Trabalhadores: classe ou fragmentos?
João Bernardo (*)
Lê-se e ouve-se com muita frequência que
a classe trabalhadora já não existe. Parece ser esta a
doutrina corrente. Há mesmo quem afirme que os próprios
trabalhadores não têm mais razões para existir,
porque o colossal surto de produtividade suscitado pela tecnologia electrónica
os teria tornado definitivamente dispensáveis. O trabalho hoje,
como tudo o resto, seria virtual. Mas os mercadores de novidades, talvez
felizmente para eles, têm a memória curta e não
sabem que estão a apresentar como último grito certas
teses que a história deixara de lado.
Muito antes da era da informática, nos Estados Unidos da década
de 1920, um profeta da tecnocracia, Howard Scott, defendera já
que o crescimento inexorável da produtividade ultrapassaria muito
as oportunidades de emprego e de investimento e provocaria o desemprego
crescente. A mesma tese voltou a aparecer num livro de Arthur Dahlberg
publicado em 1932, Jobs, Machines and Capitalism, onde se sustentava
que o progresso técnico criaria um excedente permanente de mão-de-obra.
E em Novembro de 1936 Harry L. Hopkins, um dos principais obreiros do
New Deal, escreveu ao presidente Franklin Delano Roosevelt prevenindo-o
de que a melhoria contínua da produção, acompanhada
pelo crescimento contínuo da força de trabalho, implicavam
«a perspectiva de um problema permanente de desemprego e de pobreza
de grandes dimensões». O argumento de que o progresso da
produtividade condena os trabalhadores à extinção
foi, portanto, formulado em plena vigência do fordismo, quando
a economia assentava naquelas máquinas industriais que a electrónica
e a informática viriam a tornar obsoletas. Vemos, assim, em primeiro
lugar, que é falaciosa a base empírica dessa tese, quando
aqueles que a defendem hoje invocam a diferença entre a electrónica
e a indústria fordista. E, em segundo lugar, vemos que é
nula a capacidade de previsão dessa tese, porque à sua
primeira formulação sucedeu, após a guerra de 1939-1945,
uma época duradoura de pleno emprego nos países mais industrializados,
permitida precisamente pela alta produtividade das fábricas fordistas.
Em vez de dispensarem a força de trabalho, os progressos da tecnologia
electrónica, como aliás qualquer avanço tecnológico,
ao mesmo tempo que provocam o desemprego nas áreas dependentes
das tecnologias retardatárias, abrem áreas novas, onde
é exigida uma requalificação profissional permanente.
Todavia, apesar de admitirem este facto e de reconhecerem que os trabalhadores
nem se extinguiram nem estão em vias de extinção,
muitas pessoas argumentam que isto não implica obrigatoriamente
a existência dos trabalhadores enquanto classe. Ou com alívio
ou com nostalgia, é anunciado o fim da classe trabalhadora.
É certo que entre os marxistas que ainda restam a classe trabalhadora
continua a ser referida, mas esta evocação tem um valor
mais moral ou sentimental do que propriamente prático. Os partidos
de tradição leninista reduzem – ou reduziam, porque
hoje a sua expressão política é ínfima,
quando não abandonaram completamente o leninismo – a classe
trabalhadora a uma entidade abstracta. O partido era concebido como
o representante político da classe, mas à classe ela mesma
não era reconhecida qualquer estrutura própria independente
do partido. Só o partido dava à classe uma existência
real, e sem o partido a existência de classe dos trabalhadores
seria apenas potencial. A praxis ficava assim confundida com a transformação
da vanguarda em elite dominante.
