Manuel Vaz em carta publicada no último número da ‘Política Operária’ (PO) recrimina-me por “absolver” e “reabilitar” o PCP, tecendo-lhe uma autêntica “coroa de flores aos seus méritos defuntos”. Critica-me também por dizer que está ainda por fazer o balanço do papel negativo deste partido no movimento de resistência popular, o que a seu ver só pode significar ignorância da literatura revolucionária portuguesa, nomeadamente da própria PO. Estas mesmas críticas e recriminações estão presentes no ataque que me é dirigido por Magalhães Mota (MM). Embora me pareça que estas críticas são devidas a leituras apressadas e pouco cuidadas do que escrevi, é certamente aqui devido um esclarecimento, pois que, de toda a evidência, não me fiz entender.
Não sei porque é que Manuel Vaz concluiu que eu estou persuadido de que a história do proletariado revolucionário português se confunde com a do PCP. A única coisa que eu disse remotamente próxima disso foi que o PCP constituiu “(boa ou má)” a única “escola de luta” para as classes oprimidas durante o fascismo. Isso parece-me evidente, pelo menos desde o ocaso do anarquismo por volta de meados dos anos 30. A partir de meados dos anos 60 apareceram outras correntes, provindas aliás do próprio PCP, mas a sua expressão no movimento operário foi marginal.
O PCP que eu, no artigo criticado, qualifico como “um património histórico e político que reclamo como meu” não é certamente o PCP de Cunhal, enfim, aquele PCP que todos conhecemos. A este não “reabilito” nem lhe desculpo nada, como é óbvio (enfim, julgava eu que era). A minha família política – aquilo que eu costumo chamar o “comunismo português” - é a dos que seguiram a revolução de Outubro e ergueram um partido para trazer até o nosso país o marxismo, a ideologia bolchevique e a esperança com que ela incendiou o mundo. Pois não falei eu do partido de “Manuel Ribeiro, Carlos Rates, Bento Gonçalves, Rodrigues Miguéis, Pável, José de Sousa, Alex, Militão, Bento Caraça, etc.”? E não é este (independentemente das críticas que nos possam merecer algumas destas personagens, ou parte dos seus percursos) o partido de todos nós, leitores e colaboradores da PO?
Infelizmente, a sigla deste partido é hoje reclamada e exibida pelo lamentável despojo político que sabemos. Mas isso é uma circunstância histórica, que tem certamente causas nacionais específicas mas que tem sobretudo a ver com a derrota global do longo ciclo revolucionário do século XX, iniciado com a tomada do Palácio de Inverno. Este PCP está a morrer, e eu não o lamento. Registo apenas o facto e dele faço propósito para lançar um certo olhar retrospectivo. A um outro nível passou-se o mesmo com a União Soviética. Não a lamentei quando finalmente desabou. E no entanto com ela encerrou-se um período histórico de lutas em que participaram algumas das vozes do século que me são caras. Mas o fundamental é prosseguir, naturalmente, sem estar agora para aqui a perder tempo com melancolias. Sobretudo quando os defuntos são tão ruins como estes.
Por escrúpulo de honestidade, devo dizer que até há relativamente pouco tempo pensei efectivamente que o PCP talvez pudesse ainda ser resgatado. Pensei que toda aquela massa operária e popular dos seus militantes e simpatizantes talvez pudesse ainda ser enquadrada por um verdadeiro partido comunista, totalmente reinventado, que ainda assim continuasse formalmente a remontar a sua origem de forma ininterrupta até 1921. Pensei, enfim, numa nova “reorganização”. Por razões que não há aqui espaço para resumir sequer, hoje já não penso assim nem acredito nisso. Ponto final.
Criticam-me também, injustamente, por revelar falta de conhecimento ou consideração pela crítica de esquerda feita ao PCP de Cunhal desde a década de 60 pela corrente marxista-leninista, de que a PO é herdeira. Ora, eu só disse que ainda está por fazer o “balanço” do papel negativo daquele partido. A crítica, felizmente, existiu e existe ainda. Eu próprio a faço também. Mas o balanço final não foi feito nem o pode ser ainda. Caberá aos historiadores futuros do movimento operário português fazê-lo. Só eles é que terão a perspectiva e o distanciamento necessários para saber o que perdemos nestas últimas décadas. O que poderia ter sido e não foi.
