Um sintoma eloquente do fracasso rotundo dos regimes do “socialismo real”, é o estado de maciça regressão política, ideológica e cultural de que as suas massas dão provas. Após várias gerações de incubação, onde está então esse “homem novo”? Debate-se nos campos da vergonha, do estupro, do rapto, do massacre. De Sarajevo a Tbilissi, a Baku, a Grozni, a Chisinau, a Rostock, a Timisoara, a Bratislava. Por todo o lado, o punhal sebáceo do jingoísmo, do caudilhismo e do anti-semitismo. Não é que “eles” sejam mais bárbaros do que "nós". Em qualquer sociedade de exploração, a barbárie está sempre pronta a irromper ao primeiro sinal de ruptura nos seus precários equilíbrios. Afinal, o sistema tem as suas fundações bem mergulhadas na selvajaria mais extrema: a exploração. Só a sua superfície é que oferece um certo polimento, trabalho de gerações de escritores, jornalistas e professores de filosofia. É claro que só se pode oferecer estes requintes uma sociedade burguesa com um certo grau de acumulação capitalista consolidada. E, todavia, é sempre extremamente ténue todo este banho lustral de boas maneiras e de “civilização”. Se há um qualquer problema na “casa das máquinas” (lá onde se gera a mais-valia), em pouco tempo veremos os nossos ideólogos liberal-humanistas espumando de raiva assassina.
Enfim, o problema com os países de “Leste” não é de falta de maneiras. É uma questão de atraso na problemática histórica e na agenda ideológica com que se debatem as suas elites, no processo de consolidação da sua hegemonia. Tudo se passa como se os conflitos próprios dos anos 1920 (dissolução dos impérios, ascenso das burguesias nacionais) tivessem aí ficado congelados durante estes últimos setenta anos. Donde esta insistente sensação de déjà vu que evocam todos estes pogroms, todas estas limpezas étnicas e tomadas de reféns. São as dores de parto do Estado nacional burguês. Um processo que, no Ocidente, estava em grande medida concluído por volta de 1870, mas que, a Leste, ficou a marcar passo devido à debilidade das burguesias ascendentes, face aos aparatos aristocráticos e imperiais turco, russo e austríaco. Debilidade que se manteve ainda no período entre as guerras (só a Checoslováquia teve um certo desenvolvimento industrial e conheceu brevemente uma república democrática burguesa) e, finalmente, a partir de 1945, se submeteu mansamente à tutela do Exército Vermelho ou dos partisans de Tito. Doravante, seria o aparato estatal a comandar administrativamente o processo de acumulação capitalista.
No momento em que é varrida e desmantelada a tutela estatal sobre o capitalismo, é inevitável que a burguesia retome o jogo onde o tinha largado: na definição dos limites “nacionais” para o seu domínio. E uma primeira constatação se impõe – ela reapareceu com uma visão míope e mesquinha. Os limites nacionais desenhados são cada vez mais estreitos e paroquiais, o que só reflecte afinal a miséria da sua capacidade acumuladora e, consequentemente, a estreiteza das suas ambições espaciais. Numa altura em que, a Ocidente, se começa a pensar na superação do conceito de nação, no "Leste" a luta encarniça-se entre tribo e subtribo pelo controlo da próxima colina e capela. É um nacionalismo de mercearia face à politica ocidental das "grandes superfícies". E esta é que é, a meu ver, a medida do atraso destas formações sociais. Sob a retórica do homem universal socialista, estava afinal um provinciano ignorante e avacalhado, preso à sua mesquinha singularidade. Paralisado no seu medo pânico do desconhecido, ele é capaz de se deixar arrastar para as maiores infâmias por um qualquer apparatchik reconvertido em líder nacional.
Não sou daqueles que acreditam em sinistras teorias conspiratórias do imperialismo contra a ex-Jugoslávia. O imperialismo poderia certamente ter interesse em desmembrar um adversário ou rival poderoso. Mas esse não era, claramente, o caso da Jugoslávia. Fora isso, a sua apetência é geralmente mais dirigida para os espaços abertos do que para o trato com fronteiras sucessivas. É que, daquele modo, a penetração das multinacionais faz-se já com a garantia de um mercado mais alargado e uniforme. Esse foi, aliás, o primeiro reflexo dos E.U.A. quando, no início da crise, apelaram à preservação da unidade jugoslava.
Os principais factores na desagregação desta nação em estaleiro foram, a meu ver, endógenos. Quando o seu aparelho estatal se desagregou – em resultado da gravíssima crise económica e da capitulação ideológica generalizada –, o movimento centrífugo foi imparável. O grau débil da sua acumulação capitalista operou então um curioso efeito que pudemos ver também operar na ex-Checoslováquia. O desenvolvimento desigual, ao invés de gerar um movimento expansionista em direcção às regiões mais pobres, gerou antes um movimento de repulsa e repúdio delas. As burguesias das regiões mais avançadas procuraram desfazer-se apressadamente dos seus primos pobres, para mais rápida e credivelmente negociarem a adesão aos grandes espaços imperialistas. Dada a sua debilidade, preferem mil vezes a sua subordinação e compradorização imediata (e a segurança que lhes advirá da adesão ao espaço institucional NATO/UE) ao risco de uma estratégia de desenvolvimento autónoma e autocentrada.
É aqui que entronca directamente o desmembramento da Jugoslávia e a responsabilidade que nele teve a única potência que, de facto, a encorajou e a ela se mostrou abertamente favorável: a Alemanha. Houve, por parte desta, o claro propósito de separar os seus servos fiéis para um lado e os “feios, porcos e maus” para o outro. É a política dos círculos de segurança, com que Berlim pretende cimentar a sua posição no coração do velho continente. Por seu lado, as burguesias eslovena e croata quiseram mostrar-se “bons alunos”, não à maneira de Cavaco, mas onde eles realmente se revelam – a fazer o trabalho sujo. Todo o folclore histórico em que a questão aparece depois envolvida – o desfiar interminável dos ressentimentos multisseculares – é mera retórica belicista, combustível para o massacre. Estou um pouco cansado das visões “profundas” que teimam em remontar tudo à batalha do Kossovo, ao devchirmeh e às favoritas de Solimão, o Magnífico. Este é realmente um daqueles casos em que o excesso de cultura histórica aparece ao serviço do disparate.
Há outro aspecto curioso no conflito jugoslavo. Se bem que o imperialismo norte-americano não tivesse nada de muito sério em jogo nesta guerra, ela acabou por se lhe impor de uma forma irrecusável. Isso foi por um lado fruto da insistência mediática num problema, que, pura e simplesmente, não se ia embora. Prova de que também os mass-media têm a sua “autonomia relativa” e alguma hipótese de influência real sobre a política. Algo, por fim, teve que ser feito porque a própria ONU estava a ser seriamente posta em xeque e o Tio Sam ainda espera muitos e leais serviços desta tão mal amada instituição.
A intervenção ianque foi também a hipótese de infligir à Europa (e, acessoriamente, à Rússia) mais uma humilhação, agora mesmo selada com requintes perversos na questão da eleição do secretário-geral da NATO. O espectáculo lamentável da impotência europeia foi tão confrangedor que perdurará por décadas. E não é certamente a patética exibição do pénis nuclear gaulês que afastará esta impressão. No momento em que, encerrados na base militar de Dayton, no Ohio, os caudilhos jugoslavos são forçados a assinar a paz, o mundo inteiro é testemunha de que a stars and stripes é a bandeira que flutua mais alto. Não há canto do globo terrestre em que a paz e a ordem se estabeleça e perdure sem a vigilância e o empenho de Washington. As outras “potências” são afinal meros capões engordados à sua sombra protectora. E isso paga-se.
(*) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 52 (novembro-dezembro de 1995).
O imperialismo e a Jugoslávia (**)
- demarcar as questões
Quando comuniquei à redacção da P.O. que me propunha escrever um artigo sobre a situação jugoslava, a resposta que tive foi favorável. Posteriormente, disseram-me que havia outro trabalho (de que obviamente não tive conhecimento prévio) com uma perspectiva algo diferente e que até resultava interessante publicá-los juntos para confronto de posições. Assim aconteceu efectivamente. No nº 52 (Novembro/Dezembro de 1995), ao meu "Sobre a questão Jugoslava", seguia-se "A Partilha da Jugoslávia" de Manuel Raposo, incluindo amplos excertos do livro "Da Jugoslávia à Jugoslávia" do jornalista Carlos Santos Pereira.
Esta coabitação foi-se mantendo, pacífica pela minha parte, até que Manuel Raposo (M.R.) resolve abrir hostilidades na última P.O. com o seu artigo de polémica "Questão jugoslava ou questão imperialista?". Foi já depois deste que reli então os anteriores artigos de M.R. sobre a Jugoslávia. Não sendo embora da minha iniciativa, a lide tem um objecto legítimo e até do maior interesse, o desafio está aceite e as sortes estão lançadas. Infelizmente, antes de entrar propriamente no debate das questões, vejo-me obrigado a remover do terreno o óleo e detritos vários que M.R. para ele lançou, porventura inadvertidamente (?!!!) e embalado com a sua própria argumentação.
