A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 

Os dias claros

 

 

 
 Linda e eu
 

 

para ti, como é óbvio

 

 

 

nesse tempo em que as evidências eram imarcescíveis

habitamos na margem do sal

na pobreza disjunta dos instantes sem lei

partilhamos com o próximo

o pão e a ciência do labor enxuto

a epopeia dos simples

enquanto os nossos corpos transumavam por mares iridescentes

demos a mão ao vento

uma claridade vertical nos suspendeu em lotus

lábios e anseios demorados foram a morada que nos acendemos

linda e revel eu te amei

descobrindo em ti da surpresa à maravilha

meu recomeço e amanhecer

as sete faces do luar em janeiro

os caminhos desaprumados

que nos levam revelam e enlevam

táteis segredos nos celebraram então a planura reacendida dos dias.

 

viajamos por certas e incertas rotas e derrotas

na margem do lago

um anel de fogo soprou a inconstância dos afetos

e fomos então livres

nus na circunscrição do ser

impudentemente imprudentes

sob essa anómala abóbada em cruenta expansão

plantamos uma jubilosa esperança

na contramão de constramestres e contrarregras

pulamos a cerca

acercamo-nos de nós

com desprevenida ternura

mão sobre a mão

no lado esquerdo da criação

átonos átomos em desequilíbrio vital

dissemos enfim as palavras que excedentemente nos habitavam

ai lobéu

cum tantum sciat esse basiorum

rumores oblíquos incisões singulares

teu púbis mareante

entre a mágoa e a demora

entre dezembro e alvor

entre ígneas escarpas e úberes planuras

partimos

em busca da inexcedível religação

a abetarda dançou com o alce

o silêncio o silêncio o silêncio sobre as casas

nossos passos que rompem agora a aurora de par em par

tal uma adaga impossível na boca de um louco.

 

as distâncias percorridas marcam agora uma inusitada simetria

beijamo-nos sem sobressalto

com a precisão de um jogo

uma e outra vez

somos o que nos leva nessa viração encantada

dizemos e calamos

o sopro que nos une e subtende

entre mar e sílica

nas cumeadas de rebentação imprevista

ir e vir

monção e sezão

barco para melinde

ocasos serenos raiados a vinho e canela

na plenitude circular dos acasos.

 

nossos caminhos nos fizeram caminhantes

uma promessa de ilimitada manhã ficou suspensa

em arcobotante

numa praia demasiado distante para acenos

em cerimónias mais puras e mais secretas do que nos foi permitido

pode um desejo imenso

arder no peito tanto

que não haja memória fóssil capaz de o contar

em sua líquida desmesura

vinte anos dissolvidos na infinitude

a ternura certa e precisa inserta em caótica eternidade

meia idade do homem

precário grito de dor lançado no turbilhão das eras

oh lançador dos dados do mundo

para reverte retoma o teu gesto

que eu possa segui-lo com olhos famintos e inconsoláveis

suspeitando sempre de tudo

mas não de ti meu amor

que a vida das cidades expluda nas minhas têmporas

a justiça seja cega surda e muda

macaqueando espadeiradas vãs no vazio dos templos

mas a esperança more sempre entre nós

como um sorriso respirado a meias

repentino e repetente

em nosso diário vicejar oblíquo

alegre acenar saltitante do fundo da rua

cada vez mais longínquo

mais confiante

ridículo e parolo como só nós sabemos sê-lo

entre a multidão que se dissolve passo contra passo

amarfanhada em amargura urbana

soubesse eu plantar entre o sémem das gerações

a luz de uma ideia clara

pudesse eu segurar ícaro pelos tornozelos

salvar veneza

ser um entre o povo que mais ordena

meu amor dá-me os teus braços

sustém esse instante e esse sopro em que emergimos do nada

sê o meu ser

vive a minha vida habita os meus hábitos

partamos agora

que o horizonte está rubro e pleno com dádivas imprevistas.

 

 

 

 

3.8.2016

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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