A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Os fascistas lunáticos (*)
 
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Primeiro foi o ascenso da vaga de fascismo "clássico" na Europa ocidental, com atentados terroristas coordenados e/ou sucessos eleitorais de extrema direita em França, Itália, Alemanha, Áustria e Flandres. Depois foi o fenómeno Jirinowski, o bufão, uma personagem muito "pós-moderna" (tipo Benetton) onde o horror dá logo lugar à irrisão, as ameaças apocalípticas e histriónicas desaguam incessantemente em palhaçada. Perante tal indivíduo os anti-fascistas mais encarniçados não podem evitar uma sensação de desarme. Levá-lo a sério e combatê-lo frontalmente é tropeçar e cair no ridículo. Ele não tem posições políticas que possam ser atacadas e tomadas de frente. É uma farsa móvel, um "happening" contínuo de disparate e gargalhada. E no entanto está lá, marca pontos e avança. Veja-se a inflexão nacionalista e imperialista da política de Yeltsin de há um ano para cá. Dos perdigotos de Jirinowski às bombas de fragmentação na Tchechénia, a distância não é assim tão grande. Aliás, o fenómeno nazi russo, por entre muito folclore e pechisbeque, é já bem complexo e enraizado socialmente, entre as mafias locais, os "banqueiros", as cúpulas do exército e o complexo militar-industrial.

 

Estreia deste ano: o terrorismo escatológico da "Verdade Suprema de Aum" no Japão e as milícias norte-americanas, que forneceram, pelo menos, o caldo de cultura que levou ao atentado de Oklahoma City. A seita de Shoko Asahara tem conhecidas ligações à extrema-direita japonesa e os ataques têm sido lidos como inseridos numa acção global visando a musculação do Estado nipónico e o fortalecimento do seu aparato repressivo militar e policial. Nada está nem estará certamente alguma vez esclarecido sobre e extensa e profunda rede de cumplicidades - no Japão e na Rússia - de que dispôs este estranho culto que, em oito anos, ergueu um império de 170 milhões de contos. Os raptos, trabalhos forçados, lavagens ao cérebro, extrorsões e assassínios que praticou habitualmente são conhecidos e denunciados há anos. Cairão talvez no âmbito do direito constitucional da liberdade de culto... Mas como puderam eles, tranquilamente, instalar gigantescos complexos e fábricas de armas químicas e bacteriológicas, desenvolver "lasers" avançados, dispor de urânio enriquecido, operar um sistema interno de comunicações codificadas, etc., etc., etc.? Houve mesmo tempo e oportunidade para testar deliberadamente o gaz sarin na vizinhança (cansada esta, por sua vez, de alertar as autoridades para as emanações tóxicas vindas do complexo fabril da seita) provocando seis mortes, meses antes do atentado de Tóquio. Não pode senão ter havido cumplicidade passiva ou negligência selectiva por parte das autoridades. É, no fundo, a mesma receita que os terroristas de Estado italianos do "Gládio" testaram em Bolonha. Provocação da direita, repressão à esquerda. Terror cego, insegurança geral, apelo a uma autoridade forte.

 

A recessão japonesa arrasta-se sem solução à vista, agora agravada pela imparável sobrevalorização do yen. Para resolvê-la vai ser preciso um movimento maciço de deslocalização industrial, colocando-se a produção nos seus vizinhos chineses, indonésios, filipinos, malaios, vietnamitas. Para proteger estes investimentos, numa altura em que a armada do tio Sam se retira, são precisas forças armadas poderosas e intervenientes em toda a área. Não há nada como isso para dar um tom mais viril e afirmativo à diplomacia. Mas há ainda uma outra frente: a interna. Como reverso inevitável desta deslocalização, o Japão vai conhecer agora um fenómeno a que tem sido poupado devido às características algo patriarcais do seu sistema social. Esse fenómeno é o desemprego. Chegarão finalmente liberalização, flexibilização, desregulamentação, a cantiga toda. É preciso fazer face à inquietação, ao desassossego e à contestação da classe operária. Por onde quer que se olhe, estão nas cartas mais polícia e mais tropa. Um "guru" deste quilate tem forçosamente de ser escutado.