Esta metafísica política relacionava-se com uma tese comum
nas organizações mais burocratizadas da Segunda Internacional
e que a Terceira Internacional herdou de maneira acrítica. Segundo
essa perspectiva, que considerava como base do socialismo as forças
produtivas do capitalismo, o objectivo do socialismo consistia simplesmente
em abolir a propriedade privada e substituir-lhe a propriedade de Estado,
e tanto a tecnologia industrial como a disciplina reinante nas empresas
capitalistas podiam ser prosseguidas sem modificação sob
o socialismo. Foi obedecendo a uma concepção deste tipo
que os comunistas soviéticos, sob a direcção de
Lenin, importaram para a Rússia o sistema taylorista e fordista
de organização do trabalho, dando-lhe depois, sob a direcção
de Stalin, uma expansão muitíssimo maior do que alguma
vez obteria nos Estados Unidos. Para os partidos comunistas não
havia nenhuma contradição em afirmar que o poder político
pertencia à classe trabalhadora e ao mesmo tempo deixar os trabalhadores
desprovidos de qualquer poder no interior das empresas. E na realidade
a contradição não existia, porque o poder político
também não era exercido pelos trabalhadores, mas era monopolizado
pelos seus representantes, a burocracia partidária, que se encontrava
unida à tecnocracia das empresas numa mesma classe de capitalistas
de Estado. A reorganização económica da União
Soviética efectuada pelos planos quinquenais constituiu o apogeu
deste processo, de que o stalinismo revelou as necessárias consequências.
Às máquinas, enquanto tecnologia material, e à
disciplina vigente nas empresas, enquanto tecnologia humana, era atribuída
pelo marxismo ortodoxo uma função neutra, de maneira que
as relações estabelecidas entre os trabalhadores durante
o processo de trabalho em nada condicionariam a existência da
classe trabalhadora enquanto entidade política. Concepções
deste tipo só podem subsistir ignorando a realidade social dos
processos de trabalho. As relações de produção,
tão citadas pelos marxistas, integram o tipo de disciplina estabelecido
entre os trabalhadores no processo de trabalho e o tipo de autoridade
estabelecido pelos capitalistas no controlo do processo de trabalho.
Ora, tem sido precisamente este o terreno fundamental da luta de classes.
A disciplina de empresa é o primeiro alvo da contestação
dos trabalhadores, e a luta de classes reorganiza permanentemente as
relações de trabalho e o controlo do processo de trabalho.
Em cada caso e em cada época, o tipo de disciplina de empresa
vigente constitui o elemento central de todo o sistema de relações
instaurado entre os capitalistas e os trabalhadores.
As grandes lutas sociais das décadas de 1960 e de 1970, tanto
na esfera norte-americana como na esfera soviética e chinesa,
mostraram que o taylorismo e o fordismo estavam esgotados enquanto sistema
de controlo da força de trabalho. O capitalismo entrou então
numa crise de produtividade cada vez mais profunda, que finalmente o
impediu de responder a dificuldades que noutras circunstâncias
não teriam constituído obstáculos significativos.
Esta esclerose manifestou-se de maneira flagrante em 1974, com a crise
desencadeada pelo aumento dos preços do petróleo. Foi
a partir de então que começaram gradualmente a difundir-se
novos princípios de administração das empresas
e de controlo dos trabalhadores. Alguns autores denominam a situação
actual «pós-fordismo», mas como a Ford fora a primeira
empresa a aplicar sistematicamente o taylorismo à produção
em massa, não vejo razão para não designar também
o modelo actual de organização com o nome da Toyota, que
primeiro o aplicou de maneira sistemática e que melhor o formalizou.
O sistema toyotista e a tecnologia electrónica que o sustenta
fazem com que as economias de escala cresçam sem que para isto
seja necessário proceder à concentração
física dos trabalhadores. Chama-se economias de escala aos resultados
de um processo graças ao qual o aumento do número de trabalhadores,
do número de máquinas e da quantidade de matérias-primas
é inferior ao aumento dos bens ou serviços produzidos.
As economias de escala são um dos factores do progresso da produtividade.
Afinal, qualquer dona de casa sabe que para fazer sopa para três
pessoas não se despende o triplo do esforço nem se gasta
o triplo do tempo e o triplo do gás ou da electricidade necessários
para fazer sopa para uma pessoa só. Para obter economias de escala,
não apenas nas sopas confeccionadas nas cantinas para o pessoal,
mas em toda a linha de produção, o sistema fordista reunia
nas mesmas instalações industriais muitos milhares de
operários, ou nos mesmos escritórios muitas centenas de
empregados, que faziam funcionar colossais conjuntos de máquinas,
consumindo quantidades não menos colossais de matérias-primas.
