Tem havido um saudável e vivo conjunto de debates nesta revista em torno do tema do imperialismo. O assunto é da maior relevância teórica e prática, não podendo a ocasião para debatê-lo ser mais apropriada. Por uma feliz circunstância, tenho estado eu colocado numa espécie de encruzilhada polémica, em confronto com Claude Bitot, Francisco Rodrigues e Manuel Raposo.
Quanto a Manuel Raposo, não há infelizmente, na sua peçazita intitulada “Curta polémica”, nada a que valha a pena responder. Ele parece apenas ter-se preocupado em tentar, uma vez mais, toldar as águas, mistificar os termos do meu debate com ele e, por fim, dirigir-me ad hominen meia dúzia de amenas necedades de recorte mais ou menos insultuoso, embora aparentemente sem intenção totalmente malévola. Tomo a coisa com desprendimento desportista, reservando-me o direito de não o seguir por essa via.
Eu não pertenço, de facto, e não acompanhei a tradição política de que a Política Operária é herdeira. Nunca fui maoista. Mas já ando nisto do marxismo e do socialismo revolucionário há muitos anos (para aí uns vinte) e não vou agora aprestar-me a receber lições de quem não parece ser sensivelmente mais velho do que eu ou ter tirocínio suficiente para mas dar. Camaradagem, sim. Sempre. Mas se alguém está à espera que eu me submeta a especiais provas de humilhação ritual para ser aceite neste benigno seio político, não conte comigo. Não há pachorra.
Manuel Raposo ficou agastado com o meu tom e estilo polémicos. Mas esta é a melhor tradição de debate entre comunistas: vivo e a rasgar. Entre nós, é mais importante um rigoroso e implacável esclarecimento das questões do que o respeito por susceptibilidades e pundonores. Eu tive aliás oportunidade de lhe dizer de viva voz que isto seria assim e ele, aparentando grande galhardia, disse-me que estava plenamente de acordo que assim fosse já que ele mesmo tinha dado o pontapé de saída desse modo. Não vejo porque há-de estar agora com ressentimentos.
Enfim, fosse porque razão fosse, Manuel Raposo diz-se insatisfeito com a conclusão do debate sobre a Jugoslávia e o emergente teatro de confronto inter-imperialista no velho continente. Convido-o pois (ou a quenquer) a prossegui-lo na sequência do meu artigo sobre a NATO neste mesmo número da PO.
Agora nós, Francisco:
O teu artigo “O erro de Lenine” não me é dirigido em primeira linha, mas compraz-se em me atribuir um lugar de acólito de Claude Bitot (a começar pela sibilina observação de que eu polemizei com Raposo mas “dialoguei” com Bitot...) que eu tenho que rejeitar com toda a firmeza. Felizmente, os registos estão aí (v. “A crise do capitalismo”, PO nº 56) e a memória dos leitores não será assim tão curta. Por outro lado, reafirmas de uma forma mais desenvolvida posições que já foram objecto de uma anterior troca entre nós (v. PO’s nºs 54 e 55) e que eu continuo a achar erróneas, alheias à tradição marxista e conducentes a um beco sem saída.
Adeus ao imperialismo?
Sou citado no teu artigo como tendo dito que “o imperialismo não é nenhum estádio supremo do capitalismo” e que a teoria leninista do imperialismo estaria “obsoleta”. Não faço a mínima ideia onde é que foste buscar isto. Tenho os meus cabelos arrepiados até ao último. O que eu digo, no meu debate com Bitot, é que a problemática do imperialismo “não está de modo nenhum comprometida pela questão do estádio supremo e pela análise leninista da guerra” (de 1914-18, entenda-se). Na minha correspondência particular contigo escrevi depois (carta de 12 de Setembro de 1996): “Acho que não maltratei o ‘Imperialismo’ de Lenine. Contudo também acho, isso sim, que a teoria do imperialismo ganhará em se emancipar um pouco do temor reverencial perante esta obra, que tem muito de circunstancial, apesar de todo o génio analítico do seu autor. A teoria do imperialismo envelhecerá rapidamente se insistir em tê-la como pilar único. E não precisa disso. Ela já vinha de trás e, na segunda metade deste século, tem tido riquíssimos desenvolvimentos. Se quiseres, podemos discutir isso.” Por favor, lê de novo os textos antes de citares. Não atires assim para o ar com citações de memória que são puro produto da tua imaginação.