 

O caso das milícias norte-americanas é um fenómeno provinciano, autárcico, isolacionista e completamente "lunático". É uma paisagem de "talk shows", motéis baratos, lojas de armas e "News of the World". De gente que acredita que há sinais nas auto-estradas para sinalizar a movimentação das tropas invasoras das Nações Unidas; que já viu e ouviu mesmo os capacetes azuis a comunicar entre si em belga. Isto porque é já certo que o Governo traíu o país e prepara a invasão estrangeira. São racistas, anti-federais, anti-ecologistas, anti-impostos e ferozmente opostos à regulamentação do direito ao porte de armas. Em dias certos, esta gente reúne-se para exercícios para-militares, pinta a cara, sua o camuflado e recita em coro a segunda emenda à Constituição. Os seus pontos de vista são de extrema-direita e um dos seus afluentes é o Ku-Klux-Klan. Mas o seu individualismo feroz e anti-estatismo (a sua doutrina económica aproxima-os do libertarianismo, defendido em Portugal por Pedro Arroja) desqualifica-os enquanto fascistas. É um populismo atípico e muito idiossincrático. O que é certo é que dispõem de apoios importantes, inclusivé no Congresso. Não podem, aliás, de maneira alguma ser dissociados da vaga de fundo conservadora que suporta o "Contrato com a América" de Newt Gingrich. Na Europa, há à direita (Chirac) quem faça uso retórico das suas preocupações com a "fractura social". Nos Estados Unidos é a guerra sem quartel aos pobres, negros, imigrantes, excluídos, desempregados, desqualificados. Um terço do país é já uma outra nação (terceiro-mundista) dentro das suas fronteiras. O grosso do exército industrial de reserva perdeu por completo o contacto com o mercado de trabalho. Enquanto prossegue a sua mutação e reconversão industrial, é uma América mais feroz e proprietarista a que emerge para o último quinquénio do século. Mas o processo tocará a todos. Ou não se ouvem já, por cá, vozes indignadas contra o escândalo dos arrumadores de automóveis. Para trás, malandragem!

 

Há um traço comum, em termos sociológicos, entre a "Verdade Suprema" e Timothy McVeigh. O atentado deste último ocorreu aliás no segundo aniversário e procurou "vingar" o assalto pelo F.B.I. ao rancho de Waco (Texas) que provocou a auto-imolação dos seguidores da seita fanática de David Koresh aí sediada. Não sei que comentador burguês afirmou serem estes dois atentados os primeiros abalos da era da perda de identidade. Há qualquer coisa de real nesta observação idealista (católica?). A crise estrutural do capitalismo arrasta-se há vinte e tal anos sem saída à vista. A burguesia apodrece no poder, sem soluções mas sem ser desafiada. Há um abismo rasgado bem no seio das formações sociais mais avançadas. Cada vez mais pessoas se deixam arrastar irremediavelmente para ele. As certezas metafísicas e a firmeza ontológica do homem comum vacilam. As ideologias, por sua vez, são recauchutadas uma e outra vez e ainda assim se revelam imprestáveis. Os políticos são cada vez mais medíocres, impotentes e desonestos. Há a sensação generalizada de que o devir das sociedades humanas é comandado por forças cada vez mais estranhas à vontade e à inteligência. Forças como que objectivas e inabaláveis, postas em movimento há muito e crescendo continuamente sobre os homens, pobres títeres esbracejantes ou desamparadas "abelhas na chuva". Paira no ar um vago prenúncio de catástrofe. As massas têm medo. E a besta espreita.

 

 

 

 

(*) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 50 (maio-junho de 1995).

 

 

 

 

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