A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 O julgamento dos “Quatro do Porto”
 
 
 Essalam

 

 

 

 

 

Depois de enormes delongas e tendo o processo já transitado de passagem pelas Varas Criminais de S. João Novo, baixando novamente à sua origem nos Juízos Criminais do Bolhão (tribunal singular), por decisão da Relação do Porto, o julgamento de quatro activistas sociais acusados de difamação agravada ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) concluíu-se no dia 8 de Outubro de 2010 com uma sentença de absolvição, por falta de provas.

 

Os factos reportam-se já ao Verão de 2006 e necessitam de alguma contextualização. A Direcção Regional Norte do SEF tinha passado, em Dezembro de 2005, pelo escândalo da ampla divulgação mediática (iniciada por uma reportagem da SIC) das condições desumanas a que submetia famílias a quem era recusada e entrada no território nacional à chegada ao aeroporto Sá Carneiro, ficando aí a guardar repatriamento. Estas famílias ficavam instaladas, por semanas ou meses a fio, em “Centros de Instalação Temporária” que consistiam em vulgares contentores de mercadorias, com adaptações mínimas, em condições de salubridade indescritíveis. Este escândalo custou o lugar à Sr.ª D.ª Amélia Paulo, que detinha o cargo à altura, tendo sido substituída pelo Sr. Dr. Eduardo Margarido, que transitou de igual lugar na Direcção Regional dos Açores.

 

Por esta altura, a queixa mais intensa e generalizada da comunidade imigrante instalada no Norte de Portugal era relacionada com as dificuldades arbitrárias criadas pela Direcção Regional Norte do SEF na emissão de autorizações de permanência e de residência. Enquanto a lei se limitava a exigir que o candidato fizesse prova de posse de “meios de subsistência”, a autoridade policial sedeada no Porto entendia exigir, por conta disso, cópia de declaração de rendimentos do ano anterior, para efeitos de IRS, com um mínimo declarado de 5.400 euros (salário mínimo multiplicado por catorze). Esta exigência era tão patentemente absurda – sabendo-se como a vida laboral dos trabalhadores imigrantes é marcado pela precariedade e pela informalidade - que só pode ser entendida no âmbito de uma estartégia destinada a manter estas pessoas em permanente sobressalto, entre vistos provisórios necessitados de renovação a cada 60 dias, sob pena de cair na clandestinidade, incorrendo na ameaça imediata de expulsão. Pode ser simples insensibilidade e despotismo burocrático, mas sabendo-se que em 2008 foi desmantelada uma rede de legalizações ilícitas de estrangeiros que envolvia pelo menos dois funcionários do SEF-Porto (presos preventivamente), não pode deixar de concluir-se que esta rigidez de critérios facilitava objectivamente a actividade criminosa então em curso.

 

Hamid Hussein, paquistanês, 33 anos, casado e pai de dois filhos menores, era um desses trabalhadores desesperados à procura da revalidação da sua autorização de residência, que lhe permitisse encarar a sua vida com alguma tranquilidade. Sabe-se que, no início de Junho de 2006, esteve a tratar desse assunto junto aos balcões da Comissão Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI) na Rua do Pinheiro, onde o SEF também está presente. Segundo relato feito por um amigo próximo e compatriota, que esteve presente, desenganado sobre a possibilidade de renovação da sua autorização de residência, Hussein terá pedido que lhe fossem devolvidos todos os descontos feitos para a Segurança Social portuguesa, para com esse dinheiro regressar à sua pátria. Essa hipótese ter-lhe-á sido negada terminantemente por parte do funcionário que o atendeu (do SEF ou do CNAI), com atitudes de enfado e de escárnio. Hamid Hussein entrou numa espiral depressiva que o levou a suicidar-se, nessa mesma noite, atirando-se ao rio Douro a partir do tabuleiro superior da ponte D. Luis I.

 

Desaparecido durante muito tempo, o corpo de Hussein só seria encontrado pelos amigos no Instituto de Medicina Legal, onde voz informada os aconselhou a procurá-lo. Apesar de o corpo ter sido encontrado com o passaporte no bolso, nem a polícia nem ninguém naquela instituição se preocupou em alertar a família ou o consulado paquistanês do seu falecimento. O corpo estava ali simplesmente depositado como um dejecto anónimo e não reclamado, a breve trecho destinado à cremação para não ocupar mais espaço. Também esta circunstância provocou uma forte comoção indignada nos amigos de Hussein, que procuraram de imediato contacto com associações representativas da comunidade imigrante para denunciar esta situação.

