A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 

 

Karl Marx

 

 
 

 

 Young Marx

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,

que nenhuma lareira aquece no seu coração,

escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,

e toma notas historiando infatigavelmente,

até à morte. Mas o coração, esmagado

pelo amor e pelos números, pelas censuras

e as perseguições, arde, arde luminoso

até à morte. (...................................

.......................................................)

No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,

um lugar tão espesso, tão espesso,

que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo

o vento que derrete a neve. Um lugar

ardente, porque todos os escravos desde sempre todos

aqueles cuja poeira se perdeu - ó Spártacus -

lá se concentram invisíveis mas compactos,

um bastião do amor que nunca foi traído,

porque não há como desistir de compreender o

mundo. Os escravos sabem que só podem

transformá-lo.

Que mais precisamos de saber?

 

 

JORGE DE SENA, ‘Uma Sepultura em Londres’

in PEREGRINATIO AD LOCA INFECTA

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Índice

 

 

Prefácio

1. Infância e juventude em Trier

2. Boémia estudantil

3. Plumitivo da democracia

4. Paris

5. Proletários de todos os países

6. Enfim, a revolução

7. Exílio londrino

8. A Internacional

9. Crítica da Economia Política

10. De omnibus dubitandum

11. É novamente o Dr. Karl Marx

Cronologia das obras fundamentais de Marx

Bibliografia

 

 

 


 

Prefácio

 

 

Este é um projecto que os autores já vinham acalentando há uns tempos, nascido à medida que avançavam no estudo da obra de Marx e se deparavam com a necessidade, para melhor prosseguir, de fazer alguma arqueologia sobre a génese e metamorfoses do seu pensamento. Plenamente conscientes da modéstia do esforço, esperamos ainda assim que ele dê a sua contribuição a um alargamento da oferta de materiais disponíveis para uma maior divulgação do pensamento marxista em Portugal. Para isso contribuirá, decisivamente, a infeliz circunstância de o ponto de partida ser tão baixo.

 

Portugal tem sido um terreno muito inóspito para o pensamento de Marx e Engels. A “geração de 70” não conseguiu penetrar nele um milímetro. Melhor não esteve o racionalismo progressista burguês do início de novecentos ou o movimento operário da I República. Finalmente, o próprio Partido Comunista Português - cuja história venero e estremeço como sendo a dos “nossos” - teve com o marxismo uma relação muito superficial, filtrada pelas vulgatas oficiais do tempo, intermediários vários e sucedâneos eclécticos. Fica-se reduzido a especular sonhadoramente sobre o que poderia ter sido um marxismo português, noutras circunstâncias, com pensadores da craveira de Bento Caraça, Álvaro Cunhal, Maria Lamas ou António José Saraiva. Poderia ter sido... mas não foi.

 

Não só não existe um marxismo português - como tradição e escola de pensamento identificáveis por um universo problemático particular - como a presença do método marxista é quase indescirnível na vida política e cultural do país. Estamos mesmo muito aquém disso. O facto é que se contam pelos dedos de uma só mão as pessoas que se destacaram, todas já na segunda metade do sec. XX, por um trabalho sério e continuado de introdução (pois é aí que estamos) do pensamento marxista em Portugal: Armando Castro, Vasco de Magalhães-Vilhena, José Barata-Moura, João Bernardo, António Mendonça, João Maria de Freitas Branco...

 

Para este deplorável estado de coisas contribuiu certamente o atraso económico e social do país, bem como (aliadas àquele) algumas particularidades supremamente nefastas da sua história política no século XX. Estou a falar de fascismo. De um fascismo sem tragédia, nem mesmo farsa, apenas aquele interminável resmonear estagnado e vil da água benta e dos monopólios. A ditadura ultramontana da sorna mediocridade, desveladamente velada pelo arrivista, pelo bufo e pelo pide.

 

Outro factor que, pela nossa parte, não temos dificuldade em admitir, é que os arquétipos mentais e sensuais dominantes na cultura portuguesa oferecem alguma resistência à sistematicidade do marxismo. Como aliás a qualquer pensamento científico moderno. Continuamos a ser país de poetas e do devaneio impressionista.

 

E no entanto o marxismo tem-se revelado adaptável aos universos culturais mais diversos. Tanto se amoldou ao romantismo holístico dos germânicos, como ao redentorismo trágico dos russos, à sofisticação céptica dos italianos, ao cosmopolitismo humanista dos franceses, à ontologia nostálgica dos chineses, ao espírito prático e objectivo dos anglo-saxónicos. Não se vê porque não há-de

 

Não será assim de todo descabido começar-se pelo princípio: quem foi Karl Marx.

 

Detestamos notas de rodapé. Dá-se também a circunstância de que, na sua maioria, as traduções de Marx publicadas em português não estão à altura de servir de referência. Por outro lado, não tendo nós próprios acesso às edições críticas de Marx existentes (para além de dominar mal o alemão), não pudemos oferecer sistematicamente traduções alternativas, devidamente cotejadas com o texto original. Fomos assim levados à solução radical de eliminar por completo as notas. O que impõe aqui uma explicação: todos os trechos em itálico no texto são citações de Marx, em traduções da nossa inteira responsabilidade (com origens as mais diversas, por vezes de segunda mão, mas cruzadas sempre que possível), e referentes às suas obras ou escritos que estão, na circunstância, em análise. Mais informações podem ser colhidas na bibliografia. Optou-se assim pela legibilidade em desfavor do rigor crítico-erudito, o qual não era uma prioridade num trabalho como este, que é essencialmente de divulgação e reflexão.

 

Não se encontrarão também neste livro novas revelações ou qualquer anedotário fruto de investigações originais, até porque a biografia de Marx é campo já muito lavrado, possivelmente esgotado. Quanto à análise e interpretação da sua obra, essa permanece um desafio inesgotável e sempre actual. Se cada época e lugar têm o seu próprio Marx, aquele que aqui se retrata procurará também o seu modo próprio de dizer presente, aqui e agora.

 

Karl Marx já enterrou muitas gerações de putativos coveiros seus e vai, sem dúvida, continuar a fazê-lo. Rotineiramente verifica-se que quem o “refuta” ou “supera” não chegou sequer a compreendê-lo, muitas vezes por nem sequer ter feito nesse sentido um esforço honesto e despreconceituado.

 


 

I

Infância e juventude em Trier

 

 

A cidade de Trier, na Renânia Palatinado (próxima do ducado do Luxemburgo), é uma das mais antigas da Alemanha. Sob o nome de Augusta Treverorum serviu de quartel-general dos exércitos romanos. Na Idade Média foi capital de um vasto principado eclesiástico. Quando Karl-Heinrich Marx aí nasceu, a 5 de Maio de 1818, era apenas um pacato burgo de 15.000 habitantes, debruçado sobre o rio Mosela, cercado de uma magnífica paisagem de vinhedos e floresta. Em 1795, esta parte da Renânia havia sido palco de lutas e incorporada por alguns anos na França (república, depois império). Foram abolidas a servidão e demais institutos feudais, sendo introduzido o Código Civil napoleónico e um esboço de democracia municipal. As classes cultivadas e a nascente burguesia haviam assimilado avidamente as ideias liberais. Não foi sem um murmúrio de descontentamento que, após a anexação decretada pelo Congresso de Viena de 1815, elas se viram submetidas à monarquia reaccionária prussiana.

 

Nesse tempo - que é denominado pelos historiadores como a era do Vormärz - a Alemanha era um mosaico de 38 Estados, cada um com as suas fronteiras aduaneiras, moeda e sistemas de pesos e medidas próprios. O conjunto vivia sob a hegemonia da Prússia absolutista, dominada esta pela classe latifundiária, aristocrática e militarista dos junkers. A libertação dos servos em 1811 propiciou um importante afluxo populacional às cidades. Um desenvolvimento industrial muito embrionário (metalurgia, minas e têxteis) ocorria nas províncias ocidentais, em particular na Renânia. Só em 1834 seria criada uma primeira União Aduaneira (Zollverein), englobando 18 Estados com uma população de 23 milhões de habitantes. Fomentaram-se as ligações fluviais por barco a vapor. A primeira linha férrea (Nuremberga-Fürth) inaugurou-se em 1835.

 

Os movimentos políticos progressistas eram animados pelas elites intelectuais, particularmente pelos estudantes que em 1815 criaram a sua associação - a Burschenschaft - com a bandeira tricolor negra, vermelha e dourada que simboliza até hoje a democracia alemã. Mesmo operando na clandestinidade, a Burschenschaft consegue organizar grandes manifestações de massas, atraindo a burguesia citadina para os ideais da liberdade e unidade nacional, tingidos embora também por uma ponta de jingoísmo populista e anti-semita. Na sequência da revolução de Julho de 1830 em Paris, dá-se um sensível alargamento do movimento. Em 1832 criou-se a Deutsche Volksverein (União Popular Alemã) a realizou-se, a 27 de Maio, a grande festa pan-alemã em Hambach. Após uma feroz repressão, dá-se a radicalização de algumas das franjas do movimento, que enveredam por acções armadas - como o putsch de Frankfurt de 3 de Abril de 1833 - e de terrorismo individual.

 

No campo literário, a herança setecentista do sturm und drang era prosseguida - e em certa medida revertida - pelo movimento Junges Deutschland (Jovem Alemanha), de forte entono naturalista e comprometida com o reformismo político e social, destacando-se os nomes de vários estrangeirados como Ludwig Börne, Heinrich Heine, Karl Gutzkow, Georg Herwegh, Ernst Dronke, Georg Weerth e Ferdinand Freiligrath. Muitos deles estavam claramente influenciados pelo socialismo (sobretudo via Saint-Simon) e alguns seriam mais tarde companheiros de Marx e Engels. O próprio Goethe, para o final da sua vida, estava mergulhado na questão social. Em toda esta época, a contestação ao regime da “Santa Aliança” era corporizada quase exclusivamente pelas classes cultivadas e o verdadeiro centro de agitação eram as Universidades. Prova cruel disso fê-la o jovem Georg Büchner, estudante de Medicina em Giessen e aí membro duma associação secreta jacobina. Juntamente com o pastor protestante Friedrich Weidig, tentou, em Julho de 1834, sublevar os camponeses e artesãos do Hessen com um terrível panfleto revolucionário, o ‘Hessische Landbote’, cuja divisa - “guerra aos palácios, paz às choupanas” - seria mais tarde adoptada por Lenine. O escrito foi acolhido por uma total indiferença popular. Weidig suicidou-se na prisão, enquanto o genial dramaturgo tomou o caminho do exílio, falecendo em Zurique três anos depois, aos 33 anos de idade.

 

A família Marx é de origem judaica muito marcada. O próprio nome Marx parece ter sido uma abreviação de Mordechai. O avô paterno de Karl, Meier Halevi Marx, foi o rabino de Trier. Sucedeu nesse lugar ao seu sogro - que provinha de uma longa linhagem de ilustres rabinos estendendo-se desde a Idade Média - e foi, por sua vez, sucedido pelo seu filho mais velho, Samuel Marx. Na verdade, quase todos os rabinos de Trier desde o séc. XVI parecem ter sido antepassados de Karl pelo lado paterno. E pelo lado materno o panorama era curiosamente similar. A mãe de Karl, Henrietta Pressburg, veio da Holanda e era filha do rabino de Nijmegen. Os Pressburg eram uma família judaica de origem húngara que se refugiara nos Países Baixos e no seio da qual os filhos sucederam aos pais como rabinos durante séculos. Um dos tios maternos de Karl - de quem este buscou auxílio mais do que uma vez, em tempos de aperto económico - chamava-se Lion Philips e era um próspero homem de negócios. A empresa por ele fundada é hoje uma multinacional que não precisa de mais apresentações. Com alguma perversidade (e exagero, pois o tio era avaro), poder-se-ia dizer que as investigações para ‘O Capital’ tiveram patrocínio da... Philips.

 

É hoje difícil avaliar a influência que o universo cultural judaico teve na formação do jovem Karl. Ao certo sabe-se que, se ela foi de certo modo limitada, deve-se isso em grande medida ao seu progenitor, Heinrich Marx. Segundo filho do rabino Halevi Marx, o pai do pai do marxismo teve como nome de nascença Hirschel. Aparentemente terá cortado com a família muito cedo, dela dizendo nada ter recebido além do amor da mãe. Estudou Direito e, com muitas dificuldades, fez-se advogado junto à corte suprema de apelo em Trier. Foi durante muitos anos presidente da associação da advogados da cidade e, ao que parece, era também proprietário de vinhas. Personalidade conhecida e estimada na cidade, continuava a considerar-se judeu e, ainda por altura da anexação da Renânia à Prússia, dirigiu um apelo ao novo governador em nome dos seus “companheiros crentes”. Foi só em 1817 que se baptizou na fé luterana (numa cidade esmagadoramente católica), germanizando então o seu nome para Heinrich. As leis prussianas vedavam então aos judeus o acesso ou permanência em empregos público e ele, bem ponderadas as coisas, resolveu que a sua prestigiosa posição social e o desafogo da sua família valiam bem uma missa. E que protestante fosse ela, já agora. Fez também baptizar os seus filhos em 1824, um deles como Karl-Heinrich. No ano seguinte, após a morte de seu pai, a própria Henrietta Pressburg se baptizou.

 

Na verdade, Heinrich Marx era um homem culto, inteligente e racionalista dos quatro costados. A sua religião era um deísmo superficial, singelo e moralizante, à la Lessing. De personalidade pragmática e muito cautelosa, patriota alemão fiel à monarquia prussiana, tinha contudo ideias firmemente liberais e uma simpatia espontânea pelos oprimidos. Sabia de cor o seu Voltaire e o seu Rousseau, temperando-os com Leibniz e os empiricistas britânicos. Como membro da sociedade literária Clube do Casino de Trier teve, no ano de 1834, intervenções (moderadas) em sessões públicas que culminaram com o entoar de canções revolucionárias, o que chegou a provocar um severo franzir o sobrolho às autoridades. Karl Marx manteve até ao fim da vida um grato culto à memória de seu pai. O mesmo não se pode dizer em relação à sua mãe, que parece ter sido uma pessoa de carácter algo rígido, de horizontes limitados à gestão do seu espaço de vida burguês e sem qualquer interesse pelas aventuras do espírito.

