer se ouve falar deles; e se visualizarmos a disciplina como sendo homogénea, seguir-se-á que também nós não os levaremos a sério e, portanto, cairíamos novamente em um estado de mentes colonizadas. E agora, com a Comissão Nacional de Educação pedindo uma sincronização de cursos e currículos entre universidades indianas e estrangeiras, essa colonização da mente fica totalmente institucionalizada.
Segue-se que uma descolonização da mente não significa, e está nos antípodas, da adoção de uma atitude hindutva chauvinista. Esta último, ao contrário, reforça a colonização da mente. Não se preocupa com o ofuscamento da verdade que é uma marca das ciências sociais metropolitanas; sua única preocupação é obter algum tipo de certificado, de preferência da própria metrópole, de que as teorias que constituem tais ciências sociais tiveram a sua origem na Índia antiga! De facto, a sua mediocridade manifesta-se pela destruição deliberada de quaisquer instituições de ensino superior que tenham sido construídas sob governos anteriores no país. Assim, ao mesmo tempo que embrutece qualquer criatividade que não reverencie o Hindutva, na verdade incentiva a importação, sem qualquer crítica, das ideias da metrópole e, portanto, da sua hegemonia.
A descolonização da mente requer, portanto, não uma rejeição das ciências sociais como disciplina, mas, ao contrário, uma busca inabalável das ciências sociais como disciplina, em oposição àquilo que passa por “ciências sociais” na metrópole, que é manchado pelo ofuscamento do imperialismo. Karl Marx acreditou que a burguesia, depois de um período inicial, não precisa de verdadeira ciência económica, mas de ideologia no reino da ciência económica, que a genuína atividade científica só pode ser realizada a partir da perspetiva de classe do proletariado. O mesmo pode ser dito sobre a atitude da metrópole em relação às ciências sociais. Só do ponto de vista do colonizado é que se podem desenvolver verdadeiras ciências sociais que não sejam meras apologéticas.
Ucrânia e a opinião pública
Um relatório do New York Times News Service reproduzido no The Telegraph of Kolkata (7 de maio de 2023) discute as conclusões de uma pesquisa de opinião pública global realizada pelo Instituto Bennett de Políticas Públicas da Universidade de Cambridge. Estas mostram que o conflito na Ucrânia mudou o sentimento público “em democracias desenvolvidas no Leste Asiático e na Europa, bem como nos Estados Unidos da América, unindo seus cidadãos contra a Rússia e a China e mudando a opinião das massas numa direção mais pró-americana”; pelo contrário, “fora deste bloco democrático, as tendências foram muito diferentes”. Ao longo de uma década, antes da guerra na Ucrânia, a opinião pública numa vasta extensão de países que se estendia da Eurásia continental ao norte e oeste da África havia se tornado mais favorável à Rússia, mesmo quando a opinião pública ocidental se tornou mais hostil; a guerra na Ucrânia aparentemente fez pouca diferença quanto a esse facto. E o mesmo vale para a opinião pública em relação à China.
Embora esta divergência entre as simpatias das pessoas nas duas partes do mundo seja impressionante, a explicação que o relatório lhe dá é bastante banal: aponta para o que chama de “divergência de valores fundamentais”. Não são apenas os “regimes opressivos” e “autoritários” do mundo em desenvolvimento cujas perceções diferem daquelas dos países avançados “democráticos e liberais”; mesmo os povos dos primeiros parecem não simpatizar com as potências ocidentais, e isso porque eles têm valores fundamentais muito diferentes. Por outras palavras, as pessoas do Terceiro Mundo não estão com o Ocidente porque têm valores que não apreciam a importância da democracia, das liberdades civis, do secularismo e assim por diante, sendo por isso que apoiam a Rússia e a China.
O corolário, em termos de conselho para a política externa dos Estados Unidos da América, é que esta deve cortejar, em vez de evitar, os regimes “iliberais” do Terceiro Mundo, como os da Turquia ou da Índia. A sugestão é que tais regimes, embora difiram dos valores ocidentais, geralmente estão em sincronia com o humor dos povos do Terceiro Mundo.
