A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
Fidel contado como foi
 
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Esta biografia semi-oficial (não “autorizada” mas “consentida”) de Fidel Castro (*) apareceu naturalmente envolta em grande expectativa. Não havia ainda qualquer tratamento biográfico de Fidel digno desse nome e desta vez o dirigente cubano resolveu abrir totalmente o baú para a investigadora brasileira. Furiati é uma jornalista, escritora, guionista de cinema e professora carioca que já antes tinha tido acesso a informação classificada do Estado cubano para escrever “ZR, O Rifle que matou Kennedy”, sobre as tramas que envolveram o famoso magnicídio norte-americano de 1963. Desta vez, obtido o assentimento do comandante, ela partiu para nove anos de intensa pesquisa, dos quais cinco (de 1993 a 1998) vividos em Cuba, onde consultou o que desejou e entrevistou quem quis, incluindo personagens-chave que se mantiveram sempre na sombra como Jesus Montané e Manuel Piñeiro. A lista de agradecimentos é impressionante.

Claudia Furiati não é Gabriel Garcia Marquez. Embora revele cultura e um instinto seguro para os detalhes interessantes, faz-se por vezes sentir cruelmente alguma falta de fôlego na narrativa, sobretudo quando ela requereria um tratamento mais próximo do épico. A parte técnica da economia praticamente não é abordada, bem como as questões teóricas fundamentais para o socialismo que estiveram e estão ainda em jogo na experiência revolucionária cubana (poder popular, etc.). Há passagens ininteligíveis devido a uma escrita deficiente, no que pode caber alguma responsabilidade à adaptação para a norma europeia do português feita pelas Edições Avante. Contudo, a obra não desaponta por completo e perdurará certamente por muitos anos como, não uma (como modestamente se intitula) mas a biografia de Fidel: aquela obra onde este faz conhecer, senão toda, pelo menos aquela verdade que contemporaneamente se pode já deglutir. Escreve a autora: “apesar de conspirador contumaz, Fidel pôs os segredos à luz do dia, na altura e no modo que julgou certos, neste livro, afirmando que, de importante, nada mais havia a revelar”.

Há uma quantidade razoável de revelações de grande interesse. Fidel começou a ser conhecido politicamente a nível nacional ainda enquanto dirigente estudantil na Universidade de La Habana, o que nessa época (final dos anos 40) implicava não só destreza e brilho oratórios mas muita perícia e prontidão no gatilho. Numerosas questões de interesse político-académico eram então resolvidas à pistola no recinto universitário ou em correrias de automóvel e emboscadas de metralhadora pelas esquinas da cidade. Essa actividade implicava alianças e acordos de protecção equívocos com grupos mafiosos do bas-fond havanense, aos quais o jovem Fidel também recorreu quando disso teve necessidade. Há depois a revelação de que a expedição do ‘Granma’ foi em grande parte financiada secretamente por Carlos Prío Socarrás, o corruptíssimo ex-presidente cubano (derrubado por Batista encontrava-se então exilado nos E.U.A.) que Fidel havia denunciado violentamente na imprensa.

Verdadeiramente delicada é a questão de saber quando é que Fidel se tornou comunista e como é que ele foi gerindo a sua imagem pública durante a juventude e, na verdade, até à declaração da revolução cubana como socialista, em 1961, dois anos e tal após a tomada do poder. Neste particular, a imagem que emerge do relato de Furiati é verdadeiramente surpreendente. Castro é versado no marxismo e um cripto-comunista convicto desde os seus tempos de estudante. Todavia militava no Partido Ortodoxo – um partido burguês, nacionalista e regenerador – e projectava uma imagem de tal modo furiosamente individualista e aventureira – no limite da irresponsabilidade e de uma temeridade algo selvática -, que não passava pela cabeça de ninguém associá-lo aos disciplinados exércitos da sombra do comunismo. A sua origem numa família latifundiária do Oriente, educação jesuítica e um discurso ideologicamente oco, polvilhado por apelos à honra e valor pessoal, tornavam-no insuspeito. E o equívoco manteve-se ao longo de uns quinze anos, por ele próprio activa e conscientemente promovido. Mesmo já na Sierra Maestra chegou a declarar-se anti-comunista, em entrevista ao ‘New York Times’, e era considerado pelos norte-americanos como uma alternativa de poder interessante, o que lhe garantiu alguns importantes fornecimentos de armas vindos da Florida por via aérea.

Furiati mantém que tudo isso fazia parte de uma estratégia conscientemente montada. Fidel achava que o povo cubano não estava preparado para apoiar uma revolução socialista, a qual teria de lhe ser levada passo a passo, por sucessivos choques e uma consciencialização progressiva. Por isso usou de uma reserva mental de inspiração literalmente maquiavélica (‘O Príncipe’ era uma leitura recorrente sua). Por mim diria que, tal como os clássicos da antiguidade, Fidel sempre esteve consciente de que o verdadeiro herói tem de aliar ao arrojo a astúcia. Embora de temperamento impulsivo, não assumia riscos que não fossem calculados e ponderados com frieza, lucidez e um realismo cortante. Embora idealista, esteve sempre disposto ao compromisso, à manobra, à lisonja maliciosa, ao artifício requintado. Tinha o sentido do tempo e da duração, o que fez toda a diferença em relação à impaciência e rigidez hierática do seu amigo Che Guevara.

Esta obra traz também à luz revelações novas referentes ao programa cubano de activa, organizada e secreta promoção da guerrilha e insurreição armada em toda a América Latina, nos anos 60 (e de modo mais localizado nos anos 70), bem como às diversas iniciativas africanas que, essas, se prolongariam até ao final dos anos 80 com o xeque-mate à racista África do Sul nos campos de batalha do Cuando Cubango. Confirma-se que, a partir de La Habana, Fidel Castro dirigiu toda a manobra cubana (e das FAPLA, por arrastamento) na guerra em Angola até aos seus mais detalhados pormenores operacionais.

Fidel Castro Ruz é provavelmente um dos grandes dirigentes revolucionários de todos os tempos e é um privilégio ser seu contemporâneo, independentemente das reservas que se possam ter sobre o seu legado. Não nos vai deixar uma obra teórica de grande valor e originalidade, nem uma marca histórica profundamente talhada, fora do seu pequeno país. E mesmo aí, quem viver verá. Todavia, como vulto concreto de carne e nervos é uma figura absolutamente formidável, maior que a vida, um colosso de vontade e uma vaga imparável de entusiasmo e optimismo humanista. Vale bem mais como gesto, palavra e exemplo do que pelo património intelectual que nos lega para uso futuro. Também por isso era importante ter uma perspectiva de conjunto da sua vida, que é daquelas que, sem lenda, entra ainda mais definitivamente pelo campo do legendário. Ao longo de perto de 1000 páginas, esta obra abre pistas importantes e dá-nos uma aproximação global que, sendo obviamente traçada numa perspectiva favorável e simpatizante, não deixa de ser de uma grande e inquiridora honestidade.






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(*) Claudia Furiati, ‘FIDEL CASTRO, Uma biografia’ (2 tomos), Edições Avante, Lisboa, 2003.

 

 

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