Mário Alberto Nobre Lopes Soares é, porventura, um dos dois ou três mais relevantes personagens políticos da segunda metade do século XX português, revelando-se, década após década, uma figura incontornável, com o seu brilho próprio, um certa desmesura cosmpolita e o seu tão característico egotismo narcísico. A dobragem do século XXI não lhe foi tão feliz: uma passagem falhada pelo Parlamento Europeu, ambições internacionais cruelmente desiludidas, uma desastrosa campanha presidencial em 2005.
Aproveitando a liberdade de juízo que lhe dá o seu relativo descomprometimento político e certamente picado também por algum azedume pessoal, Soares vem-se desmultiplicando, nestes últimos anos, em declarações e atitudes contestatárias para com os desígnios norte-americanos de domínio imperial total e para com a ortodoxia neoliberal dominante. Criticou frontalmente a guerra no Iraque, elogiou de forma aberta o Fórum Social Mundial, tendo participado repetidamente nas suas iniciativas, deixa-se surpreender em momentos de cumplicidade televisiva com Hugo Chavez, denuncia com alguma veemência o “consenso de Washington”, os desmandos da alta finança desregulada e a regressão social generalizada que decorre do seu império global irrestrito, o défice democrático e a insensibilidade tecnocrática da União Europeia, etc., etc..
Para quem, por razões geracionais, toma agora contacto pela primeira vez com as posições políticas deste provecto ancião, elas parecem-lhe sem dúvida generosas e progressivas. Quem conhece bem todo o seu trajecto político, com alguma boa vontade, poderá vislumbrar aqui alguma retoma de contacto com os seus impulsos mais juvenis ou até com a ortodoxia social-democrata que foi a sua mais forte imagem de marca no período áureo da sua carreira.
Todavia, a um olhar que não se abandone apenas à superfície das coisas, não pode deixar de surgir como de uma flagrante evidência que Mário Soares se construiu pacientemente a si próprio, como vulto político, numa determinada época histórica, precisamente com libações, abertas ou veladas, sinceras ou calculadas (para o caso pouco interessa), aos mesmos ídolos que ele agora diz abominar. Esta é que constitui a suprema ironia da sua vida e da sua carreira.
Soares foi um grande opositor ao regime fascista português e isso fica a seu crédito, como ficam a seu crédito, naturalmente, a acusações de “traidor à pátria” que lhe foram movidas por esses quadrantes e que ainda hoje, por vezes, afloram no discurso político e jornalístico da direita. Foi detido por doze vezes pela PIDE/DGS, deportado para S. Tomé e forçado ao exílio em França a partir de 1970. Opôs-se (muito bem) à guerra colonial em África e aos seus crimes. Mas como compreender que não tenha tido uma palavra de oposição à guerra no Vietname (seguramente uma tragédia muito maior que a do Iraque e que marcou a ferro e fogo toda uma era), quando denunciou com tanta veemência, por exemplo, a invasão de Praga pelos tanques soviéticos?
A verdade é que, desde o começo dos anos 1960, com a sua Acção Socialista Portuguesa (ASP), embrião do Partido Socialista que se constituiria em 1973, Soares está a colocar-se muito cuidadosamente, e com êxito notório, como sendo a alternativa democrática em Portugal aceitável para todas as potências ocidentais. Por isso mesmo é que, até para concorrer à farsa eleitoral marcelista de 1969, resolveu apresentar-se com uma lista própria, a CEUD, em que o “U” é de unidade, sendo as outras iniciais comuns à sigla da restante oposição democrática, a CDE, onde se incluiam, como é sabido, os "comunistas", à época uma companhia pouco recomendável.