Assim, é no mínimo fantasiosa e tola a pretensão de M. R., expressa nos últimos parágrafos do seu artigo, de querer inferir das minhas posições, por degraus sucessivos, um apoio à intervenção da N.A.T.O. e à participação portuguesa nela. Com procedimentos destes, não há debate que valha a pena. As visões "profundas" e as teorias "conspiratórias" não são nem foram dadas por mim como posições extremas (conciliam-se aliás muito bem, p. ex., no livro de Santos Pereira, pelo que eu conheço dele) de que eu me demarcasse através de qualquer "via intermédia", centrista em suma... Tudo, uma vez mais, produto integral da febril imaginação de M. R..
Um pouco antes, M. R. procurara insinuar que eu sou talvez um europeísta encapotado, já que "lamentava" e me sentia "confrangido" com a "impotência europeia" (descrevendo o duelo inter-imperialista suscitado pela agonia jugoslava, eu escrevera: "o espectáculo lamentável da impotência europeia foi tão confrangedor que perdurará por décadas"). Devo então talvez esclarecer, para mentes mais refractárias ao recorte irónico de uma frase, que a "impotência europeia" não me incomoda nada. Pelo contrário, só me dá alegria. Em matéria de lutas inter-imperialistas, a minha posição é e será sempre a do derrotismo revolucionário, propugnada por Lenine.
Resta esclarecer, com toda a paciência, que eu não acho que os povos jugoslavos sejam mais bárbaros ou selvagens que quaisquer outros povos europeus. Os "fleumáticos" britânicos ou os "requintados" franceses, postos naquela situação, fariam o mesmo (o que aliás já provaram e continuam a provar). Muito menos acho, naturalmente, que alguns de entre os povos balcânicos sejam mais "civilizados" que os outros. Isso é apenas mais uma "leitura" absurda e provocatória de M. R.. Como M. R. deve saber, todas as populações humanas são igualmente desenvolvidas, do ponto de vista biológico. Socialmente, o que há a dizer é que todos os povos que vivam sob o império das relações de produção capitalista - no centro ou na periferia - são por igual avançados (ou atrasados...). Quer dizer, somos todos razoavelmente selvagens, segundo o império das circunstâncias. O que eu disse foi, precisamente, que a circunstância histórica perante a qual o povo jugoslavo está hoje colocado é de um tipo arcaico. A culpa por isso cabe ao congelamento da História exercido, primeiro pelos impérios do Leste europeu (austríaco, turco, russo) e depois pelo "socialismo real", sim senhor. Mas não é por isso que um povo ficará mais "atrasado" (não existe qualquer "memória colectiva" - mito romântico burguês - que vá somando e sintetizando as experiências históricas de um povo). Fica é sujeito a ser colocado perante situações e encruzilhadas que outros porventura já superaram.
Imperialismo: o sistema
Posto isto, vamos então ao cerne do debate - o imperialismo. Mas de que falamos, afinal, quando falamos de imperialismo? Antes do mais, imperialismo é um conjunto historicamente determinado de relações económicas, políticas e ideológicas que hoje se impõem a todos os povos do mundo. É a forma própria do modo de produção capitalista uma vez atingida a plenitude da sua expansão territorial. Neste sentido - digamos, objectivo - não tenho dúvidas algumas, nem estas seriam admissíveis, de que o imperialismo é responsável pela desagregação da Jugoslávia, como o foi da Somália, do Haiti, do Ruanda/Burundi, da Libéria, dos povos caucásicos, etc., etc.. É a polarização económica crescente entre o centro e a periferia do sistema mundial - agravada pela desestabilização terrorista imposta pelos "ajustamentos estruturais" (1) - que vai espalhando o caos em diversas regiões dos antigos terceiro e quarto mundos. Chupadas até ao tutano, as formações sociais da periferia, sujeitas à canga das relações de sujeição imperialista (corporizadas nas directrizes de F.M.I./Banco Mundial, O.M.C., etc.), são monstruosamente distorcidas, tornando-se socialmente instáveis e caóticas. Isto porque a sua cleptocracia dirigente acaba por ficar sem recursos ou engenho para impôr um pacto social hegemónico estável, vivendo assim permanentemente sobre o fio da navalha. A burguesia e os políticos burgueses do centro bem quereriam que isto assim não fosse. Mas este é um mecanismo inexorável que se lhes impõe mesmo contra a sua vontade enquanto forem... capitalistas, logo imperialistas.
Este é um problema recente (ou que se vem agudizando recentemente) e que tem resultado numa franca desorientação entre os comunistas. A meu ver, a reflexão que se impõe é constatar que nem todas as intervenções militares imperialistas são agora dirigidas exclusivamente por interesses económicos ou estratégicos por assim dizer egoístas. Há uma parte disso, uma parte de luta ou disputa inter-imperialista por posições de influência e há também agora uma parte de concertação entre as potências em tarefas e despesas de "manutenção da ordem" a nível global. Da ordem burguesa, obviamente. O capitalismo, sendo um sistema de pilhagem, precisa, porém, de "ordem", adesão espontânea, confiança. É por isso que se vê obrigado a investir uma parte da sua mais-valia (e dos seus "recursos humanos") a remendar os estragos por si causados enquanto sistema, antes que estes degenerem em cancros irremediáveis e minem decisivamente a sua estabilidade e "bom nome". É um resultado inevitável da crescente integração do sistema capitalista mundial. Estas operações, proporcionando a manutenção e teste da prontidão operacional das Forças Armadas, servem ainda de caução ideológica para as outras (as "más" e "interesseiras") confundindo assim os seus críticos - no que têm tido um enorme sucesso. As operações de saque e razia neo-colonial mais evidentes tentarão depois acobertar-se com o mesmo manto genérico de "pesada responsabilidade" e de "liderança moral". Está, pois, explicado o mistério do imperialismo "humanitário", que tanto desorientou a esquerda e levou inclusive uma parte dela, em desespero de razões, a apoiar as intervenções na Somália, no Haiti e agora na Bósnia-Herzegovina (este último caso é, apesar de tudo, mais complexo que os precedentes). É melhor começar a perceber isto já, porque a comédia vai repetir-se.
O apoio a estas intervenções está naturalmente fora de causa. A juventude proletária não tem nada que ser sacrificada em remendos à ordem burguesa mundial. O imperialismo é o problema, não pode fazer parte da solução. O que se impõe é a crítica articulada ao sistema que produz inexoravelmente e cada vez mais estas "emergências". Este é um trabalho mais árido e "abstracto"? Talvez seja. Mas não temos alternativa séria. O imperialismo é um inimigo poderoso. Temos de o conhecer em profundidade. Quando não percebemos de imediato as suas acções, não vale a pena estar a inventar histórias e meter por atalhos porque isso só contribuirá para nos desacreditar aos olhos das massas. Se se derem ao trabalho de responder, os imperialistas provarão facilmente a sua "inocência", brilhando mais ainda na sua "virtude" ofendida. Ficaremos então desarmados porque gastamos a nossa artilharia a fustigar espantalhos. Esta tendência emocional e confusionista é tanto mais irritante quanto procura fazer-se passar por firmeza, acusando o rigor analítico de capitulacionista, cripto-burguês, etc.
Os decisores
Por imperialismo entende-se também uma direcção consciente e voluntarista, formada nos grandes centros de poder e actuante no terreno por intermédio de meios políticos, diplomáticos, operações secretas ou intervenções militares. Ora, é ao imperialismo neste sentido (à falta de melhor chamar-lhe-ei subjectivo) que, penso eu, se cinge o meu debate com M. R. sobre as responsabilidades no desmembramento da Jugoslávia. Não há muitas maneiras de governar o capitalismo (o imperialismo) mas este ainda não anda totalmente em piloto automático. Há "sensibilidades" diferentes, opções a fazer em diversas situações, etc., etc.. É a este nível de decisão concreta que se cinge o meu debate com M. R.. Aqui não bastam as razões objectivas e a análise estrutural. É preciso descobrir e apontar memorandos (secretos ou não), actas, relatórios, despachos, resoluções. M. R. afirma que a Jugoslávia foi objecto de um plano deliberado e concertado de agressão e partilha. Eu sustento que não.
M. R. dispensa-se de apresentar quaisquer argumentos justificativos deste comportamento do imperialismo (na verdade ele esboça um, tacteantemente, mas ele não é particularmente inspirado, como veremos adiante). Pensará ele que, estando entre comunistas, as acusações contra o imperialismo gozarão de uma credibilidade ilimitada? Que este é capaz de o fazer, não oferece dúvidas a ninguém. Tem um vasto curriculum. A questão é: para quê? Fá-lo-ia por puro sadismo como um violador compulsivo ou um serial-killer? Mistificar o imperialismo nos seus propósitos e métodos não ajuda nada ao seu combate. É por isso que eu, correndo o risco de parecer vestir aqui a toga em defesa do imperialismo, insisto ainda assim em questionar M. R.: Onde estão, afinal, as provas e o móbil do crime?
