De 8 a 15 de Julho, em diversas instalações pertencentes ou ligadas à Universidade de Londres, realizou-se um grande encontro sobre marxismo organizado pelo Socialist Workers Party (S.W.P.). Foram mais de 250 sessões sobre os mais variados temas (da teoria do imperialismo à ciência do caos, do novo feminismo ao romance negro, de Cromwell às políticas da SIDA, etc., etc., etc., etc.) com uma assistência composta por largos milhares de jovens vindos dos quatro cantos do mundo. Karl veio à cidade (Karl comes to town), intitulava-se um dos prospectos da iniciativa. Intervieram pessoas como Tony Benn e Bernie Grant, da esquerda trabalhista, Robin Blackburn, editor da New Left Review, os historiadores Christopher Hill e John Saville, os militantes norte-americanos Sharon Smith e Ahmed Shawki, além naturalmente da gente "da casa": Tony Cliff, Alex Callinicos, Chris Harman, Lindsey German, Paul Foot, Duncan Hallas, John Molineux, Mike Gonzalez e John Rees. Não tendo assistido a mais do que uma pequena parte dos encontros (que pela maior parte consistiram na divulgação de posições que eu já conhecia, formuladas de forma mais consistente), fiquei todavia sob uma forte impressão, causada pela participação entusiasta, bem informada e consistente por parte do público.
O S.W.P. é o maior partido da esquerda revolucionária britânica há uns dezassete anos, mas tem vindo já nesta década a registar um franco crescimento que o elevou de pequena seita trotskista a um já bem respeitável pequeno partido de massas. Para isso contribuiu decisivamente a mobilização contra a poll-tax, nos últimos tempos de Thatcher, uma série de lutas operárias (industrial actions) conduzidas à revelia dos aparelhos sindicais trabalhistas e, talvez sobretudo, uma decidida mobilização anti-nazi que não hesita na busca do confronto físico com os bandos fascistas (kick the nazis off the streets). Este êxito relativo deveu-se também decididamente, é claro, à postura anémica e "neutralista" do Labour ao longo de todo um longo período de agudização das lutas de classes na Grã-Bretanha, da qual benificiaram também, em menor escala, toda uma panóplia de organizações esquerdistas menores e um muito ruidoso grupo anarquista - Class War. O partido é ainda largamente dominado por profissionais urbanos na casa dos 30-40 anos, mas dispõe já de uma certa influência nacional ao nível de jovens dirigentes operários e activistas locais. Iniciativas suas, como um recente carnaval anti-nazi em Londres, trouxeram para as ruas largas centenas de milhares de pessoas. Em consequência, o ambiente que encontrei em Londres (e que de algum modo se reflecte nas declarações de Chris Harman), sem ser triunfalista, era de franco entusiasmo e alegria combativa, coisa não muito comum hoje em organizações da esquerda revolucionária.
A história do S.W.P. foi marcada pela sua cisão, nos anos 50, do grosso do movimento trotskista agrupado hoje no Secretariado Unificado da IV Internacional. Em causa estava (e está ainda) a análise dos regimes dos países da Europa de Leste, que o cânon oficial qualificava de "Estados operários degenerados", enquanto Tony Cliff avançou com a célebre teoria do "capitalismo de Estado". Recentemente, Ernest Mandel e outros dirigentes do S.U. têm tentado uma reaproximação baseada no argumento de que divergências sobre a interpretação do "socialismo real" não devem hoje dividir revolucionários, mas foram prontamente rechaçados porque "sem uma explicação convincente e científicamente baseada da ascenção e queda do estalinismo, o marxismo é um pato morto", incapaz de desempenhar eficazmente o papel de "guia para a acção" (Alex Callinicos, International Socialism, nº 57, Inverno de 1992). O facto é que a cisão, que na altura tomou cores de especificidade britânica, não a tem já hoje pois o S.W.P. rodeou-se entretanto de organizações e partidos irmãos numa vintena de países, com destaque para os E.U.A., África do Sul, Bélgica, França, Alemanha e Austrália. Servido por um conjunto notável de pensadores e teóricos (que lhe dão mesmo alguma respeitabilidade "académica" nos meios da political correctness), edita a que é possivelmente a melhor revista marxista da actualidade - International Socialism. Foi com um dos editores assistentes desta revista e membro do C.C. do S.W.P., Chris Harman - veterano das movimentações estudantis de 68, professor universitário, economista, autor de diversas obras de divulgação marxista e de teoria e história da revolução operária - que nos acercamos para uma breve conversa que aqui publicamos na íntegra.
Política Operária (P.O.) - O que é o Socialist Workers Party (SWP) e qual é o propósito de uma iniciativa como Marxism 94?