Há particularmente um elemento na teoria de Lenine (que era aliás comum a todos os marxistas da sua geração) que eu acho que deve claramente ser abandonado. É ele o “catastrofismo” económico, a ideia que o capitalismo está no último dos últimos estertores. Isto é ainda um resquício do determinismo economicista da II Internacional. É este elemento que está aliás na base da expressão “estádio supremo” e, passados estes anos todos, é claro que tem o flanco exposto à crítica do Bitot. É esta, aliás, a única concessão que eu lhe faço nesta matéria. A meu ver, devemos abandonar este catastrofismo (e expressões como “putrefacção”, “decomposição”, etc.). Pura e simplesmente, não sabemos quantos fôlegos pode ainda ter a besta. Temos que pegá-la de caras sem termos nunca quaisquer certezas sobre isso. A ideia de que a sua queda inevitável está iminente (ou está já atrasada há muito, cada vez mais, incrível como ainda se tem de pé..., etc.) esteve na base de graves erros cometidos pela III Internacional na apreciação do fenómeno fascista no chamado terceiro período. Poulantzas faz-lhe uma crítica muito fundamentada.
Posso aqui referir ainda outro elemento da teoria de Lenine (muito em destaque no teu artigo) que deve ser posto em perspectiva: a proeminência do capital financeiro. Como deves saber esta concepção tem origem numa obra do austro-marxista Hilferding baseada na realidade do capitalismo alemão do princípio do século. É, por vezes, muito difícil estabelecer com segurança qual é a facção do capital que tem proeminência numa dada época histórica. Curiosamente, nesta última década, parece de facto haver um recrudescimento da febre especulativa, com grandes massas de capital vagueando predatoriamente pelos mercados bolsistas. E, no entanto, as grandes multinacionais continuam a autofinanciar-se directamente com os seus próprios lucros. O que sucede também, cada vez mais, é serem as próprias empresas industriais (automóveis, electrodomésticos, electrónica, etc.) a estabelecerem relações agiotárias com os seus clientes. Enfim, é pelo menos muito problemático falar-se de proeminência do capital financeiro como uma das características definidoras de todo o chamado imperialismo “clássico” (fase dos monopólios), que corresponde grosso modo a todo o século XX.
Além de tudo o mais, é óbvio que os termos da partilha imperialista e os seus elementos definidores de carácter económico e político se alteraram sensivelmente, sobretudo após a II Guerra Mundial. Não vejo nenhum crime hediondo de lesa leninismo em rever criticamente a colocação destes problemas quando tal se impõe com toda a clareza. Estou absolutamente seguro que esta é a única atitude que Lenine aprovaria decididamente. Não há absolutamente ninguém na História mundial que eu mais admire que Lenine. Simplesmente, além de ser naturalmente um homem do seu tempo, era um ser eminentemente prático. Um animal político, como se diz agora. As suas obras tinham geralmente um objectivo imediato (no caso do “Imperialismo”, fornecer a base teórica para a cisão de Zimmerwald). Fazer um fetiche intemporal das suas concepções teóricas não é certamente a melhor forma de servir a sua memória e de usar o seu método. É bem certo que nunca o movimento operário voltou a ter um dirigente e teórico com a preparação, a agudeza e a têmpera revolucionária de Lenine. Possivelmente não terá um tão cedo. Mas será isso justificação para fecharmos os olhos à nossa volta e os enfronharmos cegamente nos seus escritos?
Dentro das minhas limitações (sou um pouco avesso a literatura económica demasiado técnica), eu sou um estudioso esforçado do imperialismo. Tenho recolhida já uma boa biblioteca sobre o assunto, incluindo marxistas clássicos, “dependentistas”, Samir Amin, etc.. Já escrevi sobre ele na PO várias vezes, traduzi um artigo do Harry Magdoff (1) e correspondi-me com ele, eu sei lá. Dentro dos meus modestos estudos, se há um campo a que eu dou uma especial primazia é precisamente ao imperialismo. Se houvesse algum princípio de divisão de trabalho teórico na PO, esta seria a minha área. Não estava minimamente à espera que me viesses agora dizer que quando alguém manda o imperialismo às urtigas eu digo amen. Esta foi precisamente a matéria em que mais encarniçadamente me bati com Bitot e, a meu ver, a única em que ele foi claramente derrotado.
