A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Bento Gonçalves
 
 

O P.C.P. ao tempo da ditadura militar (*)

 

 

 

 

 

Da vida do P.C.P. nos anos seguintes ao golpe militar sabe-se que, sob a direcção de José de Sousa, participou em vários golpes e conspirações contra a ditadura, com destaque para a revolta democrática de 3-9 de Fevereiro de 1927 e a “revolta do castelo” de 20 de Julho de 1928. À excepção destas, onde aliás os comunistas participaram de forma subalterna e praticamente desarmados, as restantes foram sempre facilmente dispersas, após alguns tiros, bombas, brados e correrias. O jovem partido sofreu então forte repressão, com centenas de prisões e deportações. Já nos anos 1930 haveria novamente algumas tentativas de “reviralho” com algum impacto, nomeadamente o golpe militar de 26 de Agosto de 1931 (a “revolta da Madeira”), de novo encabeçado pelo General Adalberto Sousa Dias. Segundo o duvidoso testemunho do inspector da PIDE Fernando Gouveia, que cita documentação apreendida, o PCP terá firmado um “contrato” escrito com o major Sarmento Beires para participar neste movimento, recebido armas para o efeito, já na previsão de, após a vitória, se recusar a entregá-las, aproveitando a oportunidade para “fazer a revolução social e implantar a ditadura do proletariado” (1). O golpe falha militarmente em Lisboa, provocando dezenas de mortos e centenas de feridos. Quanto a uma tomada do poder por via insurreccional da parte dos comunistas, não se vê como a questão possa ter sido encarado nesses termos na direcção do PCP da altura. Nesse tempo, só os marinheiros comunistas tinham a sua própria, indómita e incontrolável ‘Organização Revolucionária da Armada’ (O.R.A.), com recrutas como Joaquim Pires Jorge e Manuel Guedes.

 

Uma delegação do P.C.P. que inclui o jovem torneiro transmontano Bento Gonçalves (1902-1942), do Arsenal da Marinha, vai a Moscovo em 1927, ao Congresso dos Amigos da U.R.S.S., por ocasião do 10º aniversário da revolução de Outubro, regressando com a incumbência de reorganizar o partido. Uma conferência realizada a 21 de Abril de 1929, nas instalações da Caixa de Previdência do Arsenal, toma em mãos essa tarefa, elegendo Bento Gonçalves como secretário-geral. O partido tem trinta membros organizados, abrindo-se nele um abismo em relação ao seu passado. Segundo o testemunho do mesmo importante agente repressivo, o barbeiro Júlio César Leitão, expulso do Brasil, e com alguma experiência de militância no P.C.B., introduziu então em Portugal o método de organização por “comités de zona”, com reuniões em plena rua. O método de agitação e propaganda mais comum desses tempos era o chamado “comício-relâmpago”, em que, protegido por dois ou três companheiros armados, um orador discursava em público, por alguns breves minutos, procedendo-se a alguma distribuição de panfletos, dispersando todos depois em boa ordem ou em correria, se fosse caso disso.

 

Por essa altura fixa-se em Lisboa um agente da Internacional Comunista (I.C.) de nacionalidade checa, Bernard Freund (“René”), que participa na direcção da federação da juventude (e talvez também do partido) até ser preso e expulso do país em 1932. A 15 de Fevereiro de 1931 começa a publicar-se o jornal ‘Avante!’ como órgão central do Partido Comunista Português, mas nesta sua I Série é ainda uma pequena folha de publicação irregular, saindo nove números até Janeiro de 1933. A Federação da Juventude Comunista Portuguesa (FJCP) foi constituída no início da década de 1930, logo nela se destacando outro operário arsenalista, Francisco Paula de Oliveira, “Pável”, o grande especialista do comício-relâmpago. A linha geral do comunismo internacional na altura era a doutrina “classe contra classe”, mas começava-se a evoluir, com novas instruções, no sentido do que viria a ser a linha da “frente popular”, consagrada em 1935 no 7º Congresso da I.C. (2). Sem que alguma vez se tivesse disseminado na vanguarda operária organizada do país um mínimo de cultura marxista, sem um verdadeiro processo de “bolchevização” do P.C.P., começava o processo da sua normalização estalinista.