O que esta análise ignora é que, de qualquer maneira, os E.U.A. nunca evitaram tais regimes; além disso, é uma calúnia sugerir que os valores dos povos do Terceiro Mundo estão em sintonia com tais regimes. Na verdade, bem pelo contrário, sempre que eles elegeram regimes que trabalharam em seu nome, para promover os seus interesses, os E.U.A. esforçaram-se direta ou indiretamente para derrubar tais regimes democráticos eleitos popularmente, por meio da promoção de revoltas ou golpes de Estado. Os exemplos da Guatemala (Arbenz), Irão (Mossadegh), Indonésia (Sukarno), Chile (Allende), Brasil (Goulart), Congo (Lumumba), Burkina Fasso (Sankara) são apenas alguns que imediatamente vêm à mente; além disso, apoiou direta ou indiretamente o assassinato de líderes populares que conduziam seus povos à libertação nacional, líderes como Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral e outros.
Uma tal análise, recomendando um apoio ainda mais forte dos E.U.A. aos autoritarismos do Terceiro Mundo, faz sentido se fecharmos os olhos à verdadeira razão por detrás da hostilidade das pessoas do Terceiro Mundo às potências ocidentais, inclusive na Guerra da Ucrânia; e isso reside em sua oposição, seja informada ou instintiva, ao imperialismo ocidental com base em toda a sua experiência vivida. E os governos do Terceiro Mundo, inclusive os autoritários aliados dos E.U.A., são muitas vezes forçados a tomar conhecimento desse facto, razão pela qual expressam simpatia pela Rússia na Guerra da Ucrânia.
Por outro lado, graças, inter alia, à barragem de propaganda a que são submetidos através dos mass media controlados pelas grandes corporações, da qual o artigo do NYT em discussão é um exemplo, a opinião pública no Ocidente é manipulada para apoiar o imperialismo.
Este facto, porém, está mudando, como fica claro pela onda de greves que os trabalhadores da União Europeia estão fazendo atualmente, para protestar contra a erosão de seus padrões de vida causada pela inflação, pela qual eles culpam a Guerra da Ucrânia, com razão. O prolongamento desta guerra, como eles bem percebem, é inteiramente devido às ações dos seus próprios governos.
O que é significativo, no entanto, é a traição em larga escala do seu povo praticada no oeste por todos os partidos políticos. Salvo algumas exceções, todos eles se alinharam atrás dos E.U.A.. Este apoio chegou a um tal ponto que até mesmo a revelação de Seymour Hersh de que os E.U.A. foram responsáveis pela explosão do gasoduto Nord Stream, a fim de impedir qualquer possibilidade de a Alemanha obter o seu gás da Rússia, mesmo no futuro, não causou uma qualquer oscilação; foi, aliás, mais ou menos bloqueada pelos mass media, não apenas nos Estados Unidos da América, mas também na União Europeia.
Este completo desconhecimento dos interesses do povo, por parte dos partidos políticos, inclusive de partidos que afirmam falar em nome da classe trabalhadora e tradicionalmente contam com o seu apoio, é reminiscente das vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando a liderança da Segunda Internacional, em cada país beligerante, apoiou o esforço de guerra da “sua própria burguesia”. Quando os créditos de guerra estavam sendo votados no parlamento alemão, em 1914, o poderoso Partido Social Democrata da Alemanha, que tinha até 86 jornais diários, votou a favor. O único voto contra foi de Karl Liebknecht, que fundaria depois o Partido Comunista Alemão, antes de ser martirizado juntamente com Rosa Luxemburgo.
Hoje não são apenas os social-democratas, mas também grandes setores da esquerda radical europeia, que secundam o apoio do governo alemão à Ucrânia contra a Rússia. Eles apresentam dois argumentos, um geral e outro específico. O argumento geral afirma que, longe de a guerra ser uma consequência das ações do imperialismo ocidental, é o Ocidente que nela está apoiando a Ucrânia numa guerra contra o imperialismo russo. A Rússia é que é uma potência imperialista agressiva.