Onde está a revolução?
O que não oferece quaisquer dúvidas é que, como tu afirmas, as relações especificamente imperialistas de exploração introduzem sensíveis distorções nas formações sociais do capitalismo central. A este propósito, já a 7 de Outubro de 1858, Engels escrevia em carta a Marx: “O proletariado inglês vai-se aburguesando de facto cada vez mais: pelo que se vê, esta nação, a mais burguesa de todas, aspira a ter, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês. Naturalmente, por parte de uma nação que explora o mundo inteiro, isto é, até certo ponto, lógico.”
Ao contrário do que tu dizes, Marx e Engels conheceram e estudaram muito bem o fenómeno imperialista. A teoria e história da aristocracia operária foi formulada por Engels no seu prefácio à edição alemã de 1892 de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (2). No que respeita à influência das relações imperialistas no movimento operário, Lenine simplesmente retoma esta teoria, juntamente com algumas observações do economista burguês progressista Hobson, sem lhes acrescentar nada de substancialmente novo. Ele próprio dá as referências e faz as citações no seu opúsculo. Não sei porque é que tu insistes em ver aqui uma grande descoberta de Lenine. Ou melhor, até sei. Tu queres-nos dizer que Lenine viu coisas que os fundadores do marxismo não puderam ver no seu tempo. É certo. Mas o imperialismo nasceu no século XV e sempre acompanhou o capitalismo. Nunca houve um sem o outro. “Parasitismo” e “putrefacção” eram características marcantes da sociedade portuguesa dos reinados de D. Manuel I, “o venturoso”, e seguintes. O que Lenine testemunhou foi, por um lado, a ascensão do grande capital monopolista, e por outro, uma era de violentos afrontamentos inter-imperialistas onde antes tinha havido uma indisputada hegemonia britânica. Mas, nesse particular, o que se pode dizer é que, desde o final da II Guerra Mundial, regressamos afinal em grande medida ao modelo hegemónico, embora agora centrado nos E.U.A..
Marx, Engels e Lenine têm aproximadamente a mesma posição sobre a influência do imperialismo na revolução proletária. O socialismo desponta lá onde os meios de produção estiverem mais avançados. É este avanço que, entrando em contradição com as existentes e retrógradas relações de produção, forçará uma explosão revolucionária. Ora, por factores políticos vários - incluindo a distribuição de “rendas” e dividendos de uma posição imperialista - com incidência nos factores subjectivos e superestruturais (“consciência de classe”, etc.), essa explosão pode aí ser retardada e necessitar de ser despoletada por um detonador situado algures na periferia. Seria então uma contradição menor e descentrada a pegar fogo a todo o sistema. A teoria leninista do elo mais fraco é substancialmente a mesma coisa que o “desvio irlandês” encarado por Marx para a revolução na Inglaterra. O que é inconcebível é uma revolução socialista que deixe incólumes os principais centros imperialistas, mantendo estes toda a sua capacidade para explorar e pilhar a contento o resto do planeta, cercando e circunscrevendo imediatamente todos os esporádicos fenómenos revolucionários. Tem de haver uma crise insurreicional e tomada de poder pelo proletariado nas nações imperialistas. Sem isto, continuaremos na mesma.
É verdade que o proletariado nos países do capitalismo central tem estado, de há vários décadas para cá, adormecido pelo “acordo social-democrata com a sua própria burguesia”. Não nos deve isso surpreender. As épocas de consenso e paz social sempre foram a regra. A revolução é que é a excepção. Sábia toupeira, munida de toda a cólera e paciência do mundo, vai minando terreno aparentemente firme, preparando-o para a sua completa transfiguração. Entretanto, desde os anos 1980, a social-democracia entrou em falência histórica, assistindo-se hoje há sua derrocada total. A crise estrutural do capitalismo (e a agudização da competição inter-imperialista) forçou a burguesia a rasgar o “acordo” e a lançar uma brutal ofensiva em toda a linha contra os trabalhadores. O que resta ainda da social-democracia clássica é agora parte integrante do bloco burguês mais radical, deixando de fazer sentido falar-se a seu propósito de colaboração de classe, traição, oportunismo, etc.. Uma política independente do proletariado terá de ser reconstruída de raiz. Para já, assistimos ao surgimento de novos partidos “trabalhistas” um pouco por todo o lado. A hora do renascimento do socialismo revolucionário soará em breve.