 

Karl foi o terceiro de nove filhos do casal Marx. Destes apenas sobreviveram até idade madura ele e mais três irmãs: uma mais velha - Sophie - e duas mais novas - Louise e Emilie. Praticamente nada se sabe da infância de Karl, que parece ter sido feliz e sem problemas. A acreditar em certos relatos anedóticos de suas irmãs, ele teria uma personalidade dominadora - tirânica mesmo -, temperada por uma vivacidade de espírito e capacidade efabulatória fora de comum. O que é certo é que, desde muito cedo, as capacidades intelectuais de Karl o tornaram centro de atenções e abrigo das esperanças humanistas do probo jurisconsulto.

 

O jovem Karl foi educado em casa até aos doze anos de idade. Além da de seu pai, outra influência intelectual bastante marcante nessa idade foi a do seu futuro sogro, o barão Ludwig von Westphalen. Este aristocrata, doze anos mais velho que Heinrich Marx, fora também colocado ao serviço legal da cidade de Trier e tornou-se seu amigo, partilhando com ele o gosto pela literatura, pela filosofia racionalista e pelo optimismo reformista das luzes. As duas famílias eram além disso vizinhas e frequentavam-se. A filha mais velha do segundo casamento do barão, Jenny von Westphalen, tornou-se amiga inseparável de Sophie Marx. Em longos passeios intelectuais pelas colinas e bosques da vizinhança, o barão alimentava com gosto e bonomia a ávida mente do adolescente Karl, instilando-lhe o gosto por Homero e Shakespeare que ele cultivaria fanaticamente até ao fim da vida. A generosidade progressista de von Westphalen levou-o até ao ponto de interessar o seu jovem ouvinte pelas ideias do socialista utópico francês Claude-Henri de Saint-Simon. Jenny participava frequentemente dos colóquios entre seu pai e Karl. Os dois jovens partilhavam também o seu entusiasmo pelos ideais pan-germânicos e republicanos de Hambach.

 

Um dos primeiros socialistas alemães - admirador de Fourier e depois discípulo de Saint-Simon - foi o então secretário do Conselho da cidade de Trier, Ludwig Gall, que aí publicou, nos anos 20 e 30, três brochuras de ideias comunitaristas. Não há porém notícia de que tais obras tenham impressionado Marx nesta precoce idade. Gall tinha já percorrido meio mundo - dirigira um falanstério nos Estados Unidos da América - e foi um talentoso inventor técnico. Nos seus escritos denunciava a exploração capitalista, a crescente disparidade entre ricos e pobres, e propunha associações comunitárias de trabalho. Nessa altura, a crise do sector vinhateiro - fruto das uniões aduaneiras e da crescente concorrência - atirava largas massas camponesas para a miséria, a prostituição e a emigração. Cerca de um quarto da população de Trier vivia da caridade pública.

 

De 1830 a 1835, Karl Marx frequentou o Liceu Friedrich-Wilhelm de Trier, um areópago de liberalismo e livre-pensamento. O reitor deste estabelecimento - e professor de História de Karl - era um dos mais ilustres pedagogos da época, o kantiano Hugo Wyttenbach, de quem Goethe deixou referências elogiosas. O professor de matemática e física, Johann Steininger, era considerado materialista e ateu. Em 1832, o reitor - fundador do Clube do Casino e também amigo de Heinrich Marx - foi posto sob vigilância pela polícia prussiana. No ano seguinte, uma rusga ao liceu descobriu na posse de alunos (dos quais um foi preso) literatura da Burschenschaft e versos satíricos contra a monarquia prussiana. Wyttenbach esteve para ser demitido, mas por fim as autoridades limitaram-se a flanqueá-lo com um vice-reitor reaccionário, o professor Vitus Loers. Na sua despedida do liceu, o jovem Marx visitou todos os professores ignorando ostensivamente Loers.

 

No liceu Marx foi um bom aluno, sem nunca contudo se ter destacado ou obtido qualquer prémio. Foi oitavo numa classe de 32. O seu verso latino e grego foram considerados bons, a religião satisfatória, o francês e a matemática sofríveis e a história (?!) a sua mais fraca disciplina. Não fez aí amizades duradouras, àparte o seu futuro cunhado Edgar von Westphalen. Há notícias de que muitos dos seus colegas o temiam pelas suas sátiras ferinas e letais. Começou por essa época a versejar, hábito que manteria por mais uns anos. Das suas composições liceais chegaram até nós três, todas do seu exame final: uma em latim e duas em alemão. Destas, uma é sobre religião e a outra o celebrado ensaio “Reflexões de um jovem perante a escolha de uma profissão”.

 

As “Reflexões” são uma composição cheia de entusiasmo juvenil, com uma apaixonada declaração de fé no ideal de uma vida dedicada ao bem da humanidade. Foi marcada com “muito bom” por Wyttenbach, embora criticada pela escolha injustificada de vocabulário raro e extravagante. Uma passagem em que Marx, a propósito das dificuldades na escolha de carreira, afirma que “as nossas relações na sociedade em certa medida já começaram a estabelecer-se antes de estarmos em condições de as determinar”, foi por alguns comentadores (nomeadamente o seu primeiro biógrafo, Franz Mehring) assinalada como um primeiro embrião do materialismo histórico. Esta interpretação parece contudo muito forçada e guiada retrospectivamente. As “Reflexões” são sobretudo notáveis pela generosidade ardente e ingénua com que este adolescente provinciano de dezassete anos aí esboça um sentido para a vida ao qual permanecerá sempre fiel:

 

“Se o homem trabalha apenas para si próprio, poderá porventura tornar-se um erudito célebre, um grande sábio ou um excelente poeta, mas nunca será um homem completo, verdadeiramente grande. A história chama de grandes àqueles homens que se enobreceram trabalhando pelo universal. A experiência louva como mais feliz àquele que tornou mais pessoas felizes (...)”.

“Quando escolhemos a vocação na qual mais poderemos contribuir para a humanidade, os fardos não nos podem vergar, porque eles são apenas sacrifícios por todos. Então não experimentaremos uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões, nossos feitos serão silenciosos mas eternamente eficazes e lágrimas ardentes de homens nobres derramar-se-ão sobre as nossas cinzas.”

 


 

II

Boémia estudantil

 

 

Em Outubro de 1835, o jovem Marx inscreveu-se na Faculdade de Direito da Universidade de Bonn. A sua estadia na cidade natal de Beethoven, que se prolongaria por dois semestres, parece ter-se caracterizado por muita estúrdia e alguma desorientação intelectual. A Universidade de Bonn - com 700 estudantes - era um dos centros intelectuais da Renânia. Embora participasse do movimento pan-germânico de regeneração, o ambiente aí era marcadamente romântico e não já racionalista como o de Trier. Karl começou por se inscrever em nove disciplinas (incluindo mitologia grega e romana, Homero e história da arte moderna), acabando porém por reduzi-las, sucessivamente, para seis e depois para quatro. Comprou grande quantidade de livros e começou a revelar a sua crónica incapacidade para administrar dinheiro. Escreveu também poemas e frequentou e clube de poetas da Universidade, onde terá conhecido Karl Grün, futuro socialista “verdadeiro” e amigo de Proudhon. Para casa escrevia raramente, acompanhando as cartas com poesias pouco apreciados pelo pai, que assim, aliás, dava apenas provas do seu sólido “bom gosto e bom senso”.

 

O certificado académico de Bonn elogia a “diligência e atenção” do aluno mas regista também que ele incorreu num dia de detenção por embriaguês e comportamento desordeiro nocturno. Marx foi co-presidente do “Clube da Taverna de Trier”, uma associação de estudantes originários da sua cidade natal que, ao que parece, se dedicava fundamentalmente à borracheira. Chegou até nós uma gravura do grupo, num estilo muito semelhante ao das repúblicas coimbrãs. Os vapores etílicos nada faziam para dissipar - antes realçavam - a inimizade figadal com a associação Borussia Korps, que reunia os estudantes de origem aristocrata. Estes tinham por hábito forçar os burguesinhos renanos a ajoelhar e jurar fidelidade à ordem prussiana. Para se livrar destas humilhações, Marx comprou uma pistola, a qual lhe foi apreendida durante uma visita a Colónia. O incidente deu lugar a um processo, abafado pela intercedência providencial de Heinrich junto do juiz. O que, todavia, esgotou de vez a paciência do velho jurista foi um duelo em que Marx se envolveu em seguida e do qual saíu ferido num sobrolho. Por comum acordo, decidiu-se que Karl prosseguiria os seus estudos no ambiente muito mais sóbrio e recolhido de Berlim.

 

Não acabaram aqui as preocupações do esforçado progenitor. Antes da partida, durante as férias do Verão de 1836, Karl apaixonou-se perdidamente por Jenny von Westphalen. Tornou-se então seu noivo secreto, por temor à provável oposição da família dela. Jenny era a filha mais velha do segundo casamento do benévolo e afável vizinho dos Marx. Na família do barão, porém, começava a ganhar certo ascendente um dos filhos do seu primeiro casamento, Ferdinand von Westphalen, funcionário público de carreira bastante convencional e reaccionário (futuro Ministro do Interior da Prússia). Rainha dos bailes de Trier, jovem aristocrata de grande beleza, cultura e sensibilidade, Jenny tinha então vinte e dois anos, quatro a mais que Karl. O seu percurso normal seria fazer sem mais demoras um casamento na alta sociedade, não perder anos e anos a namoriscar um rapazola judeu. Heinrich teve de participar no segredo deste noivado e - embora o casamento não lhe desagradasse - a situação era-lhe certamente bastante constrangedora. Nas suas cartas ao filho expôr-lhe-á, angustiadamente, as dúvidas que tem sobre se este terá a maturidade e equilíbrio de carácter suficientes para assumir um compromisso tão sério. Também em questões de amor Marx era porém intratável e ele próprio mais tarde dirá ter sido nesta época um autêntico “Orlando furioso”. Que Jenny amava também o jovem estudante prova-o, para lá de qualquer dúvida razoável, o facto de que apreciava os poemas que ele lhe enviou então profusamente (Livro do Amor, partes I e II, e Livro de Canções).

 

“Jenny, enfadada, podes-me perguntar

Porque dedico eu as minhas canções ‘À Jenny´

Pois se apenas por ti o meu pulso bate mais forte

Quando por ti apenas as minhas canções desesperam

Quando tu apenas inspiras o seu coração,

Quando, do teu nome, cada sílaba elas devem confessar

Quando tu tornas todas as notas melodiosas” etc., etc., etc.

 

Com o coração transbordante, Marx partiu pois para Berlim, em Outubro de 1836, matriculando-se de imediato na Faculdade de Direito da sua Universidade. A capital prussiana não tinha nada da animação burguesa das cidades renanas. No dizer de Franz Mehring, Berlim não era então mais que “uma corte militar, cuja população pequeno-burguesa se vingava com murmúrios maldosos e mesquinhos do servilismo cobarde que em público testemunhava aos coches e cortejos palacianos”. A corte era ainda a do “velho Fritz”, Frederico-Guilherme III, monarca despótico com pretensões iluministas. Na Faculdade de Direito, destacavam-se então como mestres o hegeliano progressista Eduard Gans, por quem Marx tinha grande apreço, e um seu jurado inimigo, o fundador da Escola Histórica do Direito, Friedrich Karl von Savigny, expoente da reacção romântica. Em 1837-8, Marx seguiu também cursos - de Direito Canónico, Processo Civil e Criminal - do professor Heffter, um hegeliano liberal.

 

O jovem renano vivia em grande recolhimento, bastante isolado e trabalhando sem descanso, mergulhado na ciência e na arte. Foi por essa altura que criou o hábito de passar noites inteiras debruçado sobre uma imensa pilha de livros, copiando extractos e escrevendo longas anotações críticas e ensaísticas. Estudou direito, história, teoria das artes, línguas estrangeiras e, sobretudo, filosofia. Fez traduções de obras latinas e escreveu 300 páginas de um tratado de filosofia do Direito, que logo achou insatisfatório. Esboçou diálogos filosóficos. Compôs poemas, é claro, deixando também inacabados uma tragédia em verso - Oulanem - e um romance satírico - Scorpion und Felix. A primeira obra publicada de Marx é precisamente um poema seu de 1837 - os Wilde Lieder (Cantos Selvagens) - que saíu a público em 1841 num número da ‘Athenäum’, prestigiada revista literária fundada por Friedrich von Schlegel. É sabido que frequentou também em Berlim o salão de Bettina von Arnim, femme fatale da letras românticas, que apesar da sua idade assaz madura (ou porventura por isso mesmo) exerceu um certo ascendente sobre o jovem estudante. Alguns comentadores insistem na profunda influência que o pensamento romântico teria exercido sobre toda a obra de Marx mas tal interpretação não resiste a um escrutínio minimamente sério.

 

Embora sem grande interesse artístico, os poemas do jovem Marx não são apenas divagações sentimentais. Valem também como documentos de uma encarniçada busca e combate intelectuais. Uma longa carta escrita ao pai em 10 de Novembro de 1837 dá-nos um relato circunstaciado e pungente dos seus trabalhos e da sua aventura espiritual. Nela se vê Marx - na sua rejeição do legitimismo preservacionista da Escola Histórica savignyana -, passar do idealismo de Kant e Fichte para a influência de Hegel, no afã de procurar o desenvolvimento da razão universal no seio da própria realidade concreta. O racionalismo apriorista e o descarnado imperativo categórico já não o satisfaziam como bases para uma doutrina do dever-ser. Possivelmente influenciado pelo magistério de Gans, a ontologia não transcendental de Hegel - com a sua identidade do finito e do infinito, do real e do racional - começa a exercer atracção sobre ele, partindo daí em busca de uma imanência realista e crítica, ainda tingida de idealismo.

 

“Na concreta expressão de um mundo vivo de ideias, como por exemplo o Direito, o Estado, a Natureza e a Filosofia como um todo, o próprio objecto deve ser estudado no seu desenvolvimento, sem introdução de divisões arbitrárias. O carácter racional do objecto deve desenvolver-se como algo imbuído de contradições em si próprio e achar em si próprio a sua unidade.”

 

Por vezes, o jovem estudante passeava-se “como louco” pelo jardim de sua casa, junto ao rio Spree, ou acorria ao centro da cidade “com vontade de abraçar todos os mandriões de esquina”. Esta cândida e franca carta do jovem estudante apenas confirmou no seu pai as suas piores suspeitas quanto ao carácter “faustiano” do filho, enchendo-o da mais viva inquietação.