É extremamente ingrata a tarefa de responder a MM. De toda a evidência, ele está movido por uma aversão visceral pela minha “prosa”, o que é inteiramente legítimo. Mas uma vez que resolveu atacar-me, julgo que lhe era exigível que vencesse por um momento a sua repugnância e a lesse com o mínimo de cuidado. Assim faz-nos perder a todos o nosso rico tempo com polémicas estéreis, para no final (correndo tudo pelo melhor) termos apenas deslindado um amontoado caótico de equívocos, sem avançar nada no debate de ideias.
Vamos lá então a separar os alhos dos bugalhos. Quanto ao “balanço”, já falamos. As “palmas em uníssono e a marcha conjunta” não têm obviamente nada a ver a esquerda revolucionária. Têm a ver exclusivamente com os aderentes do PCP que nisso perderam as suas vidas, dada a confiança cega que o partido lhes incutiu em sóis enganadores. Esse é que é o “sistema irreformável”: a doutrina política e a cultura militante inculcadas no PCP cunhalista. Dentro deste “sistema” não há crítica possível. Só adesão cega ou rejeição em bloco. Logo, não se geram no seu seio forças capazes de o regenerar, vencendo os seus impasses.
Este “sistema” tem as suas fundações teóricas no estalinismo e no brejnevismo. Mas avancei eu a suspeita de que aproveitou aqui também um solo que lhe foi propício, lavrado por séculos sobre séculos de proselitismo cristão e pelas pregações da padralhada sobre a renúncia e a modéstia como caminho para a bem-aventurança. Antes não o tivesse feito, porque logo sou acusado de positivista e seguidor de Teófilo Braga (!!!...). É dom, é dom de erudição!, que este é daqueles autores que hoje já ninguém lê.
Onde é que MM leu na minha “prosa” que os portugueses seriam incapazes de aceitar a crítica livre e o debate científico é seguramente daqueles mistérios, sacros ou profanos, que não se explicam facilmente. Mas, enfim, o que custa é tomar balanço. Depois, na embrulhada e no afã da catanada, já vale tudo. Refere-se a um certo “traumatismo irreparável” (?!!!). Onde eu descrevi características de uma tradição religiosa ele põe-me a enumerar atributos rácicos inatos e permanentes. Enfim, adiante.
MM entrega-se depois com gosto a umas especulações de cru e militante “materialismo”. Talvez aqui, enfim, possamos debater alguma coisa com proveito. Segundo ele, contra toda a evidência, não haverá pois tradições culturais e ideológicas transmitidas de geração em geração, com uma autonomia relativa de longo curso. A cada modo de produção histórico, isolável no seu tubo de ensaio, corresponderá em todo o lado, de forma inteiriça, um ajustamento superestrutural totalmente previsível, aquele e nenhum outro. O contrário seria fazer o céu descer outra vez sobre a terra. Com essa cartilha esquemática MM pode certamente arrumar mais facilmente as ideias na sua cabeça (se a tem pouco exigente e inquiridora). O que não pode é compreender absolutamente nada da complexidade do mundo que nos rodeia.
Para dar um único exemplo, não compreenderá nada de um dos fenómenos políticos cruciais do nosso tempo, o movimento de resistência islâmica, que recruta os seus combatentes com tanto à vontade em Londres e Barcelona (tipicamente entre imigrantes de segunda e terceira geração) como em Rabat, Mossul, Kandahar ou Banda Aceh. E no entanto é este movimento (e não uma internacional do proletariado de Lisboa, Seul, Caracas, Damasco, Calcutá e Dakar, que eu naturalmente desejo e espero ainda um dia ver constituída) que tem hoje uma hipótese real de infligir uma derrota histórica ao imperialismo norte-americano. O islamismo militante é, naturalmente, uma reacção à agressão imperialista e sionista, mas o seu caldo cultural tem por esteio uma forte tradição religiosa multi-secular, com ritos de socialização específicos, regras de convívio, uma moral costumeira, uma distribuição estereotipada de papéis sexuais, etc.