No fordismo o aproveitamento das economias de escala dependia da concentração
física dos trabalhadores nos mesmos locais. Tanto os sindicatos
reformistas e os partidos operários burocratizados como o sindicalismo
radical e, posteriormente, as grandes vagas de contestação
autonomista nas décadas de 1960 e de 1970 só são
compreensíveis se não esquecermos que milhares e milhares
de trabalhadores se encontravam diariamente dentro dos muros das mesmas
instalações.
O toyotismo encontrou uma maneira de minorar, ou até de evitar,
aquele considerável risco político. A electrónica
permite que os administradores das empresas centralizem a captação
das informações e a emanação das decisões
independentemente de qualquer contacto físico com os trabalhadores
e de qualquer relação física dos trabalhadores
entre si. Os vários processos particulares de trabalho ficam
integrados em grandes conjuntos mesmo que sejam prosseguidos em isolamento
físico, por vezes podendo até localizar-se a milhares
de quilómetros de distância uns dos outros. Assim, as economias
de escala sociais aumentam sem que seja necessário aumentá-las
fisicamente.
Além disso, a tecnologia electrónica conseguiu um feito
inédito na história da humanidade, a fusão entre
o sistema de fiscalização e o processo de trabalho. Até
à época actual, os trabalhadores tinham de ser vigiados
por funcionários especializados, que não só podiam
ser enganados mas que representavam uma despesa considerável
para os donos das empresas. Para ser minimamente eficaz e para não
implicar um crescimento inaceitável dos custos, este sistema
de fiscalização exigia que os trabalhadores estivessem
concentrados nas mesmas instalações. Tratava-se de aplicar
as economias de escala à fiscalização. No toyotismo,
porém, o mero facto de fazer funcionar uma máquina electrónica
ou simplesmente um computador constitui uma forma de fiscalização
do trabalho. Trabalhar e ser vigiado já não se distinguem.
Embora possam estar dispersos, os trabalhadores não deixam por
isso de continuar sob o olhar atento dos patrões.
Uma das preocupações fundamentais do toyotismo consiste
em limitar a concentração física dos trabalhadores,
ou até em dispersá-los fisicamente, e ao mesmo tempo concentrar
os resultados do trabalho através da tecnologia electrónica.
São múltiplas as formas assumidas pela limitação
da concentração da força de trabalho, pela sua
fragmentação e pela sua dispersão, e sem ter pretensões
a ser exaustivo vou indicar as que me parecem mais importantes.
Em primeiro lugar, e contrariamente ao que sucedera no sistema fordista,
em que vigorava uma especialização rigorosa, o toyotismo
divide cada linha de produção em equipas de trabalhadores,
que se encarregam, dentro de certos limites, de múltiplas funções.
Deste modo, mesmo quando se encontra reunida nas mesmas instalações,
a força de trabalho está repartida em segmentos.
Em segundo lugar, os capitalistas têm-se esforçado com
êxito por impor horários flexíveis aos trabalhadores
de cada empresa. Trata-se de uma maneira de dificultar o estabelecimento
de relações de convivência entre colegas, prejudicando
portanto a formação de redes de solidariedades, e, a um
nível mais profundo, trata-se de desestruturar o velho colectivismo
proletário, já que a flexibilidade de horários
torna praticamente inviável a sustentação das associações
de bairro ou das meras tertúlias de tasca ou de cervejaria.
Em terceiro lugar, verifica-se em muitos casos uma elevadíssima
rotatividade da força de trabalho. Isto significa que uma parte
substancial dos assalariados permanece muito pouco tempo na mesma empresa,
o que impede o estabelecimento de quaisquer elos de solidariedade sólidos.
Os capitalistas só se preocupam em fixar na empresa a reduzida
percentagem de trabalhadores altamente qualificados, relativamente aos
quais investiram muitas horas de formação profissional
e que por isso não lhes convém perder.
Em quarto lugar, as consequências nefastas dos horários
flexíveis conjugam-se com as consequências não menos
nefastas da elevada rotatividade da força de trabalho, nos sistemas
de contrato a prazo e de trabalho a tempo parcial. Ambos se têm
difundido muito nas últimas décadas, contribuindo duplamente
para dificultar as relações entre as pessoas que trabalham
episodicamente nas mesmas empresas e para isolar umas das outras as
pessoas que contribuem para os mesmos processos de trabalho.