 

A partir de meados de Junho de 2006, diversas associações de imigrantes e outras organizações de activistas solidários com eles estão mobilizadas na denúncia das circunstâncias que envolveram o suicídio de Hamid Hussein, assunto que merece tratamento noticioso, assaz discreto, num certo número de órgãos da comunicação social. Foi também realizada uma manifestação pública onde se exigiu o apuramento de responsabilidades e a revisão de procedimentos. Mas isso era coisa que o Director Regional Norte do SEF achou que não podia permitir de modo algum, pelo que resolveu recolher elementos e fazer uma participação ao Ministério Público pelo crime por “difamação ao SEF”. Após umas “investigações” que revelam claramente o uso de meios policiais, é entregue uma denúncia ao Ministério Público a 30.6.2006. Apesar de a denúncia ser patentemente inepta e de o inquérito preliminar nada lhe ter acrescentado, o certo é que o Ministério Público deduziu a acusação pretendida, nos seus exactos termos, fazendo irresistivelmente recordar outros tempos em que as instituições judiciais funcionavam como câmara de ratificação automática de quantas fantasias policiais lhes fossem presentes.

 

Os quatro acusados são:

- Rachid Fathi, solteiro, na altura com 30 anos, natural da cidade de Tânger, em Marrocos, radicado em Portugal já há alguns anos e de nacionalidade portuguesa, tendo sido já operário têxtil, trolha, cortador de carnes, conhecido por ser dirigente da associação ESSALAM – Associação dos Imigrantes Magrebinos e de Amizade Luso-Árabe;

- José Alberto da Rocha Paiva, conhecido activista libertário português, preso político no tempo do fascismo (nessa altura era marxista-leninista), animador de diversos grupos de causas sociais e ecológicas, como é o caso, presentemente, da associação Terra Viva!-Terra vivente, com sede na Rua dos Caldeireiros;

- Abílio Gonçalves Mourão, português, produtor teatral em Lisboa, simples associado de uma agremiação cultural portuense denominada Espaço Musas;

- Flávio Ferreira Paes Filho, cidadão brasileiro, na altura doutorando na Faculdade de Letras do Porto e presidente da AACILUS, associação de apoio aos imigrantes lusófonos sul-americanos e africanos em Portugal, actualmente professor efectivo na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá.

 

Não se compreende como é que chega a ser deduzida acusação contra os arguidos, pois que nenhum indício existe nos autos a implicá-lo pessoalmente em qualquer pretenso crime. A denúncia devia ter sido logo liminarmente arquivada ou, no mínimo, arquivado o inquérito, por inconclusivo. Em vez disso, após as delongas habituais, é produzida uma rotineira acusação, em Dezembro de 2007. Depois, mais um ano de espera.

 

Um episódio memorável ocorreu no dia 5 de Dezembro de 2008, no Tribunal do Bolhão, onde se deveria ter realizado a sessão inaugural da audiência de discussão e julgamento marcada. O tribunal estava em perfeito estado de sítio, completamente tomado por um corpo de polícia de intervenção que se pavoneava pelos corredores, bem armado e musculado, postando-se também às esquinas com ar ameaçador e afectando uma certa disposição “estratégica”. O próprio tribunal, surpreendido com esta ocorrência, solicitou depois esclarecimentos ao comando metropolitano do Porto, que os prestou com uma candura racista verdadeiramente desarmante (o ofício está no processo). Diz o responsável máximo da PSP-Porto que foi da própria iniciativa desta polícia deslocar uma Equipa de Intervenção Rápida (EIR) para o exterior do tribunal nesse dia. Ora, não se compreende como o possa ter feito senão a pedido do próprio SEF. Depois disso, informa o comando metropolitano, esta equipa resolveu deslocar-se para o próprio interior do tribunal, a pedido do agente da PSP que aí estava de turno, “em virtude de se encontrar um elevado número de cidadãos de nacionalidade marroquina no interior do tribunal”.

