|
«Amo aqueles a quem enche um grande desprezo, pois trazem consigo o respeito supremo, são as flechas do desejo apontadas para a outra margem.
Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo nas feridas, e que pode morrer de qualquer acidente fútil; porque é de bom grado que passará a ponte.
Amo aquele que tem a alma transbordante a ponto de perder a consciência de si mesmo, e nele carrega todas as coisas assim e a totalidade das coisas que causa a sua perda »
NIETZSCHE
«Assim Falava Zaratustra»
(tradução de Alfredo Margarido)
ANTE-MEMÓRIA TURVA
a António Ramos Rosa
1. depois da difusão prolixa dos espantos
inventei esta paleta de enumerador de sinais
torneei então abraços inúteis
atalhei razões de aventuras brancas e iniciais
supus-me um nome de percursos dilatados e suspensos
exposto o rosto à erosão dos pássaros
o desconchavo da memória
a apurar desvelos de sobrevivente não sei de que
velhos lençóis lavados e puídos até à náusea pois
começar é um compromisso (a insinuação dos limites)
a atenção decorrendo agora como um hábito
de lacerar e cindir o incurso da morte
uma duas três e mais vezes
na íntima plenitude do ser
não há fórmula de síntese soluto
colagem final dos acenos todos
mas o tempo (os círculos concêntricos
de raio variável)
mas percorrer a vertiginosa espera
até onde remontam as águas que o desejo delas já
suspeita ou acomete.
2. a ante-memória turva
qual incestuoso amanhecer
no ar serena se (re)trai
acerca do silêncio quase nenhum algor
apenas a demanda obscurecida
dos olhos oblíquos indiferenciados
cálida ou perversa ciência sustém
a imensa espera pois
no limiar do tempo (na própria abordagem da finitude)
é que a torrente conflui
e o ágil porvir emudece
quem lhe retém a forma tacteada
intacta necessária aquela
apenas ciosa de um nome completo.
oh rescenda então a claridade da entrega
qual árvore insubmissa trespassando a rosácea
da transmutação derradeira
a nave do silêncio
desfiando sua poalha de oiro âmbar e bolor
e também essa incrível verosimilhança
em que se diz a refracção do indizível
avance e acometa a penumbra do dizer
liquefacção ou intensidade
é lá que a memória se faz corpo
num corpo outro que se estranha sua própria raiz
muito aquém da memória.
3. substância viva não o digo
- ce qu’on dit n’est plus –
coisa que tange readquire a luz a incinerada exactidão
não o digo
e repito a fala ou levitação antiga
que nem um só gesto comete que nem é gesto inteiro
assim miraculosamente extinto e de si redivivo
arco tenso de várias mãos realizado ele é
substância viva ou o que resta de seu batimento primeiro
quando a imersa rebelião das superfícies
intercepta qualquer continente naufragado onde
a rebentação ecoa total e reconhecida
indizível.
rodear-me pois de perversas alusões consumptivas
tactear a morte infinita no bojo da noite
que serenas e hábeis e secretas sonoridades
onde o amor reflui se compenetra sua íntima instância
é então no ar (apenas aquela sucessão de espessuras)
que se incendeia o poema
dói no próprio âmago do silêncio
a claridade assoberbada.
INCISÃO
«Se se prefere, não houve nunca um interpretandum que não tivesse sido interpretans, e é uma relação mais de violência que de elucidação a que se estabelece na interpretação. (...) ela necessita apoderar-se, e violentamente, de uma interpretação que está já ali, que deve trucidar, revolver e romper a golpes de martelo.»
MICHEL FOUCAULT
«Nietzsche, Freud e Marx»
Alma Mater
«Caesareas leges, et claros juris honores, dum decet
ipsa tibi quod decet aula dabit.»
Dístico de uma Aula da Universidade de Coimbra
anterior à refoma pombalina
idónea grande
esperada
as paredes incindíveis sobre
o legado da terra
a feição agravada parada tomada a um lado
a bater sombra nas lajes (tangência de sol?
fractura?)
garbosa de coroas e mitras
bafejando incenso e poeira num ranger vil de portadas
e as vozes/ilhas ladainhas que cobrem o espaço
reboam os aspectos finais redundantes
amor de pedra
com esquinas rectas e frias aos meus dedos
muralha limite-lugar
exacta e aceradamente disposto
para o crime.
