A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 O que é a NATO e porque se expande? (*)
 
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O ex-ministro russo da Defesa, Igor Radionov, incorreu na ira do Kremlin e foi demitido, aliás juntamente com todo o gabinete. A 23 de Fevereiro, dia das Forças Armadas (ex-dia do Exército Vermelho), ele tinha aberto o livro de par em par. Disse que “os soldados passavam fome e estavam à beira da sublevação violenta”. Declarou ainda que “a Aliança Atlântica tencionava colocar todo o armamento nuclear russo sob controlo da ONU” e que o alargamento da NATO tinha como objectivo “cercar a Rússia a escravizá-la”. Tudo isto na mesma cerimónia em que Ieltsin prometeu chegar a um acordo sobre o alargamento da NATO na cimeira com Clinton marcada para Março em Helsínquia e no mesmo dia em que, em Bruxelas, o MNE Evgueni Primakov firma as bases de um futuro acordo entre a Rússia e a Aliança ocidental (1). Certas verdades não podem ser assim gritadas em ocasião e local tão inconvenientes.

 

As negociações e manobras preliminares até Helsínquia prosseguem com grande agitação e nervosismo. O secretário-geral Javier Solana, foi ao ponto de ir pessoalmente buscar apoios para o alargamento da NATO entre os países da Ásia Central (Kazaquistão, Uzbequistão e Quirguízia), como que a completar o cerco. Os russos, encostados contra a parede, irão certamente ceder em toda a linha: 1) alargamento pleno à Chéquia, Polónia e Hungria imediatamente, com outras hipóteses em aberto para o futuro, incluindo a Roménia, os países bálticos, Ucrânia e outros membros da C.E.I.; 2) um mero acordo de princípio (e não um tratado) entre os 16 países membros e a Rússia, comprometendo-se aqueles vagamente em não pôr em causa a segurança desta; 3) eventualmente, uma moratória na instalação de armamentos nucleares e bases militares nos novos países membros. A partir desta plataforma, a pressão irá acentuar-se até que todo o aparato estratégico independente deste imenso país caia de maduro nas mãos dos norte-americanos. É ver como começam a aparecer reportagens alarmistas sobre o abandono e desleixo das instalações nucleares russas, ou as histórias notoriamente forjadas de desvio e tráfico de plutónio...

 

Descobre-se agora que, mesmo ao longo de todas as rendições parciais, de 1985 até hoje, incluindo desarmamento unilateral e o generalizado desmoronamento político, económico e social, a guerra contra a Rússia foi afinal sendo sempre prosseguida imperturbável e implacavelmente. Só agora estamos em vias de a ver atingir o seu epílogo lógico: a capitulação total com ocupação militar e tutela política efectiva. A ingénua classe dirigente do burocratismo soviético pensou que, anunciando ao “mundo ocidental” a sua conversão ao liberalismo capitalista, seria por ele aceite de braços abertos. Erro terrível. A pistola continua apontada às suas têmporas e ela agora tem de ajoelhar, entregando as suas imensas riquezas à pilhagem multinacional. Caídas as máscaras ideológicas, ressalta o vulgar e clássico afrontamento inter-imperialista que lhes subjazia.

 

Muitos comentadores burgueses sofisticados e bem informados não compreendem esta atitude agressiva e intimidatória da NATO perante uns russos finalmente convertidos à boa nova do liberalismo e das relações mercantis. Recentemente, um Sr. Ira Strauss, que é nada menos que coordenador do Comité para a Europa de Leste e a Rússia na NATO, publicou um interessante documento estratégico propondo a integração plena a curto prazo da Rússia na organização militar do “ocidente” (2), como é aliás o desejo expresso e inequívoco dos novos senhores do Kremlin. Aqui neste modesto cantinho, o opiniático profissional Miguel Sousa Tavares vinha recentemente com a mesma cantiga na sua coluna do “Público”. Mas os ouvidos do Pentágono são duros e as realidades políticas do imperialismo mais fortes que as elocubrações bem pensantes dos seus ideólogos. A indústria liberal da “opinião” pode ter a sua influência em opções concretas dos imperialistas. Mas quanto ao alargamento da NATO, esta é uma daquelas ocasiões em que os periquitos liberais bem-pensantes vão ser enxotados sem qualquer cerimónia.

 

A história é afinal já longa e trata-se da enésima repetição dos votos piedosos por um ultra-imperialismo (Kautsky) pacifista, progressivo e cooperante. Ira Strauss é explícito na sua apologia de uma aliança militar de todo o “Norte”: E.U.A., Europa, Rússia, Japão, um círculo perfeito enfim, de Vancouver a Vladivostock. Esta aliança seria o líder indisputado do mundo livre e exerceria a sua função pedagógica e desenvolvimentista (no que se incluiria, naturalmente, alguma dose de paternal severidade, sendo caso disso) sobre a restante parte da humanidade, visivelmente menos favorecida pela fortuna. É o que ele chama a conversão da NATO de um sistema regional para um sistema global.