Mas mesmo se ignorarmos todo o pano de fundo da guerra atual, ou seja, o golpe “Maidan” contra o presidente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em 2014, arquitetado pelos “neocons” norte-americanos, e o subsequente conflito no leste da Ucrânia, por causa da repressão da sua maioria de língua russa, há um facto simples que mostra quem é o responsável pela guerra. O acordo de Minsk, que poderia ter evitado a guerra - com o qual a Rússia havia concordado e prestado a sua adesão - foi torpedeado pelos ingleses e norte-americanos. Na verdade, resulta agora de admissão de Angela Merkel (que ela posteriormente retirou por ser embaraçosa para o Ocidente), que o acordo de Minsk foi motivado inteiramente para ganhar tempo para a Ucrânia, para que ela pudesse se armar adequadamente. Aceitar o acordo de Minsk, como fez a Rússia, dificilmente pode ser considerado um sintoma de imperialismo russo.
O argumento específico afirma que, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, deve ser responsabilizada diretamente pela guerra em curso. Isso também carece de substância; embora a invasão não deva ser endossada, ela não pode ser vista isoladamente de todo o conjunto de eventos que constituem seu pano de fundo. A importância do contexto geral foi enfatizada por Lenine em 1915, quando ele escreveu numa resolução sobre a Primeira Guerra Mundial: “A questão de qual grupo deu o primeiro golpe militar ou primeiro declarou a guerra é irrelevante em qualquer determinação das táticas dos socialistas.” (citado em “The Delphi Initiative”, 6 de maio de 2023). E o contexto atual é o de uma expansão para leste por parte do imperialismo ocidental.
Uma questão pode ser levantada: porque deveria a Rússia ter medo de uma tal expansão do imperialismo para o leste? Por que deveria ler algo sinistro em tal expansão? A resposta está na tendência do imperialismo para dividir grandes países em fragmentos menores para dominá-los de uma forma mais compreensiva. Esta tendência, que se manifestou anteriormente no caso da Jugoslávia, seria ainda mais pronunciada no caso da Rússia, que também é muito rica em recursos naturais, especialmente gás natural e, em menor medida, petróleo. Além disso, se a Rússia for fragmentada, ou dominada de outra forma, então o caminho ficará livre para a dominação imperialista das muitas repúblicas da Ásia Central que também são ricas em recursos minerais. A agressividade imperialista em relação à China também tem uma motivação muito semelhante, de fragmentá-la até à insignificância. Um país como a Índia, aliás, tem muito com que se preocupar com essa tendência do imperialismo.
Atualmente, é claro, devido a essa mesma agressividade em relação à Rússia, entre outros fatores, a própria hegemonia imperialista está ameaçada. A estratégia imperialista, de inspiração “neo-con”, de buscar afincadamente o domínio mundial, está se deteriorando precisamente por causa da sua própria agressividade. Mas isso é uma consequência inevitável do seu ambicioso projeto; pelo fato de estar sofrendo uma derrocada, não se deve inferir a sua ausência. Por outras palavras, não se deve concluir do seu fracasso que esse projeto ambicioso nunca existiu para começar. E as pessoas do Terceiro Mundo viram corretamente este projeto pelo que ele é, sendo por isso que aí há tanto apoio à Rússia.
As implicações da hegemonia do dólar
Como é que está exatamente o estatuto do dólar norte-americano como moeda de reserva relacionado com o imperialismo? Esta pergunta tem duas partes: como é que este estatuto do dólar está relacionado com o imperialismo dos E.U.A. e como é que está relacionado com o arranjo imperialista global. O facto de o dólar ser uma moeda de reserva faz dele (e dos ativos denominados em dólares em geral) um meio de retenção de riqueza na economia mundial, um papel que os metais preciosos, como o ouro e, em menor grau, a prata, têm desempenhado historicamente. Durante muito tempo, as moedas desempenharam este papel sendo convertíveis em ouro a uma taxa fixa, o que também acontecia no sistema de Bretton Woods do pós-guerra. Atualmente, o dólar não é oficialmente assim convertível; no entanto, os ricos do mundo consideram que o dólar é tão bom como o ouro em dois aspetos.