O reino da estupidez
— Ciência Administrativa e Policial
aquele que critica
deve ser chamado à razão
questão de método ou bem talvez de hermenêutica
cite a melhor bibliografia autorizada
pp. 652-679 e passim
sorria muito use gestos largos dicção irrepreensível.
aquele que duvida
pode ser esclarecido
com um mínimo dispêndio de chá e dan cake
ou com um bom pontapé nos tomates
ingratus unus omnibus nocet.
mas aquele lá que interroga com
olhar fixo
e um desenho equívoco nos lábios
sem mercê sem quartel -
esse deve perecer.
Distante
«You’d better run and join your brother John»
GENESIS
‘The Lamb Lies Down on Broadway’
as horas as horas
como sombras
de um silêncio antigo para lá da memória
a minha carne dispersa
retém um nome acometido nas ruas -
thorem
meu irmão john espera-me
nessa noite de todas as viagens
ancoradas por um sopro no tempo
espera-me lá muito longe e nessa estranhada lonjura
é o seu ombro que espera o meu
os seus olhos que procuram nos meus
reler a mesma indeclinável distância
parto agora
é que as luzes da cidade se extinguem
e os meus passos ecoam por dentro das casas.
Domicílio vigiado
amar é difícil (risco um fósforo
o fogo estala monstruosamente)
requer muito esforço continuado de abstracção
como andar de bicicleta
já tentei sangrar os dedos com uma faca
as ilusões desfeitas
correm as lágrimas ao rio na infância do mundo
bobby sands e o seu magnífico esqueleto didáctico
a malta no soweto a dançar e a rir
o sentido do tempo.
que é ser-se uma casa devoluta e indisponível?
a insónia macerada de pés nus
em tábuas velhas e infectas
abjecta circunvagação de jornais livros e aguardente
amar é difícil - quod erat demonstrandum
lá fora devagar a chuva cai
(o cigarro arde as têmporas explodem)
e sacode-me a face como um látego.
Apontamentos de antropologia
«Eles já deviam saber que nós somos duros»
Adepto do Liverpool F. C.
após o massacre de Heysel Park
a morte circula na grande-área
viaja solta numa obsessão geometrizada
algures na bancada um petardo luminoso
a multidão imola-se em fumo
e é o jogador da camisola amarela que domina
ele parou agora
na ponta direita e centra largo sem oposição
a bola explode na trave
com um gemido brutal o estádio agoniza
deus é uma presença/ausência inteligível quase concreta
um diálogo no sangue dos heróis.
Broken bottles under children’s feet
a noite ergue-se num continente envelhecido
vejo beirute na tv
amanhã estarei talvez em durban
la paz belfast seul
há uma cidade real no meu pensamento
com toda a ficção do mundo
com redes de arame protectoras
ratazanas em terraços suspensos
a suja metralha nas ruas
o próximo bloco que se alonga por
um passo a mais no asfalto.
O numero da besta
1. a grande rosa nuclear tem carinho pelos seus filhotes
submarinos trespassam a sétima avenida engalanada
no silêncio da pradaria os silos
aí se oficia ao deus défice orçamental
oh águia rediviva da civilização do colesterol
in god we trust in god we trust in god we trust
homens grisalhos assentam os bonés com rigor
o cavalo de picasso pasta sem fome já
2. a doutrina dissuasora recebe flores no seu camarim
unanimidade da crítica
solid gold
o investimento seguro e cumulativo
as ilusões pequeno-burguesas são espirros na multidão
o cavalo de picasso é gordo e sacode as moscas
3. rasga-se o sol em mil abismos de enxofre
as verdes cabeleiras da raiva se entumescem
em alucinação e estupor colapsam as sínteses
e o vento vem varrer a praça dos vilíssimos remorsos.