Em quinto lugar, a generalização da subcontratação
provoca a fragmentação física das empresas. Por
um lado, sucede com frequência que as empresas dêem autonomia
a departamentos e os convertam em unidades formalmente autónomas,
introduzindo a subcontratação no que antes era uma única
esfera de propriedade. Por outro lado, é também usual
que uma empresa, em vez de comprar outra, lhe subcontrate os serviços.
Em ambos os casos, em vez de se encontrarem reunidos em estabelecimentos
de enormes dimensões pertencentes a uma só firma, os trabalhadores
ficam divididos entre as firmas principais e as múltiplas subcontratantes,
ainda que as suas actividades se insiram numa mesma cadeia de produção.
Em sexto lugar, o que acabei de dizer a propósito da subcontratação
pode afirmar-se igualmente a respeito do sistema de franchising, muito
corrente, por exemplo, nos ramos de fast-food ou de lavandaria. A firma
principal dá as filiais locais a explorar a pequenos patrões,
impondo-lhes no entanto uma tecnologia, uma gama de produtos ou de serviços,
um sistema de organização da força de trabalho
e um sistema de atendimento ao cliente que têm de ser rigorosamente
cumpridos. Por seu lado, os pequenos capitalistas que tomam a franchising
lucram com o facto de terem diminuído as suas despesas em aquisição
de tecnologia e de beneficiarem da publicidade assegurada, e do mercado
captado, pela firma principal.
Em sétimo lugar, a fragmentação da força
de trabalho decorrente da subcontratação e da franchising
assume ainda maiores proporções na terceirização.
Este termo, de origem brasileira, designa o processo pelo qual uma empresa
converte alguns dos seus empregados em profissionais formalmente independentes,
contratando depois os seus serviços. Na prática, o terceirizado
encontra-se totalmente dependente da empresa à qual vende a sua
actividade, mas sem as garantias que tivera enquanto assalariado. A
transformação do assalariamento em terceirização,
que assumiu proporções maciças em certas áreas
profissionais, tem como resultado o completo isolamento recíproco
destes trabalhadores. Onde antes eles enfrentavam os patrões
em conjunto com os seus colegas, passam agora a fazê-lo sozinhos.
Em oitavo lugar, convém não esquecer que nas últimas
décadas tem ocorrido a integração maciça
de alguns sectores populacionais no mercado de trabalho, sobretudo mulheres
jovens, assim como se tem verificado a proletarização
de actividades que até há bem pouco tempo cabiam ainda
às profissões liberais. Não é a primeira
vez que o capitalismo assimila rapidamente massas colossais de novos
assalariados, mas no final do século XIX e no começo do
século XX fizera-o através da concentração
dos novos proletários num mesmo meio físico e social.
Foi assim que imigrantes oriundos de diferentes regiões do globo
e falando diferentes línguas depressa adquiriram hábitos
idênticos e deram origem a uma cultura proletária comum.
Hoje passa-se exactamente o contrário, e as pessoas recém-chegadas
em massa ao mercado de trabalho capitalista, quando não são
mantidas em isolamento recíproco, dispersam-se entre as firmas
principais, as subcontratantes e as franchisings, sem terem oportunidade
de criar uma nova cultura proletária baseada, como a anterior,
em vastas redes de camaradagem e de solidariedade e no confronto global
com os patrões. Como se isto não bastasse, e não
confiando demasiadamente nos automatismos económicos e sociais,
os capitalistas têm concentrado enormes esforços na difusão
de uma subcultura de massas assente em ilusões de promoção
individual. Fica assim duplamente contrariada a formação
de hábitos e de comportamentos comuns entre a força de
trabalho recém-ampliada.
Para coroar este processo, os ideólogos do capitalismo deram
asas à imaginação e anunciaram a utopia última
– o trabalho seria prosseguido no lar doce lar através
de meios electrónicos, em condições de máxima
dispersão, e a gestão localizar-se-ia nos escritórios
dos administradores graças à informática, em condições
de máxima centralização.