 

Como resultado dos seus hábitos de trabalho desregrados Marx acabou por adoecer e, a conselho médico, retirou-se para o pequeno povoado de Stralow, nos arredores de Berlim. Foi aqui que entrou em contacto com o Doktorklub, um grupo informal de docentes que formavam a ala progressista dos seguidores de Hegel, conhecidos por jovens hegelianos. O grupo reunia-se geralmente no café Hippel, onde se liam poemas e ensaios em voz alta ou se discutiam teorias e sistemas franca e animadamente, diante de uma caneca de cerveja. Marx passou a ser um dos animadores do grupo e fez aí amizade com Bruno Bauer, professor de Teologia, Karl Köppen, professor de História (mais tarde um orientalista reputado), e Adolf Rutenberg, geógrafo.

 

Georg Wilhelm Friedrich Hegel havia falecido em 1831 como titular da cátedra de Filosofia na Universidade de Berlim. Remate final de toda a filosofia clássica alemã, Hegel dominou esmagadoramente o debate intelectual nas décadas de 30 e 40, com o favorecimento do ministro da Cultura, Altenstein. Não cabe aqui, naturalmente, nem em tom anedótico, resumir em meio parágrafo todo o intrincado sistema hegeliano, que é uma catedral gótica do tamanho do Universo. Dir-se-á apenas que a filosofia da história de Hegel (ou história da filosofia, como ele preferia) é o campo de acção de um monstro demiurgo chamado a Ideia. Este monstro, puro espírito que é, cria à sua imagem todo o mundo material, por uma operação de alienação de si mesmo. Mas não o faz de uma vez por todas, como o faria o bom Deus. É que o nosso monstro encontra-se dividido por múltiplas dilacerações internas. É um monstro dialéctico, sempre em transformação, animado por convulsões internas inexoráveis que o conduziram, sucessivamente, por diversos momentos na sua auto-realização material. É este o mundo da consciência infeliz, finita, transiente. Mas estes diversos estádios históricos de realização alienada da Ideia preparam apenas uma síntese final, em que a razão é presente a si pópria, em pura transparência, como auto-consciência absoluta. Hegel admitia, com modéstia compungida, que esta Ideia universal se encontrava realizada com o máximo grau de perfeição e perenidade no seu próprio pensamento e, aproximadamente, na organização racional do Estado prussiano, que era o seu empregador.

 

Para se ser absolutamente justo, Hegel esteve sempre longe de ser um simples filósofo da corte berlinense, com quem manteve uma complexa relação tecida de distanciamento digno, cálculo, lisonja e algum colaboracionismo. A sua herança intelectual era muito ambígua. Se, por um lado, ele foi o pensador que reintroduziu a historicidade, a contradição e o progresso no campo da razão, por outro lado foi também o apologista da monarquia constitucional como realização acabada e definitiva da Ideia (a Prússia tinha uma Carta Constitucional desde 1815, mas na prática era um reino absolutista). Foi tanto o teórico da revolução francesa como o ideólogo da restauração prussiana. Foi, enfim, mais um daqueles pensadores burgueses a afirmar gravemente que, em tempos, houve de facto história, luta, transformação... mas agora já não há. Em todo o caso, dado que para ele o papel da filosofia é persrcrutar a essência daquilo que é (e não do que deve ser), ela chegará sempre atrasada ao encontro com o tumulto da renovação e do devir. O projecto hegeliano, “revolucionário na sua parte lógica, é conservador na sua parte prática”, no dizer do seu discípulo rebelde Rudolf Haym. O problema é que, uma vez saído da lâmpada o génio da negatividade dialéctica, é difícil tornar a encerrá-la lá acomodadamente. Nada de admirar, pois, que o magistério de Hegel fosse nessa época (como ainda hoje) objecto de acaloradas disputas, sob o pano de fundo de uma sociedade em transformação.

 

A juventude de Marx passou-se num tempo e lugar em que, à boa maneira medieval, as questões políticas eram ainda abordadas sob a forma de disputas teológicas. Para isso contribuía também o facto de, na tradição luterana, a monarquia prussiana ser teocrática, desconhecendo por completo a separação entre Estado e Igreja. Os textos sagrados eram assim campo legítimo para disputas veladamente políticas, tanto mais usado quanto o ataque directo ao trono era absolutamente impensável na publicística alemã de então. Os hegelianos conservadores - Hinrichs, Leo, Gabler, Göschel e outros - defendiam a ortodoxia cristã como pilar do regime. Os jovens hegelianos - o poeta Heinrich Heine, David Strauss, os irmãos Bruno e Edgar Bauer, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach, o próprio Gans - atacam os dogmas religiosos e a doutrina da revelação como incompatíveis com a razão. O principal objecto de disputa era então uma volumosa obra de Strauss ‘Das Leben Jesu’ (A Vida de Jesus) publicada em 1835 e que fazia uma exegese histórica e crítica dos evangelhos. A polémica estalou depois, em 1837, a propósito da exoneração e prisão, pelo governo prussiano, do ultramontano arcebispo católico de Colónia, Mons. Droste-Vischering, o qual tomara posições de aberta rebelião contra o Estado em nome da ortodoxia romana. Panfletos e artigos digladiaram-se às dezenas. Se os jovens hegelianos alinham aqui do lado da monarquia, como representante ocasional do espírito das luzes, não tardarão a atacá-la depois veladamente, evoluindo para um ateísmo mais ou menos declarado, quer dizer, para o liberalismo ou mesmo para posições filo-democráticas, de humanismo radical e até comunistas.

 

Apesar de ser o mais jovem do grupo, Marx começa a ganhar uma certa ascendência na tertúlia do Doktorklub. Köppen chamou-lhe “um verdadeiro arsenal de pensamento, uma autêntica fábrica de ideias”, queixando-se amigavelmente da sua presença intelectual avassaladora. Edgar Bauer descreveu-o assim num poema satírico:

 

“Quem avança aqui cheio de ímpeto?

É uma forma escura de Trier, um monstro à solta,

com um passo confiante, ele martela o chão com os calcanhares

e ergue os braços com toda a fúria aos céus

como se quisesse agarrar a abóboda celeste e baixá-la à Terra.

Com raiva ele continuamente move seu formidável punho,

como se milhares de demónios se agarrassem aos seus cabelos.”

 

A sua prodigalidade aumentava também de forma alarmante, provocando reprimendas desesperadas de seu pai e diversos processos por dívidas. Marx mudou de residência pelo menos dez vezes em cinco anos de estadia em Berlim.

 

Em Maio de 1838 morreu Heinrich Marx, aos 57 anos de idade, deixando a família num estado financeiro mais precário. Também Eduard Gans faleceu inesperadamente em 1839. E o “velho Fritz” bateu a bota finalmente em 1940. A entronização do seu filho Frederico-Guilherme IV criou expectativas de uma “primavera”, logo brutalmente dispersas. Johann Jacoby, um médico de Köningsberg, foi acusado de alta traição por publicar uma brochura defendendo um governo representativo e lembrando as velhas promessas de uma Constituição. Na verdade, para além de alguns arranjos de fachada da sabor paternalista, o novo reinado iniciou-se mesmo, por obra do novo ministro da Educação, o reaccionário Eichhorn, sob o signo da reacção e das perseguições ao livre-pensamento. O grande filósofo idealista Friedrich Schelling (amigo de juventude de Hegel), que com a idade se tornara um fervoroso pietista, foi chamado à Universidade de Berlim para “erradicar a semente de dragão do hegelianismo”. Desgostado com este novo ambiente, nos seus últimos três anos na capital prussiana, Marx assistiu apenas a dois cursos (um dado por Bruno Bauer sobre Isaías e outro sobre o drama de Eurípedes), afastando-se definitivamente do Direito em favor da Filosofia. Abandonou também as musas, que lhe foram tão sáfaras, optando sensatamente por copiar poemas de antologias publicadas quando queria homenagear a sua amada Jenny.

 

Tendo-se decidido por uma carreira universitária, Marx começa a preparar o seu doutoramento no início do ano de 1839. O assunto escolhido para a sua dissertação foi “Diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro”. O projecto inicial era mais vasto e previa um estudo aprofundado de todo o ciclo das filosofias estóica, epicurista e céptica. Como seria sempre seu hábito, o trabalho foi lento e torturadamente escrupuloso. Envolveu não só pesquisas nas fontes secundárias disponíveis da filosofia grega e latina como leituras mais modernas. Chegaram até nós cadernos seus de extractos e comentários sobre os epicuristas mas também de Aristóteles, Espinosa, Leibniz, Hume, Rosencranz (o primeiro biógrafo de Hegel) e de filosofia kantiana.

 

Apesar do seu carácter ostensivo de pesquisa erudita na história do pensamento antigo, a problemática real subjacente é na verdade muito jovem-hegeliana. Epicuro (342-270 a.c.), que é o herói da peça, foi um filósofo grego pós-aristotélico. Inicialmente discípulo do atomismo de Demócrito, introduziu-lhe transformações no sentido de acentuar o carácter contingente do mundo físico e de livre-arbítrio na experiência humana. Embora acreditasse na existência de deuses, Epicuro considerava-os totalmente alheios à vida terrena. Marx cita-o, aprovadoramente, no seu prefácio: “Ímpio não é aquele que ignora os deuses do vulgo, mas aquele que empresta aos deuses as ideias do vulgo.” Todo este magnífico prefácio é aliás um hino ao ateísmo e de glorificação da aventura livre e soberana do pensamento filosófico.

 

A tese sustentada por Marx é, veladamente, que a filosofia é ainda possível depois do grande sistema total hegeliano, como o fora também após Aristóteles. De modo idealístico, Marx acreditava estar a viver uma era “bela e terrível” pois que a filosofia hegeliana anunciava uma tempestade histórica de grandes proporções.

 

“São titânicos os períodos que se seguem a uma filosofia total e às suas formas subjectivas de desenvolvimento, pois a divisão que forma sua unidade é gigantesca. Assim, as filosofias estóica, epicurista e céptica são seguidas por Roma. Elas são infelizes e inflexíveis pois seus deuses estão mortos e a nova deusa tem ainda a forma obscura do destino, de pura luz ou de pura treva.”

 

O que acima de tudo conquistou Marx na filosofia hegeliana foi a noção de totalidade. Idealista, foi-o também certamente, mas nunca de forma unilateral. A sua ontologia era aqui dualista (espírito - matéria). Se para Hegel a história não é mais que a sucessão dos vários estádios da realização fenomenológica da Ideia, para Marx, já nesta fase, ela resulta antes de uma acção recíproca entre a consciência filosófica e o mundo da vida material, mundo este que subsiste independentemente daquela. E com isto tem já aberta uma via que o levará mais tarde ao materialismo e à filosofia da praxis. O jovem-hegeliano Marx nunca foi de facto um hegeliano acabado.

 

“É uma lei psicológica que o espírito teórico, tornado em si livre, se transforma em energia prática e como vontade saindo do reino das sombras de Amenta, se volta contra a realidade mundana, existente sem ele.”

 

Esta problemática da realização prática da filosofia no mundo e da mundanização da filosofia (totalmente contrária ao programa hegeliano de pacificação entre o racional e o real) irá ocupar o espírito de Marx durante mais alguns anos ainda.

 

Avisadamente, Marx não submeteu a sua tese em Berlim, onde o ambiente académico não era nada propício aos seus gritos deicidas e à sagração de Prometeu como “o mais nobre dos santos e mártires do calendário filosófico”. Socorrendo-se de alguns conhecimentos, enviou-a à Universidade de Jena onde, passados nove dias e sem necessidade de comparecer pessoalmente, foi considerado “candidato digno de excelente”, sendo-lhe concedido o grau de doutor em Filosofia, em 15 de Abril de 1841. Marx planeava agora seguir uma carreira de professor universitário em Bonn (a sua primeira Alma Mater), juntando-se aí a Bruno Bauer. Estava, enfim, lançado na vida. Moses Hess, jovem hegeliano que seria dos primeiros a aderir ao comunismo, referir-se-lhe-ia assim em Setembro de 1841, numa carta ao seu amigo Auerbach: “Deves preparar-te para conhecer um muito grande, se não o único autêntico filósofo da nossa época. O Dr. Marx, assim se chama o meu ídolo, ainda um homem muito jovem (tem uns 24 anos), dará o golpe de misericórdia na religião e na política medievais; alia a mais profunda seriedade filosófica ao humor mais fino; pensa em Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel reunidos numa só pessoa - e digo reunidos, não justapostos - e terás o Dr. Marx.”

 

Marx deixou em Berlim uma memória legendária que Friedrich Engels encontraria bem viva quando aí chegou, em Setembro de 1841, para cumprir serviço militar e seguir alguns cursos na Universidade como voluntário.


 

III

Plumitivo da democracia

 

 

Com o título académico na mala, Marx dirigiu-se imediatamente a Trier, ao que parece com o objectivo de se casar. Passou aí seis semanas. Sua mãe - que cortara com os von Westphalen - negou-lhe a sua parte na herança paterna e insistia com ele para que abraçasse uma carreira prática e ajudasse ao sustento da família. O casamento foi adiado e as relações com sua mãe tornaram-se acrimoniosas. Fosse por que razão fosse, o certo é que, em princípios de Julho, Marx acaba por se dirigir a Bonn ao encontro de Bruno Bauer, que era por então o seu principal companheiro intelectual.

 

Foi nessa altura, em Bonn, que Karl teve um importante encontro com sua noiva. Jenny regressava de uma visita a amigos em Neuss e prevenira respeitosamente sua mãe que, a caminho de Trier, passaria por Bonn para se encontrar com Karl. A mãe impôs a presença junto dos noivos do seu outro filho, “para bem da decência exterior e interior”. Mas Edgar foi um pau-de-cabeleira muito complacente pois, a avaliar pela correspondência trocada em seguida, está fora de questão que Karl e Jenny se conheceram carnalmente nessa ocasião. Este foi, sem dúvida, um arrebatamento romântico pouco comum numa jovem aristocrata de livre espírito mas de fundo puritano como Jenny. Escreveu ela então a Karl: “Decência exterior e interior! Ah, meu querido Karl, meu querido e doce Karl! E no entanto, Karl, não consigo sentir qualquer arrependimento. Fecho os olhos, vejo a tua abençoada expressão de felicidade e rejubilo por pensar que fui tudo para ti, de que nada mais posso ser para ninguém. Oh Karl, sei muito bem o que fiz e como o mundo me desonraria, sei-o, sei-o - e todavia sinto-me feliz e não trocaria a lembrança dessas horas por nenhum tesouro do mundo.”