O ídolo da juventude
estou morto sobre um piano abandonado
agoniado de jazz
descrente de sonhos que não me sonhei sonhar
reincidente nesta lucidez de estar farto de moscas
vou entrando nas répteis represas do presente
rasgando anjos de papel com as botas e os punhos
(o sangue cai sempre sem remorso
num silêncio incorruptível)
estou vivo num mar de plástico e excedentes
e o refrão soa distante como não haver mais distância
expande-se e reflui e explode nas minhas têmporas
no future no future no future
ergo a face o sorriso acoplado
leviathan cuspindo no chão
então digo
é meu o século do terror sem limites.
FMI fotografado por B. B.
o cobre e o tungsténio oscilam
em lima e também em lusaka
a fome e a raiva são espancadas nas ruas
agitam-se os agentes agiotas da banca mundial
agir agir agir já
murrow park washington d. c. é onde
os deuses burocratas de axilas suadas e gargalhadas prolixas
treslêm e classificam cataratas de papel desdobrado
separam a vida da morte
têm a tensão arterial rigorosamente vigiada
e relatórios médicos detalhados ao fim do mês.
Introdução à teoria das catástrofes
o quark provavelmente é cindível
e nunca haveremos de perceber grande coisa
da economia da matéria informação entropia calor
não procures a beleza resiste
a vozes que não te chamam nem escutam
cresce e organiza-te.
em verdade vivo numa era de trevas —
dizia o b. b. (1898-1956) —
uma palavra que não seja dúplice é um absurdo
as ciências propõem jogos de azar
os políticos sorriem
e uma nuvem pousou no coração da Europa
carregada de pensamentos secretos que
se partilham já sem horror.
springsteen em minneapolis e a juventus
no communale há uma vibração eléctrica no ar
sinto-a passar ela
sacode o coração das multidões
e este bate em uníssono brutalmente
sem sentido.
Sangue árabe
mil bênçãos mil manhãs radiosas
para ti meu irmão oxalá
as mãos postas
o mijo secando nas paredes da medina
a grande rosácea do ser vela na deriva dos povos
servidão orgulhosa em seu fétido destino
em tento à desmedida grandeza de um deus sem rosto
o sangue ao canto da boca
agressão sufocada em lágrimas para lá da esperança
a amarga face contra o chão uma e outra vez
— não compreendo.
oh abre para mim as tabernas dia e noite
que eu cresci a odiar a escola e a mesquita
meus pais e vizinhos amaldiçoam-me os passos
vou-me embora para al-andalus
de olhos secos os pés nus bem firmes no caminho.
Abril português
sombras e navios
não existem
uma utopia adormece no meu corpo
os amigos partiram
derramando no cais as mesmas velhas promessas
então adeus pá (não houve acenos)
uma cadeira quebrou-se ao peso
dos risos e abraços perdidos
para sempre
o amor é esta casa fechada
e sabes bem do que te falo pá.
em abril
dizer-te palavras que ficaram
como marcas de copos sobre a mesa
tocar-te levemente
é a pequena possível lucidez.
Por Antígona
«Não se consegue perceber se se treme de febre ou de frio»
Carta de Ulrike Meinhof na prisão
abaixo o capitalismo
disse ela
derramando algum açúcar no tampo da mesa
os amigos muito juntos tocando-se
sorriso contra sorriso
partiríamos então numa manhã inexcedível
descalços e eufóricos as mãos incendiadas na desordem
em busca de um norte para pousarmos as mochilas
ficaríamos afinal a face contra o vidro
gotas de chuva ziguezagueando na memória —
die eiserne maske der freiheit.
os criados equilibram bandejas de martinis
passam as consciências municipais nos seus fatos riscados
a alemanha no Outono
hans martin schleyer deve morrer
ainda a razão do estado.
Nota para um suicídio preterido
o monstruoso equívoco
já pode ser cremado
numa imensa roda de esconjuros e anátemas
as cinzas ficarão
entregues à brisa célere do esquecimento
ou do compungido remorso.
voltará
passados noventa dias
será rei e profeta aclamado na ágora dos mentecaptos.