Eu não duvido que os independentistas croatas e eslovenos mantivessem contactos secretos ocasionais (provavelmente da sua iniciativa) com a Alemanha e a Áustria desde há muito, possivelmente até desde o tempo das agitações nacionalistas croatas de 1967/68. Como envolvimento europeu anterior à consumação da desintegração política da Jugoslávia (Junho de 1991) isto é tudo o que Santos Pereira conseguiu reunir - M. R. nem isto cita. Depois, é claro que a "opinião pública" e os governos austro-germânicos manifestaram abundantemente a sua afinidade electiva com croatas e eslovenos, fornecendo-lhes variado e precioso apoio, político e militar. Aqui as razões históricas e "sentimentais" (incluindo algum folclore nazi que também a mim me dá a volta ao estômago, naturalmente) misturaram-se já com as pragmáticas, conjugando-se na implantação de uma lógica clientelar. Mas o processo de fragmentação da Jugoslávia - cujo tiro de partida, recorde-se aqui incidentalmente, foi a agressão de Milosevic ao Kosovo - iniciara-se e consumara-se já, com base numa dinâmica política essencialmente interna e centrífuga.
A verdadeira história do envolvimento do imperialismo (no sentido objectivo atrás definido) na desintegração da Jugoslávia é bem diversa daquela que nos conta M. R., não tendo nada a ver directamente com a Alemanha ou a Áustria (?...). O desmoronamento deste país começou a desenhar-se ao longo dos anos 1980, com o aprofundamento da sua integração antecipada no sistema capitalista mundial, que aliás já vinha de trás (ainda do tempo de Tito). Em 1989/90 era a bancarrota total. O F.M.I. impõe as suas receitas económicas habituais e previsíveis: desvalorização monetária, desmantelamento total do remanescente do seu sistema social próprio (a famosa "auto-gestão"), congelamento dos salários e cortes nas despesas governamentais. Com isto provocou-se a destruição de grande parte do aparato estatal federal. Foi neste contexto que emergiram as elites "nacionais" como novas senhoras da situação, estalando imediatamente as rivalidades entre elas e as lutas irredentistas. A desintegração (e menos ainda a guerra) não foi um resultado antecipado e querido pelo imperialismo. Foi um "dano colateral" resultante da aplicação, naquela circunstância política particular, dos seus automatismos económicos inflexíveis - e isto já é suficientemente criminoso. A evolução da situação política jugoslava era naturalmente "acompanhada" pelo Departamento de Estado norte-americano e C.I.A.. Mas o objectivo não era favorecer o desmembramento. Pelo contrário. Estes são, enfim, os dados de que dispomos.
E porque razão conspiraria o imperialismo norte-americano contra a unidade política dos eslavos do Sul? Afinal, não é ele perfeitamente capaz de engolir a Jugoslávia inteira (no essencial, isso até estava já feito) sem precisar de Alka-Seltzer? Dar-lhe-ia mesmo muito mais jeito assim, pois não teria que se preocupar com mais alfândegas, fronteiras encerradas, impostos e padrões diversos, mercados fragmentados, burocracias mesquinhas, subornos multiplicados, diminuição da garantia para os seus "créditos" (2), etc., etc.. Perfídia alemã? Os "boches" não têm interesse, nem atrevimento, nem meios para se aventurarem a uma operação desestabilizadora desta envergadura. Fazê-lo sem o aval ou até contra os norte-americanos, isso então é absolutamente impensável. Sugerir uma tal coisa dá logo provas de uma ignorância profunda da política internacional contemporânea, rebaixando o debate a mera conversa de café. M. R. vê os dirigentes alemães a conspirar para dividir a Polónia e a República Checa (seus vizinhos directos e onde a Alemanha tem até interesses territoriais irredentistas)? Eles até se opuseram à cisão checo-eslovaca. Porque razão o tentariam sequer na Jugoslávia?
Slobo querido
Aqui, o melhor que M. R. consegue é sugerir que os sérvios se sublevaram heróicamente contra o jugo imperialista alemão. Eles resistiram. Leia-se, p. ex., a P.O. nº 39, pág. 13, a P.O. nº 51, pág. 20 e a P.O. nº 54, pág. 25. Sobre este ponto, M. R. tem sido notavelmente coerente. A este respeito também são interessantes as suas precisões, na nota final ao seu último artigo, sobre as correcções que artigos seus anteriores terão sofrido. Ficamos a saber que M. R. qualificou de verdadeiros "criminosos" os "nazis croatas e os muçulmanos" (assim, colectivamente). Temos, pois, povos criminosos e lambe-botas e povos rebeldes e heróicos, sentindo na cara o sopro viril da liberdade e da insubmissão. Isto é, naturalmente, muito bonito. Simplesmente, não tem qualquer ponto de contacto com a realidade. É uma xaropada romântica sem ponta por onde se lhe pegue. É propaganda chauvinista delirante, imprópria para consumo, fora, naturalmente, do circo de títeres de Slobodan Milosevic - as "águias brancas", "lobos cinzentos", os "tigres" 'Arkan', Seselj, Dragoslav Bokan e Mladic (tudo, naturalmente, invenções da "imprensa ocidental"). Que Santos Pereira esteja a precisar de uma "causa" e lhe dê para fazer de Bernard-Henry Levy virado do avesso, é lá com ele. O que não é admissível é que um marxista se deixe embalar por essas fábulas e cantilenas "heróicas" de terra, sangue e tradição, fosse nos mais recônditos e reptilianos recessos do seu subconsciente.
A Sérvia está sob ditadura do proletariado? Não me parece. Tem até um regime socialmente regressivo, como aliás são todos na área. Os ex-apparatchiks e a burguesia sérvia não estão, então, à venda como os outros? Ou melhor, não se venderam já mil vezes? Por extraordinário que pareça, M. R. pensa que não. Ou, pelo menos, não à Alemanha. Por isso é que a Jugoslávia foi esmigalhada, como que num acesso de fúria do "grande ditador" versão Herman José. Mas se a divisão da Jugoslávia foi uma iniciativa alemã, porque é que os norte-americanos - vencedores indiscutíveis no braço-de-ferro imperialista - não impõem a sua reversão? Afinal eles intervieram para quê? Para suster o expansionismo germânico, diz M. R.. Fazem-no então sancionando as perversas maquinações urdidas pelo mesmo? E porque castigam e rechaçam afinal, também eles, os sérvios, sendo estes ao que consta (?) o pilar do anti-germanismo na área? Os alemães lá continuam em Zagreb, o deutsch mark, por todo o lado. Estranho conflito, realmente. Para isto, bem podiam os G.I.'s ter ficado... na Alemanha, a comer donuts e a ver as world series na t.v.. G'morning fraulein. A trama contada por M. R. de um quase confronto militar germano-yankee por interesses territoriais nos Balcãs não se sustém, perante os factos, sem graves torções e ofensas à lógica mais elementar. Aliás, as lutas inter-imperialistas são hoje em dia, por regra, infinitamente mais subtis do que disputas por limites em coutadas territoriais. Nem é obviamente verdade que (para além da questão puramente formal do reconhecimento das independências) a União Europeia se tenha disciplinadamente perfilado em apoio das posições alemãs. Para a Grã-Bretanha, o que o Tio Sam decidir é lei, enquanto a França manteve sempre nuances de serbofilia nostálgica. Não vale a pena falar da Grécia... Nestas divergências se radicou, precisamente, uma parte do problema da "impotência" europeia.
Uma vez que as outras potências ocidentais intervieram, afinal, todas mais ou menos solidariamente (embora em competição renhida, o que é bem outra coisa), será talvez de esperar uma "radicalização" da burguesia sérvia que a leve a declarar uma oposição às relações de dominação imperialista? Afinal, já houve importantes movimentos de afirmação nacionalista no ex-"terceiro-mundo" que, sem ultrapassar um horizonte estritamente burguês, mereceram ainda assim o apoio dos marxistas. Neste caso, porém, nada, absolutamente nada, em nenhuma ocasião, na acção ou sequer na retórica da liderança sérvia indiciou, remotamente que fosse, uma tomada de posição anti-imperialista. Nenhum resquício do espírito de Bandung. Só ouço, da sua parte, lamúrias e protestos pela "incompreensão" de que terão sido alvo as suas sórdidas investidas grã-sérvias. Pelas suas contas (que até nem devem andar erradas, mais coisa menos coisa), a "Europa" ainda um dia há-de agradecer e recompensar a sua intransigência sanitária de mata-mouros. Não o faz já, por pura hipocrisia. Pois não são eles a espada de Cristo, baluarte seguro contra a infiltração do fundamentalismo islâmico e do terrorismo árabe?