O que eu gostava de saber é onde é que tu vês “os sintomas de convulsões revolucionárias”, lá no “atrasado terceiro mundo”. Isto faz-me lembrar um amigo norte-americano da Internet que ficou muito entusiasmado por conhecer um português. Dizia ele, em suma: “Isto aqui é uma pasmaceira mas aí vocês ao menos, ainda há pouco fizeram uma revolução e devem estar já a preparar a próxima”. Tive que o desiludir. Se fosse contigo, remetia-lo talvez para Marrocos. Mas eu tenho a impressão que os nossos camaradas marroquinos sentiriam o mesmo acabrunhamento que eu senti.
É verdade que, nas formações sociais da periferia, “o imperialismo bloqueia e distorce o processo de acumulação do capital, criando estrangulamentos explosivos”. Mas o facto saliente deste final de século é, precisamente, que estes estrangulamentos não têm dado origem a insurreições revolucionárias de modelo e inspiração socialista, mas antes a fenómenos tribais, ao bandoleirismo e ao caos social (Haiti, Somália, Libéria, Serra Leoa, Angola, Tchechénia, Ruanda, Burundi, Argélia, Jugoslávia, Zaire, Afeganistão, Rep. Centro-Africana, Ásia central, etc., etc.). Mesmo as guerrilhas do Peru e da Colômbia, com um passado respeitável, aproximam-se agora deste padrão, sob a influência dos traficantes de droga. As guerrilhas mexicanas são politicamente ambíguas e militarmente insignificantes. A recente insurreição popular albanesa - sendo um fenómeno claramente positivo e de saudar calorosamente - está ainda marcada por uma grande desordem e indefinição, dando mostras de evoluir para o mesmo padrão caótico.
Tu pareces-me influenciado por uma visão mecanicista da revolução. Para ti, com alguma margem de variação, uma dada quantidade limite de sofrimento humano conduzirá inevitavelmente à revolta, como a água afinal se evapora inevitavelmente aos 100 graus centígrados. Haverá também aí possivelmente uma espécie de moralidade retributiva de inspiração judaico-cristã. Mas o que eu te tenho a dizer é que o mundo é um lugar muito mais cruel, imprevisível e sem sentido do que tu pensas. No mundo real (que não no das fantasias ideológicas e religiosas), os crimes, por regra, ficam impunes. É assim mesmo e não vale a pena estar a desgastar a nossa bílis com isso em pura perda. Temos é que nos concentrar e atacar a burguesia lá onde lhes dói mais. Gerações e gerações de oprimidos, centenas de milhões de homens e mulheres em todo o mundo, em todas as épocas históricas, deixaram-se aniquilar sem um queixume, sem um gesto de revolta, com uma imensa e branda resignação. Continuam aliás a fazê-lo, cada vez em maior número. A minha esperança não é que as coisas fiquem tão más que tenham de mudar. Por aí sei eu que nunca mais lá vamos. As sociedades de classes (e particularmente a sociedade burguesa) têm uma capacidade infinita para tolerar e assimilar no seu seio a infâmia total. A minha esperança é que uma nova classe social tome o poder e mude radicalmente o sistema por que se rege o nosso mundo, acabando para sempre com as sociedades de classe. Essa classe social fá-lo-à, não por considerações morais, não movida por puras e irreprimíveis necessidades físicas, mas porque se sente finalmente apta a fazê-lo e chegou a sua hora.
Por fim, em minha opinião, revoluções socialistas e anti-imperialistas na periferia (ex-”terceiro-mundo”) são cada vez mais uma impossibilidade. Em primeiro lugar, por razões estritamente militares. As nações imperialistas, sobretudo os E.U.A., amontoaram um conjunto impressionante de armamentos de alta tecnologia e de destruição maciça. Eles podem chegar a qualquer lado, em poucas horas, com um poder destruidor colossal e irresistível. Aviação indetectável, bombas guiadas por laser, mísseis de cruzeiro “tomahawk”. Em último recurso, armas nucleares tácticas ou intercontinentais. Os satélites militares norte-americanos podem identificar objectos do tamanho de um maço de cigarros, em qualquer parte do mundo.
