Introdução

 

 

 

Quem viver verá, mas tudo indica que estamos no limiar de uma nova idade histórica. Não é apenas o fim do pós-guerra fria como arriscou timidamente António Guterres, para logo ser prontamente endossado pelo seu amo Anthony Blinken. Aquilo a que estamos a assistir é, na verdade, ao fim do mundo de dominância ocidental. Trata-se do encerramento de um ciclo pentassecular, que está geneticamente associado à ascensão do modo de produção capital-imperialista. A expansão europeia conclui-se, iniciando-se a sua reversão. A fadiga demográfica do continente branco (incluídas as suas colónias de povoamento) era visível há algum tempo. A obstinação classista pelo modelo de acumulação neoliberal e pela financeirização socavou ainda mais a sua unidade e acelerou o seu declínio. Com uma derrota inapelável do império na sua marca ucraniana, o dique vai finalmente ceder. As etnias outrora submetidas sacodem o jugo neocolonial e ganham a iniciativa. Mas a questão étnica está aqui indissoluvelmente imbricada com a multilinearidade nos processos regionais de desenvolvimento do materialismo histórico.

 

O capitalismo que temos conhecido como dominante é uma invenção ocidental, ou até, mais especificamente, anglo-saxónica. O capitalismo chinês tem as suas caraterísticas próprias, em parte herdadas da sua história antiga, em parte produto de estratégias de emulação com que procurou responder ao assédio por potências externas. Outros capitalismos autocentrados não ocidentais têm as suas caraterísticas próprias, resultantes de processos históricos de enxerto e sincretismo. Alguns, entre os mais importantes, exibem marcas deixadas por revoluções socialistas recentes. Nenhum deles adotou ou é sequer permeável à superstição liberal da “mão invisível”, ao dogma da “sociedade aberta”, que consiste em entregar, por inteiro, o desenvolvimento social à livre expansão centrífuga e infinita da ganância individualista. Em confiar toda a delicada tessitura social ao “moinho satânico” da girândola mercantil em roda livre. Este tenaz ideologema sociopata, dissocietário ou sociocida é um exclusivo ocidental, cujos resultados estão hoje bem à vista, por exemplo nas ruas de Nova Iorque. A sua derrocada histórica pode, porventura, dar-se ainda a tempo de salvar sobre a linha, na 25.ª hora, a habitabilidade humana deste planeta.

 

Destroçar o neocolonialismo e assegurar o primado do bem público no governo das coletividades humanas é apenas um primeiro passo, indispensável, mas em si próprio insuficiente para virar a página negra do capitalismo na história universal. É bem disto que se trata, num movimento que teve o seu início há um pouco mais de cem anos. A Rússia czarista tinha contatos anticolonialistas em África e na Ásia, mas sempre dentro de um cálculo estratégico de rivalidade inter-imperialista. Nunca foi missão “profética” da Santa Rússia eslavófila libertar todos os povos oprimidos do mundo. Se essa missão se põe objetivamente, nos dias de hoje, à Federação Russa, é na medida em que ela carrega em si (queiram-no o não os seus dirigentes atuais) o estigma histórico da grande revolução soviética. O mesmo se diga, aliás, mutatis mutandis, para a República Popular da China. Estas duas potências podem, entre si, agregando à sua volta alguns aliados importantes, criar as condições necessárias para a derrocada do sistema imperialista ocidental, abrindo uma era de paridade nas relações políticas e económicas internacionais. Será o encerramento definitivo de um mundo de conquistadores e vencidos, de senhores e servos, que agora se procura cobrir com yottabytes de cosméticos mediáticos demoliberais. A luta está acesa. Trata-se de um confronto duríssimo, de forma alguma de desfecho já assegurado. De armas na mão trava-se na Europa de Leste, no Médio Oriente, nas Caraíbas, em África, nos mares da China. Na frente económica estão também em curso batalhas decisivas. É convocada toda a nossa atenção solidária.