A liderança sérvia aceita o imperialismo como sendo a ordem natural das coisas. Pois Milosevic não foi a Dayton e não assinou? Não é de toda a evidência que tinha já feito secretamente a paz com os croatas, dando-lhes tudo o que eles queriam em troca de um acordo de partilha da Bósnia (3)? Não agradeceu a Warren Christopher, com os olhos rasos de lágrimas, que os norte-americanos tivessem aceitado intervir militarmente? Se M. R. está agora à espera que os sérvios bósnios reajam contra a ocupação (ele augura que a trégua será "temporária") então é certo e seguro que é ele que anda a ver o "filme" com as bobinas trocadas. Se quiser, ainda assim, ir abraçar Milosevic, fá-lo-á por sua conta e risco. A minha opinião é que os comunistas não devem fazê-lo. E não é tanto por ele ser um carniceiro e um assassino repugnante. É que ele passaria por nós sem nos ver, pronto que está, ou melhor, desesperado que está - passados todos estes "mal entendidos" - por se reconciliar enfim, plenamente, com o imperialismo que quiser ainda dar alguma coisa pela sua vil carcaça. Talvez comece pelos franceses e pelos norte-americanos, mas os alemães só lá não chegarão se e enquanto os croatas puderem ou quiserem exercer algum veto na matéria (4). Eu queria, sinceramente, poupar a M. R. essa desilusão. E a minha pergunta para ele é: Se esse filho da puta nem nunca sequer nos piscou o olho, porque haveremos de correr assim para os seus braços? Seremos nós solteironas desesperadas a este ponto? Enfim, há coisas a que já me resignei a não compreender nunca.
O manto diáfano da ideologia
A meu ver, pois, o objectivo essencial da intervenção na N.A.T.O. é policial e de manutenção da ordem. De seguida virá, naturalmente, a negociata e o estabelecimento de entrepostos. O imperialismo teria preferido que a unidade jugoslava e a paz se tivessem mantido. Viu-se obrigado a arbitrar militarmente uma disputa entre cliques nacionalistas e a sancionar a divisão da Jugoslávia (no que só a Alemanha interveio convictamente). A disputa foi originada em rivalidades antigas entre as burguesias locais, exacerbadas pelo seu desenvolvimento desigual e pela ânsia de croatas e eslovenos em aceder preferencial ou exclusivamente aos espaços económicos e políticos do imperialismo europeu (alemão). O resultado visível desta intervenção é, para já, um reforço sensível da hegemonia mundial dos Estados Unidos da América.
Finalmente, uma palavra sobre a O.N.U. e o papel da Imprensa. As Nações Unidas têm um lugar central em todo o edifício institucional do imperialismo. Os E.U.A. podem ter as quotas em atraso, mas M. R. pode ter a certeza de que eles prezam muito, mesmo muito, a ilusão e o engodo ideológicos de ordem mundial legitimada que só a O.N.U. está em condições de fabricar. Ora, uma parte importante da sensação criada de desordem e caos mundial, que forçou o imperialismo a intervir militarmente na Jugoslávia, foi provocada pela Imprensa. (Aqui M. R. prefere pensar que o Pentágono e/ou a Casa Branca há anos vinham já mandando directrizes secretas aos media, ordenando-lhes que preparassem psicologicamente a população para a intervenção.) Neste sentido, ela actuou com autonomia relativa e teve mesmo uma importância decisiva (5). É evidente que esta "autonomia" da imprensa não abrange a sua fidelidade de classe. Simplesmente, entre a esfera política e a esfera informativa/ideológica (ou, acima desta, a cultural/filosófica) não há unicidade. Dentro de uma mesma ordem global, estas esferas prosseguem programas distintos com a sua agenda própria, chocando por vezes e influenciando-se mutuamente. Não posso estar aqui a desenvolver este assunto. Quem está habituado a ler a imprensa burguesa (quase não há outra), sabe muito bem já digeri-la e conhece as suas idiossincrasias.
Vivemos num mundo de espelhos e ilusões ópticas. A força objectiva do processo de acumulação capitalista é colossal. Os políticos, porém, são muito mais tolos e bem menos influentes e maquiavélicos do que se tem a tendência a supor. É evidente que são criminosos sem escrúpulos. Mas a sua autonomia é reduzida. Vão para onde lhes dá o vento. O vento é cada vez mais incerto e perigoso. É também por isso que é preciso derrubar o sistema.
(**) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 55 (maio-junho de 1996).
Ainda a Jugoslávia (***)
No último número da P.O. Manuel Raposo reitera as suas posições acaloradamente serbófilas (embora ele agora, com igual calor, negue que o sejam!?...), acompanhadas de longas, confusas e fantasiosas alegações a favor da existência de uma conspiração das “potências germânicas”. Nada de novo, realmente. Eu não vou, evidentemente, entrar em discussão sobre quem é que disparou obuses para aqui ou acolá ou, genericamente, quem é que tinha razão e quem é o vilão no conflito jugoslavo, até porque o director desta revista já me fez saber que os leitores estão a perder a paciência com esta discussão. Responderei, pois, de uma forma circunscrita, a algumas questões de maior interesse político e teórico.
A minha posição política sobre a guerra jugoslava já foi claramente exposta - e com maior desenvolvimento - nos meus dois anteriores artigos. Mas talvez M.R. goste mais de a ver exposta por pontos. Aqui vai, pois:
1. A guerra jugoslava é um conflito nacionalista, provocado pela desestabilização económica que o sistema imperialista impôs num terreno imaturo e fragilizado em termos de acumulação capitalista e respectivo travejamento social e político;
2. As potências imperialistas europeia e norte-americana, apesar do relativo desinteresse estratégico da área em causa, serviram-se do pretexto da guerra para travarem entre si uma luta de influência, propaganda e intimidação, a qual visa essencialmente assegurar o domínio no conjunto do teatro europeu; nessa luta os E.U.A. demonstraram uma clara superioridade;
3. O proletariado internacional deve combater por todos os modos as intervenções imperialistas (em primeiro lugar as dos seus próprios países), procurando simultaneamente influenciar o proletariado e as massas jugoslavas para que recusem e sabotem activamente a guerra que as “elites” locais lhes querem impôr, tomando, se possível, em suas mãos o destino político do país.
Tendo esta análise da crise política jugoslava, opus-me à intervenção imperialista por posição de classe: os filhos do proletariado não devem servir de carne de canhão para a política imperialista da sua burguesia. E pude fazê-lo com todo o à vontade e boa consciência “humanitária” porquanto calculava (e sei-o agora seguramente) que as intervenções não evitariam qualquer carnificina nem resolveriam nenhum dos problemas políticos jugoslavos. Elas, aliás, já estão no terreno há uma eternidade sem aí terem resolvido ou minorado nada. Só quando a dinâmica da guerra apontou para a estagnação e o cansaço é que as partes beligerantes se resolveram acolher à mediação armada que lhes era oferecida. A não-intervenção não teria custado aos jugoslavos mais cadáveres; muito provavelmente, ter-se-ia saldado em menos.
Esta obsessão inquisitória de M.R. a respeito da minha posição política sobre o conflito - e a sua obstinação em afirmar que eu só posso ser apoiante da intervenção imperialista ou andar lá perto - vem revelar-nos um pouco da genealogia da sua tomada de posição sobre a questão. M.R. começou por partir do princípio (absolutamente correcto) de que uma intervenção armada do imperialismo é sempre de condenar e combater. Atemorizado com o êxito de propaganda que esta intervenção imperialista tem tido, inclusive em sectores de “esquerda”, procurou então, retrospectivamente, uma “análise” do conflito que servisse os seus propósitos. Encontrou assim em circulação (aliás restrita a certos grupos amantes da ovniologia e do misticismo pan-eslavo) a tese da conspiração germano-papal e disse de si para si: esta é que é a “posição correcta” para um revolucionário. Decretou então, por fim, que quem não for tocado pela graça desta revelação, é seguramente um inimigo encapotado. Simplesmente, ter ou não ter havido uma tal conspiração não é questão de “posição”, é matéria de facto. É verdadeiro ou falso. A menos que M.R. tenha mandado o materialismo às malvas e aderido às modas intelectuais desconstrucionistas que dizem que os factos não existem, apenas as interpretações feitas sobre eles.
Eu não tenho nenhum prazer em estar aqui a “desagravar” os alemães ou o Vaticano, que aliás por várias vezes se imiscuíram criminosamente (embora não de forma decisiva) no decurso da tragédia jugoslava. Na luta de classes não me julgo obrigado por nenhuma espécie de regras de cavalheirismo ou fair-play. Simplesmente, esta história não se tem minimamente de pé, nós não precisamos dela para nada e ela só nos desacredita. Em vez de atirar areia aos olhos do inimigo estamos é a esfregar a nossa cara nela até à cegueira total. Além de que, como é óbvio, aqui sim, um aval nosso dado a esta contrafacção arrastar-nos-ia logicamente para uma posição - politicamente ruinosa - de apoio expresso e activo a Belgrado e Pale (6), metendo-nos a bordo da nave insana do ódio étnico (como aliás a prosa de M.R. já vai, aqui e ali, “exemplarmente” demonstrando).