Se a revolução soviética se realizasse hoje, teria de enfrentar uma guerra de intervenção estrangeira com meios incomparavelmente mais poderosos. Mesmo as revoluções chinesa e cubana não seriam hoje possíveis. Nem a vitória da guerra popular vietnamita. Agora que não há qualquer potência rival com capacidade de resposta dissuasora, se os imperialistas norte-americanos estiverem mesmo dispostos a usar tudo o que têm (e está-lo-ão, não tenhamos quaisquer ilusões sobre isso, sempre que sentirem uma ameaça tangível para a sua “nova ordem”) não há nada, ninguém, em parte alguma que lhes possa resistir. Será aniquilado, pura e simplesmente. O imperialismo já não é o mesmo “tigre de papel” de há umas décadas atrás. A nova doutrina militar norte-americana impõe a manutenção de forças e mobilidade suficientes para conduzir não uma, mas duas guerras simultâneas em diferentes pontos do globo. E os meios de que dispõem agora permitem-lhes fazê-lo sem graves custos humanos para si, o que enfraquecerá a oposição interna a estas agressões. Finalmente, não existe já a União Soviética (ou a China Popular) para dar apoio militar e técnico a uma futura insurreição anti-imperialista. Na verdade, o desequilíbrio de meios entre o imperialismo e qualquer força que pretenda desafiá-lo militarmente é agora tamanho que não estaremos em presença de uma guerra em sentido clássico mas de uma matança obscena e sem sentido. Para perceber esta evolução, basta seguir a trajectória da guerra do Vietname até à do Golfo. Não podemos continuar a viver no passado.
Em segundo lugar, mesmo admitindo-se a hipótese de vitória de uma revolução popular num destes países periféricos (o que só poderia acontecer mediante alguma tolerância ou negligência dos imperialistas), haveria que garantir a sua sobrevivência económica. Esta só será possível entrando no jogo das relações mercantis internacionais - imperialistas. Se se tratar de uma enorme extensão territorial, repleta de abundantes recursos naturais e uma mão de obra qualificada (como era a União Soviética), poderá tentar resistir à assimilação por algum tempo, à espera do socorro decisivo das massas revolucionárias nas grandes metrópoles do imperialismo. Se for um país de talhe médio, a escolha será, imediatamente, entre a traição/renúncia e a miséria absoluta, um jogo que as revoluções cubana, vietnamita e coreana já conhecem muito bem hoje. Em todo o caso, estando a economia mundial muito mais integrada hoje em dia do que no início do século, é também cada vez mais difícil prosseguir esta estratégia isolacionista de “desconexão”.
Em vez de uma “sucessão de aproximações” cada vez mais conseguidas ao objectivo socialista, como tu prevês, teremos sim sacudidelas e assomos cada vez mais breves, desesperados e inconsistentes. Uma vez mais te digo: revolução sim, mas mundial.
Proletariado internacional ou nações oprimidas?
Quanto ao agente activo dessa revolução, há um só: o proletariado internacional. Toda a tradição marxista em peso vai nesse sentido. “Proletários de todos os países, uni-vos!” A meu ver, há neste momento histórico condições excepcionais para começarmos a dar um princípio de concretização ao projecto marxista. Indústrias inteiras ou (mais frequentemente) segmentos específicos delas são “deslocalizadas” para países com mão de obra mais barata. Muitas vezes, a simples ameaça deste procedimento é utilizada como elemento de pressão sobre as condições de remuneração do trabalho. A ofensiva “globalizante” do grande capital tenta assim colocar o proletariado de diversos países - do centro e da periferia, nacionais e imigrantes, com ou sem “papéis” - em concorrência e animosidade recíproca. É a sua táctica mais antiga e nunca ela deixou de ter algum sucesso inicial. Neste momento, a classe operária está de facto desorientada e na defensiva. Mas decorre das próprias leis económicas do sistema a emergência, a prazo, de uma resposta por parte do proletariado: a sua organização à escala mundial para resistir e contra-atacar. Esta é a tarefa para o próximo século. Pode hoje parecer quimérico a muitos. Mas o mundo torna-se mais pequeno cada dia. Muito em breve estaremos face a face com os nossos camaradas das mais variadas “etnias”, tradições, crenças e qualificações. Começará então o trabalho, árduo mas imprescindível, de paciente construção das bases para a unidade de acção (3). Compararemos experiências e reforçaremos mutuamente a nossa determinação de lutar juntos contra o capital sem fronteiras.