 

Cada uma à sua maneira, a Rússia pós-socialista e a China persistentemente empenhada em construir um modelo socialista com as suas caraterísticas próprias, estão ainda a seguir, na sua fase de esgotamento, a vaga revolucionária mundial despoletada pelas palavras de ordem lançadas por Lenine. Em especial, a relativa ao direito das nações à autodeterminação. Um estado central planificador, com forte presença nas finanças e nos setores industriais estratégicos, é a caraterística comum a quem hoje resiste ao imperialismo ocidental. No limite das nossas forças, vamos assegurar-nos do seu triunfo. Depois, será necessário algo mais do que isso. Algo para o que Rússia e China não estão, por si sós, em condições de prover a necessária direção. Só o movimento de massas internacional, com acentuação no sul global, devidamente armado, doutrinal e estrategicamente, poderá abrir caminho para a superação histórico-mundial do modo de produção capitalista, em direção a uma verdadeira civilização da comunhão. Será indispensável, pois, uma segunda vaga da revolução mundial socialista. É essa a exigência que nos traz estarmos vivos no mundo de hoje para o transmitirmos às gerações futuras. Sem que isso nos distraia nem disperse em relação às decisivas lutas neste momento ainda em curso, temos de encarar a tarefa da construção desse novo sujeito político global, capaz de resgatar da dissolução mercantil a experiência socializadora verdadeiramente humana.

 

É absolutamente vital estabilizar o processo metabólico da humanidade com o seu meio ambiente. A escalada no extrativismo material tem de ser controlada e revertida, para dar lugar a uma civilização holista e igualitária, centrada na partilha de valores de uso. Para atingir este objetivo, o decrescimento económico ecossocialista é a estratégia indispensável. Güney Işıkara e Özgür Narin dão conta de alguns pontos críticos de confluência mas também de tensão entre o pensamento socialista tradicional e o dos próceres do decrescimento. John Bellamy Foster, com a sua excecional erudição e discernimento, retraça alguns antecedentes decrescimentistas na tradição socialista e realça o papel fundamental do planeamento numa qualquer viragem em direção à sustentabilidade ecológica. Jason Hickel desfaz com grande desenvoltura o mito de que o descrescimento seria inimigo do progresso científico e tecnológico.

 

Do nosso mestre Prabhat Patnaik publicamos uma macedónia de alguns dos seus mais recentes textos sobre o imperialismo. Foi a maneira que achamos de expressar o nosso inconformismo com o facto de ele publicar os seus valiosos textos quinzenalmente, enquanto esta revista se publica apenas semestralmente. A recente publicação de A Dialética da Dependência em língua inglesa tem feito sensação, solidificando a reputação de Ruy Mauro Marini como um importante continuador e extensor da análise marxista do capitalismo, com especial relevância para a sua fase imperialista madura. Andy Higginbottom centra a sua atenção no conceito de sobre-exploração, retraçando a sua origem até às páginas de O Capital, onde Marx, por várias vezes, reconheceu a sua existência, não se ocupando, porém, dela, por razões que tinham essencialmente a ver com a sua particular linha expositiva. A remuneração da força de trabalho abaixo do nível necessário à sua reprodução é uma das caraterísticas centrais do imperialismo. Numa época em que este passa a ocupar a linha da frente nos afrontamentos políticos mais marcantes, é impossível passá-la em claro. Isso mesmo é realçado por Torkil Lauesen, que muito justamente coloca a obra de Marini em diálogo com Arghiri Emmanuel, o teorizador da troca desigual. As ideias têm o seu tempo próprio de amadurecimento, ainda que possam, a posteriori, parecer ter sido desde sempre evidentes. Paris Yeros e Praveen Jha, revivendo o legado de Samir Amin, apresentam-nos o conceito de neocolonialismo tardio para caraterização da nossa época, marcada pela ressurgência do fascismo.

 

Expoente da Teologia da Libertação, o filósofo Enrique Dussel concebeu uma das formas mais extremas de fazer ingressar Marx na tradição profética judeo-cristã. Carlo Formenti analisa algumas das suas postulações mais instigantes (e polémicas), confrontando-as com as posições tomadas, nalgumas dessas matérias, por Ernst Bloch e Gyorgy Lucáks. Sobretudo no final da sua vida, Marx foi um estudioso atento e solidário de formas de sociedade ditas primitivas e sua disrupção pela agressão colonialista. John Bellamy Foster, Brett Clark e Hannah Holleman traçam um precioso itinerário destas pesquisas e refletem sobre o seu significado atual. A China é uma civilização multimilenar sobre a qual praticamente nada se sabe no Ocidente. O conhecimento da sua história não faz parte da cultura geral humanística, sendo remetido para uma área de estudos marginal e esotérica, a sinologia. Nos dias de hoje, este entendimento é insustentável. Ken Hammond encontra no desenvolvimento da formação social chinesa nas dinastias Song, Ming e Qing (séculos X a XVIII da nossa era), apoios fundamentais para entender o atual projeto de “socialismo com caraterísticas chinesas”.

 

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