 

Bruno Bauer era um professor de Teologia (especialista nos evangelhos) que evoluíra para o ateísmo. No novo clima académico de reacção galopante, estava muito mais em perigo o seu próprio lugar na Universidade do que vivas as hipóteses de assegurar um outro para o seu companheiro, ainda mais feroz e militantemente ateu. As coisas pioraram de vez quando, precisamente em meados de 1841, Bauer publicou uma ‘Crítica da história evangélica dos sinópticos’, negando a historicidade da figura de Cristo e considerando os evangelhos como invenções míticas. Por ordem do rei, foi proibido de proferir conferências públicas. Os dois amigos divertiam-se bebendo, discutindo e, segundo alguns relatos, praticando actos sacrílegos em igrejas. Alimentaram também planos para criar uma revista que se chamaria ‘Arquivo do Ateísmo’. Um longínquo companheiro de lides, Gustav Jung, escreveu então a Arnold Ruge: “O doutor Marx, o doutor Bauer e L. Feuerbach associam-se para fundar uma revista teológico-filosófica. Que todos os anjos do céu se reúnam à volta do seu velho Deus e que este se conceda a si próprio a sua graça, pois é evidente que estes três se preparam para O expulsar do paraíso e, por acréscimo, mover-lhe um processo legal. Marx, pelo menos, qualifica a religião cristã como uma das mais imorais.”

 

É altura de falar aqui de Ludwig Feuerbach, que exerceria por alguns anos uma influência marcante em Marx, como aliás em quase todo o seu círculo de companheiros da altura. Nascido em 1804, na Baviera, filho de um reputado jurista liberal, Feuerbach estava ainda bem dentro da faixa etária dominante dos jovem-hegelianos, embora a Marx e Engels parecesse já uma figura de outra geração. Tendo sido aluno de Hegel em Berlim começou por ser um hegeliano convicto. Foi professor universitário em Erlangen mas o seu inconformismo em matéria religiosa fez com que fosse afastado do ensino em 1830. Desde essa altura vivia num soberano isolamento campestre, em Bruckberg, uma aldeia isolada da Turíngia. Em 1839 cortou radicalmente com o hegelianismo, mantendo-se contudo como uma referência moral para toda a juventude inconformista da época. Em 1841 publicou a sua obra mais famosa - ‘Das Wesen des Chistentums’ (A Essência do Cristianismo) -, que teve imediatamente um enorme impacto. “Por um momento, fomos todos feuerbachianos”, diria mais tarde Engels. Feuerbach considerava o hegelianismo como um último avatar teológico. Não é a Ideia que se aliena na realidade, mas o próprio homem que cria a ideia de Deus e nela se aliena, transportando para essa sua invenção toda a sua essência genérica. Feurbach pretendia-se materialista e mesmo naturalista. Na verdade criou apenas um humanismo radical e um essencialismo antropológico que é ainda especulativo.

 

As conversações para a fundação do ‘Arquivo do Ateísmo’ arrastar-se-iam até ao final do ano de 1841 e acabariam por dar em nada. Isso deveu-se em parte ao facto de existir uma outra revista radical publicada em Dresden por Arnold Ruge - Os ‘Deutsche Jahrbücher’ (Anais alemães) - que preenchia as mesmas funções; por outra parte ao facto de terem surgido entretanto divergências entre Bauer e Marx, o qual se ia desinteressando cada vez mais das intermináveis polémicas teológicas e aproximando da vida política real. Bauer publicou em Novembro um panfleto anónimo - ‘Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel’ (A Trombeta do juízo final sobre Hegel), obra satírica pretensamente escrita por um crente acusando detalhadamente Hegel de ateu e revolucionário, que era a tese real subjacente. O escrito causou escândalo, como previsto, e Bauer aliciou Marx para escrever uma sequela ainda mais forte, que deveria intitular-se “O Ódio de Hegel à arte religiosa e cristã e a liquidação por ele de todas as leis positivas do Estado”. Marx trabalhou efectivamente com este fim (estudando a arte cristã e a filosofia do Direito de Hegel). Chegaram até nós os seus “cadernos de Bonn”, com excertos de autores vários e materiais preparatórios para uma crítica da doutrina jus-publicística de Hegel. Acabaria contudo por se escusar à colaboração prometida, para grande desgosto de Bauer que teve de publicar a segunda parte da ‘Trombeta’ novamente sozinho.

 

É certo que certas circunstâncias da sua vida privada serviram-lhe de desculpa. Em Dezembro de 1841 Marx partiu para Trier, onde assistiu à agonia do seu protector, o barão von Westphalen, a quem havia dedicado a sua tese doutoral. Evitando o tecto materno, instalou-se em casa do próprio barão, que faleceu a 3 de Março de 1842. Havia que confortar Jenny e renovar-lhe os protestos de um amor sem limites. Todavia, mesmo nestas circunstâncias, Marx achou tempo e disponibilidade de espírito para escrever um longo artigo jurídico-político sobre a censura prussiana destinado aos ‘Deutsche Jahrbücher’ de Arnold Ruge. Jovem-hegeliano e veterano do Burschenschaft (activismo que lhe valera uma pena de prisão), Ruge era também ele um exilado do ensino que se refugiara na edição e no publicismo, para o que dispunha de alguns meios pessoais. Nessa qualidade ele apreciava sobremaneira a pena radical do jovem renano. O artigo de Marx, enviado em Fevereiro, seria porém interdito... pela censura. Apareceria apenas, um ano depois, publicado na Suíça num volume de textos variados com o título de ‘Anekdota zur neusten deutschen Philosophie und Publicistik’ (Inéditos filosóficos e publicísticos alemães). O volume, editado por Ruge, foi publicado pelo Literarischer Comptoir (Zurique-Winterthur), uma casa editora pertencente a Julius Fröbel que, por essa altura, deu abrigo a muitos escritores democratas alemães proscritos. Marx prometeu, reiteradamente, mais materiais seus para a ‘Anekdota’, nomeadamente os salvados da sua planeada colaboração na ‘Trombeta’, mas acabou não enviando mais nada.

 

O artigo ‘Bemerkungen über die neueste preussische Zensurinstruktion’ (Observações sobre o mais recente decreto prussiano sobre a censura) foi o primeiro escrito político de Marx e é também notável a diversos outros títulos. Nele se revela toda a gama dos recursos polémicos do autor, com aquela mistura de extrema agudeza, brilho e erudição com alguma petulância e artifício formal, que caracterizariam muitos dos seus escritos de juventude. Na análise de David MacLellan, “o seu enfoque radical e não comprometido, o seu amor pela polarização, o seu método de tratar as visões dos opositores pela reductio ad absurdum, tudo o levava a escrever muito antiteticamente. Slogan, climax, anáfora, paralelismo, antítese e quiasma (especialmente os dois últimos) foram todos empregues por Marx - por vezes em excesso.” Além de desmascarar a incongruência e a hipocrisia das instruções sobre a censura (instituto de que reclama a abolição), Marx avança uma primeira análise da burocracia e denuncia os privilégios, afirmando-se como democrata radical. Longe ainda do que virá a ser a sua concepção materialista do Estado e das classes sociais, começa porém a desmascarar os desvios da prática concreta do Estado prussiano em relação ao seu conceito hegeliano que é realização da liberdade segundo a razão.

 

Uma lei contra as convicções íntimas não é uma lei do Estado promulgada para os seus cidadãos, mas uma lei de um partido contra outro partido. Uma lei que pune tendências abole a igualdade dos cidadãos perante a lei. É uma lei que divide, não que une, e todas as leis que dividem são reaccionárias. Não é uma lei, mas um privilégio. (...) O Estado moral presume que os seus membros têm a mesma convicção íntima do próprio Estado, mesmo que eles ajam em oposição a um órgão do Estado, em oposição ao Governo. Mas numa sociedade em que um órgão se imagina a si próprio como detentor único e exclusivo da razão de Estado e da moralidade de Estado, num Governo que se opõe por princípio ao povo e portanto considera a convicção íntima anti-estatal deste como sendo o seu estado de espírito normal, a má consciência de uma facção inventa leis contra as tendências, leis revanchistas (...). As leis contra as convicções íntimas baseiam-se numa convicção íntima sem princípios, numa visão material e imoral do Estado.”

 

Na análise de Lukács, o Marx de 1842 (como aliás outros jovem-hegelianos) procura mesmo escapar às consequências conservadoras e apologéticas da dialéctica de Hegel - “o que é racional é real e o que é real é racional” -, temperando-a com um retorno passageiro ao iluminismo e a Fichte. É isso que lhe permite prosseguir o seu projecto democrata radical, assinalando o desfasamento entre os ideias da razão e a prática corrupta do despotismo prussiano e sua burocracia.

 

Entretanto, a ‘Trombeta do juízo final’, cuja autoria foi facilmente identificada, tocou de finados pela carreira académica de Bauer e, consequentemente, pelas esperanças numa própria que Marx então ainda albergava. Em Março de 1842, Bauer é demitido das suas funções universitárias. Não parece ter ficado muito deprimido. Regressado Marx a Bonn e Abril, os dois amigos tiveram ocasião de espantar toda a boa sociedade com um passeio urbano em lombo de burro em alta gritaria (asinina e humana). Os seus caminhos, porém, divergiram definitivamente a partir daqui. Bauer partiu para Berlim, procurando em vão fazer revogar a decisão da sua expulsão, acabando por ficar por lá como animador das remanescentes hostes jovem-hegelianas, que agora se chamavam os freien (livres). Cada vez mais radical no plano conceptual (e na criação de escândalo público com acções provocatórias) tinha um desprezo total pela acção política real. Marx, por sua parte, mais circunspecto, empenhou-se intensamente no jornalismo político.

 

Desde 1 de Janeiro de 1842, publicava-se em Colónia um novo jornal diário, a ‘Rheinische Zeitung’ (Gazeta Renana). O periódico nasceu sob auspícios muito pouco revolucionários. Na verdade, desde o caso Droste-Vischering de 1837, a grande preocupação das autoridades prussianas quanto a Colónia era com a oposição tradicionalista católica, representada pelo grande jornal da região que era a ‘Kölnische Zeitung’ (Gazeta de Colónia). Viram pois com bons olhos o aparecimento deste concorrente, que aparecia sob o signo da modernidade e do pan-germanismo. A empresa era patrocinada pela burguesia renana mais esclarecida reunida no ‘Círculo de Colónia’, que incluia financeiros como Camphausen e Hansemann (ambos futuros primeiros-ministros da Prússia), industriais e alguns jovem-hegelianos que faziam a ponte com o Doktorklub berlinense. A subscrição de acções rendeu 30.000 táleres, que era uma soma considerável. Moses Hess - filho de um industrial da cidade mas já na altura um revolucionário comunista - liderou o processo de fundação do jornal mas, no momento de escolher um editor, os accionistas decidiram-se por Höffken, um partidário das doutrinas da economia nacional de Friedrich List. Na verdade, o propósito dos patrocinadores do jornal era a defesa de reformas económicas de inspiração listiana (um plano de poupanças da Fazenda Pública, expansão das uniões aduaneiras, construção de ferrovias, redução das tarifas postais e das custas judiciais, etc.). Cercado porém de jovem-hegelianos (que eram a intelligentsia disponível) por todos os lados, Höffken teve de renunciar, sendo substituído por Adolf Rutenberg, o que logo fez franzir o sobrolho às autoridades. Hess mantinha-se em segundo plano, não se coibindo de fazer alguma velada doutrinação comunista nas páginas do jornal e, sobretudo, fora delas.

 

Parece que Marx acompanhou a vida do jornal desde a sua fase de planeamento, fazendo frequentes visitas a Colónia, onde bebia (nem sempre com moderação) e embriagava os companheiros com a sua dialéctica. Jenny escreveu-lhe então: “Meu pequeno javali dos montes, como estou feliz por você estar feliz, porque a minha carta o alegrou, porque você tem saudades minhas, porque você vive em quartos forrados de papel, porque você bebeu champanhe em Colónia, porque há aí clubes hegelianos, porque você sonhou e, em suma, porque você é o meu querido, meu, muito meu, pequeno javali dos montes (schwarzwildchen)”. Foi ele próprio quem terá aliás influenciado decisivamente na nomeação de Rutenberg - cunhado de Bauer e seu amigo íntimo de Berlim - para a chefia da redacção do nóvel periódico. A orientação deste passou então a ser mais marcadamente política, apoiando a unificação alemã, a liberdade de imprensa e um sistema representativo de governo. A tiragem subiu e os accionistas foram apaziguados. Marx começou a colaborar regularmente nas páginas do jornal em Maio de 1842. Engels - que havia alcançado notoriedade com um conjunto de panfletos anti-Schelling, escritos sob pseudónimo - colaborava também assiduamente, como aliás o fazia Bauer e um bom número dos freien berlinenses, com a sua caótica e colorida iconoclastia.

 

Em finais de Maio, Marx deslocou-se novamente a Trier para um funeral e um casamento: de seu irmão Hermann e de sua irmã Sophie, respectivamente. Teve aí uma altercação muito séria com sua mãe (que lhe cortou doravante todos os apoios financeiros), a ponto de sair de casa e instalar-se numa pensão. Regressado a Bonn em Julho, estava naturalmente ansioso por encontrar meios de sustento e independência no jornalismo, a única profissão que lhe estava aberta. A chefia do alcoólatra Rutenberg revelava-se, entretanto, inepta, tanto do ponto de vista administrativo como redactorial. Dava-se também o caso de que, miopisticamente, as autoridades o tinham como um grande perigo subversivo e insistiam no seu afastamento. Marx é chamado a assumir progressivamente mais responsabilidades na direcção do ‘Rheinische Zeitung’. Finalmente, em 15 de Outubro é nomeado formalmente chefe da redacção, mudando-se com armas e bagagens para Colónia. Jenny havia-lhe uma vez escrito candidamente: “Ah, meu querido, querido amor. Agora você também está envolvido na política. Essa é a mais arriscada ocupação de todas. Querido pequeno Karl, lembre-se sempre que aqui em casa tem uma apaixonada que espera e sofre e se encontra totalmente dependente do seu destino”. Mal podia Jenny então entrever o que seria a sua vida ao lado de Karl Marx.