Na morte de Valentin González (El Campesino)
suores frios de noite
os filhos da puta berram as obscenidades do seu chefe maneta
medo aos touros
quando eles oscilam a cabeça e eu não sei
o comprimento exacto da investida
as minhas mãos tremeram naquela tarde
na planície aberta e seca como um remorso.
estive longe depois vivi muito o sangue
tornou a correr veloz nas minhas veias
— não me apunhalaram.
Para o Smolny
«Atirava a cabeça para trás, depois inclinava-a sobre o ombro enquanto metia os dedos nas cavas do colete, debaixo das axilas. Nesta posição havia nele qualquer coisa de espantosamente divertido e cativante. Parecia um galo vitorioso (...). Gostava de coisas divertidas e ria-se com o corpo todo, verdadeiramente inundado de alegria.»
MÁXIMO GORKI
‘Lenine’
o homem é nada — apenas a carcaça do tempo
esse precário equilíbrio e tensão de músculos
livro e espada
uma silhueta recortada contra o vento
na perspectiva
a cavalaria inimiga cruza com ele
o cabelo tingido a gola alçada
um olhar lúgubre preso à esquina do passeio
ele vai entrando entrando nessa noite incendiada
e passa para o outro lado do tempo
e é o próprio tempo reescrevendo-se pelo seu passo.
Damné par l’arc-en-ciel
algo portanto nos prevenia contra a beleza
e o levou a escarrar a face do anjo
ele caminhando durante horas dias sem sombra
naquele seu passo de potro bem erecto
feroz como lâmina desperta pelo ciúme
riscando de azul a linha dos campos
já despertos pela poalha de oiro do sol
o horizonte abrindo-se então magnificamente sobre visões irisadas
de monções âmbares raros febres distantes.
Novas investigações sobre Caim
alcool e violência
alguns episódios psicotrópicos
podem fazer de um homem santo tal
bogart em knock on any door ( o crime não compensa)
o risco o riso o rio
não temas os sinais as quantidades mensuráveis
escarnece de deus mata teu irmão
e teu amor nele
o sangue correu sob muitas pontes já a paz
acedeu às ruas escorada no medo
em chernobyl vi um homem evaporar-se num segundo
morre-se de fome ou imunodeficiente
e a prudência das cidades diz que se mate mata-te pois
essa culposa ignorância do crime revive entâo
coincidências que perduram
do not go gentle into that good night
ferido peleja de bruços ainda
morde e pragueja.
Elucidatório final sobre o sexo dos anjos
Para a Sra. Elisabeth Badinter
têm sim senhor eu vi
serve-lhes de leme ao que me apercebi
se estão em repouso o instrumento recolhe
e dá lugar a um pequeno orifício róseo e carnudo
por certo já os encontrou
são como aqueles sacos de nylon de recolher em bolsa
(tenho um
mas está estragado).
quando se juntam aos pares
em sua angélica conjugalidade
penetram-se cada um por sua vez. as harpas trinam enlouquecidas
alheadas da prometida cólera de Jeová
video meliora proboque deteriora sequor
por toda a extensão das nuvens
corre um rumor de galhofa dos pequenos querubins.
Sida
Sob patente alemã em nome de um Hans Magnus Enzensberger
não toques não te envolvas
jovem amigo
vêm tempos de ficar quieto ao abrigo
da virtuosíssima caspa dos censores
não olhes não esperes não procures não
não mexas em nada
faz cálculo trigonométrico a horas certas
podes rever os teus ídolos no ecrã gigante
então recorta o cupão do semanário
e a sorte pode ser tua se fores ousado.
dies certus an incertum quando
assim produz seus efeitos
o assassínio esperado de rainer werner fassbinder
detido lá rente ao chão
um corpo deixa de fazer assim tanto sentido.
As chuvas ácidas
cola-te ao teu acto tudo permanece
e pensa o que tudo é diverso e possível
as mãos colhem os frutos por nascer
não no tempo - o espaço em retroacção -
mas em acto pensa
como é improvável esse teu ser aqui e agora
sempre a hipótese da negação lá onde não é o teu acto
cola-te ao teu acto e não actues pensa
o que tudo não é e já foste.
de noite pela estrada larga
o viajante sem sombra
na américa todas as causas são equivalentes
newton trincando a maçã
bem aventurados os crentes mas
de noite pela estrada larga
o céu carregado de nuvens que eu suspeito.