Esta união poderá começar por ter um carácter meramente económico (como o foi, inicialmente, a própria A.I.T. de Marx). As burocracias sindicais de base nacional ver-se-ão ultrapassadas pela imparável ascensão de um movimento transnacional e transcontinental de solidariedade operária. Mas com base nesta estrutura nova (ou, possivelmente, na sua ala esquerda) acabará inevitavelmente por se constituir um partido internacional do proletariado. O seu objectivo estratégico será a tomada do poder, o derrube do sistema capitalista e a instauração da ditadura do proletariado à escala mundial. Isto só poderá conseguir-se através da greve de massas, seguida de um movimento insurrecional generalizado.
Há, entre os ideólogos burgueses, quem faça um grande caso do declínio relativo da massa operária nos países capitalistas mais desenvolvidos. Diz-se “adeus ao proletariado” (A. Gorz), proclama-se o fim da cultura e da sociabilidade especificamente operárias, etc.. Também tu pareces agora um tanto impressionado com estes argumentos. Mas o facto objectivo é que, tomando como referência o conjunto do mundo industrializado e em vias de industrialização, é total e patentemente falso que o peso sociológico da classe operária esteja em declínio. Pelo contrário, nunca ela conheceu antes um período de tão franca expansão. Todos os anos, dezenas e dezenas de milhões de novos braços se oferecem no mercado da força de trabalho. Cada vez mais são engajados. Entretanto, e como muito bem observa o nosso camarada iraniano Mansoor Hekmat (4), não está escrito em lado algum que a classe operária tenha de ser maioritária para tomar o poder. A burguesia certamente que nunca o foi. O factor histórico decisivo é - na sequência das transformações sofridas pelas forças produtivas - a pressão contínua que o proletariado vai exercendo no sentido da apropriação dos meios de produção e, consequentemente, da direcção de todos os processos sociais.
Não existindo, hoje em dia, uma questão colonial no sentido clássico, é no entanto verdade (como já vimos) que as especiais distorções que sofrem as formações sociais da periferia podem levar a que as suas contradições atinjam o ponto de ruptura antes de a revolução estar na ordem do dia nas metrópoles centrais. Por outro lado, não será nunca demais meditar na seguinte observação de Lenine (descontadas algumas referências hoje um tanto anacrónicas):
“imaginar que uma revolução social é concebível sem revoltas de pequenas nações nas colónias e na Europa, sem os assomos revolucionários de uma secção da pequena burguesia com todos os seus preconceitos, sem movimentações do proletariado não consciente e de massas semi-proletárias contra a opressão pelos senhorios, a igreja e a monarquia, contra a opressão nacional, etc. - imaginar tudo isto é repudiar a revolução social. Portanto, um exército alinha-se num dado sítio e proclama, ‘Nós somos pelo socialismo’, enquanto um outro, noutro lado qualquer, diz ‘Nós somos pelo imperialismo’, e teremos então uma revolução social! Só quem tenha uma visão tão ridiculamente pedante é que poderá difamar a rebelião irlandesa chamando-lhe um ‘putsch’” (5).
Como já os fundadores do marxismo nos ensinaram nos seus escritos mais “jornalísticos” (p. ex. ‘18 do Brumário’), uma situação política concreta tem sempre múltiplas linhas de conflito. Considerando agora uma crise revolucionária de âmbito mundial, não podemos senão concluir que ela se há-de necessariamente revestir de uma extrema complexidade. No final, porém, o grande afrontamento histórico e a ruptura civilizacional será entre o mundo do capital e das relações mercantis e o do proletariado e da livre associação dos produtores. Esta é que é a linha de confronto fundamental. A revolução poderá ter início no centro ou na periferia, mas deverá ser dirigida pelo partido do proletariado tendo por base um movimento coordenado e envolvente. Em certo ponto (toda esta ofensiva não deverá demorar mais do que uma ou duas décadas a concluir-se) ele deverá necessariamente atacar o próprio coração do sistema capitalista mundial. Os centros de poder das grandes metrópoles imperialistas têm de ser efectivamente neutralizados.
Esta, enfim, é a via revolucionária da fraternidade proletária universal que nos ensinaram todos os clássicos do marxismo e para a qual os próprios factos nos empurram agora irrecusavelmente. Vejamos o que nos ofereces tu em alternativa.