 

Na verdade, notava-se a presença, na sala de audiências, de talvez uma dúzia de assistentes magrebinos, com alguns paquistaneses de permeio, todos sentados, quietos, muito atentos e silenciosos. Foi sem dúvida este o motivo do extremo alarme securitário da PSP. Mas o irónico da situação é que talvez os visados, grande parte deles oriundos de uma monarquia ferozmente policial, não tenham notado nada de anormal, não chegando sequer a tomar consciência de serem eles o alvo deste dispositivo repressivo. O que ele pode é ter assustado o próprio tribunal, provavelmente já nada satisfeito com a evidente fragilidade e um incipiente interesse mediático suscitado pelo caso.

 

Fosse por que razão fosse, o certo é que o Tribunal do Bolhão, já com a audiência de julgamento aberta, resolveu então declarar-se incompetente para julgar esta causa. Para o efeito, considerou que aos factos constantes da acusação corresponderia uma qualificação jurídica ainda mais grave, incorrendo os réus em pena de prisão maior (até 8 anos), sendo por isso competente o tribunal colectivo, ou seja, as Varas Criminais do Porto em S. João Novo. Para aí foi remetido o processo, e aí chegou também a ter julgamento marcado em 2009. Todavia, na sequência de recurso vencedor interposto por um dos réus, a Relação do Porto ordenou que o processo regressasse à sua origem, no Tribunal do Bolhão. E com estes ademanes de farsa, que reuniram, só por si, dezenas e dezenas de páginas de cerrada argumentação jurídica, consumiram-se mais quase dois anos.

 

A matéria de facto que consta da acusação deduzida pelo Ministério Público é composta, por um lado, por algumas declarações reproduzidas em órgãos de comunicação social (‘Portugal Diário’, ‘O Primeiro de Janeiro’ e Agência ‘Lusa’) e, por outro lado, pelo texto da convocatória de uma conferência de Imprensa colectiva realizada a 14.6.2006 na sede da Associação Terra Viva.

 

Ora, nesses artigos de imprensa nunca é citado o nome de qualquer pessoa, nomeadamente de qualquer dos arguidos, como sendo o autor de quaisquer declarações. Notificados os órgão de comunicação social em causa para juntarem aos autos os originais das suas notícias, nenhuns elementos novos vieram revelar ser o arguido Rachid Fathi, ou qualquer outro, quem proferiu quaisquer das declarações aí citadas. ‘O Primeiro de Janeiro’ enviou até o jornal errado, a edição de 21.7.2006 (um mês depois da edição que estava em causa) que veio constituir um apenso completamente inútil ao processo.

 

Quanto ao comunicado de convocatória para a conferência de Imprensa de 14.6.2006, ele não tem subscritores individuais, sendo subscrito apenas por seis associações cívicas e sociais da cidade do Porto (ESSALAM, AACILUS, CNLI, Espaço MUSAS, SOS Racismo e Terra Viva).

 

A ESSALAM (em árabe significa “paz”) – www.essalam.org - não é nenhum grupo de agitação e proselitismo, apostado em denegrir as autoridades portuguesas, como pode ter ocorrido a algumas mentes intoxicadas pela “luta anti-terrorista” e prontos a descortinar a al-qaeda na forma de qualquer grupo de de homens de tez escura reunidos a uma esquina da Rua do Cativo. Trata-se, isso sim, de uma importante associação cultural, educativa e de convívio, com já alguns anos de actividade, reconhecidamente meritória, premiada, por exemplo, a 10 de Janeiro passado, com um certificado de “Boas Práticas de Acolhimento e Integração de Imigrantes em Portugal”, entregue pela Organização Internacional das Migrações (OIM), Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI, IP) e Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).

 

A ESSALAM é reconhecida e apoiada pelas autoridades governamentais do reino ditatorial marroquino (Ministro Delegado para as Comunidades Marroquinas no Estrangeiro), bem como pela embaixada e consulado-geral deste país vizinho. Dá, na sua sede, aulas de língua portuguesa, aconselhamento prático e jurídico, realiza e participa em festas interculturais, passeios ou eventos desportivos, defendendo também os direitos dos seus associados quando entende que estes estão a ser postos em causa de forma injusta. Rachid Fathi é membro do Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração (COCAI) que trabalha junto do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI, IP)

 

A ESSALAM, aliás, esteve e está sempre disposta para dialogar e cooperar, de forma discreta, com as autoridades portuguesas, nomeadamente o SEF, no sentido de facilitar a resolução organizada de problemas concretos, solicitando audiências e mantendo correspondência, alertando para situações e dificuldades concretas, às quais infelizmente não tem sido dada resposta. A ideia que fica é que o SEF encara sempre estes contactos mais numa perspectiva de “recolha de informações” sobre a própria associação, entendida esta como entidade hostil.