Quando a sua hora chegou, com um mar de cravos vermelhos, ele não estava disposto a deixá-la escapar por entre as vagas tumultuosas do “anarco-populismo”. Participou nos governos provisórios, tendo tido algum papel na negociação da independência das novas nações africanas, para as quais ele teria preferido uma solução neo-colonial, se ela fosse então possível. Já no “verão quente” de 1975, Mário Soares foi, de longe, a mais importante figura civil da contra-revolução e a única que dispunha de uma extensa rede internacional de contactos e apoios efectivos, nos planos político, diplomático e militar. Confiante nesses mesmos apoios, em Novembro, ele estava disposto a abrir uma guerra civil Norte – Sul, refugiando-se do Porto, com todo o seu séquito político, na perspectiva de um longo confronto armado com a temida mas imaginária “Comuna de Lisboa”.
Muitos atribuem a ascensão de Soares ao estatuto de “pai da democracia portuguesa” à relação pessoal que soube estabelecer com o embaixador dos E.U.A. Frank Carlucci, um notório agente de carreira da CIA. Como é óbvio, estes favores não ficam sem retribuição. Em 1976, Soares foi eleito vice-presidente da Internacional Socialista (IS), cargo para que foi sucessivamente reeleito, tendo passado pelas suas comissões para o Médio Oriente e para a América Latina. Na IS era então abertamente conhecido como o “homem dos americanos”, tendo desempenhado ao seu serviço numerosas missões de informação, tanto no Médio Oriente como na América Central e na África Austral.
Recebeu em Lisboa, em périplo internacional, ou de outro modo deu cobertura e projecção mediática a numerosas figuras instrumentais da “guerra fria” como Vaclav Havel, Lech Walesa, Andrei Sakharov, Éden Pastora, Vargas Llosa, Carlos Andrés Perez, Jonas Savimbi ou o poeta cubano Armando Valladares, ajudando a dar-lhes uma coloração idealista, senão mesmo socialista “de rosto humano”.
Foi Soares que, em Março de 1977, iniciou o processo de adesão de Portugal à CEE e subscreveu, como Primeiro-Ministro, o Tratado de Adesão, em 12 de Julho de 1985. Também como Primeiro-Ministro (II Governo Constitucional, em aliança com o CDS) manteve negociações com o F.M.I., as quais viriam a dar origem ao acordo de empréstimo com a respectiva carta de intenções, assinados em Agosto de 1983 por novo governo presidido por Mário Soares (Bloco Central). Política de austeridade e de privatizações, com desvalorização deslizante do escudo. Aumentos brutais dos preços de bens essenciais. Generalização da prática dos salários em atraso e dos contratos de trabalho a prazo, perante a completa inércia do governo. Abertura da banca e dos seguros ao sector privado. É ainda este mesmo Governo que assina o acordo presentemente em vigor, para a utilização da base das Lajes, nos Açores, pela Força Aérea norte-americana, sendo criada a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
A política é sempre a arte do concreto e seria absolutamente disparatado dizer-se hoje que, por princípio, é-nos impossível participar lado a lado com Mário Soares numa manifestação pública ou colocar o nosso nome juntamente com o dele num abaixo-assinado. Todavia, é importante que o façamos sem qualquer tipo de ilusões sobre esta personagem.
Eis uma notícia colhida no jornal ‘Público’ de 14.5.2009:
“O Prémio da Paz Félix Houphouet-Boigny, instituído pela UNESCO, foi atribuído ao presidente Lula da Silva, do Brasil. O júri foi presidido por Mário Soares (na ausência de Henry Kissinger)...”
Temos então que Mário Soares aceitou substituir, na sua ausência, ao grande criminoso de guerra e pró-cônsul imperialista Henry Kissinger, na presidência do júri de um “prémio da paz” que ostenta o nome de um dos monstros sagrados (enlouquecidos) do neo-colonialismo africano, tendo porventura intercedido para que a grande honra viesse a recair, este ano, no rosto mais aceitável do “socialismo” contemporâneo. É bem ele e, no fundo, não mudou assim tanto.
Publicado no nº 6 da revista 'Rubra', Julho de 2009.
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