 

Bento Gonçalves trabalhou desde os doze anos e era um operário de eleição, um verdadeiro homo faber, capaz de construir virtualmente fosse o que fosse, com as suas mãos e a sua imaginação mecânica verdadeiramente prodigiosa. Foi um excelente organizador, tendo sido o principal responsável pela conquista da hegemonia no terreno sindical para os “vermelhos” da Comissão Inter-Sindical (CIS), na primeira metade da década de 1930, sinalizando o ocaso para a C.G.T.. Outra organização importante deste tempo foi o Socorro Vermelho, que organizava a solidariedade com as vítimas da repressão política e foi uma importante porta de entrada de jovens na militância comunista. Entre 1929 e 1930 publicou-se no Porto um quinzenário comunista bastante importante intitulado ‘O Proletário’, que depois se prolongaria em Lisboa numa série clandestina, já como órgão da CIS. Bento Gonçalves publicou aí artigos doutrinais muito significativos sob o pseudónimo de Gabriel Batista, em polémica contra o “socialismo” e o anarquismo, sob o pano de fundo da grande crise do capitalismo mundial. Nesse tempo, Bento era um revolucionário indómito e resoluto, de impecável recorte leninista.

 

Este jovem natural de Fiães do Rio-Montalegre, cuja instrução primária foi feita já em Lisboa, era um homem cultivado. Não terá lido, seguramente, as “Obras” de Marx, Engels e de Lenine, como querem alguns autores, pois que não as havia disponíveis no seu tempo (3). Todavia, dada a articulação existente com a I.C., com apoios em Madrid e Paris, é de toda a verosimilhança que tenham sido colocadas à disposição do partido português (e até da própria biblioteca do Sindicato do Pessoal do Arsenal da Marinha) o essencial das obras avulsas dos clássicos do marxismo publicadas em francês (nomeadamente a excelente colecção ‘Bibliothèque Marxiste’ das Éditions Sociales), idioma acessível para Bento Gonçalves desde muito cedo. E a avaliar pelos escritos que nos deixou, a sua curiosidade intelectual não se bastava com os clássicos do marxismo, abrangendo também a história, a economia política, a geopolítica e... a psicanálise. Tudo isso transparece nas suas peças políticas e históricas não meramente circunstanciais – alguns artigos de ‘O Eco do Arsenal’ (4), a defesa perante o Tribunal Militar Especial de Angra do Heroísmo (1936) e, sobretudo, ‘Palavras Necessárias’ (1936-??) e ‘Duas Palavras’ (1941) (5), estas últimas publicadas postumamente. Embora se lhes note ocasionalmente alguma falta de clareza expositiva, em parte explicáveis pelas duras condições (nomeadamente carcerárias) em que foram escritas, não lhes falta capacidade analítica, densidade e finura de observação.

 

Na prisão, desenvolveria interesses avançados na matemática, física e biologia, como ávido autodidata. Fosse ou não Bento Gonçalves, potencialmente, um génio da craveira de um Gramsci (coisa que nunca saberemos), o que é indiscutível é que, politicamente, a sua cabeça estava sempre muito bem arrumada, do ponto de vista estratégico e táctico. Com o esvaimento da crista de rebentação da crise capitalista mundial, o princípio leninista da “actualidade da revolução” passou para segundo plano na sua mente. Bento tornou-se um progressista e um reformista estrutural, sendo sempre nessa perspectiva que encarava a luta de massas organizada e enquadrada pelo partido. Em 1935 participou em Moscovo no 7º Congresso da I.C., levando consigo Álvaro Cunhal, na delegação da Federação das Juventudes Comunistas. Logo após o seu regresso, em Novembro, foi preso pela segunda e última vez.

 

Embarcado para os Açores, é aí julgado e deportado para cumprir pena num presídio especial então inaugurado em Cabo Verde. Em Agosto de 1939, a dureza deste campo de extermínio e a sua natural moderação de carácter conduzem-no ao ponto de propor uma “Política Nova” de colaboração com a governação do Estado Novo, caso este decidisse entrar na guerra do lado dos “aliados”. Esta abertura, certamente produto de falta de informação, ficaria posta em causa logo de seguida, face à assinatura do pacto germano-soviético. Faleceu aos 40 anos no campo de “morte lenta” do Tarrafal, dois anos depois de cumprida a pena a que fora condenado. Para a PVDE tratava-se apenas de um operário rebelde.

 

No início dos anos 1930 houve uma grande vaga de radicalização à esquerda dos estudantes e da pequena burguesia citadina. Eram reflexos da crise económica mundial, que em Portugal teve os seus efeitos ainda agravados pelo caos plutocrático da política financeira do general Sinel de Cordes. Perante a falência teórica e até moral do republicanismo e do velho “socialismo”, chegava até cá com lustre redobrado o prestígio da nascente União Soviética, numa altura em que o fascismo levantava a sua crista ameaçadora por toda a Europa, com prenúncios de uma nova guerra imperialista. A paz era então a grande bandeira do comunismo internacional, imperando as vozes de Romain Rolland e Henri Barbusse. O comunismo português, esse, era essencialmente francófilo.