Em primeiro lugar, ao contrário das matérias-primas, tem custos de transporte negligenciáveis; e, em segundo lugar, não se espera que o seu valor em termos de matérias-primas diminua secularmente, apesar das flutuações anuais desse valor. Isto é assegurado pela existência de um exército de reserva de trabalho suficientemente grande (para manter baixos os salários em dólares nos E.U.A.) e pela imposição da compressão de rendimentos, por meio de compulsão política e por "condicionalidades" do FMI, aos produtores de matérias-primas do Terceiro Mundo, mantendo baixos os seus preços.
Mas se o dólar é considerado "tão bom como o ouro" pelos detentores de riqueza do mundo, então, de facto, isso faz com que os E.U.A. detenham uma mina de ouro inesgotável, com a qual podem financiar os seus défices da balança de transações correntes, sem terem de depreciar a sua moeda. É certo que o dólar não é a única moeda em que a riqueza mundial é detida; há outras moedas em que a riqueza mundial também é detida, como seja o euro, a libra esterlina e o iene, bem como os ativos denominados nessas divisas. Mas todas estas moedas só se tornam veículos de detenção de riqueza porque não se espera que os seus valores diminuam secularmente em termos de dólares. Estes outros países avançados ajustam os seus níveis de procura agregada e, por conseguinte, as suas taxas de desemprego, a fim de assegurar que as suas moedas mantenham os seus valores relativos face ao dólar e, por conseguinte, que estas expetativas continuem a ser sustentadas. O estatuto de medida de riqueza destas outras moedas deriva, em suma, do estatuto do dólar; é o dólar que é a moeda de base "tão boa como o ouro", e este facto permite aos E.U.A. financiar os seus défices correntes sem qualquer problema.
Mas, já agora, por que razão surgiriam esses tais défices? Ao longo da história do capitalismo, o país capitalista líder tem geralmente mantido um défice na balança de transações correntes em relação a outras potências capitalistas emergentes, dando-lhes acesso ao seu próprio mercado (mesmo quando essas potências rivais se protegeram, entretanto, contra o país líder), a fim de acomodar as suas ambições e, desta forma, manter o seu próprio papel de liderança; de facto, é uma condição para ser líder que se tenha um défice da balança de transações correntes em relação aos seguidores. Quando a Grã-Bretanha era a líder do mundo capitalista, apresentava um défice persistente na balança de transações correntes em relação à Europa continental e aos Estados Unidos da América, que então emergiam como potências rivais. Mas a Grã-Bretanha compensava os seus défices em relação a estes países através de uma apropriação não correspondida das grandes receitas de ouro e de divisas de todo mundo geradas pelas suas colónias, impondo administrativamente a estas certas responsabilidades, um processo que é justamente designado por "drenagem". A isto acresceu a imposição de exportações desindustrializantes para as suas colónias e semicolónias, de tal modo que, no conjunto da sua balança de pagamentos, chegou a apresentar um excedente de contas correntes, ou seja, a realizar exportações de capitais. Ironicamente, estava a fazer exportações de capitais para os mesmos países (tomados como um grupo) em relação aos quais tinha défices na balança de transações correntes, nomeadamente a Europa continental, os E.U.A. e outras terras temperadas de colonização branca.
Hoje em dia, os Estados Unidos da América não conseguem extrair uma "drenagem" na mesma escala; nem podem fazer exportações desindustrializantes suficientes para países terceiros (países que não sejam as potências capitalistas emergentes); têm, portanto, forçosamente de ter um défice corrente global, que satisfazem imprimindo dólares ou exportando “vales” (“IOUs - I owe you”) denominados em dólares. O papel de moeda de reserva do dólar é, portanto, crucial para os E.U.A. manterem a sua hegemonia face ao mundo capitalista.