A DISJUNÇÃO DO INSTANTE
«O valor de todas as coisas é a sombra que elas projectam, a hora efémera que elas tiram à massa confusa do Tempo – a hora que se destaca, e tem relevo, e persiste, e reage contra a maré do Tempo.»
TEIXEIRA DE PASCOAES
‘O Bailado’
Perigo de vida
«There’s a party in my mind,
and I hope it never stops»
Talking Heads, “Fear of Music”
as mãos no presente não se iludem
tremem os dedos aturdidos
os cigarros são vozes demasiado escutadas
confundem-se seus solilóquios sempre lentos e acerados
degolar a irmã não é excitante
o copo rebola de riso pelo chão
velhos pederastas fizeram-me propostas nada obscenas
tornei a ser sovado na rua
com naturalidade
the grasshopper lies heavy the grasshopper lies heavy
subir escadas talvez onde o irreconhecível
e pendurar-me nos espaço com os headphones postos
vozes roucas estragos visíveis
saltar de combóios em andamento é fácil
quando se é jovem os avisos perdem-se
no diálogo dos gestos e asserções lugares incomuns
resgatar afinal
a imediata solidão própria nem muito fiel
a precaridade do ser
não há árvores imarcescíveis ruy belo.
Queixa das almas jovens incensadas
o telefone não tocou - horas recidivas
lembram recados velhos e inúteis sobre a mesa
sequestrados do presente
sem tempo nem compreensão do tempo apenas
o sempre retomado labirinto mental
a putrefacção de uma espera que
do amor só é profíqua existe apenas
sua crueza incisa.
o viver mais ou menos
o borrão no papel traço inteiramente inútil
o poema inacabado e absurdo.
A terrível manhã
«Que terrível manhã, que trágico descobrimento de
morte e de ódio se está preparando nessa infância.»
Miguel de Unamuno
«Visiones y Comentarios»
o crepúsculo desce
nesses hábitos de viagens infindas
a noite afaga os mitos
de que a revolta é sentido e abrigo
pão negro vinho fugaz para a memória dos vivos
ávida e inconclusiva
vem então o vento trazer
esse nu amanhecer dos corpos na praia deserta
expostos enfim à doce volúpia dos cães
e do esquecimento.
Para Elisa
desenhar um corpo por delito
e preenchê-lo lábio a lábio cruelmente
despidas as margens de côres e aspectos banais
a cisão mais grave suspensa
no silêncio
onde cabem talvez os teus passos certas horas
a demora sofrida das palavras
na pele seca e já riscada
pela súplica do sal
o gume da boca sacrificada
o grito sob a fractura dos blocos.
Hashish
a cabeça bate lateralmente (um som cavo)
as pernas flectem no esboço de um passo
vagas alternas vibram no ar
a luz multicolor e caleidoscópica
modela algo que é ainda um espaço posto que
rarefeito (ou sintético?)
ouço música tocar (possivelmente john cale)
longe lá ainda
a percepção inquieta de outros ruídos sinceros e afáveis.
Der durstige mann
a horas impróprias debruçado ainda sobre
as cinzas de um tambor
o luar de setembro
toldado inflecte sobre ele uma crosta
em sopa fria
tarde demais talvez
o desejo envelhece sem perder o azul mas
essa só noção de azul inamovível ainda
no ar se vai recompondo
inteira e madura como uma tese
grandes são os desertos
o homem parado na beira do caminho
aspirando o pó do caminho
o seu peso específico.
Não
debruçado sobre
o papel pedaço descorado
a letra oblíqua
a descrença
a grande essencial náusea das palavras
ponto.
Europa
sentes o vento no sopé da estátua
desdizendo o sal
de que foi feito o excesso e a renúncia
a gasta memória de preces demasiado escutadas
cavalo enlouquecido
pelo orgulho de empédocles -
ogni viltá convien che qui sia morta.