Nunca nenhuma “nação” tentou sequer obter a sua independência política sem ter garantido previamente contactos e algum apoio externo. No caso da Croácia e da Eslovénia (já nem falo da Bósnia e da Macedónia), o que chama a atenção, e fazendo fé nos factos compilados por Santos Pereira, é precisamente a escassez e extrema precaridade destes apoios e contactos. A verdade, porém, é que as secessões estiveram longe de revestir um carácter conspiracional. Foram longamente discutidas e negociadas nos anos de 1990-91, objecto de referendos, declarações de intenção, proclamações, etc.. Grande parte dos dirigentes políticos independentistas transitaram muito pacificamente dos quadros da Liga dos Comunistas Jugoslavos e das estruturas de poder federativas. Havia um acordo total entre os três projectos nacionalistas em liça - sérvio, croata e esloveno - no princípio da separação, faltando apenas resolver a questão territorial (Milosevic e o sinistro Tudjman discutiram entre si pela primeira vez a partilha da Bósnia num encontro em Karadjordje em Março de 1991). A única oposição existente à separação era... a da “comunidade internacional”.
M.R. quer-se esquecer (7) que foi Milosevic que deu aliás as primeiras e decisivas machadadas na periclitante federação jugoslava, com a sua campanha de histeria nacionalista contra um suposto “genocídio anti-sérvio no Kosovo”; o esmagamento com tanques do movimento popular nesta província; a reforma constitucional sérvia que retirou a autonomia ao Kosovo e à Vojvodina. A partir daqui, apresentando-se com o controlo de metade dos votos na presidência colectiva (Sérvia, Kosovo, Vojvodina e Montenegro) manteve-a refém da sua chantagem nacionalista e paralisou por completo o programa reformista (isto é, imposto pelo F.M.I.) do governo liberal de Ante Markovic, alvo também das suas manifestações de massas “anti-burocráticas”. Enquanto tudo isto se passava (1988-89), ainda os partidos independentistas croata e esloveno (HDZ e Demos, respectivamente) não tinham sequer sido formados e as “potências germânicas”, essas, tinham certamente bem mais em que pensar, nomeadamente com o processo de reunificação. Quanto à “violência da guerra e seu arrastamento no tempo”, não teve nada a ver com a realidade política das secessões - que era pacífica - mas sim com disputas territoriais entre a Sérvia e a Croácia e, depois, uma guerra civil bósnia (8).
M.R. diz que foram os imperialismos, em luta entre si, que foram alimentando a guerra, mas escusa-se a dizer como se alinharam eles entre as forças em conflito no terreno. Dá a entender que as diversas ingerências e intervenções externas se dirigiram, antes do mais, umas contra as outras. Mas não diz como, onde ou por que meios elas se enfrentam. Já sei que não disparam umas contra as outras. Mas como é então que criam vantagem e decidem a contenda? Solnado se fosse a esta “guerra”, integrado no garboso corpo português, não deixaria certamente de perguntar onde é que ela está, para que lado é, como se faz. Eu também não sei. Alinhado com as “potências germânicas” no âmbito da U.E., deverá Portugal bater-se com os norte-americanos? Bom, mas então ao bom sucesso das armas lusas torna-se essencial que o inimigo não chegue nunca a suspeitar sequer dessas intenções. Prudência, muita prudência, diria aqui o conselheiro Acácio. Clinton vai agora reduzir a 8.500 (entre 30.000) os seus efectivos na IFOR 2. Se desta vez cumprir a promessa de retirar por completo os seus rapazes ao fim dos 18 meses previstos, António Vitorino festejará então a vitória com os seus pares europeus - discretamente. A nós pois: “o petróleo do Médio Oriente, o flanco Sul da Rússia, a ligação da Europa com a Ásia e a África, etc.”, enfim, todos os objectivos em disputa segundo o grave parecer dos “especialistas” em geo-estratégia consultados por M.R.. Não mais se dirá que este final de século carece de homens com visão.
Não há, neste momento, um único soldado alemão (ou austríaco) armado em todo o perímetro da ex-Jugoslávia. É verdade que Bona vendeu à Croácia umas carripanas e blindados pertencentes ao exército da ex-RDA, que apodreciam por lá em armazém. Isso aí, meu amigo, em qualquer canto do mundo em que haja procura solvente de armas, elas aparecem imediatamente de todo o lado. E eu digo mesmo de todo o lado - de Portugal também. É como os isqueiros que se acendem oferecidos a uma bela fumadora. Os dados de que dispomos, porém, indicam que a participação alemã na organização, apetrechamento, treino e doutrina do exército croata está longe de ser maioritária, ou sequer muito significativa. Essa posição pertence sim aos seus mortais inimigos norte-americanos, como mesmo M.R. parece reconhecer.
Quanto aos eslovenos, esses, a sua secessão de facto foi lograda através da Defesa Territorial Eslovena - uma estrutura descentralizada de defesa civil criada por Tito em todos os Estados federados - sem uma única arma que não tivesse saído directamente dos seus depósitos e numa altura em que o “clima internacional” não era, nem de longe, favorável a estes propósitos. M.R. vem agora assegurar-nos, com enorme auto-suficiência, que eles jamais se atreveriam a fazer o que eles, não só indiscutivelmente fizeram como até nem pareceu muito custoso. Tudo se concluiu em escassas horas - com alguns episódios de tiroteio de armas ligeiras -, o que não se deveu certamente ao heroísmo excepcional dos independentistas mas ao grau de profunda desmoralização e apodrecimento das estruturas federais, reduzidas aliás ao exército e pouco mais. A Jugoslávia, como entidade política efectiva, morreu nesse dia - 27 de Junho de 1991. A partir desse momento preciso, e até hoje, o que esteve em causa foram sempre e apenas disputas entre os diversos Estados constituídos sobre despojos territoriais localizados. O exército federal sofre logo de seguida uma série de purgas e deserções em massa que o transformam num exército serbo-montenegrino. A guerra rebentou então na Eslavónia oriental (Vukovar), Krajina e na costa dalmática. Todavia, durante bastante tempo ainda, todo o “mundo ocidental” em uníssono insistiu ainda na reconciliação e na revitalização dos órgãos federais (uma “presidência colectiva” boicotada por todos os lados e unanimemente escarnecida). A Alemanha foi de facto a primeira a afastar-se do coro, reconhecendo as independências croata e eslovena a 23 de Dezembro de 1991, seguida pelo conjunto das Comunidades Europeias (C.E.’s) em 15 de Janeiro de 1992. Os E.U.A. reconheceram a Croácia, a Eslovénia e a Bósnia-Herzegovina a 7 de Abril desse ano. A própria Sérvia, proclamando a 27 de Abril deste mesmo ano de 1992, a sua “terceira Jugoslávia”, reconhece implicitamente as independências entretanto declaradas (9).
Aquela iniciativa diplomática pioneira dos alemães (que foi realmente estranhamente assertiva, vinda de um país com o estatuto político internacional da Alemanha), centrada na personalidade idiossincrática de um Hans-Dietrich Genscher em final de carreira, é naturalmente o corpus delicti mais citado pela tese da “agressão imperialista alemã”. As vendas de armas acima referidas ocorreram depois, numa altura em que os objectivos de todo o “mundo ocidental” já tinham evoluído da preservação da unidade jugoslava para o apoio activo à Croácia e, depois, também à Bósnia. Negócio secreto, em violação de um “embargo” da O.N.U. e outro das C.E.’s, foi certamente feito após consultas várias e aval norte-americano. Aqui também eu não tenho provas mas não é crível que tenha sido de outro modo e vou já explicar porquê. Aliás, se os E.U.A. tivessem sentido aqui algum desafio à sua autoridade a questão tinha de imediato estourado publicamente, em feroz batalha de propaganda. Não haveria nenhuma razão para a manter no segredo dos gabinetes.
Outras ingerências germânicas não merecem sequer menção. Também eu tenho na burguesia alemã o meu ódio de estimação mas, sinceramente, parecem-me muito poucos ovos para tão grande omoleta. Quanto ao Vaticano, enfim... os seus conciliábulos de sacristia são demasiado espirituais para estarmos aqui a perder tempo com isso. De qualquer maneira, a obsessão do velhaco Woytila era o “comunismo”, não havendo quaisquer bases para o acusar de andar a fomentar guerras religiosas. Depois de livrar os povos do materialismo ateu, ele abençoará naturalmente os seus queridos prosélitos, mas sem hostilizar os outros rebanhos.
O conluio dos alemães (mais a sua carga histórica maligna) com o papa católico é, obviamente, um mitologema criado pela consciência ingénua e popular sérvia - depois de convenientemente excitada pelos ideólogos nacionalistas. Santos Pereira bebeu-o na origem e, certamente afeiçoado pelo destino trágico daquele povo caloroso e tocante, dá-lhe crédito em forma de livro. M.R. junta-lhe umas pinceladas “geo-estratégicas” incongruentes, um cenário absurdo de confronto imperialista germano-ianque e quer-no-lo impôr à viva força como o supra-sumo da razão revolucionária, ou melhor, o último baluarte lógico antes de nos irmos todos alistar na CIA ou nos US Marines, conhecidas agências humanitárias. Tenha calma, camarada. A serenidade também pode ser uma arma anti-imperialista. Lembre-se que a nossa luta é a do proletariado internacional, um poderoso exército de centenas e centenas de milhões de homens e mulheres em todo o mundo. O destino histórico desta luta não está à mercê de quaisquer manobras propagandísticas que possam ter momentaneamente seduzido ou desarmado o António, o Zé-Pedro ou a Cristina.