É também o que determina o nível de atividade dentro dos E.U.A. e, consequentemente, em todo o mundo capitalista. Enquanto todos os outros países estão limitados pelo facto de o seu governo não poder aumentar a procura agregada através da realização de maiores despesas públicas, como tinha feito durante o período de Bretton Woods, porque o capital financeiro globalizado impõe um limite ao seu défice fiscal em relação ao seu PIB, os E.U.A. estão livres deste constrangimento; dificilmente pode haver uma fuga financeira dos E.U.A., uma vez que a sua moeda é considerada "tão boa como o ouro". Por conseguinte, salvo a ocorrência de "bolhas de preços de ativos", a despesa do governo dos E.U.A. é o que determina, para qualquer nível de distribuição de rendimentos no mundo, o nível de atividade na economia mundial capitalista. O próprio governo dos E.U.A. pode optar por limitar as suas despesas para evitar endividar-se perante o resto do mundo (através da detenção, por parte deste, de dólares e obrigações do governo dos E.U.A.); mas não é obrigado a fazê-lo. O que faz efetivamente é uma questão da sua política e determina o que acontece à produção e ao emprego no capitalismo mundial.
Toda esta questão pode ser encarada de uma forma diferente. Suponhamos, por um momento, que o dólar não era uma moeda de reserva. Nesse caso, os Estados Unidos da América teriam de tentar eliminar o seu défice na balança de transações correntes através de uma depreciação do valor externo do dólar. Uma tal depreciação, para ser eficaz e não se dissipar apenas através de um aumento equivalente dos salários e dos preços monetários no país, comprimiria necessariamente os salários reais, o que suscitaria a resistência da classe trabalhadora interna (para contrariar a qual o desemprego teria de ser suficientemente aumentado para abater a força de negociação salarial dos trabalhadores); e mesmo que a depreciação se tornasse efetiva enfraquecendo a resistência dos trabalhadores, suscitaria a retaliação de outros países capitalistas avançados, à custa dos quais os E.U.A. estariam a aumentar as suas vendas para reduzir o seu défice da balança de transações correntes.
Assim, se o dólar não fosse uma moeda de reserva, então os E.U.A. não poderiam continuar a ser o líder do mundo capitalista; estariam envolvidos num conflito de cravar o meu vizinho (“beggar-my-neighbour”) face a outros países capitalistas avançados (cada um tentando arrebatar mercados aos outros), e enfrentando uma resistência dos trabalhadores ainda mais forte do que a atual. E se o desemprego nos Estados Unidos da América aumentasse para derrubar a força de negociação salarial dos trabalhadores, então isso significaria um nível mais baixo de atividade económica para o mundo capitalista como um todo. (O efeito de tais níveis reduzidos de atividade económica noutros países capitalistas avançados não poderia ter sido contrariado através de uma maior intervenção estatal nesses países, uma vez que tal ativismo estatal dentro de cada país não é possível num mundo de finanças globalizadas).
Isto explica também porque é que o papel do dólar como moeda de reserva é benéfico para o sistema no seu conjunto, não apenas para os E.U.A. mas para todo o mundo capitalista avançado. É o que dá coerência ao sistema e o faz funcionar corretamente. Mas é também o que sustenta todo o arranjo imperialista, pois que o sistema assenta no imperialismo.
O dólar, como moeda de reserva, não é apenas um meio de detenção de riqueza, mas também um meio de circulação. De facto, não pode ser um meio de retenção de riqueza sem ser também um meio de circulação; os países precisam de dólares para negociar uns com os outros. Se houver escassez de uma matéria-prima ou de um bem manufaturado tropical produzido no Terceiro Mundo em relação à sua procura no mercado mundial, o seu preço aumenta. Mas, obviamente, a extensão global dessa inflação será mais elevada numa economia em que este é o único produto, ou mesmo o único produto principal, do que numa economia em que ele é apenas um insumo de toda uma gama de produtos, ou seja, na economia do Terceiro Mundo em comparação com as economias capitalistas avançadas em que existe uma adição substancial de valor. Devido a esta inflação mais elevada, verificar-se-ia uma fuga de capitais na expetativa de uma desvalorização da moeda do Terceiro Mundo em relação ao dólar, o que provocaria uma desvalorização efetiva que poderia continuar indefinidamente. Para travar essa desvalorização, seriam então impostas medidas de "austeridade" ao Terceiro Mundo, gerar-se-ia mais desemprego e os rendimentos seriam comprimidos.