Ouço a respiração densa dos séculos
os homens calcaram o seu próximo calcularam
essa incerta rota do ouro e do cânhamo -
fusão das calotes na imensidão
a cotovia bailou com o urso
- doía a semente das gerações lançada
na terra ferida
pelo teu riso de peste e excomunhão
águia bêbeda de amor
lúbrica e cúpida meretríssima senhora
da pólvora e das insígnias
da razão.
naufragaste com sepúlveda
numa impremeditada nudez própria agora
selling england by the pound
acaso te reconheças por imagens cruas
e a serpente da astúcia troçou do teu meio-dia
num lacht die welt der grause vorhang riss
die hochzeit kommt fur licht und finsterniss.
Saudade
árvores rubras te chamam
já as carpas jazem confusas e submissas
e tu não partiste ainda
aguardas a vinda do irmão na rota oblíqua das aves
o pão esquecido na mesa pobres e excomungados
ficamos mais juntos no silêncio
denso quase táctil.
Os loucos morrem fiéis à terra comum
roda e tempo as duas faces de jano
movimento perpétuo
o galo cantou agora e
na praça
acende-se um calmo desejo
amanhecer e
viagem de siegfried no reno
oh repete repete eternamente
essas velhas canções do meio-dia.
Hora
1.
espreitei a morte nesta cidade
a cortina balouça
os chacais esperam
a crua ocasião do sangue e do saque.
2.
amigos e inimigos
todos se afastam com terror
há um presságio gravado na sua testa
não consigo decifrá-lo
a cotovia no varandim
o vento corre célere cada vez mais cada vez mais
diz morre
diz morre
morre.
Hölderlin em Paris
1.
essa criança robusta de olhar claro azul líquido
amante simples de estranhas coisas
chegou lívido leve camisa rasgada o cabelo erguido em chamas
as botas sujas do estrangeiro -
docemente
o seu sangue gotejava nas lajes
e ele entrava devagar na luz da infância e da ideia.
uma dúvida não partilhada
pode ocasionar um dano trágico
fiéis à terra restemos sobretudo fiéis à terra
mão recta e enxuta
vai tecendo o advento dessa cidade pIena
a canção dos heróis o éter sagrado
que há-de ser dos justos e dos loucos
esta demanda apenas
diotima suspensa no tempo
o raio feroz água brilhando entre os dedos
gross und unbezwinglich sei
des menschen geist in seinen forderungen
johann friedrich desmaiou perto do sena
- apolo feriu-me -
qualquer velho cão pardo cheirou-o e afastou-se na margem.
2.
em verdade ele era pobre e sem malícia
em verdade ele conheceu apenas essa mais íntima metáfora do conhecimento
em verdade ele foi a infância dolorosa do uno
einstein sorri que não há éter algum
1905 questão de espelhos e imagens tempos divergentes
scardanelli e os punks
em berlim cai a última neve dos impérios alheios
e a verdade é uma bela noiva com toda a virtude
de jamais se ter entregue senão por dinheiro.
3.
sulcos viagens
a pele seca de promessas e excessos
de que um amor velho expele já os justos sinais -
essa respiração irmanada de todo o ser
na inteira comunhão do que eternamente ao ser se volve -
oh vem ver o mar deste pontão firme na terra
o anel no bico da gaivota
vem ver devir continentes indivisos
a longa espera quais solenes frutos a haver
como nada se sobrepõe a si mesmo
a final.
Décadas de paz
À memória de Jorge de Sena,
com um certo temor.
eles vêm matar-te companheiro
e a questão é: para, quê o grande degelo?
a calote tomará outra forma não
necessariamente outra massa
os amigos farão odes às amigas os gatos
não temerão mais a lua com a sua reverberação insana
e veneza será salva claro tudo isso é certo mas
irónico silente o dedo do tempo
esmagar-te-á
e não poderás recomeçar o que nada acaba tu sim
cada homem tem ensejo para um só grito na treva natal
antes de recolher à lama
mortais e imortais - todos mentiram.