O que salta à vista em primeiro lugar na tua construção é o seu carácter puramente ideológico. Tu pareces completamente alheado do facto de que existe uma ciência económica marxista que trata precisamente dessas mesmas questões que tu abordas aqui com um misto de impressionismo fácil e fé dogmática. Devido à embrulhada tremenda que é o problema da transformação dos valores em preços (v. ‘O Capital’, III Vol.), não é possível seguir em pormenor o funcionamento da lei do valor à escala mundial. Concretamente, é impossível dizer se e em que medida o proletariado dos países centrais participa ou beneficia da exploração do seu congénere do terceiro-mundo. Nos anos setenta, isso foi objecto de uma polémica tremenda entre Arghiri Emmanuel e Charles Bettelheim. Foram carreados indícios em favor de cada uma das teses em confronto, mas nenhuma prova concreta foi produzida. Para a história, ficou a descoberta de um mecanismo específico de exploração das formações periféricas: a troca desigual. Mas não há maneira de medir a magnitude das transferências de valor que por ela se operam. Há mesmo indícios muito fortes de que essas transferências não devem estar a crescer: o comércio e o investimento internacional concentra-se, cada vez mais, entre as nações centrais, ignorando por completo a periferia exterior (África sobretudo). Estes países seriam assim mais vítimas de abandono e marginalização do que propriamente de exploração. Os grandes capitalistas parecem estar mais interessados, afinal, nos lucros proporcionados pela exploração dos seus “aristocráticos” trabalhadores do que nos “sobrelucros” imperialistas (6).
É certo que uma percentagem decrescente da população nos países do capitalismo central desempenha funções produtivas, mas não decorre daí necessariamente que isso seja devido fundamentalmente a relações de parasitagem para com formações sociais dependentes. É seguramente devido em primeiro lugar, em maior ou menor medida (e é isso aí que ignoramos ao certo), ao aumento exponencial da produtividade do trabalho nesses mesmos países desenvolvidos. Como é sabido, a composição orgânica do capital tem aí crescido de forma muito acentuada. No capital total, é cada vez mais predominante o capital constante em relação ao variável, ou seja, cada vez são mais as máquinas e menos os homens. O trabalho morto esmaga o trabalho vivo. Isso traduz-se em que, em certos ramos industriais, um operário contemporâneo produz duas a três vezes mais valor por hora de trabalho do que o seu pai produzia. É isso que liberta as enxurradas de mais-valia que, depois de recicladas, servirão para remunerar uma grande parte dos empregados do terciário e outros sectores improdutivos.
Como disse, em matéria de quantificação exacta do peso relativo a atribuir à exploração imperialista na riqueza total dos países capitalistas desenvolvidos, não há certezas absolutas. Apenas conjecturas mais ou menos plausíveis. Assim sendo, porque avanças tu com base nisso uma teoria completa de “bloqueamento” da revolução nos países do capitalismo central, que explicaria “o apodrecimento do regime parlamentar, a alienação de massa, a repressão selectiva...”, “a decomposição política, ideológica, moral do movimento sindical, socialista e comunista nesses países”, resultando por fim que “privado de perspectivas de derrubar a burguesia, o proletariado perde o rumo de uma política independente; passa a agir no quadro da ordem e conforma-se a acatar a direcção da pequena burguesia, esse diligente capataz do capital.”
É escusado vires-me dizer que isso decorre do Lenine porque não está lá - nem no ‘Imperialismo’, nem nas suas claríssimas e modelares posições sobre a questão da auto-determinação dos povos, nem em lado nenhum - absolutamente nada que se pareça remotamente com isto ou lhe dê qualquer espécie de cobertura. Lenine nunca foi conhecido por teorizar assim à balda, sem um objectivo muito preciso. O objectivo dele era e foi sempre a revolução na Europa e o derrube do sistema capitalista mundialmente. Não estou a vê-lo, algum dia, fosse porque razão fosse, a teorizar contra esta perspectiva e esta tarefa fundamental. Francamente, preferia ver-te assinar claramente o teu nome sob estas posições, em lugar de tentar acobertá-las sob um patrocínio tão prestigioso.