 

A única peça processual que menciona directamente os arguidos não diz respeito aos factos que constam da Acusação. Tanto a denúncia do Sr. Dr. Eduardo Margarido como a própria Acusação do MP, embora nada esclareçam sobre isso, terão tirado as suas conclusões sobre quem seriam os autores pessoais das declarações à Imprensa e do comunicado de convocatória da conferência de Imprensa de 14.6.2006 a partir do pedido de autorização ao Governo Civil do Porto para a realização de uma “manifestação pacífica de luto e pesar”, de que se encontra também uma cópia no processo, junta em anexo à denúncia.

 

Nesse pedido, aí sim, um elemento “responsável” por cada uma das diversas associações peticionárias identifica-se pessoalmente e assina, sob o carimbo da mesma. Mas a manifestação pública realizada a 24.6.2006 foi uma iniciativa completamente distinta da conferência de Imprensa efectuada dez dias antes, a 14.6.2006, sendo as associações envolvidas apenas parcialmente coincidentes. A S.O.S. Racismo e a Comissão Nacional para a Legalização dos Imigrantes (C.N.L.I.), nomeadamente, participaram na conferência de Imprensa (e subscreveram a sua convocatória), não fazendo parte, porém, das organizações subscritoras do pedido de realização da manifestação pública, gozando, por essa razão apenas, do privilégio de não ver nenhum elemento seu ser incriminado neste processo.

 

Mesmo as associações que participaram em ambas as iniciativas podem, como é óbvio, ter destacado diferentes “responsáveis” seus para a organização de uma e de outra, como seria aliás bem natural, para dividir esforços. Todas estas associações têm uma vida interna muito participada, regendo-se por princípios democráticos e de responsabilidade colectiva – com os seus estatutos e órgãos representativos eleitos - nenhuma delas sendo um culto pessoal dominado por algum “guru” ou líder natural carismático. Mas, aparentenente, para o MP isso são pormenores insignificantes. Se uma pessoa se assume como “responsável” de uma determinada associação num ofício dirigido ao Governo Civil do Porto, deve ser-lhe imputada responsabilidade por tudo o que no passado apareceu subscrito por essa mesma associação.

 

Refira-se ainda que a Acusação, seguindo também nisso à letra a denúncia, inclui na matéria de facto algumas declarações que nem foram feitas aos órgão de comunicação social atrás referidos nem constam da convocatória da conferência de imprensa de 14.6.2006. Constam, isso sim, de uma intervenção anónima recolhida certamente por mão policial atenta num forum da internet e que a denúncia resolveu amalgamar com os restantes elementos para os “apimentar” um pouco mais, fazendo crer que pertencem também ao acto de convocatória da conferência de imprensa. Ora, apesar de ser bem visível que se trata de um documento de origem completamente diversa, não assinado (pelo menos na impressão que dele foi feita para juntar à denúncia), o digno MP, em total despropósito, não deixou também de atribuir estas declarações aos arguidos “actuando livre e deliberadamente de acordo com um plano prévio que consiste em denegrir a imagem e a credibilidade do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”.

 

Resta dizer, por último, que a manifestação pública de 24.6.2006, pela qual os quatro arguidos se assumiram efectivamente como pessoalmente responsáveis, perante o Governo Civil do Porto, em nome das associações por si representadas, foi devidamente autorizada e decorreu muito bem, na data aprazada, com uma grande participação, de forma ordeira, pacífica e com grande elevação cívica.

 

Nessa manifestação correu um abaixo-assinado dirigido ao Ministério da Administração Interna exigindo a demissão do Director Regional Norte do SEF, Dr. Eduardo Margarido, face às arbitrariedades praticadas no serviço de que ele era então responsável. Esta circunstância foi certamente do conhecimento do visado e a ela não terá sido alheia, provavelmente, a decisão de apresentar a queixa crime, que deu entrada no MP a 30.6.2006, muito depois dos factos a que formalmente diz respeito, mas dentro da semana seguinte à realização manifestação e à recolha do abaixo-assinado. Fosse como fosse, o facto é que Eduardo Margarido seria mesmo afastado do lugar, poucos meses depois.