 

Greves académicas eram ocorrências comuns na viragem da década de 1920 para a de 1930, geralmente animadas por “comícios relâmpago”, confrontos físicos, apitos, atropelos e alguns tiros à mistura. Bento Gonçalves detestava estes hábitos “reviralhistas” no movimento operário mas, aparentemente, estava disposto a tolerá-los entre os estudantes, tendo aprovado a constituição dos Grupos de Defesa Académica para os combates de rua com a polícia e as organizações fascistas. Os intelectuais marxistas de então tinham, em geral, porque a buscavam activamente, ligação ao P.C.P., mas esta era muito irregular e dificilmente se pode considerar que fose decisiva na sua formação. Mesmo que o partido fizesse questão nisso, muito dificilmente conseguiria filtrar toda recepção do marxismo entre a jovem intelectualidade portuguesa pelo crivo do ‘Materialismo Dialéctico e Materialismo Histórico’ de Estaline ou do ‘Tratado de Materialismo Histórico’ (manual popular de sociologia) de Bukharine (6).

 

Ainda jovens, mas já entre os mais velhos de então, estavam Bento de Jesus Caraça (1901-1948) e o seu amigo José Rodrigues Miguéis (1901-1980). Este último, após uma estadia na Bélgica, rompe com a ‘Seara Nova’, em 1930, sob a forma de uma polémica nas páginas da revista, no que ele próprio qualificou como uma “dissidência sovietófila”. Foi a primeira vez, em Portugal, fora da imprensa operária, que se exprimiram e se defenderam publicamente, de forma clara, ideias marxistas, propugnando-se a intervanção dos intelectuais no quadro das lutas sociais visando “a realização da democracia socialista pelo próprio povo”. Miguéis militou ainda no Núcleo de Trabalhadores Intelectuais do P.C.P., foi editor, com Caraça, da efémera revista ‘Globo’ (1933), mas partiu para os E.U.A. em 1935, para só voltar esporadicamente, sendo hoje conhecido apenas como um fabuloso contista e novelista.

 

Bento de Jesus Caraça é de origem rural alentejana, tão humilde como a do seu homónimo transmontano, mas teve a possibilidade de fazer estudos completos, concluídos com enorme brilhantismo. Em 1929 é nomeado professor catedrático da 1ª cadeira (Matemáticas Superiores - Álgebra Superior - Princípios de Análise Infinitesimal - Geometria Analítica) no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (I.S.C.E.F.), em Lisboa. É já investido de todas as honras universitárias que Caraça inicia o seu apostolado cívico, cultural e político. Militou na Liga Contra a Guerra e Contra o Fascismo, no Socorro Vermelho Internacional, na Frente Popular, no MUNAF e no MUD. Está hoje bem estabelecido que fazia parte do Núcleo de Trabalhadores Intelectuais do P.C.P., embora por vezes se distanciasse das posições do partido, nunca tendo compreendido o pacto germano-soviético, por exemplo. Ligou-se em idade muito jovem, e desde a sua fundação, à Universidade Popular Portuguesa (UPP), da qual assumiria a direcção em 1929. Transformou então radicalmente a sua missão, dando-lhe como objectivo contribuir para o “despertar colectivo das massas”. Para tal, a difusão e promoção da “cultura integral” constituem, simultaneamente, o veículo e o objectivo final. Deu numerosas conferências que se tornaram acontecimentos públicos, na UPP mas também em associações culturais e sedes sindicais. Dirigiu um projecto enciclopédico de cultura popular, ímpar no país, a Biblioteca Cosmos, que publicaria 114 títulos, com uma tiragem global de 793.500 exemplares. Animou diversas publicações e sociedades científicas, mas colaborou também regularmente em publicações culturais como “Seara Nova”, “Vértice”, o quinzenário “O Globo”, que fundou juntamente com Miguéis, ou os semanários “O Diabo” e “A Liberdade”.

 

Bento Caraça é o primeiro, e provavelmente o único, pensador marxista português realmente grande. Em primeiro lugar porque não era um mero intelectual, mas alguém que transportava em si distintos traços de santidade. Era um ser humano completo feito de uma única peça, na qual todas as células vibravam em uníssono com as secretas harmonias do cosmos e a ridente malícia do porvir. Era daquele tipo de pessoas que encarna de tal forma as suas ideias e convicções que renegá-las se torna uma impossibilidade física. E tanto mais quanto elas formam um conjunto coerente e articulado, composto por conhecimentos e meditações provindos de todos os campos do saber.