 

Os cinco meses que Marx passou como chefe-editor da ‘Rheinische Zeitung’ foram cheios de atribulações e, de certo modo, um período decisivo na sua vida. Apesar de ser “um diabo de um revolucionário”, a sua inteligência penetrante e pena devastadora fascinavam a burguesia renana, sustentáculo do jornal. Os maneios histriónicos e vácuos dos freien aborreciam-no. A sua personalidade grave em começo de maturação, a paixão pelo jornalismo, bem como a lembrança de Jenny e a necessidade imperiosa de assentar impeliam-no a uma postura responsável e de compromisso. Se ele fosse meramente um “talento”, tinha abertas todas as portas para uma carreira meteórica, na “oposição” naturalmente, mas com um estatuto não isento de respeitabilidade e conforto. Marx, porém, era todo um imenso continente de pensamento ainda em formação, bem como uma figura titânica de vontade indómita e absoluta intransigência moral. Em contacto com o mundo da vida real, esta mente infatigável fincava as suas garras aceradas no chão turvo do concreto e emergia com uma sempre renovada radicalidade. O seu caminho estava ainda por fazer.

 

Nos primeiros tempos, em muitas e variadas circunstâncias, a actuação de Marx no ‘Rheinische Zeitung’ foi moderadora, no seu papel de jovem estrela publicística e sisudo homem de ciência. A sua nomeação mesmo para chefe-editor fez-se sob o signo de um certo apaziguamento com as autoridades, que uma vez mais ameaçavam suspender o jornal. Esse apaziguamento foi selado por um compromisso assinado pelo editor Renard (mas ao que parece escrito pelo próprio Marx) que prometia moderar o tom do jornal, nomeadamente em questões religiosas, protestando ainda a grande amizade que o periódico nutria pela Prússia. Logo no dia seguinte à sua nomeação Marx publicou um artigo negando que o jornal fosse comunista, embora acrescentasse que essas ideias não podiam ser combatidas com anátemas simplistas mas apenas com um estudo sério que ele não tinha tido ainda oportunidade de conduzir. De seguida entrou em choque frontal com os freien, que se haviam habituado a fazer do jornal um depósito sempre disponível para as suas fantasias mais desbragadas e irresponsáveis. Mantendo a linha democrática, mas com uma redacção mais ordenada, coerente e sólida, a tiragem do jornal subiu em flecha, atingindo os 3.500 exemplares no final do ano, o que para a época era um número invejável. Era agora um órgão de expansão nacional e com numerosos assinantes além fronteiras.

 

Algumas peças de Marx publicadas na ‘Rheinische Zeitung’ são de antologia e marcam novas etapas na evolução do seu pensamento. A primeira colaboração sua no jornal foi uma série de seis artigos sobre a liberdade de imprensa, publicados em Maio de 1842. O pretexto foram os debates havidos sobre este assunto no Landtag provincial renano - uma assembleia feudal, baseada em “estados” de proprietários, e de qualquer forma politicamente irrelevante - reunido no ano transacto, por especial graça do novo monarca. O autor faz, naturalmente, com abundante uso de todos os seus recursos estilísticos e retóricos, uma apaixonada defesa da liberdade de imprensa, entendida idealisticamente como libertação do espírito do Estado. Ressalta claramente a sua concepção holística da sociedade, sendo a sua paixão pela liberdade impermeável a qualquer individualismo “liberal”. É denunciada a dependência da imprensa em relação aos portentados financeiros como um entrave à sua liberdade ou “censura material”. Emerge claramente a consciência de que as objecções à liberdade estão ancoradas da defesa do privilégio social. A análise comparada da intervenção dos representantes dos diversos “estados” é também já um notável e agudo estudo de sociologia das ideias políticas.

 

O artigo de resposta ao editorial do nº 179 do ‘Kölnische Zeitung’, publicado em Julho, retoma os temas teológico-filosóficos da sua tese doutoral, sendo também mais uma fabulosa peça polémica. O seu dualismo começa a adquirir uma certa acentuação materialista e historicista.

 

“Os filósofos não nascem da terra como cogumelos; são o produto da sua época, do seu povo, cujos sucos mais subtis, mais preciosos e menos visíveis fluem nas ideias filosóficas. É o mesmo espírito que constrói os sistemas na cabeça dos filósofos e os caminhos de ferro pelas mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo como o cérebro não é exterior ao homem, embora não esteja situado no ventre.”

 

A análise dos debates no Landtag renano prosseguiu (após uma peça censurada) com uma outra série de cinco artigos, publicados entre Outubro e Novembro, relativos às discussões aí tidas a propósito de uma lei sobre roubos de lenha. A lei em si era já uma lei de classe, a favor dos proprietários florestais e contra as massas deserdadas dos campos. Mas as propostas de emendas aprovadas pelos excelsos deputados dos “estados” renanos, essas, eram tão escandalosas que a consciência jurídica de Marx se sobressaltou. Mas não só a sua consciência jurídica. Este é o primeiro trabalho de Marx que aborda directamente a questão social e ele não podia ser mais claro no partido tomado. Fez uma defesa cerrada do direito costumeiro dos camponeses pobres em recolher lenha morta nas florestas entretanto apropriadas pelos senhores da terra.

 

“Nestes costumes da classe pobre, portanto, existe um sentido instintivo do direito; as suas raízes são positivas e legítimas, e a forma de direito costumeiro conforma-se aqui tanto mais com a natureza quanto, até agora, a própria existência de uma classe pobre tem sido um mero costume da sociedade civil, um costume que não achou um lugar apropriado na organização consciente do Estado.”

 

Há aqui já pois uma análise de classe, embora ainda na dicotomia meramente empírica classe rica/pobre. As classes - na sua visão ainda marcadamente idealista - são anomalias perante a razão universal, sobrevivências de um tempo em que a história humana era parte da história natural e, como tal, movimentada por sórdidos interesses materiais egoístas. A descrição, extremamente vívida e sarcástica, da forma como o vil interesse de classe destes “legisladores” se manifesta e dissimula, faz já lembrar ‘O Capital’. Mais tarde, Marx viria a confidenciar que esta série de artigos foi muito importante na sua mudança de interesses intelectuais em direcção à Economia Política.

 

A série de três artigos de resposta ao suplemento aos nºs 335 e 336 do ‘Augsburg Allgemeine Zeitung’ sobre as Comissões de Estados da Prússia, publicados em Dezembro, constituem um interessante ensaio de filosofia política. Marx combate o princípio da representação pelos diversos ‘estados’, defendendo uma “auto-representação do povo como acção estatal” caracterizada pela sua “universalidade de conteúdo”. Continua a sentir-se a presença do conceito espiritualista, hegeliano do Estado. Mas há um trecho inicial que sugere um começo de passagem para o materialismo:

 

“O que faz da imprensa o mais poderoso meio para a promoção da cultura e da educação intelectual do povo é precisamente o facto de que ela transforma a luta material em luta ideológica, a luta em carne e sangue numa luta entre mentes, a luta das necessidades, dos desejos, empiricista, numa luta de teoria, de razão e de forma.”

 

A ‘Rheinische Zeitung’ publicou em Dezembro dois artigos um tanto intemperados sobre a situação miserável dos vinhateiros na região do Mosela, da pena do seu correspondente na região. O governador-civil (oberpräsident) Von Schaper ficou supremamente indisposto com eles e exigiu explicações. Marx tomou-as a seu cargo, sendo este o pretexto para mais um marco importante da sua publicística: o artigo ‘Justificação do correspondente do Mosela’ publicado em cinco partes, entre 15 e 20 de Janeiro de 1843. Embora em tom diplomático e respeitoso, o seu conteúdo era de tal forma esmagador que a publicação da série foi interrompida pela censura. Marx conduziu aqui a sua primeira análise socio-económica de uma situação concreta e dá mais um pequeno passo em direcção ao materialismo histórico. A sua fulminante análise do funcionamento “objectivo” da burocracia prussiana (que é independente de boas ou más intenções dos seus agentes) vai claramente no sentido de afirmar o império de relações sociais dadas, preexistentes, sobre as representações ideológicas e as motivações psicológicas dos seus actores.

 

Em trânsito para a Inglaterra, Engels passou por Colónia e encontrou-se pessoalmente com Marx pela primeira vez em meados de Novembro de 1842. A entrevista foi breve e fria, pois Marx não queria alargar-se em efusividades com ninguém proveniente dos meios “livres” de Berlim. Mais animado foi o encontro com Moses Hess, que mais tarde se gabaria de ter convertido Engels ao comunismo durante essa sua passagem por Colónia. As ideias comunistas, provenientes de França, começavam então a ter algum impacto entre os meios operários (artesanais) e a juventude rebelde alemã. A tal ponto que o Governo prussiano forneceu a Lorenz von Stein uma bolsa de estudo para fazer uma pesquisa sobre o assunto na fonte e entre os trabalhadores alemães emigrados em França. O resultado foi o livro ‘Der Sozialismus und Kommunismus in heutigen Frankreichs’ (Socialismo e comunismo na França de hoje), publicado por este autor em 1842. Embora crítico, a lucidez e penetração deste estudo teve o efeito perverso de divulgar e criar mais entusiasmo em volta do objecto da investigação. Moses Hess fez uma recensão muito elogiosa do livro para a ‘Rheinische Zeitung’. É quase certo que Marx o terá lido, mas a obra não parece ter tido então um grande impacto nele. Por esta altura conheceria ele, directamente, pelo menos, Saint-Simon, Proudhon, Pierre Leroux e Considérant.

 

Além de Hess, também o alfaiate Wilhelm Weitling fazia já na Alemanha (e em comunidades operárias alemãs no estrangeiro) proselitismo por um comunismo de recorte messiânico, inspirado no cristianismo primitivo. A sua obra principal ‘Garantien der Harmonie und Freiheit’ (Garantias da Harmonia e da Liberdade, 1842) seria apreciada muito elogiosamente por Marx como uma promissora estreia teórica do proletariado alemão. Apesar do seu misticismo e do seu pendor para o culto sectário, Weitling apontava já decididamente para a independência organizativa (económica e política) do proletariado, com vista à sua tomada do poder por via revolucionária e à instauração de um regime de transição para a abolição da propriedade privada. O organização dos comunistas alemães, inspirada no magistério de Weitling, era a Bund der Gerechten (Liga dos Justos), com ramificações em Paris, Londres a na Suíça. Nela se formaram grandes dirigentes do movimento operário alemão, como o relojoeiro Joseph Moll, o literato German Maurer, o médico Hermann Ewerbeck e o tipógrafo Karl Schapper. Outro seguidor de Weitling foi August Becker, que já fora também companheiro de Georg Büchner.

 

As autoridades prussianas nunca perderam naturalmente de vista o objectivo de calar de uma vez por todas a insolente folha democrática renana. O que as tinha em guarda era, antes do mais, a expansão que o jornal obtivera entretanto e o receio de desordens públicas motivadas pelo seu encerramento forçado. O censor oficial foi substituído duas vezes e reforçado por uma segunda linha de supervisão a cargo de um alto-funcionário governamental, o regierungspräsident. Uma série de choques sucessivos levaria entretanto ao desenlace final. Primeiro foi a questão dos roubos de lenha. Depois o facto de o jornal ter obtido e publicado um projecto de lei que restringia drasticamente o divórcio e que o Governo desejava manter secreto. Em seguida, os protestos enérgicos de que o jornal se fez eco quanto ao encerramento do ‘Leipziger Allgemeine Zeitung’ e dos ‘Deutsche Jahrbücher’ de Ruge. Seguiu-se ainda a questão dos vinhateiros do Mosela. Por último (questão que na altura se manteve secreta), nada menos que um protesto diplomático do próprio czar da Rússia contra um artigo do jornal. A 19 de Janeiro de 1843, o Governo decidiu proibir a ‘Rheinische Zeitung’, com efeito a partir de 1 de Abril próximo, porque esta “se distinguia por uma tendência que manifestamente tinha por objectivo provocar a hostilidade para com a ordem existente no Estado e na Igreja, fomentar o descontentamento, vilipendiar mal-intencionadamente a administração do Estado e insultar as potências amigas”. Até à data prescrita para o encerramento a censura seria reforçada (!!?).

 

Em Fevereiro de 1843 saíu finalmente a público o volume das ‘Anekdota’ organizado por Ruge, incluindo o artigo de Marx que comentava as instruções sobre a censura decretadas pelo novo monarca. A presciência da sua análise tinha entretanto já sido amplamente confirmada na prática. No mesmo volume publicaram-se também as ‘Vorläufige thesen zur reformation der philosophie’ (Teses provisórias para a reforma da Filosofia) de Feuerbach, as quais tiveram novamente grande impacto, particularmente em Marx. O jovem jornalista desempregado tornou-se também, por alguns anos, humanista radical. É nestas mesmas ‘Teses’ que o rebelde filósofo-eremita de Bruckberg lança a palavra de ordem de uma inversão do hegelianismo em sentido materialista. Esse projecto acompanhará Marx até à fase da sua maturidade, embora então entendido num enquadramento ontológico muito mais amplo do que o que Feuerbach podia prover.

 

Petições com milhares de assinaturas choveram sobre Berlim em protesto contra a supressão da ‘Rheinische Zeitung’. Marx ainda se voluntarizou para salvar o jornal, oferecendo a sua demissão e saída para um exílio voluntário. Para o censor de serviço, Wilhelm Saint-Paul - que nos seus relatórios descrevia o homem de Trier como o spiritus rector da empresa e a redacção do jornal como uma ditadura pessoal sua - essa seria uma óptima solução. As autoridades mantiveram-se porém inflexíveis. Marx não se surpreendeu e não o lamentou. Em carta a Ruge afirmou: “Você já sabe como interpretei imediatamente o decreto de instrução à censura. Não vejo nisto mais do que uma consequência e reputo a suspensão do jornal como um progresso da consciência política, razão pela qual me demito. Além disso, já se ia tornando sufocante aquele ambiente. Não é nada agradável prestar serviço de escravo, mesmo em nome da liberdade, tendo que lutar com alfinetes em vez de armas. Já estava cansado de tanta hipocrisia, de tanta tolice, de tanta autoridade brutal e de tanto silêncio, de tanto ziguezaguear, de tantos retrocessos e palavreados. O Governo encarregou-se de me devolver a liberdade”. Marx sentia-se mudado pela sua dura experiência jornalística e tinha uma necessidade premente de consolidar a evolução do seu pensamento com mais estudo e recolhimento, longe do bulício da redacção, das discussões diárias com os censores e das reuniões constantes com as autoridades e com os accionistas. Quanto ao prosseguimento da sua actividade pública, só a entrevia como possível no estrangeiro.

 

Uma gravura da época, alegórica à proibição da ‘Rheinische Zeitung’, representou Marx na pele do seu herói favorito, acorrentado a uma impressora paralisada e com a águia prussiana debicando-lhe o fígado. Com que altivez premonitória tinha ele citado já, no prefácio à sua tese doutoral, a fala do herói mitológico a Hermes, segundo a tragédia de Ésquilo “Prometeu Agrilhoado”:

 

“Por uma tal servidão, fica sabendo

Não trocaria a minha desventura.