Como dizia um cientista burguês (que seríamos mal avisados em não seguir neste ponto), “a teoria é uma boa serva mas uma péssima soberana”. A pergunta, pois, impõe-se: a que vem e aonde nos conduz esta tua teoria? E a resposta impõe-se também irrecusavelmente: ao abandono de toda a perspectiva revolucionária para as “arrogantes metrópoles do imperialismo”. O proletariado dos países do capitalismo central passará a ser considerado como pertencente ao bloco explorador, inimigo da revolução. O único e legítimo agente revolucionário será o proletariado e a massa popular indistinta (na qual se incluem certamente facções importantes da sua burguesia) dos países periféricos. Em essência, isto não tem nada a ver com o marxismo, a revolução proletária ou o derrube do sistema capitalista. É apenas um embuste ideológico falsamente emancipatório, colocado ao serviço de facções descontentes da burguesia do “terceiro-mundo”.
Esta perspectiva tem realmente defensores conhecidos, nomeadamente o Maoist Internationalist Movement (MIM) com sede nos E.U.A.. Este grupo tem a particularidade interessante de distinguir, entre os operários norte-americanos (da Amerika, assim com k), os negros dos brancos, pregando o ódio e a animosidade entre eles. Só os primeiros serão aliados naturais das “nações oprimidas” e agentes revolucionários no seio da besta imperialista. Este curioso movimento tem, entre o seu panteão de heróis, génios imorredouros como Huey Newton, José Maria Sison, Jiang Qing e Abimael Guzman (vulgo, presidente Gonzalo). Traduzida a sua política para Portugal, teríamos que aos “escassos comunistas que tentam reorganizar-se nesta fortaleza Europa” caberia apenas organizar a “solidariedade activa” com as lutas dos povos da “Ásia, África e América Latina” e o endoutrinamento dos trabalhadores imigrantes africanos aqui radicados na desconfiança e no ressentimento em relação aos seus colegas portugueses. Ficaremos, em suma, postados aqui à espera dos “bárbaros”, para, chegada a hora, lhes abrirmos então a porta para o grande banho vindicativo e escatológico. Espero, com certa ansiedade, que esta mitologia neo-milenária se não venha a tornar dogma oficial aqui na PO.
(*) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 59 (março-abril de 1997).
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NOTAS:
(1) Autor de ‘A Era do Imperialismo’, Portucalense Editora, uma excelente obra do final dos anos 1960, explicitamente colocada na directa tradição leninista.
(2) Afrontamento, 1975, pág. 385 e ss.
(3) Um belo exemplo recente é a luta dos operários belgas da Renault contra o planeado encerramento, em Julho, da fábrica de Vilvoorde, com 3100 postos de trabalho. Esta luta contou com a solidariedade activa e militante - em diversas manifestações conjuntas e “euro-greves” coordenadas - dos trabalhadores daquela empresa em França, Espanha e Eslovénia. A participação dos trabalhadores portugueses, porém, fez-se notar pela sua extrema discrição. A meu ver, é neste tipo de lutas (na sua extensão e radicalização) que reside o futuro do movimento operário.
(4) “Em lado nenhum Marx justificou o comunismo com a ideia de os trabalhadores serem a maioria. No seu tempo, o proletariado não era de forma alguma a maioria. Para o comunismo, a legitimidade da classe trabalhadora, a validade e necessidade da revolução proletária não são deduzidas do conceito de democracia e de os trabalhadores serem a maioria. O ponto de partida é o trabalhador e o seu antagonismo para com o capital.” de ‘Our Differences’, documento colocado na internet no sítio do Partido Comunista-Operário do Irão (tradução minha).
Sei que respeitas as ideias deste camarada e por isso não resisto a fazer-te notar que, sendo ele natural de um país do “terceiro-mundo”, aliás dos mais visados pela agressividade imperialista, mantém-se num registo marxista de impecável classicismo, não partilhando em nada estas tuas estranhas ideias. Aliás, tanto quanto me é dado observar, o que eu vejo é mais e mais pensadores e activistas dos países periféricos aproximarem-se do marxismo clássico (acompanhando a proletarização crescente das suas sociedades), enquanto as extravagâncias “terceiro-mundistas” à outrance procedem quase todas da degenerescência sectária entre os comunistas dos países imperialistas.
(5) ‘A revolta irlandesa de 1916’, tradução minha a partir de uma versão em inglês.
(6) Cf., por exemplo, Chris Harman, ‘Globalization’, em International Socialism, nº 73, Inverno de 1996.
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