A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 

o regresso de keynes ou talvez não

 

 

 

 

Desde que foi oficialmente aberta a presente crise global do sistema capitalista – com o colapso do emblemático “banco de investimento” Lehman Brothers a 15 de Setembro de 2008 – têm-se ouvido vozes, entre o avisado e o nostálgico, estabelecendo comparações com a grande crise de 1929 e propondo aproximadamente as mesmas receitas. Até aí os ideólogos burgueses viviam e actuavam em modo de negação, a partir daí passaram ao modo de curandeiros pressurosos, repetindo-se à saciedade o dito de Nixon que “agora somos todos keynesianos”.

 

É claro que a superstição de que a “boa sociedade” é aquela que baseia integralmente o seu funcionamento no livre jogo dos mercados auto-regulados (de “concorrência não falseada”) levou uma grande tareia. Mas a burguesia nunca se caracterizou pelo seu fanatismo ideológico e o liberalismo nunca foi coisa para ser levada inteiramente a sério. Ela sempre gostou mais da intervenção do Estado (que é aliás o seu) do que esteve disposta a admitir. A questão foi sempre e apenas onde e como ela quer que o Estado intervenha na economia: por exemplo no aparato de repressão social e nas encomendas militares. Foi só para combater as intervenções espúrias do “despesismo” social que ela agitava o espantalho ideológico (neo)liberal.

 

Barack Obama venceu facilmente as eleições presidenciais norte-americanas, a 4 de Novembro seguinte, envolto na aura de que seria um novo F. D. Roosevelt, ainda que pós-modernamente mestiço. Vinha aí seguramente a caminho um novo “New Deal”, sendo severamente reprimidos os excessos da finança desregulada (a “eutanásia do rentista” preconizada pelo mestre de Cambridge), criado um gigantesco programa de despesas públicas na área social e de reabilitação de infraestruturas colectivas, abertos caminhos de participação e iniciativa popular na vida económica do país.

 

E essa seria apenas a primeira etapa, pois que, seguindo a liderança norte-americana, todo o mundo entraria de seguida numa nova era ideológica em que seriam reabilitados os valores tradicionais da social-democracia e do reformismo social. A “governança” global seria democratizada e desmilitarizada. Um “novo plano Marshall” seria devotado a combater a pobreza extrema no Terceiro Mundo, à reconversão para as energias limpas e a fazer participar todo o planeta num renovado projecto de globalização, resgatado à malévola hegemonia do neo-liberalismo.

 

Barack Obama, se verdadeiramente o quisesse, ou pudesse, tinha até material humano à sua disposição para sinalizar a abertura de um caminho semelhante, a começar pelos nobelizados Joseph Stiglitz e Paul Krugman, mais o recentemente reconvertido Jeffrey Sachs. Podia ter formado uma “equipa de sonho” no campo económico, teoricamente consistente, e cavalgado com ela uma onda de moderada e pacífica mobilização popular no seu país, de benévola expectativa no exterior, recolhendo por fim o aplauso de tão notáveis globo-humanitaristas como George Soros, Bill Gates, do grupo dos “velhos estadistas” Kofi Annan, Jimmy Carter, Mary Robinson, Martti Ahtisaari, Nelson Mandela, Gro Brundtland ou até o dos nossos muito próprios António Guterres e Mário Soares.

 

Na verdade, nada disso se passou assim. Obama decidiu constituir toda a sua administração com os mesmos velhos escroques clintonianos e habilidosos da Wall Street, largamente responsáveis pelo caos plutocrático instalado, sinalizando mesmo uma abertura bi-partidária de “consenso nacional” à direita republicana mais reaccionária. Quanto à política externa norte-americana actual, ela é, de facto, para além da retórica, muito mais consistente e eficazmente agressiva do que a do seu predecessor. O orçamento militar é o mais elevado de sempre, há uma enorme escalada em curso na guerra do Afeganistão-Paquistão (Af-Pak War) e toda a América Latina está, pela primeira vez nesta última década, a sofrer uma ofensiva em larga escala, diplomática, militar e de acções secretas, de reapossamento e afirmação de domínio yankee.

 

A verdade é que, nem a história se repete (a não ser, por vezes, como farsa), nem o “New Deal” ou o Plano Marshall foram nada que se pareça com os grandes empreendimentos de engenharia e generosidade social que nos querem hoje retratar. A verdade é que o compromisso e a aliança de classes típicos do projecto social-democrata não são globalizáveis. Por um lado, porque se formaram apenas numa conjuntura histórica muito particular - em resposta ao desafio global colocado pela União Soviética - como aparato institucionalizado de apaziguamento social interno e como arma de arremesso ideológica na “guerra fria”. Por outro lado, porque esses mesmos compromisso e aliança de classes só foram possíveis nos países imperialistas, com base na redistribuição parcial de réditos e super-lucros provindos da troca desigual e da exploração colonial ou neo-colonial. Não é um projecto que possa ser transposto e generalizado no plano mundial.

 

A verdade ainda, finalmente, é que, no capitalismo contemporâneo, não há qualquer margem que possibilite a intervenção de políticas redistributivas, de investimento público e de “pleno emprego”. Bem podemos, pois, continuar a vaguear em círculo à espera de Keynes, esse novo Godot no teatro do absurdo em que se tornou o discurso político e ideológico dos nossos tempos.