As necessidades crescentes de bens de consumo e de matérias-primas das metrópoles no seu conjunto são, portanto, satisfeitas, mesmo quando não há aumento da sua produção, através da compressão dos rendimentos e, por conseguinte, da procura desses bens de consumo e matérias-primas no próprio Terceiro Mundo. Isto não aconteceria se o Terceiro Mundo não utilizasse dólares e efetuasse as suas trocas comerciais em grande parte dentro de si próprio. A hegemonia do dólar constitui assim a base do imperialismo contemporâneo.
Esta hegemonia está atualmente ameaçada. Os acordos comerciais com moedas locais, ou com novas moedas, como as que os países BRICS estão a planear introduzir, estão a ganhar terreno, encorajados em particular pelo número de países contra os quais os países capitalistas avançados impuseram "sanções". Não é que o colapso da hegemonia do dólar esteja iminente, mas é certo que se iniciou um processo de declínio estendido ao longo do tempo.
Ameaças à hegemonia do dólar
Janet Yellen, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos da América, reconheceu finalmente o que é óbvio para a maioria das pessoas há já algum tempo, nomeadamente que a imposição de sanções contra países aos quais os E.U.A. são hostis corre o risco de pôr em causa a hegemonia do dólar como moeda de reserva mundial. Se as sanções fossem impostas apenas a um ou dois países, a situação seria diferente; mas, atualmente, as sanções são utilizadas pelos E.U.A. para atingir dezenas de países e, quando isso acontece, esses países tendem a juntar-se para formar acordos alternativos para contornar essas sanções. Estes acordos alternativos têm o efeito de minar a ordem mundial dominada pelos E.U.A., que se caracteriza pela hegemonia do dólar.
Ironicamente, mas não surpreendentemente (pois o que mais se pode esperar de um membro sénior da administração Biden), apesar de ter feito esta admissão, Janet Yellen pronunciou-se a favor das sanções que os E.U.A. estão atualmente a impor. Admitiu também que, quando as sanções são impostas contra países cujos governos seguem políticas que desagradam aos E.U.A., são ineficazes para mudar essas políticas; mas trazem grandes dificuldades às populações dos países visados. Citou o exemplo do Irão: apesar de anos de sanções, as políticas do governo iraniano que desagradam aos E.U.A. não mudaram, embora o povo iraniano tenha sofrido muito. Como afirmou: "As nossas sanções contra o Irão criaram uma verdadeira crise económica no país, e o Irão está a sofrer muito economicamente devido às sanções... Será que isso forçou uma mudança de comportamento? A resposta é muito menos do que gostaríamos". No entanto, mesmo este reconhecimento não a impede de apoiar a imposição de sanções pelos Estados Unidos da América; pelo contrário, no caso do Irão, os E.U.A., afirma com aprovação, estão a procurar formas de reforçar ainda mais as sanções.
O facto de os países visados pelas sanções fazerem acordos alternativos que minam a ordem mundial dominada pelos E.U.A. é óbvio neste momento. A Rússia, que tem sido alvo de sanções, está a recriar acordos bilaterais com uma série de países, do tipo dos que a União Soviética costumava ter nos velhos tempos, em que o comércio se processava em termos do rublo e da moeda local, com a taxa de câmbio entre eles a permanecer fixa, em vez do dólar.