Metafísica insustentável
era outubro e toda esta
água a correr entre as pedras
o musgo era doce um tremor
inebriava os dedos álgidos ao toque.
vi o sol reverberar
nas altas copas uma espera irónica
bailava o vento silente e raso entre as ervas.
O GRANDE REBELDE
(Fragmentos)
«Cresce e fala na tua boca e crescem nas tuas mãos, cadeias.
Arrasta para ti o Universo, arrasta! Ou serás tu arrastado.»
HUGO VON HOFMANNSTHAL
ele vinha do sul ou era assim que o víamos
por essa estrada suspensa do azul
a espargir o terror e o assombro dos murmúrios
quando a sua sombra se erguia do chão
e tocava a haste mais pura do silêncio.
no seu olhar líquido
uma pertinaz busca de cores e continentes
a partilha dos sorrisos
toda a intensidade dos gestos a nitidez dos limites
eram com ele à sua chegada
o rosto breve
instante suspenso do acaso.
jaz sobre a sua espada de sílica
distenso a cabeça intacta pendida para o poente
o peito aberto sobre a terra num abraço pastoso e lento
vinde harpias beber do seu sangue
que os seus inimigos não tardam
a retalhar o seu corpo para o pasto das aves
está morto.
há um qualquer rumor novo nas cidades
nas árvores
correm notícias sussurradas
e uma vez mais a mesa está posta para ele.
(...................................................
....................................................
............................................) osa infecta
já madura de verdades digladiantes
su des halben zu entwohnen und
im ganzen vollen schönen resolut zu leben —
o velho de weimar não tinha astúcia
subiu aos céus numa revoada de querubins gorduchinhos
transformá-lo transformá-lo disse
o caçador sem repouso
trilhando o seu rasto de tabaco sobre a página
insone pelejo com as unhas
vai-se erguendo a manhã já afronta os olhos
que buscais o dardo da manhã
minha mais pura dádiva dardo feroz
rasga a cortina do medo
assim iremos eu e o JLRG
no elmo empenachado a bola de terra dos heróis
— how about it ez? —
o sangue desperto
lágrimas caíram aqui febre
despojos muitos
cabeça a descoberto o chacal atento
senti-lhe o hálito
os ombros contra uma porta que não abriu
eis porque sou então «trágico» refractário
à atenção dos críticos aduladores de sintagmas
porque o tempo vem em que nenhuma palavra será poupada
à demência dos agrimensores
porque o tempo vem em que a tua voz soará falsa aos teus ouvidos
como um eco maligno e irrisor
o tempo vem para a barbárie neo-humanista
o jusnaturalismo a eficácia performativa
o irredento fedor dos cadáveres expostos por delírio de razão
tempo do assassino homme de lettres
acolitado por acessores a aderecistas vários te dirão
o que te forçarás a acreditar por temor de ti próprio
calar-te-ás então ou expelirás a propósito
tuas novíssimas utopias sintéticas salvação pré-programada.
(…………………………………..
……………………………………..)
a chuva caiu ontem todo o dia
faz frio
acorrem as danças esse maldito som de Maio
coros e cores de quanto se foi incauto
dessa vertigem revel riso à taça transbordante
eu iria buscá-la a uma estação creio que em Coimbra
recordo-me de certo cheiro a lavanda (ou maçãs verdes?)
os dedos na sua saia ela sorria
e cedia
os olhos muito abertos feridos.
estive em alguns sítios pouco recomendáveis
fui estudante moço paquete marinheiro jacques viu-me
dans le port d’amsterdam dans le port d’amsterdam
a beber vinho arrotar alto e mijar às portas
perseguido pelos cães
conheci então querelle em ajaccio
ofereceu-me tabaco sírio e anfetaminas
pousou-me a mão no joelho
toquei sax tenor num clube de jazz
ganhei boas maquias à lerpa
atento astuto o cigarro na boca descaído
perdi uma eleição para deputado municipal
perdi também a honra ocasionalmente
escarnecido escarrado e calado
as pernas trémulas o gelo na nuca.
tive grandes esperanças e amei «por actos certos»
certos porra
como te odeio a ti fédor mikhailovitch
lobo triste o pelo hirsuto e coçado
aí na velha foto remoendo praga e peste a monstruosa providência
estarás tu certo?