 

A cosmovisão de Bento Caraça não é, aliás, integralmente marxista. A sua concepção da história, por exemplo, integra elementos do que poderíamos considerar uma teoria das elites. Para Caraça a história das sociedades humanas pode resumir-se ao conflito entre o individual e o colectivo, as forças da atracção solidária e as forças da dispersão egoísta. Ele admitia como inevitável que as revoluções populares triunfantes fossem traídas a partir de dentro, pelos seus próprios dirigentes. No entanto, não se trata de um movimento cíclico em círculo fechado, como o rolar da pedra de Sísifo. Na sua concepção, de patamar em patamar histórico, vamo-nos aproximando cada vez mais de um horizonte de transparência e liberdade completas, em que cada indivíduo poderá apropriar-se do conjunto do património cultural da humanidade e desenvolver todas as suas potencialidades humanas até ao limite (7). Todavia, ele não era um determinista, afirmando com clareza que “não há fatalidade em história”, pois que “o que acontecerá é sempre determinado pelo jogo dos elementos em presença”.

 

De uma forma completamente independente, Caraça desenvolveu ideias que o aproximam da corrente do chamado “marxismo ocidental” e, pela sua visão historicista, pode colocar-se ao lado de um Lukács, de um Korsch ou de um Gramsci. Se o quisermos aproximar do outro Bento seu contemporâneo e camarada (este mais por aquilo que foi do que por aquilo que escreveu), teríamos aqui uma filosofia humanista da praxis baseada numa ontologia do trabalho. Não seria esse, porém, o caminho trilhado de seguida, com a geração do neo-realismo, que basicamente recepcionou a produção intelectual de um estalinismo afrancesado que nos chegava então veiculado por revistas como ‘La Pensée’ e ‘Clarté’. O marxismo português não tornaria a percorrer caminhos de tamanha audácia e originalidade como na era dos dois Bentos.

 

 

 

(*) Publicado no nº 127 da revista Política Operária, novembro-dezembro de 2010.

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NOTAS:

 

(1) Fernando Gouveia, ‘Memórias de um inspector da PIDE’, Roger Delraux, Lisboa, 1979, págs. 59-61.

 

(2) João Arsénio Nunes, ‘Sobre alguns aspectos da evolução política do Partido Comunista Português após a reorganização de 1929 (1931-33)’, in ‘Análise Social’, vol. XVII (67-68), 1981-3.º-4.º, p. 715-731.

 

(3) Até à data da última e final prisão de Bento Gonçalves não estavam editadas em francês “Obras Completas” de nenhum destes autores. Havia os ‘Morceaux Choisis de Karl Marx’, editados em 1934 pela Gallimard, 463 páginas, preparados por Henri Lefèbvre e Norbert Guterman, as ‘Oeuvres Politiques et Philosophiques’ de Karl Marx traduzidas por J. Molitor, as ‘Pages Choisies de Lenine’ publicadas em 1926, em dois volumes, por Pierre Pascal e começara apenas a publicar-se um projecto, que logo se interromperia, de ‘Oeuvres Complètes’ de Lenine com tradução de Victor Serge. É esta última, sem dúvida, a obra cujo “Tomo IV” Bento Gonçalves cita no artigo ‘O sentido da nossa política’ publicado em Julho de 1930 no nº 32 de ‘O Proletário’.

 

(4) Cf. Bento Gonçalves, ‘Escritos (1927-1930)’, Recolha, Introdução e Notas de António Ventura, Seara Nova, Lisboa, 1976.

 

(5) AAVV, ‘Os comunistas – Bento Gonçalves’, Ed. A Opinião, Porto, 1976; Bento Gonçalves, ‘Palavras Necessárias’, Ed. Inova, Porto, 1974; Bento Gonçalves, ‘Inéditos e testemunhos’, Avante!, Lisboa, 2003, com introdução, recolha e bibliografia de Alberto Vilaça.

 

(6) Esta tese de António Pedro Pita foi “relativizada”, mas no fundo mantida, em relação a uma formulação anterior mais categórica, no seu ensaio ‘A recepção do marxismo pelos intelectuais portugueses (1930-1941)’, incluido agora, com alterações, em António Pedro Pita, ‘Conflito e unidade no neo-realismo português’, Campo das Letras, Porto, 2002, pp. 37-79, em especial nas pp. 73-79. Não se está a ver, também, como é que esta suposta matriz cientista-estalinista do marxismo português facilitaria os entendimentos do P.C.P. com a oposição republicana, tida como filosoficamente positivista. Basta pensar que a sensibilidade filosófica dominante nos democratas republicanos era a dos “budas” seareiros. Não é sublinhando laboriosamente passagens de Estaline ou Bukharine que se avançaria na construção da Frente Popular em Portugal.

 

(7) Cf. ‘A cultura integral do indivíduo – problema central do nosso tempo’, in Bento de Jesus Caraça, ‘Cultura e emancipação (1929-1933)’, 1º Volume da Obra Integral de Bento de Jesus Caraça, Campo das Letras, Porto, 2002, p. 97-128.

 

 

 

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