Chris Harman (C. H.) - O S.W.P. é uma organização com cerca de nove mil membros, caracterizada pelo slogan "nem Washington nem Moscovo". Nós acreditamos que o velho bloco estalinista manteve-se capitalista e fomos sempre frontalmente opostos ao imperialismo americano e dos demais Estados ocidentais. A nossa opinião é que o sistema capitalista mundial passa por um longo, profundo e prolongado período de crise. Nesse período o movimento dos trabalhadores sofreu derrotas e desmoralização, mas a sua força básica não foi destruída. É também um período muito dinâmico, em que encontramos diversos movimentos a desafiar o sistema. Particularmente importante, para nós, é a situação na Europa nos últimos dois ou três anos, em que se verificou uma muito aguda polarização de classes. Temos, por um lado, o crescimento da extrema-direita com o Partido Republicano na Alemanha, Le Pen em França, Jirinovsky na Rússia, o fenómeno Berlusconi em Itália, mas temos também, por outro lado, um renascimento das lutas operárias com as greves em França e na Alemanha, demonstrações de estudantes, a greve geral em Espanha e um começo de ascenção das lutas dos trabalhadores na Grã-Bretanha. Estes dois fenómenos dão-se simultaneamente: o crescimento da direita e o das lutas operárias. Nós acreditamos que isto é uma situação em que uma vasta camada de jovens e muitos trabalhadores mais velhos vão ser ganhos para a causa do socialismo revolucionário. E também uma situação em que, rapidamente, podem ocorrer poderosas e extensas lutas.
P.O. - Vocês adoptam a palavra de ordem dos Estados Unidos Socialistas da Europa?
C.H. - Nós adoptamos o internacionalismo e não cremos que ele deva ser restringido à Europa. Para nós, falar apenas em termos de Europa é perigoso, porque a Europa vem sendo concebida como uma "fortaleza". Não vemos porque não havemos de nos unir com os trabalhadores marroquinos, argelinos, turcos, etc.. Por isso estamos muito saturados com o slogan da unidade europeia, que implicaria sempre que a Europa se destacasse do resto do mundo.
P.O. - Como vê o S.W.P. a presente situação internacional e as perspectivas abertas para a luta revolucionária?
C.H. - Nós vemos a situação internacional como fundamentalmente caracterizada por uma muito prolongada crise económica, começada em 74, a qual cria uma crescente instabilidade a nível internacional. Muita gente disse, após a queda do muro de Berlim, que entrávamos numa era de domínio americano em que o imperialismo controlaria pacificamente o mundo. Muita gente disse, mesmo à esquerda, que o socialismo estava acabado. A nossa análise foi diferente. Nós dissemos que a queda dos regimes da Europa de Leste era parte e parcela de todo um processo que envolve a crise de todo o sistema mundial. Um aspecto desta crise é a instabilidade internacional. A primeira guerra do Golfo, a segunda guerra do Golfo, a guerra na Jugoslávia, a guerra no Tajikistão, a da Arménia contra o Azerbaijão, Somália, Ruanda... Para nós, o mundo inteiro conhece uma crescente instabilidade e, nessa situação, as classes dirigentes locais empenham-se em aventuras militares. Ao mesmo tempo, significa que o controle ideológico sobre as massas conhece uma erosão. As pessoas não vêm alternativas, mas há muito poucos sítios no mundo onde elas continuem a confiar nos políticos estabelecidos.
P.O. - Como economista, uma das teorias marxistas que você defende veementemente (ao contrário de muitos outros que sistematicamente a ignoram) é a da baixa tendencial da taxa de lucro. Qual é para si a importância actual desta teoria?
C.H. - Penso que é imensamente importante. Há uma tendência de muitos pretensos (would be) marxistas, dos anos 70 em diante, para dizer que Marx se enganou, que a taxa de lucro não tende para a baixa, etc.. Estranhamente, eles apareceram com esta opinião precisamente quando o capitalismo, após um período de trinta anos de expansão, entrava na presente fase de estagnação global e crises recorrentes, após 1974. Globalmente, através do mundo, as taxas de lucro nos anos 90 são inferiores ao que eram há vinte anos atrás. E isso reflecte-se no facto de que, quando há recuperação de uma crise, as retomas são muito especulativas, tendem a durar pouco tempo e envolvem algum crescimento de produção mas não um crescimento massivo. E significa também que, por todo o lado, os patrões estão a tentar fazer coisas que eles há vinte anos disseram que nunca fariam. Há vinte anos atrás, na Grã-Bretanha, na Alemanha, nos Estados Unidos, os patrões prometeram aos operários serviços de previdência, semanas de trabalho reduzidas, melhores condições de trabalho. Em todo o lado eles agora dizem que não o podem suportar, que os trabalhadores estão a receber demais, que precisam de trabalhar mais, de ser mais flexíveis, mais produtivos, etc.. Internacionalmente, o que se aponta é que os trabalhadores devem trabalhar mais horas e mais afincadamente por menos salário. Não quer dizer que eles consigam isso, dessa maneira. Mas quer dizer que estão empenhados em, paulatinamente, degradar as condições de vida dos trabalhadores. No tempo do meu pai, há quarenta anos, ele esperava que a sua vida melhorasse à medida que envelhecia. No meu tempo, a minha vida tem tido virtualmente sempre o mesmo nível. Mas quanto à vida da minha filha, só posso esperar que ela piore com o tempo. E isso não acontece só comigo, é a sensação generalizada de toda a gente. E isso cria uma grande frustração. Essa frustração pode conduzir as pessoas para a esquerda. Mas pode também conduzi-las para a direita. Porque é que os fascistas crescem? Porque eles dizem: "A vida é miserável. A culpa é dos imigrantes e dos refugiados". Temos que enfrentar isto. Para as pessoas que não aceitam estes argumentos, temos que apresentar uma alternativa revolucionária e socialista.