(…………………………………..
……….) de polir as unhas do descontentamento
mas era então o mês do grande degelo
ele desceu ao horto com um grande arco na mão direita
falou ao cão e ao açor
e pousou o arco numa rocha junto de um regato
bebeu então (……………………………..
………………………………………………
…………………………………………………..)
quando regressou interrogaram-no sobre
de que era feito o arco da aliança de todos os seres
mas ele não ouviu a pergunta absorto
nos seus pensamentos hialinos.
baixou-se então lentamente e tocou a erva com as mãos
olhou o sol durante o que nos pareceu muito tempo
embora pudesse ser apenas um segundo seu
finalmente sorveu o ar como que desperto
tomou as suas armas e partiu pela floresta dos doze caminhos
já escurecia
nunca mais alguém o viu ou teve notícia dele.
(……………………………………
………………………………………
…………………………) dade que
dessas frondosas árvores se fizeram fósforos
agora húmidos do suor de muitas esperas
escrevi pois a seguinte
Carta Para Atirar ao Mar Dentro de uma Garrafa
Quando Encontrar Uma
deixei de ler por completo
rio agora com muito menos frequência
viajo do quarto para a sala
da sala para o sótão
depois volto ao quarto e olho o tecto.
o poder acha que sou um rapaz com interesse
deu decerto instruções ao comandante distrital da psp —
que não lhe toquem!
há muitos anos que ninguém me toca
e a publicidade na tv serve-se de mim para vender um chocolate
e também um desodorizante creio
sinto apenas um amolecimento
de estearina por entre meus ralos cabelos
— as coisas do espírito portanto —
definhar a vontade
nesse caldo tépido das coisas já vagas e indistintas
vou talvez morrer neste ano
ou não
mas este será o meu último livro.
NOTA DE EDIÇÃO
Os poemas que se compilam neste volume foram escritos entre 1983 e 1991, sendo visíveis em muitos deles as marcas e o pathos específico de uma era passada, aliás facilmente identificáveis. Julgamos mesmo que a poesia, por mais que busque acercar-se do absoluto e do inominado, será sempre o produto desse atrito entre a nossa carne mortal e o tempo. Uma primeira versão, posteriormente alargada e refundida, das três primeiras secções deste livro, foi galardoada em 1986 com o Prémio Manuel Laranjeira de poesia instituído pela Câmara Municipal de Espinho, entidade que entretanto se desinteressou pela sua publicação. Alguns poemas foram já publicados na revista Vértice (série coimbrã), suplemento Ler e Escrever do «Diário de Lisboa», suplemento dominical e revista Encontro de «O Comércio do Porto», e ainda na bela e horrorosa Última Geração.
O autor deseja expressar os seus agradecimentos a Wolfgang Goethe, U2, Ruhollah Komeiny, Carlos de Oliveira, Dylan Thomas, Phillip K. Dick, Jacques Brel, Jorge de Sena, Bertold Brecht, Richard Wagner, Vergílio Ferreira, Genesis, Fernando Pessoa, Dante Aligheri, Karl Marx, Hans Magnus Enzensberger, Johann Christoph Hölderlin, Friedrich Nietzsche, Sex Pistols e Arthur Rimbaud. Os títulos, versos ou fragmentos de verso em itálico são citações suas. A muitos mais deve ele algo, naturalmente, mas terá de dirigir-lhes um aceno muito genérico.
O autor persiste em respirar, brutal e inconsideradamente, mas vai agora concentrar-se sobretudo em envelhecer sem mais sobressaltos.
Na capa de Exílio de Caim reproduz-se parcialmente uma fotografia de Leonard Freed, extraída de New York Police (Photo - Notes, 1990). Deste volume tiraram-se, durante o mês de Setembro de 1992, 300 exemplares, na Tipografia Freitas Brito, Lda., Rua do Ferragial, 12 a 20, em Lisboa.
Lisboa, Outubro de 1992
|