O que um tal acordo faz é retirar ao dólar o seu papel de meio de circulação numa parte do comércio mundial; e é isso que constitui uma ameaça à hegemonia do dólar. O papel do dólar como unidade de contagem no comércio mundial, ou seja, o facto de os preços serem denominados em dólares, não tem grande importância; não é isso que está na base da sua hegemonia. É o facto de os dólares serem necessários para a realização das transações que confere ao dólar a sua posição única.
É claro que o dólar também atua como uma forma de detenção de riqueza; mas este papel do dólar surge porque ele é um meio de circulação. O dólar, ao contrário de qualquer mercadoria, não tem valor intrínseco, no sentido em que a sua produção exige muito pouco trabalho; o dólar tem valor porque esse valor é fixado em relação a uma mercadoria qualquer e é afirmado quando é utilizado como meio de circulação. Por conseguinte, a hegemonia do dólar baseia-se no seu papel de meio de circulação nas transações internacionais. Qualquer deslocação do dólar deste papel implicaria um enfraquecimento desta hegemonia. E é precisamente esse o receio quando são impostas sanções a um grande número de países que, em seguida, iniciam acordos alternativos entre si.
De facto, as sanções não são a única razão pela qual pode ocorrer um desalojamento do dólar do seu papel hegemónico. Muitos países que pretendem libertar-se desta hegemonia, ou que pretendem simplesmente alargar as suas oportunidades comerciais, podem voluntariamente entrar em acordos em que o dólar é excluído do seu papel de meio de circulação. No tempo da União Soviética, o acordo de comércio bilateral que a Índia celebrou com os soviéticos não se deveu a qualquer compulsão induzida por sanções para ultrapassar o regime de hegemonia do dólar; foi simplesmente motivado pelo desejo de expandir o comércio para além do que era possível num regime de hegemonia do dólar. Não é de surpreender que os ideólogos neoliberais tenham travado uma luta ideológica sem tréguas contra esses acordos bilaterais, a fim de eliminar quaisquer potenciais desafios à hegemonia do dólar. Em suma, eles tinham uma agenda ideológica, enquanto os acordos comerciais bilaterais não tinham. Mesmo agora, a China e o Brasil estabeleceram um acordo em que o comércio entre eles será efetuado nas respetivas moedas, embora nenhum destes países tenha contra si quaisquer sanções impostas pelos Estados Unidos da América.
Da mesma forma, Dilma Rousseff, a antiga presidente do Brasil que acaba de ser nomeada presidente do Banco dos BRICS, anunciou que, entre 2022 e 2026, 30% dos empréstimos que este banco concederá aos países membros serão em moeda local; isto com o objetivo geral de desdolarizar estas economias, e não devido a qualquer compulsão específica.
Vale a pena recordar aqui as vantagens que a hegemonia do dólar confere aos Estados Unidos da América, que já acima abordamos. Há duas vantagens óbvias: em primeiro lugar, com o dólar como moeda de reserva, os E.U.A. não têm de se preocupar com problemas de balança de pagamentos, ao contrário de outros países; podem liquidar os seus pagamentos emitindo “vales” aos outros países, que estes deteriam, uma vez que estes “vales” sob a forma de dólares são uma forma segura de deter riqueza. Por esta razão, podem tentar e conseguem mesmo estimular a economia mundial. Em segundo lugar, e também por esta mesma razão, a atividade dos bancos norte-americanos aumenta consideravelmente. É verdade que as transações em dólares não se limitam apenas aos bancos norte-americanos; mas não há dúvida de que estes são os maiores beneficiários quando o dólar é o meio de circulação no comércio mundial.
Mas, para além destes fatores óbvios, há uma vantagem mais básica decorrente da hegemonia do dólar que reverte a favor do mundo capitalista metropolitano no seu conjunto. Esta hegemonia permite ao sistema impor uma compressão do rendimento e, por conseguinte, da procura, aos países produtores de bens primários do Terceiro Mundo, a fim de assegurar uma oferta crescente de bens primários para satisfazer a procura metropolitana sem qualquer aumento dos seus preços, mesmo quando a produção desses bens não aumenta de forma significativa.