Prefiro ficar preso a esta rocha

A ver-me transformado em fiel mensageiro de Zeus, pai dos deuses!”

 

A grandeza trágica do destino de Marx começava então a tomar a sua própria forma.

 

 

IV

Paris

 

 

O encerramento da ‘Rheinische Zeitung’ provocou uma completa cisão no movimento jovem-hegeliano, que já se vinha desenhando aliás desde o caso ‘Trombeta’. Os freien de Berlim - capitaneados por Bruno Bauer, o seu irmão Edgar e pelo proto-anarquista Max Stirner - refugiaram-se na crítica filosófica abstracta e na doutrina da “consciência de si”, desdenhando qualquer intervenção política transformadora concreta. Marx, por sua vez, aliou-se novamente a Arnold Ruge (cujos ‘Deutsche Jahrbücher’ haviam sido igualmente suprimidos), ao poeta Georg Herweg e ao editor Julius Fröbel para fundar uma nova empresa publicística. Seriam os ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’ (Anais Franco-Alemães), a editar em França e que pretendiam aliar o espírito combativo e prático dos franceses com a capacidade teórica dos alemães. Nas suas ‘Teses’, Feuerbach havia já propugnado esta aliança. Marx procuraria, por carta, aliciar o filósofo para participar nesta aventura mas este escusou-se, dizendo que a sua teoria ainda não atingira um grau de completude tal que o permitisse passar à acção. Em Março, Marx viajou pela Holanda e, em carta a Ruge, confessou-se envergonhado com o mesquinho despotismo prussiano, profetizando o seu próximo derrube revolucionário.

 

Realizado um capital inicial de 9.000 táleres a empresa era viável e asseguraria a Marx um salário razoável, que lhe permitia encarar finalmente o seu sempre adiado casamento. O noivado durava já há sete anos e, em carta a Ruge, Marx confessou-se “apaixonado da cabeça aos pés, muito seriamente”, o que da parte dele era uma confidência bastante atípica. Em Maio partiu pois para Kreuznach, onde Jenny vivia então com sua mãe. Embora com reservas, esta aprovava o noivado, que contava porém com a férula e tenaz oposição dos filhos (e seus cônjuges) do primeiro casamento do barão. Os esponsais foram celebrados na igreja protestante e no cartório de Kreuznach, em 19 de Junho de 1843. Só a mãe da noiva e o seu irmão Edgar assistiram. Certamente por imposição dos von Westphalen, foi celebrada uma convenção ante-nupcial que excluía as dívidas contraídas pelos nubentes da comunhão geral de bens do casal. A lua de mel passou-se na Suíça e na província alemã de Baden. Tendo a mãe de Jenny oferecido aos noivos uma mala com dinheiro para as suas despesas nos primeiros tempos, estes transportaram-na consigo e deixavam-na aberta nos quartos de hotel, encorajando os amigos (mais ou menos necessitados) que iam recebendo a servirem-se dela à discrição. Como é fácil de imaginar, em pouco tempo ficou vazia. Este é apenas um primeiro exemplo de quão extraordinariamente descuidados e imprevidentes ambos os membros do casal foram sempre em questões pecuniárias.

 

As delícias do amor não fizeram Marx esquecer-se por um momento da sua missão no mundo da polis. Pelo contrário, o ano de 1843 - e particularmente a estadia em Kreuznach - foi um período de intensa actividade e produção intelectual. Uma carta remetida ainda de Colónia a Arnold Ruge, em Maio - carta esta que, ademais, politicamente não vai além de proclamações de fé republicanas e democráticas - termina com uma análise histórico-filosófica ainda muito esquemática mas já distintamente assente em pressupostos materialistas:

 

“O sistema de indústria e de comércio, de propriedade e de exploração do homem conduzirá, mais rapidamente ainda que o aumento populacional, a uma ruptura com a sociedade existente (...)”

“Pela nossa parte, a tarefa consiste em arrastar o velho mundo para a luz do dia e em dar forma positiva ao novo que emerge. Quanto mais tempo a história permitir à humanidade pensadora para reflectir e à humanidade sofredora para reunir as suas forças, tanto mais perfeito será o fruto que o presente carrega já no seu ventre”.

 

Sentindo já a presença dos perfumes gauleses, Marx dedicou-se em Kreuznach a um estudo aprofundado da revolução francesa. Para o final do ano acalentou mesmo a ideia de escrever uma história da Convenção. Estudou também a história de vários outros países: Inglaterra, Alemanha, Itália, Polónia, Suécia, Estados Unidos, etc.. Leu Maquiavel, Rousseau, Montesquieu, Chateaubriand, Justus Möser e numerosos outros autores hoje esquecidos. O resultado destes estudos está recolhido nos cinco cadernos de Kreuznach onde, como é seu costume, escreveu largos extractos de variadas obras com alguns comentários seus. Nos índices das matérias sumariadas ocupa lugar de destaque um ponto sobre “a propriedade e as suas consequências”, onde Marx reuniu documentação relativa à dependência da política em relação às relações materiais de apropriação.

 

As investigações dos cadernos de Kreuznach serviram de suporte a um outro projecto, que já vinha do tempo da ‘Trombeta’: realizar uma crítica da filosofia do direito de Hegel. Mas se em 1842 se tratava sobretudo de criticar a apologia hegeliana da monarquia constitucional, agora o escopo era muito mais amplo, abrangendo as próprias fundações ontológicas de todo o edifício. Vimos já que, em vários artigos seus na ‘Rheinische Zeitung’, a análise de Marx parece arrastar-se infecundamente, paralisada ainda pela sua concepção fundamentalmente hegeliana do Estado. É precisamente esta que vai agora ser objecto de um ajuste de contas frontal, apoiado em Feuerbach e nos seus estudos históricos concretos sobre o processo de separação entre Estado e sociedade civil (terminologia hegeliana que ele conserva por enquanto). A crítica de Marx incide precisa e exclusivamente sobre a secção III (“Estado”), da parte III da ‘Filosofia do Direito’, a última obra publicada por Hegel, em 1821. Este trabalho, que consiste em extractos do livro de Hegel, parágrafo a parágrafo, seguidos de comentários desenvolvidos é hoje conhecido como ‘Kritik des Hegel’schen Staatsrechts’ (Crítica do Direito Público hegeliano) ou manuscritos de 1843.

 

A parte filosoficamente mais substancial da ‘Kritik des Hegel’schen Staatsrechts’ consiste - na esteia do método feuerbachiano de inverter a relação especulativa hegeliana entre sujeito e predicado - em subverter as bases em que Hegel concebe a relação entre Estado e sociedade civil (bürgerliche gesellschaft).

 

(Em Hegel) “A Ideia é subjectivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado aparece como uma actividade imaginária, interior deste mesmo Estado. Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; são elas as instâncias activas em sentido próprio; na especulação, porém, sucede o inverso. Mas se a Ideia é subjectivada, os sujeitos reais, a sociedade civil, família, circunstâncias, arbitrário, etc., são aqui tomadas como não reais, significam outra coisa que não eles mesmos, isto é, são meros momentos objectivos da Ideia.”

 

Desarticulado o “misticismo lógico, panteísta” da ciência política hegeliana, não mais Marx considerará o Estado como ideal depositário da Razão universal. Não mais apelará à sua reforma democrática por via da sua impregnação pela opinião pública livremente expressa. Esses tempos passaram já. A sua pesquisa dirigir-se-á para aquilo que ele mais tarde denominará como a “anatomia da sociedade civil”, reconhecendo nesta - ou seja, na Economia Política - as reais fundações de toda a vida na polis.

 

Esta Kritik contém as mais aceradas farpas dirigidas à burocracia prussiana, ao morgadio, ao corporativismo, à monarquia e à faceta apologético e cortesã de Hegel. Por outro lado, politicamente, em numerosas passagens suas, o democratismo radical de Marx e a sua ousadia dialéctica conduzem-no até às fronteiras da a-cracia, a vislubrar apologeticamente, pela via do sufrágio universal activo e passivo, um governo de todos, por todos e para todos.

 

“É apenas com o direito de voto, assim como com a elegibilidade semlimitações, que a sociedade civil se eleva realmente à abstracção dela própria, à existência política como sendo a sua verdadeira existência universal e essencial. Mas a consumação desta abstracção é ao mesmo tempo a sua abrogação. Colocando de maneira real a sua existência política como a sua existência verdadeira, a sociedade civil do mesmo passo coloca como inessencial a sua existência como sociedade civil, separada da sua existência política: com um dos termos da separação, cai também o outro, seu contrário. A reforma eleitoral é assim, no interior do Estado político abstracto, a exigência da sua dissolução, simultânea à dissolução da sociedade civil.”

 

É discutível (e discutido) que a ‘Kritik des Hegel’schen Staatsrechts’ marque a conversão de Marx ao comunismo, a qual geralmente se situa pela altura do seu encontro com os clubes operários parisienses. O que é incontroverso é que, intelectualemente, o caminho para esse encontro estava, da sua parte, já bem aberto desde os tempos de Kreuznach, onde ele aguardava ansiosamente o momento da passagem à cidade-luz.

 

Antes de partir, escreve ainda, em Setembro, uma outra importantíssima carta a Arnold Ruge, que é quase como um manifesto para a nóvel revista. Aqui podemos encontrar, numa linguagem nem sempre clara e tingida ainda de certo idealismo, proclamações políticas e filosóficas já distintamente “marxistas”.

 

Nós não antecipamos o mundo com os nossos dogmas, mas esforçamo-nos antes por descobrir o novo mundo através da crítica do velho. Até aqui os filósofos deixavam as chaves de todos os enigmas nas suas secretárias, cabendo ao mundo estúpido dos não iniciados esperar apenas que o perú assado da ciência absoluta lhe entrasse pela boca aberta. A filosofia agora secularizou-se e a mais flagrante prova disso é dada pelo facto de que a consciência filosófica dá batalha não só para o exterior, mas no seu próprio interior. Se é certo que não temos nada com a construção do futuro, ou com a sua organização para todo o sempre, não pode restar qualquer dúvida sobre a tarefa que nos cabe no presente: a crítica inexorável de toda a ordem existente. Inexorável, no sentido em que não recua perante as suas descobertas nem teme o confronto com os poderes existentes.”

 

O comunismo, tal como ele existe ao tempo (Cabet, Dezamy, Weitling, etc.) é considerado como uma dessas abstracções dogmáticas, que é necessário sujeitar ao gume da crítica. A crítica real parte do que existe hoje politicamente e procura descobrir, nos seus interstícios, as lutas emergentes e as verdades necessárias à nossa época.

 

Nada nos impede portanto de integrar na nossa crítica uma crítica da política, de tomar partido em política, isto é, de nos envolvermos nas lutas reais e de nos identificarmos nelas. Isto não quer dizer que confrontemos o mundo com novos princípios doutrinários e proclamemos: eis a verdade, ajoelhai perante ela! Quer antes dizer que aprontaremos para o mundo novos princípios a partir dos princípios existentes no mundo. Não diremos: abandonai as vossas lutas, elas são pura loucura; deixem-nos dar-vos as verdadeiras palavras de ordem. Em vez disso, mostraremos simplesmente ao mundo porque ele está em luta, e a consciência disso é uma coisa de que ele tem de adquirir, quer o deseje ou não.”

(...)

Estamos assim em posição de resumir o credo do nossa revista numa simples palavra: a auto-clarificação (filosofia crítica) das lutas e dos desejos da nossa era.”

 

Saliente-se, entretanto, que os originais desta correspondência de 1843 perderam-se. Foi Ruge que fez publicar as três cartas de Marx, juntamente com duas suas, uma de Feuerbach e uma de Bakunine, num Acto Epistolar em IV Cenas, logo a abrir o número único dos ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’ e como sua apresentação programática. A peça parece ter tido uma edição bastante criativa, no que terá também participado o próprio Marx. Resulta assim pouco claro se estas suas ideias são efectivamente de Setembro de 1843 ou já datam de Paris, alguns meses depois.

 

O artigo ‘Zur Judenfrage’ (Para a questão judaica), a mais extensa contribuição de Marx para os ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’, foi também sem dúvida escrito ainda em Kreuznach, embora possa ter recebido os retoques finais já em Paris. É uma obra bastante importante no seu percurso intelectual e uma das que mais discussão tem gerado, se bem que por motivos totalmente equivocados. O artigo, sendo uma peça polémica em resposta a duas intervenções de Bruno Bauer sobre a questão da emancipação política dos judeus no “Estado cristão” prussiano (que era por então uma questão de grande actualidade), tem na verdade um objecto bastante mais amplo do que o título deixaria supôr. A questão fundamental de ‘Zur Judenfrage’, como já da ‘Kritik des Hegel’schen Staatsrechts’é a cisão operada, na sociedade moderna, entre a universalidade abstracta do Estado e o mundo em que pululam os interesses concretos dos indivíduos, a sociedade civil. Os princípios fundamentais da constituição política liberal não passarão de superstição celeste enquanto não forem harmonizados com o mundo profano da vida real, onde vigora o salve-se quem puder, a opressão e a negação concreta do homem. ‘Zur Judenfrage’ é assim mais uma etapa no trânsito da crítica da religião para a crítica da política e, dentro desta, para a crítica das condições materiais efectivas que condicionam a toda vida social.

 

“Só quando o homem individual real retoma em si o cidadão abstracto e, como homem individual - na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais - se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas ‘forces propres’ como forças sociais, e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política - é só então que estará consumada a emancipação humana.”

 

É decerto verdade que o artigo de Marx (sobretudo na sua segunda parte) contém juízos e expressões que, tomadas literalmente, para uma sensibilidade contemporânea, são de um anti-semitismo chocante. Este tipo de expressões reaparecerá depois ocasionalmente, na sua obra e na sua correspondência. A questão é tanto mais delicada dadas as origens judaicas bem marcadas do autor. Está porém desde há muito inequivocamente estabelecido que, em ‘Zur Judenfrage’, onde se lê “judeu” deve ler-se capitalista, traficante, indivíduo portador de interesses puramente materiais e egoístas, representante do “sistema do dinheiro” (geldsystem). É este o judaísmo “prático” a que Marx se refere (para o vituperar), judaísmo esse aliás que ele expressamente refere se ter generalizado como atitude entre as classes dominantes da sociedade “cristã”. À época, este uso da expressão “judeu” era aceitável (senão comum), dada que subsistia ainda a memória dos judeus como povo-classe, senhores exclusivos do comércio e da finança durante a Idade Média.

