A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Um caso exemplar de provocação policial
 
 policia
 

 

 

 

 

 

 

 

De 5 a 7 de Dezembro passado (2002), realizou-se no Porto (edifício da Alfândega), uma cimeira da Organização de Segurança e Cooperação Europeia (OSCE). O Governo português, por razões que escapam ao entendimento comum, atribuiu grande importância a este evento decididamente menor no concerto geral dos areópagos internacionais. Ao ponto de, para salvaguardar o seu “êxito” (?!), se ter decidido por um arriscado e surpreendente veto à excomunhão europeia do estadista bielorrusso Alexander Lukaschenko. Ninguém percebeu bem o episódio, mas ele deve certamente mais a mesquinhas e provincianas razões de protocolo diplomático do que a um insuspeito assomo de independência e brio nacional no Palácio das Necessidades.

 

Para garantir a segurança do evento, foi mobilizada uma impressionante força policial de 1.700 elementos, incluindo o Corpo de Intervenção e o Grupo de Operações Especiais da P.S.P.. A “ameaça” era fornecida pelos nossos amigos libertários que, com o objectivo de protestarem contra a realização desta cimeira, se reuniram sob a sigla Alternativa Social do Porto (ASP) e que, no seu pico de mobilização, conseguiram reunir umas 50 pessoas numa pequena manifestação. A ASP vinha porém publicitando os seus intentos há já algumas semanas, por intermédio de cartazes, no site www.azine.org (e num grupo de discussão por correio electrónico), bem como pela recolha de assinaturas para o seu manifesto. O SIS estava à escuta.

 

O programa de actividades da ASP estendeu-se por cerca de uma semana, incluindo um debate público, várias projecções de cinema em vídeo, acções de rua e um recital de poesia. No dia 6 à noite, como anunciado, realizou-se uma reunião completamente aberta a todos os interessados, na qual se discutiu a acção reservada para o dia seguinte, por ocasião da sessão de encerramento da cimeira. Não é difícil calcular quem se fez convidado.

 

Conforme o deliberado, às 7 horas da manhã do dia 7 de Dezembro, partiu uma pequena manifestação da ASP, da Cordoaria em direcção ao edifício da Alfândega. A acompanhá-la ia quem já sabemos, nas suas imaginosas caracterizações como esquerdistas furiosos. Ao chegar a uns 50 metros do edifício da Alfândega, o grupo deparou-se com a rua interrompida por gradeamentos e um forte cordão policial. Os manifestantes imobilizaram-se aí pacificamente e cantaram algumas palavras de ordem contra o capital, a ordem imperialista neo-liberal e a repressão. Mas nem dois minutos aí se mantiveram porque imediatamente os gradeamentos se abriram para dar passagem a uma carga do corpo de intervenção. Seguiram-se correrias, atropelamentos, gritos e espancamentos, com bastões, escudos e a pontapé. Três manifestantes receberam assistência hospitalar. Dez outros foram detidos, alguns por agentes à paisana já a centenas de metros do local do embate. A RTP captou imagens, transmitiu-as e tem-nas em arquivo. A ASP tem também um dossier completo, que vai facultar à Amnistia Internacional.

 

Em algumas acções de rua realizadas nesse mesmo dia (nomeadamente na Praça da Liberdade e Rua de Santa Catarina) fez-se também sentir a presença de muitos agentes à paisana. Expeditos na captação de imagens, mostravam porém mau humor quando eram eles próprios objecto de fotografia. Colocados nessa situação chegaram a apreender câmaras e destruir o respectivo filme, sob a curiosa justificação de defesa do seu “direito à imagem”.