A Alemanha é, evidentemente, uma potência económica de primeiro tomo. Mas não existe sequer hoje algo a que se possa chamar um imperialismo alemão de corpo inteiro. Após a reunificação (muito cuidadosa e respeitosamente negociada e finalmente consentida pelos E.U.A.), tem-se falado muito de regresso do colosso teutónico, da sua vocação hegemónica na Europa central, etc., etc.. M. R. deixou-se certamente influenciar por estas análises, que não são aliás totalmente desprovidas de algum sentido, embora limitado. Simplesmente, é preciso lembrar aqui uma coisa que eu pensava que fosse do domínio público: a Alemanha (como o Japão) é um país sob a tutela militar directa dos E.U.A.. Não é um “aliado”. É pouco mais que um protectorado. Quando hoje se fala de presença militar norte-americana na Europa, usa-se um eufemismo elegante para dizer... na Alemanha. Depois de todos os cortes recentemente efectuados, estão lá agora estacionados permanentemente cerca de 150 mil soldados ianques (de lá é que partiu um pequeno destacamento para a Bósnia), equipados com armas de destruição maciça e uma panóplia impressionante do material militar mais moderno e sofisticado do mundo, dispostos com uma lógica militar particular e sob comando próprio (USEUCOM) sediado em Heidelberga. E não vão sair tão cedo porque o objectivo da N.A.T.O. é agora monitorizar a partir daí uma expansão para Leste.
É um tanto caricato que M.R. atribua um transcendente desígnio geo-estratégico a algumas dezenas de homens que os E.U.A. colocaram temporariamente, com missão definida, na Macedónia ou na Albânia, esquecendo-se por completo da trave-mestra estruturante de todo o sistema. Quando interrogado sobre os objectivos da N.A.T.O. para a Europa, houve um general britânico que resumiu assim: “To keep the americans in, the soviets out and the germans down.” Agora os soviéticos chamam-se russos e, de momento, não constituem grande ameaça. De resto as variáveis da equação permanecem exactamente iguais. Os E.U.A. têm bases espalhadas pelos quatro cantos do mundo mas a sua doutrina militar só reconhece dois “interesses vitais”: a “Europa” e o Japão/Coreia (onde têm também 130 a 140 mil homens). Isto não são resquícios da “guerra fria”; são compromissos já estabilizados e assentes. É isto que confere ao sistema imperialista tri-polar a sua actual estabilidade e baixo nível de conflitualidade. Há regateio económico mas pouca fricção política e virtualmente nenhuma tensão militar. Em última instância, os E.U.A. têm sempre razão. Os problemas que existem são ainda com a Rússia e, ultimamente, com a China.
A burguesia alemã (como a japonesa) está, por enquanto, pelo menos, plenamente satisfeita com este arranjo. Pragmaticamente, deixou-se de brios nacionalistas ruinosos, acobertando-se com a protecção do grande padrinho tio Sam. Aliás, a parte mais substancial do “milagre” económico alemão (e japonês) deveu-se a que estes países beneficiaram (e beneficiam ainda) largamente das características expansionistas de uma economia fortemente militarizada, sem todavia lhe suportarem os custos. Simplesmente, esta “mama” paga-se com a sua total menoridade política e a perda de qualquer influência na definição dos grandes espaços em que se têm de mover. A Volkswagen pode comprar a Skoda, os alemães colonizar Dubrovnik, e o deutsch mark circular como moeda franca em toda a mitteleuropa. Mas a gestão estratégica e político-militar de toda esta zona não deixa por isso de ser feita em Washington, que depois cobrará a Bona o correspondente tributo, por qualquer forma e a outro propósito qualquer. É precisamente a mesma lógica da Chicago dos tempos áureos da mafia. Os alemães sabem isto e (por sua iniciativa isolada) nem sonham sequer em contestá-lo. Se eles aceitam a protecção militar norte-americana no seu próprio território, que sentido faria desafiarem o poder ianque alhures, quando não tinham qualquer interesse económico nisso nem sequer forças armadas autorizadas ou capazes para actuar no exterior? Pelo contrário, o seu interesse é em fortalecer sempre em todo o lado o poder dos seus protectores, enquanto estes se mantiverem nesse papel. Confesso não saber de mais ninguém no mundo (Santos Pereira não diz nada disto) que se tenha igualmente apercebido deste secreto ajuste de contas imperialista nos Balcãs.
É o triângulo franco-britânico-germânico que, por vezes, sempre sob impulso francês, dá a impressão de, em conjunto, querer sacudir o jugo ianque. Tudo de uma forma gradual, controlada e “amigável”, claro. É um processo muito complexo e contraditório, com muitos recuos, tibiezas e mal-entendidos pelo meio. A aproximação entre estes três polos europeus faz-se através de jogos muito complicados de atracção-repulsa. Por sua vez, os norte-americanos umas vezes parecem emitir sinais encorajadores e emancipatórios aos seus “aliados” europeus e japoneses (procurando, sem dúvida, alijar um pouco a carga económica que este papel de “polícia global” implica), enquanto noutras ocasiões predomina o desejo de permanecer em contrôlo total - fazendo-se pagar, naturalmente. A guerra jugoslava veio fazer com que o projecto de “segurança colectiva” puramente europeu perdesse ainda mais alguma da sua já escassa credibilidade.
A longo prazo, a tendência parece ser a de que os norte-americanos irão efectivamente perdendo fôlego e retrocedendo para posições “isolacionistas”, ou seja, centradas sobre o seu bloco continental. Teremos, então sim, três polos imperialistas completos e acabados, prontos para se lançarem às goelas uns dos outros, embora possivelmente (dada a capacidade destruidora actual dos armamentos) através de intermediários, sob forma limitada ou “fria”. Para já, contudo, ainda estamos longe desse cenário. E a guerra jugoslava nada adiantou nesse sentido. Pelo contrário, fez retroceder algum tanto esse processo. Não foi só uma questão de os europeus terem perdido claramente no confronto com uma potência melhor apetrechada, mais decidida e experiente. Foi do próprio seio europeu que partiu o pedido, insistente, de uma intervenção norte-americana, o que denuncia um desentendimento grave e uma sabotagem activa (dos ingleses, claro, mas também dos próprios alemães) no projecto “securitário” do clube das estrelinhas. Ultimamente, este errático projecto parece querer inflectir para Sul, anunciando-se uma aliança militar franco-italiano-ibérica, o que teve para já o efeito de enfurecer Kaddafi.
M.R. reitera imperturbavelmente as suas acusações de que a minha análise da crise nacional jugoslava reflecte os preconceitos vulgares dos mass media e a propaganda ocidental. Mais tarde, faz uma invocação de outros “independentistas” de diversos azimutes, com o que só veio provar definitivamente o seu alheamento total da problemática do nacionalismo conforme ele é entendido pelo materialismo histórico: como um fenómeno típico do amadurecimento do projecto burguês de sociedade. Há uma vasta literatura sobre o assunto, que constituiu um corpus teórico particular. Leia Otto Bauer, Rosa Luxemburgo, Lenine, o jovem Estaline. Se não tiver tempo, leia ao menos resumos destas discussões em manuais e panfletos mais recentes.
A questão não é: a Jugoslávia não poderia ter-se desintegrado assim sozinha. A questão é antes: sem um bloco burguês consolidado, habituado a ter como mercado seu próprio (e horizonte político) o conjunto da federação jugoslava, o que é iria impedir esta de se desintegrar assim que o aparato estatal titista entrasse em colapso face às pressões do F.M.I.. Havia alguns embriões de uma tal burguesia (p. ex. o muçulmano Fikret Abdic e outros) e até do seu “reflexo” numa consciência nacional jugoslava (p. ex., na obra do genial realizador cinematográfico Emir Kusturica). No censo de 1981, 5,7% da população, inquirida sobre a sua “nacionalidade”, declarou-se jugoslava (36,3% sérvios, 19,7% croatas, 8,9% “muçulmanos”, 7,8% eslovenos, 7,7% albaneses, 5,9% macedónios, etc.) (9). Simplesmente, era tudo ainda muito incipiente para resistir às pulsões centrífugas, alimentadas pelo desenvolvimento desigual e pela atracção do polo imperialista europeu. O facto é que quem conhecia bem a Jugoslávia não ficou assim fulminado de surpresa com a sua desintegração.
Quanto aos outros movimentos “independentistas” citados por M.R., indique-me ele um que se apoie numa burguesia solidamente implantada e eu dir-lhe-ei que esse está a caminho do sucesso, por mais poderosos que sejam os seus inimigos. Se as burguesias catalã, basca, flamenga ou quebequense se decidirem pela independência (ou a da Irlanda do Norte se quiser unir a Dublin), consegui-la-ão muito rapidamente. O mesmo não direi dos yanomani, dos inuit, de Iryan Jaya, dos tamil ou mesmo dos curdos e dos chechenos (com toda a sua inegável bravura). Quanto aos palestinianos, tenho as minhas dúvidas mas quem viver verá. M.R. mistura alhos com bugalhos. Lembre-se desta regra de oiro: procure uma burguesia nascente, verá um Estado-nação na forja. Quanto ao resto, Geronimo também lutou contra a cavalaria estado-unidense sem por isso ser um “nacionalista” apache.