 

Na sequência dessa manifestação, de forma bastante notória, centenas de imigrantes, residentes na região Norte, que tinham já sido notificados para abandonar o país dentro de 20 dias, receberam do SEF os almejados títulos de residência. Os organizadores da manifestação, particularmente a ESSALAM, estavam a contar, depois dela, ser chamados pelo SEF-Norte, para continuar o breve diálogo mantido até aí, resolvendo-se os problemas pendentes, caso a caso. Em vez disso, depararam-se com esta manifestação unilateral de extraordinária benevolência, à qual se seguiria, pouco depois, a notícia da cessação de funções do Director Regional Norte do SEF, o Sr. Dr. Eduardo Margarido.

 

Feita toda esta exposição dos factos, é altura de dizer que também não se encontra absolutamente nada que possa cair na alçada penal, quer nas declarações à imprensa citadas na digna Acusação, quer nas expressões pertencentes à convocatória da conferência de Imprensa de 14.6.2006, também por ela citadas.

 

Quanto às declarações à Imprensa citadas na Acusação - e por ela atribuídas, sem qualquer base, ao arguido Rachid Fathi “após acordo prévio com os restantes arguidos” – elas são completamente destituídas de qualquer relevo penal. Na verdade, estas declarações chegam a ser elogiosos para as direcções regionais do SEF de Coimbra, Lisboa e Faro, criticando apenas a direcção do Porto (Norte) por padecer de um excessivo zelo burocrático. Se é crime criticar as “burocracias sem sentido” e o “carimbo atrás de carimbo”, então somos todos criminosos impenitentes e sem remissão. Se isso é crime apenas quando é feito por imigrantes estrangeiros (ou de origem estrangeira), então não poderíamos achar melhor maneira de dar razão a quem se queixa de discriminação por parte das autoridades portuguesas.

 

Quanto às outras declarações à Imprensa citadas, mesmo que nem todas fossem exactas (e tanto quanto sabemos, são-no), pura e simplesmente, não se percebe o que é que elas possam conter de minimamente ofensivo, para quem quer que seja.

 

Nas declarações à Imprensa citadas na Acusação não se acusa a Direcção Regional Norte do SEF de maus tratos ou tratamento discriminatório, nem se lhe imputam quaisquer responsabilidade pela trágica morte de Hamid Hussein, como consta das conclusões da digna Acusação e parece ter sido a preocupação central da queixa-crime apresentada.

 

Essa imputação de responsabilidade pode, em certa medida, ser lida, isso sim, na convocatória da conferência de Imprensa de 14.6.2006, também citada na Acusação, mas mesmo aí não se trata, como é óbvio, da imputação do cometimento moral de qualquer crime de homicídio. O que se trata é da atribuição de uma responsabilidade política e social por um determinado acontecimento nefasto, o que é uma coisa completamente diferente.

 

Todos os dias se registam mortes de pessoas que podem, em última análise, imputar-se à insensibilidade de uma pessoa amada, à exploração de baixos sentimentos públicos em certos programas televisivos, à falta de rigor num serviço hospitalar ou, porque não, ao excesso burocrático de uma repartição pública. Quem denunciar uma tal responsabilidade não comete o crime de difamação, porque não está a imputar a outrém o crime de homicídio; está simplesmente a exercer um direito de crítica legítima a uma certa actuação, tendo em conta os resultados objectivos que dela decorreram, ainda que de forma não necessária nem intencional.

 

Aliás, como é óbvio, a imputação de uma consequência não desejada nem sequer representada pelo agente nunca poderia ser considerada para efeitos de preenchimento do tipo do crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º do Código Penal. Para esse efeito só podem ser consideradas as imputações de factos (ou seja, de acções e/ou omissões concretas) ou a formulação de juízos ofensivos para a honra e a consideração do visado. Não preenchem o tipo deste crime a imputação, sempre discutível, de responsabilidades por resultados ou consequências longínquas dos factos efectivamente imputados, separadas delas por uma complexa e espessa rede causal, para a qual concorreram, sem dúvida, muitos outros factores.