 

Para esclarecer melhor o problema, será porventura útil recordar que o capitalismo é um modo de produção que se alimenta e reproduz por intermédio da apropriação da mais-valia criada pelo trabalho humano vivo assalariado. Mais-valia essa que tem posteriormente de ser realizada no mercado, por intermédio da troca pelo seu valor no equivalente geral dinheiro. É preciso que o capitalista extraia mais-valia dos seus trabalhadores e é depois preciso que a realize pela venda do produto a um público solvente. E são esses os dois pólos simétricos de preocupação para os gestores públicos da economia capitalista, alternando políticas “do lado da oferta”, com políticas “do lado da procura”. Para os liberais mais ortodoxos, são boas e sempre legítimas todas as intervenções do Estado para dinamizar a “oferta” (p. ex. subsídios aos capitalistas, contracção dos salários directos e indirectos, repressão da organização sindical), enquanto as intervenções para reanimar a “procura” são, quanto muito, uma maçada e um inconveniente que se torna por vezes necessário. É preciso puxar continuamente o cobertor para tapar um lado e o outro da mesma cama, o que não é nada cómodo, como o sabe quem quer que tenha feito a experiência, sobretudo quando há entre as pessoas em causa uma inimizade insanável e a cama se vai tornando cada vez maior, sem que o tamanho do cobertor acompanhe minimamente esse crescimento.

 

Sucede que, por todo o mundo capitalista mais desenvolvido, a elevação constante da composição orgânica do capital, fez aumentar a proporção de capital constante (o que adquire máquinas, equipamentos e matérias primas) em relação ao capital variável (adquire a força de trabalho viva). Uma vez que só este último regista um acréscimo, ao final de cada ciclo produtivo, mesmo aumentando-se enormemente a produtividade do trabalho e a taxa de exploração, a sua dimensão relativa cada vez mais reduzida, no seio da massa total do capital, faz com que a taxa de lucro média sofra uma tendência inexorável para a baixa, apesar da intervenção pontual de diversas contra-tendências. Marx cunhou todos estes conceitos e descobriu estes mecanismos da mais elevada abstracção há mais de cento e cinquenta anos, foi censurado por isso, inclusivamente por “economistas” que se diziam seus discípulos, mas tudo isto tem vindo a ser vindicado e a ganhar suporte nas mais recentes pesquisas empíricas, por académicos como Fred Moseley ou Anwar Sheikh.

 

Por fim, a redução da massa salarial total, devida quer à redução dos efectivos operários, quer à baixa dos seus rendimentos reais e dos das outras camadas assalariadas, provoca um estrangulamento do mercado, deixando de haver procura solvente para as mercadorias que são produzidas. Investir em novos equipamentos produtivos torna-se assim muito pouco atractivo para o capitalista. Uma massa imensa capacidade produtiva jaz inutilizada, problema que é ainda agravado pela agudização da competição internacional entre os grandes monopólios nacionais/regionais.

 

Os capitalistas tornam-se avessos à actividade produtiva, procurando refugiar-se na especulação financeira. Mas esta apenas lhes pode dar um consolo temporário, elevando-os ao ar, numa vertigem de sonho, com taxas de lucro estratosféricas, para logo inevitavelmente os fazer cair mais adiante, em catastróficos mergulhos na dura realidade de uma estagnação generalizada. Não é possível continuar indefinidamente a criar capital fictício, com base em promessas de lucros futuros que certamente nunca virão. Pensar que, das actuais taxas de lucro anémicas do capital produtivo, se poderia retirar com que dar satisfação às promessas inscritas nos títulos financeiros em circulação, elevar generalizadamente os salários e ainda sacar imposto em montante suficiente para criar um grande programa de investimentos públicos, é sonhar com grandes castelos de nuvens, para além de ignorar os dados mais básicos da actual correlação de forças na luta de classes.

 

Neste momento, é a China (e em parte a Índia) que desempenha o papel de “fábrica do mundo”, fornecendo ela própria o crédito com que lhe adquirem as mercadorias. Mas em breve também ela ascenderá na escala da modernidade industrial, sofrendo a mesma erosão na taxa de lucro. Para continuarmos submetidos ao regime do capital, é preciso escolher, a curto ou médio prazo, uma ou um pouco de ambas as seguintes alternativas: ou uma política de genocídio deliberado para eliminar todo o “excesso” populacional, ou uma destruição maciça e catastrófica da capacidade industrial instalada, que permita retomar o processo acumulador a um nível capitalisticamente viável e porventura também ecologicamente mais “sustentável”.

 

Para sair por outra via do actual impasse histórico, então torna-se necessário quebrar o molde em que está organizada a produção, que o mesmo é dizer subverter por completo as relações de produção vigentes, baseadas no antagonismo de classe. Mas isso, só o proletariado politicamente organizado o poderá conseguir, expropriando os seus expropriadores e alçando-se temporariamente à condição de classe dominante.

 

 

 

 

Publicado no nº 122 (Novembro/Dezembro 2009) da revista 'Política Operária'

 

 

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