Estou a ser positivista? Sinceramente, acho que estou apenas a tentar manter os olhos abertos. E será este peso morto do passado uma maldição inultrapassável por estes povos? Impedi-los-á para sempre de aceder à livre crítica, ao debate científico e, neste caso, à libertação da mulher. Não, nem por sombras. Longe disso. É apenas um ruído de fundo que vai passando de geração em geração, que pode ser ampliado ou atenuado, conforme particulares circunstâncias sociais e políticas, que é passível de ser momentaneamente exacerbado e manipulado, mas que tenderá a extinguir-se lentamente, à medida que se atingirem patamares de vida social mais complexa e acelerada, mais autónoma e mais livre.
O paradoxo aqui é que esse desenvolvimento está justamente a ser tolhido devido ao estrangulamento imperialista, gerando-se assim uma situação em que as grilhetas ancestrais podem aparecer aos oprimidos como o seu instrumento de libertação. Enquanto estiver paralisado pelos seus esquemas simplistas MM não poderá compreender o peso da tradição étnica e religiosa. Para ele, no Iraque de hoje, não haverá qualquer distinção entre curdos e árabes sunitas. O culto xiita é, naturalmente, uma "fantasmagoria" sem qualquer relevo político. Sistani, quantas divisões tem? Se MM fosse destacado para fazer trabalho político de ligação e assistência à resistência iraquiana tinha de ser reconvocado de urgência, em risco de sofrer um sério esgotamento cerebral.
Não nos vale de muito ter uma cabeça bem arrumada se é para bater com ela às cegas pelas esquinas do mundo, tentando em vão fazê-lo acomodar-se lá dentro. Isso sim, seria querer fazer o céu das nossas ideias baixar à terra, e de forma bem atabalhoada. Com toda a certeza, o processus vital da vida material é composto de elementos que MM mal suspeita. Felizmente, este “marxismo” não tem nada a ver com o de Marx. Se me é permitido o chiste este será, sim, um daqueles “marxismos” (primo afastado do do PCP) que nos tornam completamente incapazes de aceitar a crítica livre e o debate científico.
Por fim, talvez valha a pena esclarecer as razões porque eu temo “um fim catastrófico e pouco edificante para o PCP”. Não é porque eu tenha alguma estima pela sua carcaça, longe disso. Mas a questão é que nós de facto não temos pronto ainda sequer o embrião de um partido revolucionário do proletariado português. Temos ainda à nossa frente um longo trabalho de propaganda, persuasão e de paciente esforço organizativo. Assim sendo, eu prefiro para o PCP uma morte tanto quanto possível discreta e que não emporcalhe (enfim, mais do que já o fez) o nome do marxismo e do comunismo. Porque, quer o queiramos quer não, nós é que pagaremos a factura disso. Não nos valerá de nada enjeitar o defunto. Já com a União Soviética foi a mesma coisa. Aquele final pífio e miserável, de opereta bufa, desacreditou o projecto comunista (ou de uma qualquer alternativa ao capitalismo realmente existente) por pelo menos uma geração. E já vamos para outra sem se ver ainda nada de novo.
MM conclui a sua prosa (que tem também bem que se lhe diga) com umas advertências e uns paralelos históricos de tal modo extravagantes que não sei se são para levar a sério ou a brincar. Estará a exigir uma purga? Leio novamente e não parece brincadeira, não. Mas quem é MM para falar aqui com este tom cortante e autoritário de grande timoneiro ou procurador supremo da revolução proletária? Nunca ouvi falar dele, mas isso deve-se sem dúvida à minha ignorância da história do movimento marxista-leninista português.
Será suposto eu fazer aqui uma "confissão" dos meus erros, senão mesmo dos meus tenebrosos desígnios conspirativos contra a PO? E não farei eu afinal mesmo parte dessa corja anti-marxista dos chacais "renovadores"? Objectivamente, a minha prosa condena-me sem apelo como intelectual presunçoso. E subjectivamente não contacto eu no meu dia a dia com inúmeros inimigos da revolução? E não falo com o Ronaldo de vez em quando? E não falo com ele por vezes sobre a PO? Pois não é isso mesmo uma coligação para a cacetada “renovadora” na PO? Estremeço. Hesito. Sinto um gelo na nuca. Está visto que só me resta entregar-me aos meus fados, juntamente com o meu distante companheiro de infortúnio. Ah, estes longos corredores sombrios da minha mente. O pio do mocho. A hora que chega.
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