 

É possível que Marx abominasse a religião judaica com um zelo particular, para além do que já ele dedicava afincadamente à execração de “todos os deuses”. Como um pensador empenhado nas sendas mais agrestes e radicais do universalismo racionalista europeu, é natural que encarasse as ladaínhas rituais dos seus ancestrais sobre o Pentateuco como um lastro penoso, algo de intoleravelmente paroquial, obscurantista e reaccionário. Não há nele porém qualquer sombra de ressentimento. Na verdade, afastada naturalmente a questão religiosa, é indescirnível em Marx qualquer consciência de ser judeu. O seu sentido de pertença a um qualquer universo cultural e histórico de matriz judaica parece ter sido muito ténue, nada que desse aso às teorias do self-hating jew. Quanto à “questão judaica” em sentido estrito, a opinião de Marx era inequívoca, tendo ele inclusivamente tomado posição pública contra a discriminação política e social dos habitantes da Prússia de confissão judaica. Achava mesmo que esta era uma boa causa e um excelente pretexto para fazer agitação política democrática.

 

Ciente dos seus planos de se expatriar, a velha águia prussiana tentou ainda seduzir Marx com a promessa de uma boa colocação, servindo-se para isso da intermediação de um velho amigo de seu pai, o conselheiro Christian Esser. Mas já nem a memória da benfazeja solicitude paterna era capaz de reter Marx na “anarquia do espírito” e“reino da estupidez” em que se convertera o solo pátrio germânico, sob o império da sanha reaccionária desencadeada por Frederico-Guilherme IV. Allea jacta est!

 

Em finais de Outubro de 1843, Marx chegou finalmente a Paris, acompanhado por Jenny, já grávida de quatro meses. Instalaram-se inicialmente no nº 23 da Rua Vanneau, uma sossegada artéria da àrea de St. Germain, na rive gauche. Arnold Ruge alugara dois andares nesse prédio e propôs a Marx, Herwegh e Germain Maurer (outro importante escritor socialista alemão) que se lhe juntassem aí, com as respectivas esposas, vivendo todos numa comunidade inspirada nos falanstérios de Fourier. As instalações da revista ficavam no andar térreo do nº 22, em frente. O projecto comunitário teve fraca aceitação. Os Marx mudaram-se passadas duas semanas e, em Dezembro, acabariam por se fixar no nº 38 da mesma Rua Vanneau, onde moraram até serem expulsos de França pelo ministério de Guizot. Paris era então verdadeiramente a cidade-luz, capital da civilização europeia. A revolução burguesa de 1830 derrubara o regime restauracionista dos grandes terratenentes, confiando o poder à fina flor da finança: banqueiros, magnatas da bolsa e dos caminhos-de-ferro, proprietários de minas e fundições. Deu-se um poderoso surto de desenvolvimento industrial, provocando um aumento exponencial das massas proletárias e a sua crescente miséria. A insureição de Lyon em Novembro de 1831 dera o toque de alvorada para o movimento operário europeu. 1840 fora também um ano marcante. Realizou-se nesse ano o primeiro “banquete” comunista, em Belleville, tendo-se desencadeado também um movimento grevista que teve por remate, durante alguns dias, uma autêntica greve geral em Paris. Foi também nesse ano que se publicaram os grandes inquéritos à condição operária, de Villermé e de Eugène Buret. Ainda nesse ano foi criada a Sociedade dos Trabalhadores Igualitários, inteiramente composta por operários. Segundo o testemunho de Lorenz von Stein, o comunismo adquiria expressão de massas. Também o poeta Heinrich Heine assevera que há em Paris “400.000 punhos rudes que apenas esperam a palavra de ordem para realizar a ideia de igualdade absoluta incubada em suas rudes cabeças”.

 

Os projectos de aliciamento de algumas figuras proeminentes do radicalismo social francês para colaborar na revista tiveram começos auspiciosos mas finalmente deram em nada. O projecto teve uma recensão elogiosa na Révue Indépendante mas os comprometimentos pessoais esperados falhariam todos, um a um. Pierre-Joseph Proudhon estava ausente de Paris; Louis Blanc, Félicité de Lamennais, Étienne Cabet e o fourierista Victor Considérant afastaram-se, susceptibilizados com os propósitos revolucionários mas sobretudo com o ateísmo dos alemães; o saint-simonista Pierre Leroux tinha outros projectos; também Georges Sand, Flora Tristan, Alphonse de Lamartine e Théodore Dézamy foram contactados mas não corresponderam ao apelo. Auguste Blanqui (que em todo o caso não era homme de lettres), herdeiro do estandarte babeuviano dos “iguais”, estava na prisão, na sequência do golpe falhado de Maio de 1939 da sua “societé des saisons”. Os ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’ acabaram por se tornar em apenas mais uma revista alemã no exílio, com a colaboração dos autores já ligados à editora suiça de Julius Fröbel, aos quais veio ainda juntar-se Heinrich Heine.

 

Mas Marx não falhou, de modo algum, ao seu ansiado encontro com o movimento operário e socialista francês, o qual deixaria uma profunda marca na evolução do seu pensamento. O meio socialista parisiense, vivendo então uma fase de grande fermentação, era animado por numerosos títulos de imprensa. A palavra de ordem socialista mobilizava intelectuais e artistas, de romancistas populares como Eugène Sue a cançonetistas famosos como Beranger. Marx participou activamente em reuniões de clubes e associações secretas de operários, quer franceses, quer da numerosa comunidade de artesãos alemães expatriados. Era nessas salas que homens rudes e cansados por uma jornada de trabalho embrutecedor alteavam a voz em acaloradas disputas nocturnas entre as diversas correntes socialistas e comunistas. Foi aí que Marx se ligou para sempre ao movimento operário. Consciente porém do carácter embrionário e incipiente da sua doutrina não aderiu então a nenhuma das numerosas seitas existentes, procurando antes desenvolver ele mesmo as premissas teóricas capazes de exprimir e dar corpo à maturidade do movimento.

 

A descoberta do proletariado como agente histórico da emancipação humana - enquanto dissolução de todas as classes sociais e princípio da harmonização ou fusão do particular com o genérico, da filosofia com a política e da política com a vida - está assinalada, com eloquência e alguma fanfarra heróica, no segundo dos artigos de Marx publicados nos ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’. Trata-se de um pequeno texto que se pretende introdutório ao trabalho ainda em curso de crítica da filosofia do Direito de Hegel. Nas páginas da revista recebeu o título de ‘Zur Kritik des Hegel’schen Rechtsphilosophie. Einleitung’. É nesta obra tensa e brilhante que se encontram algumas passagens de Marx tornadas famosas, embora por vezes de forma descontextualizada. É o caso da definição da religião como ópio do povo. Há uma outra passagem que assinala mais um progresso importante a caminho da filosofia da praxis conforme se expressará lapidarmente dois anos depois nas ‘Thesen über Feuerbach’.

 

Sem dúvida, a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas; a força material só será derrubada pela força material; mas a teoria em si torna-se também uma força material quando se apodera das massas.”

 

Como observa certeiramente José Barata-Moura, “mais do que a dimensão militar do armamento das ideias - um pouco à maneira de Machiavelli, para quem só os profetas armados têm condições de triunfar - o que assoma aqui é o vector social incontornável dos movimentos de transformação, no decorrer e no interior dos quais as ideias podem igualmente converter-se em força material”. Sempre sem esquecer que

 

A teoria não se realiza nunca num povo senão na medida em que ela é uma realização das suas necessidades. (...) Não basta que o pensamento procure realizar-se, é necessário que seja a própria realidade a compelir ao pensamento.

 

A missão histórica do proletariado aparece já revestida da negatividade dialéctica, de tal modo que é de estranhar como se pôde defender que o pensamento de Marx estaria completamente afastado do hegelianismo nesta fase.

 

Ao anunciar a dissolução da ordem social existente, o proletariado apenas enuncia o segredo da sua própria existência, porquanto ele é a dissolução efectiva desta ordem. Quando o proletariado exige a negação da propriedade privada, apenas estabelece como princípio da sociedade aquilo que a sociedade já elevara a princípio do proletariado e que este próprio já involuntariamente encarna enquanto resultado negativo da sociedade.”

 

Este tema será retomado em ‘Manifest der Komunistischen Partei’.

 

Como corpo literário e teórico, o volume único dos ‘Jahrbücher’ é um conjunto impressionante. Para além da abertura epistolar, dos artigos de Marx e de Hess, das poesias de Heine e de Herweg, sobressaíam a defesa de Johann Jacoby contra a acusação de alta-traição deduzida contra ele pelas autoridades prussianas e, em particular, duas colaborações de um jovem então residente em Inglaterra e que Marx havia já conhecido superficialmente: Friedrich Engels. Marx ficou particularmente impressionado com uma delas (que, anos mais tarde, ainda qualificava de “genial”), a qual exibia um título que constituiria para ele um programa para toda a vida - ‘Umrisse zur eine Kritik der Nationalökonomie’. A nationalökonomie era então (por influência de List) a expressão germânica usual para designar a Economia Política. O título do artigo será assim correctamente traduzido por ‘Esboço de uma Crítica da Economia Política’. Esta visionária e seminal peça de Engels define a Economia Política como a ciência dos proprietários e do “enriquecimento”; postula que uma crescente separação entre o capital e o trabalho é o resultado da apropriação privada; hesita na questão do valor e da renda; esboça já uma teoria das crises periódicas e da centralização da propriedade como resultado da competição cega; profetiza enfim uma revolução social que, destruindo a propriedade privada, reconciliará a humanidade com a natureza e consigo própria.

 

Todavia, enquanto empresa editorial, os ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’ foram um desastre total. O seu primeiro e único número saíu do prelo em princípios de Março de 1844. Tendo Ruge adoecido com certa gravidade, o trabalho editorial recaíu quase inteiramente sobre Marx, o que se reflecte claramente no conteúdo da revista. Três quartos dos 3.000 exemplares publicados caíram, à passagem da fronteira, nas mãos da polícia, avisada pelo embaixador prussiano em Paris. Teve, naturalmente, recensões extremamente hostis na imprensa alemã. Foram emitidos mandatos de prisão para Marx, Ruge e Heine. De voluntário, o exílio de Marx passava agora a forçado. Há apenas notícias esparsas de o volume ter gerado algum interesse nos meios democráticos de Leipzig, Viena, Berlim e também no estrangeiro, designadamente na Rússia. O mais grave porém foi a ruptura total e definitiva que de imediato sobreveio entre os seus dois editores, Ruge e Marx, ruptura essa que - acaso não bastassem a repressão feroz e a perspectiva segura da ruína financeira - inviabilizou por completo a continuação do projecto. Para além de questões pessoais de intricada subtileza, a razão profunda do desentendimento foi inequivocamente política. Ruge era um radical burguês idealista que não podia exprimir senão o mais profundo horror à irrupção das massas trabalhadoras na vida pública e do espírito. Para este que era precisamente o seu novo objectivo, Marx teria de escolher novas vias e novas cumplicidades.

 

Significativamente, a ruptura entre os dois publicistas foi selada com uma polémica nas páginas do jornal ‘Vorvärts!’ (publicado em Paris pela comunidade germânica exilada) sobre o significado da revolta dos tecelões da Silésia. Esmagados por uma dupla opressão feudal e capitalista, os tecelões domiciliários desta província prussiana realizaram um levantamento espontâneo no dia 4 de Junho de 1844, destruindo os registos das suas dívidas, recibos do fio entregue, máquinas e títulos de propriedade. A revolta foi esmagada dois dias depois pela tropa real, que provocou 11 mortos e 20 feridos graves. Mas estas jornadas – que incluíram ainda diversas acções operárias noutras regiões - marcaram a entrada proletariado alemão na cena política europeia. Escrevendo anonimamente, sob a cobertura da assinatura “um prussiano”, Ruge tentou minimizar o significado político desta revolta. Na sua resposta – ‘Kritisch Randglossen zu dem artikel «Der König von Preussen und die Sozialreform. Von einem Preussen»’ -, Marx saudou entusiasticamente a iniciativa revolucionária do operariado alemão. Nota-se-lhe aí também uma evolução do seu pensamento sobre o Estado:

 

“De um ponto de vista político, o Estado e a organização da sociedade não são duas coisas diferentes. O Estado é a organização da sociedade”

 

Por outro lado, as suas ideias sobre a revolução tomam uma forma mais precisa:

 

“Toda a revolução dissolve a velha ordem da sociedade; e nessa medida é social. Toda a revolução derruba o velho poder dominante; e nessa medida é política (…)”

“Toda a revolução – o derrube do poder dominante existente e a dissolução da velha ordem – é um acto político. Mas sem a revolução, o socialismo não será possível. Ele precisa deste acto político, tal como precisa da destruição e da dissolução. Mas assim que as suas funções organizativas começam e o seu fim – a sua alma – emerge, o socialismo pode pôr de lado a sua máscara política.”

 

Desde o momento em que chegou a Paris, Marx mergulhara novamente no seu tumultuoso oceano de livros, para as suas características noitadas sem limite na desordem e no sofrimento. Passava por vezes três ou mesmo quatro noites seguidas sem se deitar, tornando-se extremamente irritável e adoecendo várias vezes. Além da história da revolução francesa e da restauração (Robespierre, Saint-Just, Camille Desmoulins, Levasseur, Thierry, Mignet e Guizot) figuravam agora já proeminentemente entre os seus interesses as obras teóricas de Economia Política. Isto era assim desde que a crítica da Filosofia do Direito de Hegel o conduzira à conclusão de que era necessário procurar nessa novel ciência a essência da sociedade civil e, consequentemente, de toda a ordem política. Os primeiros estudos económicos de Marx iniciam-se ainda em Outubro de 1843 e encerram-se em Janeiro de 1845, atingindo a máxima intensidade entre Abril e Agosto de 1844. Leu então obras de Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say, Frédric Skarbek, James Mill, Jeremy Bentham, Destutt de Tracy, John McCulloch, Pierre Boisguillebert, Prévost, Simonde de Sismonde, Eugène Buret e outros. Frequentemente transcrevia extractos das obras que lia, acompanhando-os com comentários críticos seus. Estas notas são geralmente muito fragmentárias, atingindo apenas alguma extensão e relevância teórica própria as que se referem à tradução francesa de uma obra de James Mill ostentando o título de ‘Éléments d’Économie Politique’.