 

A isto acresce que, numa sociedade plural e democrática, todos os agentes com responsabilidades públicas, com incidência directa na vida (e na morte) de milhares de pessoas, têm que aceitar o exercício deste tipo de crítica pelos resultados, sob pena de se começar a criminalizar a discordância política e cívica perfeitamente legítimas. “Bush, terrorista e assassino”, ou “NATO: terror e morte” (e estamos aqui a usar exemplos extremos), etc., etc., são expressões que podem não soar agradáveis aos visados e seus apoiantes, mas que fazem contudo legitimamente parte de manifestações de rua e do discurso político do homem comum, ao abrigo da liberdade de expressão e de informação garantida pelo art.º 37º da Constituição da República Portuguesa.

 

As imputações concretas ao SEF-Porto que constam da Acusação, consideradas em si próprias (independentemente dos resultados que, no caso concreto, lhe possam ou não ser atribuídos) não são de molde a poder ser considerados ofensivos para a sua honra e consideração. Para além disso, se foi cometida alguma inexactidão (e a Acusação não nos diz quais elas possam ser) foi certamente boa fé, com base em testemunhos múltiplos e sólidos, motivada única e exclusivamente pelo desejo de defender os direitos e interesses legítimos do falecido Hamid Hussein, de sua família e das comunidades imigrantes em geral.

 

Em todo o caso, assistia aos visados o direito de rectificação pública, sendo a queixa-crime uma reacção completamente descabida num caso destes, e totalmente incompatível com o que deve ser a vivência normal numa sociedade aberta e num Estado de Direito democrático.

 

O que se tornou patente, porém, precisamente, com o decorrer da primeira sessão do julgamento, a 15 de Setembro, ouvidas duas testemunhas de acusação, ambas inspectores do SEF, é que não foi cometida nenhuma inexactidão de facto nas declarações que constam da Acusação. Tudo se passou exactamente como lá se descreve, mas o que o SEF-Norte não podia tolerar é que fosse associado publicamente à morte de Hamid Hussein. Por isso, sem que tivesse sido feita a mais leve averiguação interna ao que aconteceu de facto no tratamento dado a este imigrante, decidiu-se que “isto não pode ficar assim”, avançando-se logo para a denúncia criminal por “difamação”.

 

O julgamento encaminhava-se visivelmente para uma inevitável decisão de absolvição, desde logo porque nenhuma prova foi feita contra os arguidos com as testemunhas de acusação. Todavia, ainda assim, a actual Direcção Regional Norte do SEF pretendia obter, como condição para a desistência da sua queixa, uma retractação pública dos réus, mediante uma declaração a publicar na imprensa cujo teor não chegou a ser discutido porque a ideia foi imediatamente repelida pela defesa.

 

O Ministério Público pediu a absolvição dos Réus, nas alegações produzidas em juízo a 30 de Setembro e a absolvição veio, inevitavelmente, na sentença lida a 8 de Outubro. Simplesmente, nada disso é ainda suficiente para se fazer justiça neste caso.

 

Faltou ainda responder pela morte de Hamid Hussein, prestar uma qualquer compensação à sua viúva e amparar devidamente os seus filhos menores, que se encontram ainda em Portugal, a passar grandes necessidades.

 

E falta, sobretudo, para o que nos interessa colectivamente com vista ao futuro, saber como foi possível perpetrar este verdadeiro atentado ao Estado de direito democrático. Como foi possível, em esconsos gabinetes policiais, tramar toda esta operação celerada, visando criminalizar, amordaçar e perseguir por via judiciária as justíssimas manifestações de indignação cívica levantada pelas circunstâncias que envolveram a morte da Hamid Hussein? Como foi possível a estes agentes reunir uma semelhante cultura de desprezo humano e, por cima dela, a arrogância burocrática suficiente para montar tudo isto, confiantes em que podem calar e reprimir a seu talante a opinião pública livremente formada e expressa por meios legítimos e pacíficos?

 

Mas mais inquietante ainda que isto, falta também explicar como é que o aparelho judiciário pôde embarcar nesta aberração e deixar-se envolver nela, passando depois a batata quente de Caifás para Pilatos ao longo de quatro anos e meio, sem nenhuma consideração pelos acusados a quem manteve em suspenso de uma possível condenação criminal e sujeitos a medidas de coacção, durante todo este tempo, apenas porque se indignaram e buscaram reparação para uma injustiça feita a um cidadão trabalhador que, infelizmente, para as autoridades instaladas, “não é um dos nossos”.

 

 

 

 

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