A Jugoslávia não era um mosaico de “etnias” muito mais complexo do que, por exemplo, a Espanha. Simplesmente, a unidade do Estado e do mercado espanhóis, caldeados aliás por uma experiência histórica multi-secular, oferecem às suas diversas burguesias nacionais oportunidades que elas não enjeitarão facilmente em troco de aventuras separatistas. Por razões históricas variadas e conhecidas, agravadas depois pela própria pressão económica do imperialismo, a Jugoslávia não tinha ainda uma classe burguesa una (resultado do processo de centralização e concentração do capital actuante num regime capitalista de mercado livre) ou, pelo menos, burguesias nacionais que, pela sua maturidade e expansão no terreno, pudessem pensar daquele modo e fazer aquelas contas.
Esta minha opinião “marxizante”, M.R. não pode assim decretar que reflecte ou “dá passagem” a todas as vulgaridades que lhe derem na realíssima gana: atraso provocado pelo “comunismo” (na criação de uma burguesia, isso aí sim, sem dúvida), “barbarismo sérvio”, “aspirações nacionalistas dos povos” (povos?!! - não há povos nacionalistas) e o diabo a quatro. Em especial, não admito que diga novamente que eu atribuo a ferocidade e o carácter um tanto sórdido de alguns dos episódios desta(s) guerra(s) à depressão económica ou “atraso” cultural, dos sérvios ou de quem quer que seja. O desenvolvimento económico não torna o homem melhor, mais ameno, convivial ou tolerante. Se esse desenvolvimento for capitalista (e para já não há outro) o contrário é que é o mais certo. O homem-tipo das nossas nações “desenvolvidas” posto perante uma situação limite de medo e instabilidade total (e aqui é que está o busílis) reagirá com ainda maior agressividade e “primitivismo” - ou reagirá do mesmo modo a um nível inferior de estímulo. O que acontece é que, devido à sua vida bem mais confortável, ele suportará em regra tais situações muito mais raramente, ou mesmo nunca.
Uma palavra final para a articulação entre o imperialismo como sistema e como decisão política concreta, a derradeira “habilidade” com que eu terei conseguido embrulhar as minhas cogitações filo-imperialistas em celofane marxista. (M.R. demonstra, clara e eloquentemente, um desconhecimento chocante de algumas das noções mais básicas e elementares do marxismo, mas o pior é que fico com a impressão de que ele deve considerar o domínio destas como sendo um lastro inútil, senão um estorvo, à urgência da sua “luta anti-imperialista”). Sem falsas modéstias, a “habilidade” não é novidade nenhuma e tenho mesmo de confessar que a patente nem é minha. Recapitulemos. Há um sistema capitalista mundial. É certo que existem três polos principais de acumulação capitalista e, consequentemente, de dominação imperialista. Esses polos rivalizam entre si economicamente e tendencialmente levarão essa rivalidade até à esfera política e inclusive militar. Mas o sistema mundial é um só: o capitalismo. Como é sabido, este é o modo de produção - esmagadoramente dominante na nossa época histórica - que se baseia na exploração de trabalho assalariado. Pois bem, o imperialismo não é outra coisa do que o sistema capitalista quando ele atinge a fase monopolista e a plenitude da sua expansão, abrangendo a totalidade do planeta. Com esta amplitude, o sistema compreende, além da clássica apropriação de mais-valia produzida pelo trabalhador, relações consolidadas de transferência de valor (sangria financeira, lucros repatriados, troca desigual, etc.) e também de tutela política entre as formações sociais do centro e as da periferia - relações imperialistas em suma. O centro está, como vimos, dividido em três polos principais. Mas o sistema é uno e dispõe até hoje de uma arquitectura institucional que reflecte essa unidade (G7, Conselho de Segurança da O.N.U., F.M.I., Banco Mundial, O.M.C., etc., etc.). As regras do jogo são as mesmas em todo o lado. Por haver três polos acumuladores não é que haverá três sistemas imperialistas, como não é por haver 300.000 capitalistas rivais que haverá outros tantos sistemas de extracção de mais-valia. Esses polos, aliás, não dispõem hoje de “coutadas” fixas, explorando todos eles o conjunto do planeta num regime de mais ou menos livre concorrência. O confronto imperialista deslocou-se assim, em grande medida, para coisas mais “abstractas”: taxas de juro, proteccionismo comercial, política industrial, cambial, etc.. Estas questões podem parecer “imateriais” mas traduzem-se de facto em colossais movimentos de capital. Os imperialistas batem-se já entre si por elas (e bater-se-ão porventura amanhã inclusive pela via armada) com tanto empenho ou mais do que ontem por Marrocos ou Tanganica.
O imperialismo (ou sistema capitalista mundial) é, pois, este conjunto muitíssimo complexo de relações de exploração e opressão à escala mundial que, como diria o tal Marx, “se impõe aos homens independentemente da sua vontade”. Não, não é uma “atmosfera geral que envolve o planeta” (!?...). É o pulsar da vida real e concreta, a vida toda: a maneira como o suor, o sangue e as fezes de todos os homens e mulheres, os vivos e os mortos, se vai acumulando como riqueza material, progresso e cultura em certos pontos particulares, com exclusão de outros, renovando-se o ciclo incessantemente, com um automatismo cego e brutal. M.R. pensa que “a vida dos povos” se decide por troca de notas entre chancelarias, mas a verdade é que ela já está decidida muito antes, no processo material de produção da existência à escala mundial. Foi aí que a Jugoslávia foi trucidada. Sobre este processo e como possa ele, porventura, amenizar-se um pouco para a maioria, ou alterar curso, os altos “dirigentes” e seus conselheiros “científicos” pouco menos ignorantes e impotentes são do que qualquer operário comum. Aliás, se o operário conhecer uns rudimentos de marxismo já estará claramente em vantagem sobre eles, envoltos nos seus antolhos ideológicos burguesas.
Se M. R. pensa que Clinton (ou Khol, enfim, para lhe dar prazer, ou toda a cimeira do G7) tem um conhecimento perfeito de todas as leis económicas e do movimento das sociedades capitalistas, mantendo firmemente em mão todos os comandos de desenvolvimento da situação mundial, demonstra uma visão infantil e mitológica da política. O mesmo para o caso de pensar que os grandes desenvolvimentos históricos têm sempre tradução ou são sempre veiculados por decisões conscientes de algum grande dirigente ou executivo. Pelo contrário, a tendência histórica é para a redução cada vez mais acentuada da margem de relevância do conteúdo volitivo e consciente na direcção do sistema. O sistema está já hoje aliás praticamente sem direcção alguma, propulsionado por um paralelogramo de forças colossal e incontrolável constituído pela soma e intersecção da sede de lucro individual de todos os capitalistas. Não vale a pena iludirmo-nos com a ideia (semi-esperançosa para alguns) de que “eles” sabem muito bem o que fazem e, quando “quiserem”, poderão travar, evitando à justa precipitar o conjunto da humanidade no abismo. “Eles” não sabem nem podem. Temos de ser nós a fazê-lo.
É evidente que o facto de os dirigentes do capitalismo serem inconscientes não os exonera de responsabilidade política. Eles são inegavelmente criminosos, senão nunca teriam sido cooptados para os lugares que ocupam. Simplesmente, não faz sentido - nem adiantamos nada politicamente com isso - estar a atribuir-lhes pessoalmente os mais pérfidos desígnios quando estes nunca lhes passaram pela cabeça (o que também não falta são os casos em que eles os tiveram mesmo: o Golfo, Afeganistão, etc., etc., etc.), nem eles estão sequer ideologicamente apetrechados para compreender a sua responsabilidade. O que temos é que demonstrar esta mesma responsabilidade ao conjunto do proletariado e às massas, explicando-lhes porque é que este sistema não pode deixar de produzir, uma e outra vez, cada vez mais, catástrofes semelhantes à jugoslava (10) e que por isso mesmo ele tem de ser derrubado revolucionariamente. M.R. prefere, contudo, contar-lhes histórias mais que duvidosas de medonhas conjuras, com o que (caso lograsse algum crédito, o que é bem improvável) apenas lhes transmitiria a ideia de que o problema se pode afinal resolver pondo “lá em cima” pessoas um pouco mais sensíveis e compreensivas.
Não estou a contar voltar a este assunto, que já me parece exaustiva e (penso eu) proveitosamente debatido. Para Manuel Raposo, que conheço ainda superficialmente apenas, envio um forte abraço, a minha estima e a minha camaradagem.
P.S.: Jacques Attali é uma personalidade sui generis e um escritor interessante, de temas económicos, políticos e também de ficção científica. Dele disse Mitterrand um dia: “Que imaginação poderosa! Se uma ideia sua entre dez for boa, isso já será uma coisa extraordinária”. Os textos citados são curiosos mas não podem ser levados muito a sério nem, de modo algum, ser tidos como representativos de qualquer pensamento “europeu” (que nunca existiu), ou francês sequer.