P.O. - Diria que as presentes (e potenciais) forças de produção estão a ser reprimidas pelas relações sociais de produção vigentes e que nos aproximamos, portanto, de uma crise geral devida a esta contradição?
C.H. - De uma forma maciça, a uma imensa escala. Na Grã-Bretanha, as forças de produção podiam estar a produzir 30 a 40% mais riqueza assumindo que não houvesse recessão. Na Grã-Bretanha, 20% da produção industrial vai para fabrico de armas. Na Grã-Bertanha este número é excepcionalmente elevado. É um enorme desperdício. Mas se tomarmos o montante global das despesas com armamentos é suficiente para resolver o problema da pobreza em todos os países do Terceiro Mundo. E isto é um sinal de que o sistema está em crise. Tem recessões prolongadas e tendência para a guerra e a militarização. Estas duas coisas combinadas desperdiçam um enorme potencial produtivo. O outro lado disso é que as pessoas que gerem o sistema vêm dizer que tens que aceitar cortes no teu nível de vida, tens de trabalhar mais, não podes mais ter os tempos livres que tinhas e tornam a vida das pessoas mais difícil. Isso cria nelas disposições mentais algo contraditórias mas, se virmos as coisas com atenção, notamos que, mesmo em países em que a esquerda praticamente desapareceu nos anos 80, encontramos gente jovem abrindo-se para ideias de esquerda nos anos 90. Não sei como é em Portugal, mas em Itália, em França, há uma retoma de interesse entre os jovens pelas ideias da esquerda.
P.O. - É capaz de vislumbrar uma aliança global de classes oprimidas, no centro e na periferia, capaz de se levantar contra o sistema e criar uma alternativa?
C.H. - Eu não usaria a expressão aliança global de classes oprimidas. Para nós, e isto é um importante dado da presente situação, o capitalismo criou classes operárias não apenas nos países avançados, mas muito largas massas trabalhadoras nos países do Terceiro Mundo também. Na Índia, Bombaim é uma cidade de 10 milhões de habitantes em que metade são trabalhadores. Bombaim será uma excepção, pois em muitas outras cidades do Terceiro Mundo em dez milhões de habitantes apenas um ou dois milhões são operários. De todo o modo...
P.O. - Mas conseguirão estes operários (e só falaremos deles) superar a competição entre si promovida pelo sistema unindo-se num mesmo movimento emancipador à escala mundial?
C.H. - Bom, o que nós sustentamos é que há uma classe operária mundial em formação. Se olharmos para ela, verificaremos que a sua vida é muito semelhante de um país para o outro. Se olhares para um operário sul-coreano de um estaleiro naval, ele parece-se exactamente com um operário da Lisnave. Usam os mesmos chapéus, o mesmo uniforme, têm apenas uma pele ligeiramente diferente. E as suas vidas são muito semelhantes. Eles vão ambos para o bar, bebem cerveja, vêm os mesmos programas na televisão. Vê-se sob os nossos olhos a criação de uma classe internacional. Isto mesmo em países de uma cultura muito diversa e marcante, como a Índia. Os problemas são os mesmos. Os níveis de vida estão a baixar, a vida está-se a tornar mais difícil e há a percepção de que temos que falar uns com os outros. Por todo o lado, os trabalhadores se questionam sobre possibilidades de acção internacional. E nessa situação, nós acreditamos que os operários através do mundo podem arrastar atrás de si a massa dos trabalhadores ocasionais empobrecidos, lumpen-proletariado, pequena-burguesia. Isto se os operários tomarem a iniciativa e fornecerem liderança de um movimento para transformar a sociedade, não nacionalmente, mas internacionalmente.
(*) Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 46 (setembro-outubro de 1994).
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