Com efeito, o facto de o capitalismo actual multiplicar as formas de
dispersão física e de fragmentação social
dos trabalhadores, e de proceder ao fraccionamento das grandes unidades
de produção em unidades de dimensões mais reduzidas,
não o impede de desenvolver a concentração do capital,
não só através das modalidades clássicas
de aquisição, dando origem a entidades económicas
cada vez mais colossais, mas ainda multiplicando entre as firmas elos
que não passam por relações de propriedade, como
as alianças estratégicas, por exemplo. Aliás, predominam
hoje as formas de concentração económica que dispensam
a concentração da propriedade, a tal ponto que a firma
principal chega a fraccionar-se ela mesma em unidades formalmente independentes
para melhor exercer sobre elas o seu controlo económico.
Um dos componentes do toyotismo é o sistema do just in time,
que consiste em reduzir ao mínimo os elementos (produtos ou matérias-primas)
em armazém e em adequar tanto o fluxo da produção
às oscilações da procura como o tipo da produção
às especificações da procura. Este sistema não
se limita a reduzir os custos e tem várias outras implicações
muito importantes sobre o processo de exploração, mas
vou aqui chamar a atenção apenas para uma delas. No just
in time é a empresa principal quem dita o ritmo da produção
às empresas subcontratantes e aos trabalhadores terceirizados,
e pode fazê-lo facilmente porque a electrónica permite
dispersar a captação das informações e simultaneamente
centralizar as tomadas de decisão. A empresa principal determina
o tipo de tecnologia que as subcontratantes e os terceirizados deverão
aplicar e controla os resultados da aplicação dessa tecnologia,
em função das necessidades da adaptação
da empresa principal ao fluxo da procura e ao tipo da procura. Todavia,
apesar de se encontrarem na estreita dependência das decisões
tomadas pela empresa principal, as empresas subcontratantes e os trabalhadores
terceirizados são autónomos sob o ponto de vista da propriedade,
com todas as responsabilidades inerentes a este facto. Através
desta modalidade de concentração económica sem
concentração da propriedade os capitalistas que estão
à frente das principais empresas apropriam-se da maior fatia
dos lucros e podem fazer recair a maior parte dos insucessos sobre as
empresas subcontratantes, ou seja, afinal, sobre os trabalhadores destas
empresas. Levando à proliferação de firmas pequenas
e minúsculas, este sistema agrava a dispersão física
e a fragmentação social dos trabalhadores. Embora as empresas
principais e a multiplicidade de empresas subcontratantes e de indivíduos
terceirizados estejam reunidos nos mesmos processos de trabalho e se
dediquem à produção dos mesmos artigos ou dos mesmos
serviços, os trabalhadores sentem-se ainda mais divididos e isolados.
Para os administradores das empresas, que detêm o controlo sobre
toda a rede de captação das informações
e de emanação das decisões e que controlam também
os processos electrónicos de fiscalização, os trabalhadores
existem enquanto corpo social unificado. Deve até dizer-se que
no sistema toyotista são os administradores de empresa quem assegura
a unificação social dos trabalhadores. Pelo contrário,
os próprios trabalhadores, na medida em que o processo de trabalho
os isola e dispersa fisicamente, geralmente já não se
consideram a si mesmos como membros de uma classe social. Isto significa,
em poucas palavras, que os trabalhadores existem como classe para os
capitalistas e não existem como classe para eles próprios.
Apercebemo-nos melhor das implicações deste paradoxo se
o considerarmos em termos de auto-organização e hetero-organização.
Assim como os mecanismos da exploração retiram aos trabalhadores
o controlo sobre o processo de trabalho, e portanto a disposição
dos resultados do trabalho, também os mecanismos da opressão
lhes retiram o controlo sobre as modalidades de inter-relacionamento.
Nesta perspectiva, defino como dominante aquela classe social que consegue
ditar os princípios organizativos da outra. Não se trata
apenas de uma classe dominante ter ao seu serviço instituições
como o governo ou a polícia ou os tribunais. Trata-se de muito
mais do que isto, pois os capitalistas estabelecem as próprias
formas internas de organização dos trabalhadores, e fazem-no
inclusivamente em áreas sociais que os trabalhadores julgam ser
suas.