(***) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 57 (novembro-dezembro de 1996).
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NOTAS:
(1) Não é certamente coincidência que o F.M.I. tenha abandonado o local do crime literalmente meses antes na Jugoslávia, na Somália e novamente no Ruanda.
(2) A Jugoslávia tinha uma "dívida" de cerca de 10 biliões de dólares. O F.M.I. propõe distribuí-la do seguinte modo: 36,52% para a Sérvia/Montenegro, 28,49% para a Croácia, 16,39% para a Eslovénia, 13,2% para a Bósnia-Herzegovina e 5,4% para a Macedónia. O assunto não está ainda definido, porque o regateio continua. O que parece certo é que estes permanecerão, ainda por algum tempo, "créditos" de cobrança problemática.
(3) Aquando da ofensiva croata na Krajina (área de povoação sérvia desde o século XVII), toda a "liderança" política e militar sérvia local debandou sem avisar ninguém em menos de 12 horas, deixando os soldados nos seus postos sem comando e a população entregue ao massacre dos invasores. Tudo demasiado bem coordenado para ser cobardia "espontânea". Houve traição e a ordem veio de Belgrado.
(4) Uma curiosidade: Já depois de concluído este artigo, a 17 de Abril de 1996, a Alemanha anunciou a normalização das suas relações diplomáticas com a Jugoslávia (Sérvia e Montenegro), antecipando-se a todas as demais potências; a 16 de Maio passado, o MNE alemão Klaus Kinkel visitou Belgrado, avistando-se demoradamente com Milosevic, reunião esta tida como "exaustiva" e "de extrema importância". Abre-se o jornal e os factos continuam a fazer gato-sapato das teorias de M. R.. Será por a imprensa estar manietada?... É de endoidecer.
(5) Se a guerra jugoslava não estivesse tão insistentemente na ordem do dia mediática em todo o mundo, estou convencido que Washington teria continuado a achá-la "assunto europeu". Teria julgado o risco demasiado elevado para os proventos antecipáveis da operação. O papel dos media é obviamente importante. Pois nós não vimos os marines entrar... e sair da Somália, ao sabor dos editoriais e das sondagens de opinião? Eu também pensei que nesta iniciativa havia certamente um objectivo geo-estratégico oculto (v. meu artigo na P.O. nº 39, p. 10 do suplemento) mas, fosse qual ele fosse (e certamente havia-o), não era decisivo pois se esfumou imediatamente quando houve as primeiras baixas importantes e a maré da "opinião pública" virou. Intrigante, mas foi exactamente assim que se passou. Só deixava duas hipóteses: 1) os políticos norte-americanos são tão tolos que acreditaram na sua própria propaganda (muitíssimo improvável, convenhamos); 2) eles dão cada vez mais importância à batalha ideológica no tabuleiro mundial, apoiando-se crescentemente para isso na sua própria indústria da "opinião" e submetendo as suas decisões ao escrutínio desta. Foi aí que eu aprendi a valorizar a "autonomia relativa" dos media.
(6) M.R. dá agora a entender que também não gosta de Milosevic mas que “não confunde os sérvios da Bósnia com os da actual Jugoslávia”. A diferença mais notável entre eles, porém, é que enquanto Slobo é um pós-”comunista” (a sua mulher e “aliada” política, Mirjana Markovic, tem até um partido próprio com pretensões esquerdistas), os sérvios bósnios do SDS são nacionalistas arqui-reaccionários, neo-chetniks, tendencialmente monárquicos. Francamente, fico sem saber que espécie de caldo “anti-imperialista” é que M.R. quererá ainda cozinhar com semelhantes legumes. Deixou-se seduzir pelas suas fanfarronadas inconsequentes (também aqui sem qualquer conteúdo político anti-imperialista)? Outra vez? Diz o ditado que à segunda só cai quem quer.
Teria sido porventura correcto ter-se pensado assim: estes caudilhos sérvios são uns patifes da pior espécie (como aliás era e é Saddam Hussein) mas se, eventualmente, derrotarem os intervencionistas, abrir-se-à aqui um buraco na ordem imperialista que poderá ter consequências políticas interessantes. A questão, porém, com estes sérvios (de qualquer das bandas) foi que desde muito cedo ficou absolutamente claro, dada a sua postura política, que eles não se iriam bater nunca. Estavam só a regatear um pouco. Isso não é assim por cobardia ou “realismo” seus, entenda-se. Se eles quisessem, facilmente criavam ali uma situação militarmente embaraçosa para os intervencionistas. É assim devido à sua opção e desígnio políticos. Esta opção e desígnio - “democracia”, mercado livre, investimento externo, etc. - colocam-nos dentro e não fora ou à margem da tal “ordem” imperialista, tornando um afrontamento inverosímil. Em linguagem corrente: a burguesia sérvia quer é gamela à frente dos beiços como qualquer outra. Que sentido faz estarmos nós a apoiar os sérvios bósnios na sua guerra de razia e massacre a populações muçulmanas (geralmente indefesas ou pouco menos) para depois os vermos agacharem-se à chegada dos norte-americanos, afivelando à pressa uma compostura grave de estadistas e interlocutores razoáveis?
(7) Ou, porventura, desconhece - o interesse de M.R. por esta questão deve ser muito mais recente. De qualquer modo, ele parece que prefere não ler os jornais a fim de não se intoxicar. Se me for permitido um alvitre, ele deveria era aprofundar a sua formação ideológica e teórica, que logo deixaria de ter tanto medo de contaminação pela imprensa burguesa. Houve certamente montes de propaganda e desinformação (a maior parte dela anti-sérvia), mas globalmente a crise jugoslava até nem foi assim tão manipulada como isso (enfim, nada que se compare, remotamente sequer, com a guerra do Golfo). E não o foi porque não envolvia luta de classes, não punha em causa questões ou recursos essenciais para o imperialismo e, durante a maior parte do tempo, as diversas “potências” pura e simplesmente não sabiam o que lhe fazer. Milhares de repórteres circularam assim no terreno mais ou menos livremente, sem instruções, encomendas ou condicionamentos específicos. Os “casos” da guerra que M.R. refere (citando-os, vá se lá saber porquê, como “indícios” do tal plano alemão de desmembramento da Jugoslávia - ??...), aliás de forma incorrectíssima, foram todos eles tratados exaustivamente nos meios de comunicação de maior difusão. Se um certo “consenso” mediático se estabeleceu sobre serem os sérvios os maus da fita, isto deveu-se à dinâmica particular desta guerra (em que os sérvios estiverem de facto quase sempre na ofensiva, como aliás lhes competia visto serem eles a parte descontente com as fronteiras traçadas) conjugada com as regras próprias da indústria do espectáculo “informativo”. Não houve aqui qualquer condicionamento ou preconceito generalizado de natureza política, ideológica ou “civilizacional”. Foi depois este produto mediático assim fabricado que influenciou as decisões político-militares dos imperialistas e não o inverso. Na véspera do início da(s) guerra(s), as análises oficiosas dos círculos governantes imperialistas tendiam aliás, baseadas em considerações de “real politik”, para o suporte de facto a um certo hegemonismo sérvio, único pilar julgado então capaz de suster ainda a federação. Foi depois, com o progressivo bombardeamento mediático a que o conflito deu aso, que esta atitude se foi alterando lentamente, chegando até ao apoio activo à Croácia e ao intervencionismo pró-bósnio. Tudo a pedido de uma maioria dos telespectadores. Aliás, M.R. (com a única particularidade de ter resolvido tomar o partido dos “mauzões” - o que é afinal apenas a outra forma de participar no mesmo jogo) parece-me singularmente influenciado por todo este ritual circense de agitação e orquestração de paixões colectivas.
(8) Repare-se que eu não disse “agressão sérvia à Bósnia” - sei bem como M.R. é irritável nestes pontos. Quanto à “Grande Sérvia” não é nenhum “argumento cretino”, é um projecto com uma realidade muito objectiva e detalhada - no Memorando da Academia Sérvia de Ciências de 1986 - que Milosevic prosseguiu à risca, até onde lhe foi possível naturalmente.
(9) Os dados factuais citados neste artigo são quase todos recolhidos de Catherine Samary, Yugoslavia Dismembered, Monthly Review Press, New York, 1995.
(10) No momento em que escrevo, ultimam-se preparativos para uma intervenção armada multi-nacional no Leste do Zaire para aí abrir “corredores humanitários”. A coerência exige que M.R. apronte rapidamente uma nova teoria conspirativa local para nos livrar de mais este embaraço político. Para trás estão já a Somália e o Haiti, a necessitar de explicações similares. Ou M.R. pensará que os pretos (porventura mais “bárbaros” do que os eslavos) são, eles sim, perfeitamente capazes de se matarem uns aos outros sem serem empurrados para isso? O paternalismo (e o êxito propagandístico) imperialista parecem não o preocupar tanto aqui. Pelo menos, não lhe espicaçam tão prontamente a imaginação.
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