 

A Rússia, porém, está para já fora deste sistema de “segurança colectiva”. A razão “oficial” para a sua não integração na NATO é que se trata de um país politicamente muito “confuso” e instável. A verdade, porém, é bem outra. Este imenso país foi um dos vencedores em Yalta. É certo que perdeu a “guerra fria”, mas não sofreu qualquer ocupação e mantém uma capacidade militar estratégica independente. Nestas condições, é impensável a integração militar na NATO de um tal “parceiro”. Quem não percebe isto está certamente sob alguma ilusão “contratualista” desta aliança. Pensa que ela se trata de uma livre associação de vontades nacionais soberanas quando não passa afinal da institucionalização de relações de ocupação, hegemonia e direcção estratégico-militar por parte dos E.U.A.. Não basta aos russos dizer: O.K., nós agora somos dos vossos. Têm de entregar as chaves. A Rússia entrará sim, mas pela porta baixa. Antes disso, terá de sofrer a humilhação de uma ocupação efectiva e tutela directa e inequívoca. Por outro lado, sucede também que os E.U.A. simplesmente não têm para já os meios para cobrir estratégica e militarmente, com um mínimo de solidez e consistência, toda a imensa extensão do território russo. As suas forças não lho permitem ainda. Esticando assim o cobertor para lá das suas possibilidades, correriam inevitavelmente o risco de ele lhes ficar curto nalgum lado.

 

Além de preparar o caminho para a submissão da Rússia, há ainda uma outra razão, porventura menos óbvia, para o alargamento da NATO a Leste. Como os chineses muito argutamente observam, a NATO expande-se para Leste para melhor segurar o domínio estratégico dos E.U.A. sobre a Europa (3). Este domínio foi adquirido após a II Guerra Mundial, solidificando-se com a guerra fria. Os E.U.A. são uma “potência europeia” e os senhores exclusivos da guerra e da paz em todo o velho continente. No entanto, existe um desafio velado à sua tutela por parte de Paris. Por detrás da aspiração francesa da criação de um “pilar europeu” da NATO, dotado de alguma autonomia estratégica, está uma visão a prazo de um mundo “multi-polar”. Esta visão - facilmente partilhada com russos, chineses, indianos, sul-africanos, etc. - é anátema para os norte-americanos que querem a todo o custo manter a sua hegemonia global indisputada. Denotando alguma lucidez, Strauss chama-lhe um cenário “perigoso”. Este será de facto o caminho aberto novamente para matadouro dos confrontos abertos inter-imperialistas.

 

As disputas na África central, as incursões de Chirac pelo Médio Oriente, a eleição do secretário-geral da O.N.U., a atribuição do comando Sul da NATO/Europa, a insistência da inclusão da Roménia no próximo alargamento da NATO, tudo isto são sinais inequívocos de uma crescente sede de protagonismo e afirmação autonomista de Paris. Os homens de Washington encaram estas peculiaridades francesas com bonomia displicente. Isto, é claro, enquanto mantiverem a sua bota firmemente colocada sobre a Alemanha. No momento em que um forte eixo franco-alemão se começasse a afirmar com autonomia estratégica, arrastando consigo o resto da Europa continental, as coisas mudariam radicalmente de figura. É precisamente este cenário que os franceses vêm perseguindo, até agora sem qualquer sucesso. Os alemães não estão interessados, mantendo-se solidamente fiéis a Washington. A intervenção da NATO na Bósnia-Herzegovina e agora o seu alargamento ao Leste europeu são peças numa estratégia de solidificação do domínio norte-americano, agora em toda a extensão do velho continente. Os franceses ficaram nas covas.

 

O problema, porém, é que, por mais que se queira forçar a isso, o imperialismo não estará nunca preparado para a harmonia entre os seus diversos polos. A dinâmica da acumulação capitalista é predatória e conflitual. Isso mesmo decorre inelutavelmente das suas leis próprias e não depende da sageza dos arranjos estratégicos ou de particulares disposições de ânimo dos seus dirigentes políticos do momento. É certo que temos uma super-potência militarmente hegemónica, o que cria em certos observadores superficiais uma ilusão de pacificação das rivalidades inter-imperialistas. Mas no terreno económico (e, por vezes, no político), os afrontamentos continuam a existir e a fazer sentir o seu potencial sísmico abafado. Como contra-tendência, existe é certo o presente sistema de alianças militares (com ocupação militar efectiva norte-americana da Europa e Japão). É este sistema que, até ao momento, como que amordaça e sufoca no ovo a tendência crescente para o afrontamento, a propensão das rivalidades imperialistas a serem levadas até às últimas consequências. Mesmo que esse sistema venha no futuro a incluir a Rússia (ou até, quem sabe, a China...), abarcando então praticamente todo o mundo industrializado, as lutas surdas intestinas manter-se-ão e, mais tarde ou mais cedo, quebrarão por fim este espartilho, espalhando-se de novo sobre o mundo os ventos da cólera e o fedor dos cadáveres. Ninguém pode escapar indefinidamente à sua natureza.

 

 

 

(*) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 59 (março-abril de 1997).

  

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NOTAS:

 

(1) “Público”, 27 de Fevereiro de 1997.

 

(2) “NATO and Russia: the reactions to NATO's plans and the real choice before the West”. O autor pode ser contactado por correio electrónico em irastraus@aol.com .

 

(3) No jornal oficial do Partido Comunista Chinês, “Diário do Povo”, de 12/27/96, Wei Wei argumenta que: “São os Estados Unidos e não os seus aliados europeus que vêm no alargamento da NATO um assunto urgente. Os europeus pensam que, além de permanecer em guarda contra a Rússia, os Estados Unidos pretendem também prosseguir com o plano de alargamento para salvaguardar a sua posição de liderança nos assuntos europeus.”

 

 

 

 

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