Podemos observar essa hetero-organização nas remodelações
urbanísticas a que foram submetidas todas as grandes cidades.
Extinguem-se os velhos bairros populares, situados nas zonas antigas,
com características mais marcantes, que dão a cada cidade
a sua originalidade. Trata-se de um processo denominado em inglês
gentrifying, em que, por um lado, as fachadas dos prédios são
preservadas, ou se necessário restabelecidas de acordo com o
traçado original, mas, por outro lado, os interiores são
completamente remodelados e modernizados. Os apartamentos são
vendidos por bom preço a pessoas das classes dominantes, que
adquirem assim o privilégio de morar no centro das cidades e
nas zonas mais bonitas. E o mesmo sucede com as tabernas e pequenos
restaurantes desses antigos bairros populares, que, depois de devidamente
renovados, oferecem à nova clientela uma mistura de sofisticação
culinária e de evocação do típico. Entretanto
os trabalhadores, expulsos pelos mecanismos económicos dos seus
bairros tradicionais, são lançados para os subúrbios,
onde têm de recomeçar a partir do zero o estabelecimento
de teias de solidariedade, e em condições especialmente
difíceis porque nas zonas de periferia prevalece um tipo de urbanização
concebido deliberadamente para dificultar as relações
de vizinhança. Este duplo processo exprime um reforço
da coesão interna das classes dominantes e um enfraquecimento
dos elos entre os trabalhadores. A hetero-organização
dos trabalhadores neste quadro urbanístico é coroada pelos
centros comerciais, enquanto lugares de sociabilização
hegemonizados económica e culturalmente pelo capital. Antes os
trabalhadores estabeleciam, nos seus próprios termos, relações
directas de vizinhança e de amizade nos bairros em que habitavam,
mas agora uma parte considerável dos ócios dos trabalhadores
é passada nos shoppings, locais onde a sua presença é
efémera, onde é impossível formar relações
continuadas e onde todos os tipos de contacto são condicionados
por um arranjo deliberado dos espaços tendente à dispersão
e à fragmentação.
No mundo contemporâneo temos de um lado capitalistas providos
de uma coesão transnacional, consolidada numa multiplicidade
de organizações tanto de âmbito nacional como relacionadas
internacionalmente e supranacionalmente em redes de malhas muito estreitas.
Do outro lado temos trabalhadores que na sua relação com
os capitalistas são dominados em conjunto, como uma classe, mas
que entre eles mesmos estão divididos e não lutam como
uma classe. Esta dupla situação implica que nas circunstâncias
presentes a classe trabalhadora tenha uma existência meramente
económica, enquanto produtora de mais-valia, ou seja, enquanto
vítima da exploração, sem que tenha existência
política e sociológica, enquanto sujeito de lutas e base
de formas de organização antagónicas ao capitalismo.
Enquanto esta situação se mantiver o capitalismo continuará
sólido, e aqueles que hoje evocam a torto e a direito uma crise
do capitalismo fariam bem melhor se procurassem compreender a crise
do anticapitalismo.
A dupla situação da classe trabalhadora, entre a sua existência
económica para o capital e a sua inexistência política
e sociológica tende a agravar-se nos próximos tempos.
Só a luta contra a exploração pode conferir aos
trabalhadores uma identidade sociológica de classe, porque só
a esse nível eles encontram uma comunidade fundamental e estabelecem
elos de solidariedade. Nem sequer estou aqui a referir-me a jornadas
gloriosas, de bandeiras escarlates desfraldadas ao vento e não
sei que mais, mas às contestações modestas e simples
que preenchem o quotidiano de quem trabalha ao serviço de outrem.
Como pôr em comum essas acções, como usar essas
experiências para ir progressivamente reconstruindo uma existência
de classe e uma consciência de classe, numa situação
em que são muito poderosas as pressões no sentido do isolamento
e da dispersão?
Nestes termos podemos apreciar o significado da apologia do fraccionamento
das lutas feito pela generalidade dos ideólogos pós-modernos.