 

De entre os detidos, a foto-jornalista Úrsula Zanger (do ‘Diário de Notícias’) seria libertada cerca das 10 horas, por pressão dos seus colegas, que ameaçaram abandonar a cobertura da cimeira. Os restantes nove, todos muito jovens, estiveram sob detenção mais de 13 horas. Na esquadra da PSP do Infante, foram insultados e provocados por diversos agentes, incluindo os próprios provocadores infiltrados, ainda nas suas vestes de “trabalho”. Ao fim da manhã, o seu destino era incerto, pois, segundo informação prestada pelo graduado da esquadra, estava-se ainda “em consultas” para avaliar o grau de perigosidade das organizações a que pertenciam (!!?). Acabariam por ser objecto de uma grotesca denúncia colectiva pela suposta prática dos crimes de injúrias e desobediência à autoridade policial. Presentes ao magistrado de turno do Ministério Público, este mandou-os libertar e aguardar o prosseguimento da investigação com termo de identificação e residência, não sem fazer notar no próprio despacho a fragilidade da denúncia.

 

O auto de denúncia da ocorrência é uma tépida sopa pidesca, requentada no calão tecnocratizante da geração multibyte. Nela se caracterizava a ASP como uma organização subversiva, agrupando indivíduos das persuasões anarquista, marxista e trotzitikista (sic). Considera-se ainda que a prevista acção de rua da ASP fazia perigar a segurança das delegações estrangeiras à cimeira da OSCE, algumas delas oriundas de países “de risco” em matéria de atentados terroristas. O auto era acompanhado de um anexo com o carimbo de “Confidencial” (?!!) e que era nada menos que um relatório - ilustrado com fotos digitais - da reunião preparatória e de todo o percurso da manifestação. Pelos vistos o SIS, além de não ter a mínima noção do ridículo, julga que ainda está no tempo dos tribunais plenários, onde as suas fantasias policiárias, por mais dementes que fossem, gozavam de um crédito rotineiro e indiscutível.

 

Na verdade, não sabemos se o SIS errou aqui por atavismo ou por antecipação. Isto porque a nova arquitectura europeia da repressão vai também toda ela no sentido de moldar as instituições judiciárias (Eurojust) às necessidades de eficácia e prontidão do aparelho policial (Europol), com os seus monumentais bancos de dados sobre criminosos e agitadores, bem como o famoso mandado de captura europeu do comissário Vitorino (1). Simplesmente, no caso presente, porque este nóvel edifício ainda não tem os retoques finais (e também porque, quer pelos elementos detidos, quer pela acusação esfarrapada que teve de se inventar à pressa contra eles, não havia qualquer possibilidade de internacionalização do caso), a “via rápida” da repressão europeia digitalizada teve de se contentar em desembocar no pátio arcaico do processo penal português, onde ainda vai tendo algum curso a velha tralha humanista das liberdades e garantias do arguido. O SIS lá terá as suas razões para se sentir frustrado, mas realmente só se pode queixar de si próprio.

 

Os ventos contestatários do “povo de Seattle” chegam enfim a estas praias lusitanas, com alguns anos de atraso, em réplica muito bisonha e desmaiada. Mas, pelo menos na provocação e na brutalidade, Portugal demonstra estar ao nível dos melhores alunos, apto a executar com esmero e diligência insuperáveis as directivas mais exigentes do recatado “comité do artigo 36” da U.E.. É que, além de uma tradição e cultura de serviço muito características e personalizadas (oriundas de mais de 40 anos sob uma forte imagem de marca), as secretas portuguesas estão sempre prontas a superar, pela ferocidade cobarde, obscurantismo e ressentimento soez, aquilo que porventura lhes falece em cultura, sofisticação profissional ou simples senso comum.

 

Uma palavra final para o bom Governo de Portugal, pela esclarecida iniciativa que teve em planear cuidadosamente e mandar executar este inesquecível espectáculo caceteiro. Perante os olhos enternecidos das grandes potências, com modéstia servil e compungida, provou-se uma vez mais a solidez indefectível deste “aliado”. Possam os apertos orçamentais por que passa a nação poupar sempre esta imprescindível área de serviço público.

 

 

 

 

(1) Sobre os mais recentes desenvolvimentos institucionais na organização da repressão política e social no espaço da U. E. , é imprescindível a leitura de AA.VV., ‘Europa sem Máscara’, Dinossauro, Lisboa, 2002, nomeadamente o artigo de Raf Jespers.

 

 

 

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