Este processo funciona da forma que passamos a expor. Quando há um excesso de procura de um produto de base produzido no Terceiro Mundo, o seu preço aumenta em termos da moeda local. Este facto cria a expetativa de uma depreciação da sua taxa de câmbio em relação à moeda de reserva mundial, precisamente porque essa moeda local é diferente da moeda de reserva. Isto desencadeia uma fuga de capitais dessa economia do Terceiro Mundo para a metrópole, provocando uma desvalorização efetiva da moeda local, em resposta à qual o país aumenta a sua taxa de juro e adota medidas de "austeridade". Estas medidas provocam uma diminuição dos rendimentos locais e, por conseguinte, da absorção local desse produto de base específico e também de outros produtos de base. O uso do território pode então ser desviada para a produção de mais desse mesmo produto de base específico. Assim, o bem primário que se tornara escasso é disponibilizado à metrópole em quantidades adequadas, eliminando o excesso de procura e restabelecendo o preço original.
Daqui decorre que o sistema monetário vigente no mundo capitalista atinge o mesmo objetivo que o exercício da coerção direta no período colonial, ou seja, a extração de matérias-primas do Terceiro Mundo a preços não crescentes, comprimindo a absorção local; o sistema monetário contemporâneo é, em suma, uma expressão do imperialismo. Daqui decorre também que a moeda de qualquer país do Terceiro Mundo produtor de matérias-primas, ou de um grupo deles, não pode ser a moeda hegemónica, sem prejudicar toda esta estrutura imperialista e, portanto, a estabilidade do capitalismo contemporâneo nela assente. A hegemonia do dólar é uma parte crucial deste arranjo monetário.
Os movimentos de desdolarização a que assistimos atualmente atacam, portanto, a raiz desta hegemonia metropolitana. Não se trata apenas da substituição de um sistema monetário por outro; trata-se da estabilidade de todo o sistema, que assenta na hegemonia metropolitana e é conseguido à custa dos povos do Terceiro Mundo. É por isso que serão feitas tentativas furiosas, não só pelos Estados Unidos da América, mas por todo o mundo capitalista metropolitano, para impedir a desdolarização. E essas tentativas podem mesmo envolver o uso de coerção não económica contra os regimes que trabalham para essa desdolarização.
A tentativa de desdolarização, em suma, é uma expressão da atual crise do capitalismo e, por essa mesma razão, fará a algum ponto emergir toda a sua viciosa crueldade.
(*) Prabhat Patnaik (n. 1945) é um economista marxista e reputado comentarista político indiano. Natural do Estado de Odisha, o sistema de bolsas permitiu-lhe prosseguir estudos até ao doutoramento na Universidade de Oxford, tendo ensinado também em Cambridge. De regresso à Índia em 1974, foi professor na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, até à sua recente jubilação. Especializou-se em Macroeconomia e Política Económica. De 2006 a 2011 serviu como vice-presidente do Comité de Planeamento do Estado de Kerala. É editor da revista Social Scientist, membro do grupo de estudos International Development Economics Associates (IDEAs) e autor de numerosos livros, de entre os quais: Time, Inflation and Growth (1988), Economics and Egalitarianism (1990), Whatever Happened to Imperialism and Other Essays (1995), Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Retreat to Unfreedom (2003), The Value of Money (2008), Re-envisioning Socialism (2011), Marx's Capital: An Introductory Reader (2011) e (com sua esposa Utsa Patnaik) A Theory of Imperialism (2016) e Capital and Imperialism. Theory, history and the present (2021). O presente ensaio foi composto, com o expresso consentimento do autor, a partir de vários artigos seus publicados na revista semanal do Partido Comunista Indiano (Marxista) Peoples’ Democracy. São eles, sucessivamente, os artigos publicados na edição de 1 de janeiro de 2023, na edição de 12 de março de 2023, na edição de 2 de abril de 2023, na edição de 23 de janeiro de 2022, na edição de 14 de maio de 2023, na edição de 25 de junho de 2023 e na edição de 30 de abril de 2023. A tradução é de Ângelo Novo.
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