É certo que, sob um certo ponto de vista, tal atitude é
sensata, porque não se propiciam hoje oportunidades para movimentos
amplos e generalizados. Contra os promotores de palavras de ordem convencionais
e desprovidas de qualquer sentido prático, os pós-modernos
podem ao menos invocar o facto de os seus apelos serem correspondidos.
Por outro lado, no entanto, os pós-modernos consideram a fragmentação
das lutas não como uma limitação a ultrapassar
mas como o objectivo estratégico a atingir. O seu ideal é
uma colecção de ghettos, que têm o mercado como
elo de ligação e o «politicamente correcto» como linguagem comum.
Se cada pessoa se enclausurar entre espelhos e não empregar palavras
que denotem a persistência real dos problemas, como sucede com
o vocabulário «politicamente correcto», e se o mercado
se encarregar de ir satisfazendo as necessidades gerais, tudo correrá
bem no melhor – ou no menos mau – dos mundos. Se existe
exploração, fala-se de cidadania. Se as mulheres são
preteridas e mais mal pagas do que os homens, instaura-se a igualdade
no reino gramatical e arranja-se uma curiosa sintaxe semeada de barras,
travessões e parêntesis em que substantivos, adjectivos,
artigos e pronomes figuram nas variantes masculina e feminina. Se há
pessoas que são vítimas de racismo por causa da cor da
pele, elas passam a ser designadas pela origem geográfica dos
antepassados remotos. E se continuam a vigorar discriminações
de todo o tipo, então criam-se grupos, clubes, associações
destinadas simplesmente a preservar os membros, isolando-os em comunidades
de iguais, de maneira que tudo permanece na mesma na sociedade em geral.
O mercado assegura as relações entre aquelas ilhas ideológicas
e faz com que, no plano económico fundamental, elas constituam
partes integrantes da sociedade capitalista.
Os ideólogos pós-modernos esforçam-se por acentuar
as clivagens de ordem cultural, étnica ou sexual que dividem
os trabalhadores, ou até inventam clivagens onde elas não
existem na prática. Russell Jacoby observou com muita pertinência
em The End of Utopia que mesmo quando a globalização da
actividade económica coloca os trabalhadores em contextos idênticos,
os pós-modernos pretendem obnubilar este facto recorrendo a especificidades
culturais fictícias. E a indústria cultural capitalista
segue alegremente atrás dos descobridores da pós-modernidade,
recolhendo os lucros financeiros e consolidando as condições
sociais de reprodução do capital. Existe uma forte ligação
entre multiculturalismo e consumismo. Num mundo em que as opções
de vida dos trabalhadores são estritamente limitadas e em que
o quotidiano de cada um obedece a padrões similares, o multiculturalismo
existe exclusivamente sob a forma de consumo de produtos – tanto
objectos como serviços – denominados multiculturais.
Chega-se assim ao paradoxo da situação actual, em que
o capitalismo é dominado por enormes firmas transnacionais, geridas
por uma elite que adopta uma mentalidade inteiramente cosmopolita e
supranacional, e os trabalhadores, além de estarem sujeitos às
fragmentações suscitadas pelo sistema de administração
toyotista, estão ainda divididos por nacionalismos, regionalismos
e todo o tipo de especificidades étnicas, físicas e culturais
exaltadas não só pela má vontade da direita mas,
o que é pior, pela boa vontade de uma certa esquerda. O grande
problema hoje é o de partir das lutas fragmentadas com o objectivo
de contribuir para que elas ultrapassem a fragmentação.
É este o maior desafio que se nos coloca, e só nesta perspectiva
podemos definir uma estratégia de luta contra o capital na forma
em que ele se apresenta nos nossos dias, o sistema toyotista de organização
do trabalho.
(*) João Bernardo é um professor e conferencista
português, actualmente radicado no Brasil. Entre as suas numerosas
obras publicadas em Portugal, destacamos ‘Para uma teoria do modo
de produção comunista’ (Afrontamento, 1975), ‘Marx
crítico de Marx’ (3 vols, Afrontamento, 1977), ‘Poder
e dinheiro’ (3 vols., Afrontamento, 1995) e ‘Labirintos
do fascismo’ (Afrontamento, 2003).