 

Além dos extractos anotados, Marx passou a escrito as suas conclusões pessoais, preparando-se deste modo para publicar uma obra original sua de Economia Política. Essa sua intenção é atestada por um esboço de prefácio e pela existência mesmo de um contrato, concluído entre Marx e um editor alemão, em Fevereiro de 1845. De todo este esforço chegaram-nos apenas três cadernos inacabados e fragmentários, que ficaram conhecidos por ‘Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844’. Assim mesmo, esta é seguramente uma das obras mais discutidas e comentadas do autor. Temos aqui sem dúvida um escrita nova, úbere, incomparavelmente tensa e brilhante. Mas talvez muito do seu fascínio enigmático se deva também a uma insuficiente compreensão da sua localização como ponto de trânsito no percurso intelectual do jovem filósofo.

 

O primeiro caderno dos ‘Manuscritos’ subdivide-se em quatro secções ou capítulos: 1) salário; 2) ganho do capital; 3) renda fundiária; 4) trabalho alienado e propriedade privada.

 

No que à secção referente ao “Salário” diz respeito, importa mencionar a transcrição de excertos de obras de Schulz, Pecqueur e Buret acerca da condição (de completa miséria) da classe operária do século XIX. Aqui, Marx avança para além de um mero registo descritivo das condições de vida do operariado. Marx procura enquadrar a abjecção que recai sobre a classe operária como efeito de um universo social que lhe dá corpo: o trabalho assalariado e a relação de subordinação estrutural do operário ao capitalista. É esta a causa e motor da miséria que se abatia sobre o operariado.

 

A classe dos trabalhadores é percepcionada como explorada e submetida ao jugo da burguesia, que faz dela mais uma mercadoria, enunciando-se, deste modo, o carácter antagónico entre os interesses das duas classes. Marx fica-se por uma visão ainda parcial acerca do carácter revolucionário do proletariado, já que o vê essencialmente como uma classe explorada, dependente das vicissitudes dos ciclos económicos do modo de produção capitalista - «na situação em retrocesso da sociedade: miséria progressiva do operário; na situação em progresso: miséria estacionária». Embora isso já fizesse parte da sua reflexão nesses anos, ele não vincula aqui claramente as classes trabalhadoras à sua capacidade de se constituir como uma força social capaz de se mobilizar e organizar para levar a cabo uma completa reconfiguração da estrutura societal capitalista.

 

Quanto ao capítulo do “Ganho do capital”, Marx pouco mais faz do que transcrever passagens de Smith e Ricardo, limitando-se a pequenos comentários destas. No entanto, podemos ressaltar a visualização da importância da concorrência inter-capitalista – que desemboca no monopólio e na concentração de capital – para o processo de acumulação capitalista:

 

«a acumulação, que sob a dominação da propriedade privada é concentração do capital em poucas mãos, é geralmente uma consequência necessária quando os capitais são abandonados ao seu curso natural e só pela concorrência se abre verdadeiramente caminho livre a esta determinação natural do capital».

 

A secção “Renda Fundiária”, também se constitui fundamentalmente como o enunciar de sucessivas referências de Adam Smith, Say e Ricardo em torno das questões ligadas à renda fundiária. Neste momento dos ‘Manuscritos’, Marx enfatiza o conflito entre rendeiro e proprietário fundiário como um dos parâmetros fulcrais a tomar em atenção na transição do tipo de propriedade agrária feudal para o tipo capitalista de organização económica dos campos agrícolas. Logo, a propriedade feudal é

 

«arrastada para dentro do movimento da propriedade privada e se torna mercadoria, a dominação do proprietário aparece como a pura dominação da propriedade privada, do capital, subtraído a toda a coloração política, a relação entre proprietário e operário reduz-se à relação nacional-económica de explorador e explorado, toda a relação pessoal do proprietário com a sua propriedade cessa e esta torna-se ela mesma riqueza material coisificada, para o lugar do casamento de honra com a terra entra o casamento do interesse, e a terra, tal como o homem, degrada-se a valor de pequeno tráfico.»

 

Está-se perante uma análise que salienta o carácter inovador da configuração capitalista da produção: o fim do direito hereditário à propriedade da terra e a consumação da ligação do operário agrícola ao rendeiro capitalista como uma relação livre das peias da fidelidade ao senhor, deixando de ser posse directa de um proprietário individual e passando a estar à disposição de toda a classe burguesa.

 

A digressão teórica no terreno do “Trabalho alienado e propriedade privada” inicia-se com um apontamento acerca dos limites da teoria económica burguesa – «a economia nacional [como vimos já, este termo, à época, era na Alemanha sinónimo de Economia Política] parte do facto da propriedade privada» e por isso «não concebe a conexão do movimento, (...) entre a propriedade privada, a cupidez, a separação do trabalho, capital e propriedade fundiária (...)». Marx procura, logo de seguida, entrever a natureza do trabalho assalariado que transforma a força de trabalho do operário em mercadoria. Mas afinal, porque é que o trabalho se apresenta como sinónimo de alienação, onde «o objecto que o trabalho produz enfrenta-o como um ser estranho, como um poder independente do produtor (...), como desrealização do operário» ?

 

Antes de avançarmos para a matriz radical do fenómeno da alienação, impõe-se uma clarificação conceptual aludida na passagem anterior. Assim, a alienação projecta-se em dois momentos necessários e interligados: a estranheza (ou estranhamento) e a exterioridade. Esta última corresponde à objectivação da actividade-trabalho, em que o resultado se torna exterior ao produtor. A objectivação torna-se uma fonte imanente de alienação na medida em que o produto é apropriado por um outro ser, «um outro homem que não o operário», o capitalista. Por outras palavras, a transformação de uma qualquer matéria pelo proletário implica inevitavelmente a sua exterioridade, isto é, a descorporização, o desencarnar em relação ao operário. O completamento do processo de alienação – através da estranheza – torna-se possível exactamente porque a apropriação do excedente é feita pela classe burguesa. O estranhamento consuma-se porque, de pronto, o produto do trabalho surge perante os olhos do operário como um elemento alheio e no qual ele não se identifica, não o reconhecendo como fruto do seu labor. Ao mesmo tempo é ocultada a relação de sujeição do operário ao capitalista, a qual sobrepuja todo este processo de desapossamento do trabalho. Mais tarde, Marx fará uma brilhante descrição da alienação do trabalhador no processo de produção capitalista no primeiro capítulo de “O Capital”, ao desvendar o carácter fetichista da mercadoria.

 

Por assim dizer, a alienação é mediada, então, pela relação social do trabalho produtor de valor. Portanto, a vinculação à esfera da produção material acaba por ser intrínseca às lógicas constitutivas da alienação. A divisão do trabalho entre produtores e apropriadores de valor será, deste modo, o cerne do trabalho enquanto «actividade do desapossamento». O resultado à vista é muito claro: «o trabalho não é portanto voluntário mas imposto, trabalho forçado». Basta atentar na completa dependência do operário face ao processo de trabalho capitalista e nas repercussões que daí resultam para a percepção subjectiva do trabalho. Meio de vida e não forma de intercâmbio frutuoso com a natureza, assim se define o trabalho no modo de produção baseado na exploração de trabalho não pago.

 

Neste capítulo dos ‘Manuscritos’ – porventura o que granjeou maior fama sobretudo nas correntes do chamado marxismo ocidental ou humanista – Marx desenvolve todo um esforço de conceptualização em redor das modalidades em que se processa e molda o trabalho operário e a criação de riqueza, que desemboca no antagonismo estrutural entre burguesia e proletariado. Mas a teoria do valor-trabalho de Smith e Ricardo não era ainda aqui devidamente valorizada, muito menos questionada e retrabalhada como seria depois. Aliás, nos seus extractos anotados, Marx rejeitara mesmo expressamente, na esteira de Engels, a teoria ricardiana.

 

A ruptura com o idealismo hegeliano, em pleno desenvolvimento nos ‘Manuscritos’, só desaguará também depois, nas “Thesen über Feuerbach” e em “Die Deutsche Ideologie”, com a radicação de categorias económicas como determinantes e determinadoras da emolduração e configuração da formação social moderna. Conceitos como forças produtivas, relações de produção ou modo de produção estão aqui ainda completamente ausentes. Contudo, sem o lavrar do seu solo científico num escopo material robusto e em franco confronto com o idealismo alemão, sem a solidificação da tese da centralidade do trabalho e da instância económica (pela primeira vez esboçada por Karl Marx), teria sido de todo impossível a posterior criação de um quadro teórico capaz de indagar proficuamente o real social e estabelecer toda uma gama de vectores possibilitadores de uma acção revolucionária eficaz e radical.

 

O segundo caderno dos ‘Manuscritos’, melhor dizendo, o que sobrou do mesmo, trata numas poucas páginas da “Relação da propriedade privada”. Marx inicia a sua digressão teórica voltando a salientar o espectro das relações mercantis que se apoderam do operário e o convertem em mercadoria, sujeita às vicissitudes da oferta e da procura de energia humana para criar valor. É neste aspecto que a alusão à própria economia clássica ganha força ao afirmar-se, num tom notadamente crítico, o

 

«grande progresso de Ricardo, Mill, etc., relativamente a Smith e Say [ao] declararem a existência do homem (...) como indiferente e mesmo prejudicial. Não quantos operários um capital sustenta, mas quantos juros ele rende, a soma das poupanças anuais, seria o verdadeiro objectivo da produção [capitalista]»

 

Este texto atinge o seu ponto mais fecundo aquando da aplicação do raciocínio dialéctico à relação social que envolve e fixa a subordinação do operário ao sistema capitalista de produção mercantil: a relação da propriedade privada em si. Portanto, na reciprocidade estrutural que se estabelece entre trabalho e capital articulam-se três eixos: 1) a «unidade imediata ou mediada de ambos»; 2) a sua oposição fáctica e 3) a «oposição de cada um contra si próprio». A similitude lógico-formal com a dialéctica consumo-produção na Introdução dos “Grundrisse” (1857) é por demais evidente.

 

A relação de unidade entre capital e trabalho aqui expressa não tem nada a ver com as exortações burguesas à conciliação de interesses entre ‘empregadores’ e ‘colaboradores’, hoje ainda tão em voga nas áreas de “gestão de recursos humanos”. Pelo contrário, Marx coloca a determinação da (re)produção do modo de produção capitalista, como temos vindo a enunciar, na ligação irresoluta do operário ao burguês, proprietário dos meios de produção. Ou seja, é a força de trabalho que ao produzir valor permite a incessante acumulação de capital e, em última instância, assegura a sustentação de todo o sistema social hodierno.

 

Em consonância com esta asserção importa dar relevo à não linearidade da dialéctica. Se assim não fosse, seria impossível trabalhar instrumentos categoriais capazes de elucidar e entrever a superação de uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem. Só porque os interesses do operariado e da burguesia se apresentam como irremediavelmente antagónicos – ao nível do desapossamento na produção, do estranhamento face ao produto do trabalho e da apropriação do excedente económico – é que se consegue projectar linhas de perspectivação das formas – mais ou menos previsíveis e mais ou menos gerais – que as sociedades futuras podem vir a assumir. Paradigmas societais concretizados pela acção organizada dos explorados.

 

O terceiro eixo que fecha o “ciclo” corresponde à anulação que cada uma das parcelas da equação em si mesmas. A hegemonia de um dos dois termos em jogo – trabalho ou capital – numa sociedade cria as disposições necessárias para a subjugação do outro. Consequentemente, o trabalho ao anular-se a si próprio - no comunismo - enquanto praxis de esmagamento de carne e nervos humanos para criar riqueza apropriada por outrém, acaba também por emitir uma certidão de óbito ao seu contendor: o capital.

 

O caderno terceiro começa com uma breve secção dedicada ao tema “Propriedade privada e trabalho”. Podemos dizer que não há aqui grande inovação teórica relativamente ao que temos vindo a descrever. Na prática, Marx limita-se a assinalar a raiz da economia clássica: a propriedade privada. Isto é, a condição social onde se alicerça a teoria económica burguesa é precisamente a instância económica, personificada em propriedade privada. Em simultâneo, dada a sua ligação umbilical ao universo burguês de produção, mas também de acordo com a omissão desse mesmo facto, decorre todo um regozijo da «energia e desenvolvimento desta indústria [moderna]».

 

De seguida, Marx empreende uma excursão ao reino do comunismo, acerta contas com o seu passado de democrata radical e faz uma primeira crítica ao que chama de comunismo rude.

 

Marx chega ao comunismo não porque se encontrasse imbuído de qualquer tipo de religiosidade ou desejo profético, seguindo cegamente uma luz revelada a priori. É da propriedade privada, entendida enquanto entidade social portadora de todo um cortejo de atentados à pessoa humana fornecedora de força de trabalho (desemprego, miséria, fome, estupidificação, destruição de potencialidades físicas e mentais) que pode brotar o comunismo. Sem dúvida que o enfocar desta questão faz-se dentro de marcas quase estritamente filosóficas e ontológicas, denotando-se, mais uma vez, a inexistência do desenvolvimento do materialismo histórico no seu vigor pleno. Contudo, esta demarcação crescente relativamente ao idealismo promove uma orientação clara de Marx para o terreno – ainda tortuoso – da economia política.

 

Tudo isto é perfeitamente explícito na rejeição do comunismo rude e utópico de Proudhon, que nega o desenvolvimento individual no seio de uma comunidade humana emancipada: «ao negar por toda a parte a personalidade do homem. A inveja universal e constituindo-se como poder é uma forma oculta na qual a cupidez se estabelece e apenas se satisfaz de um outro modo». Assim é, na exacta medida em que aí «a comunidade é apenas uma comunidade do trabalho e da igualdade do salário, que o capital comunitário, a comunidade como capitalista universal paga».

 

Deste modo, uma vez que a apropriação particular se insere no controlo absoluto da vida humana - onde «para o lugar de todos os sentidos físicos e espirituais entrou portanto a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter» - Marx propõe a supressão ou superação (“aufhebung”) da propriedade privada, num registo ainda muito marcado por Hegel e Feuerbach: o conceito de essência genérica.

 

O comunismo ainda não é definido enquanto um sistema social que se erige dos escombros da divisão do trabalho, da destruição do aparelho de Estado e do esbatimento das clivagens de classe. Nos ‘Manuscritos’, o comunismo é «a apropriação sensível da essência e vida humanas, do homem objectivo, da obra humana para e pelo homem»; «o homem apropria-se da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total». Aliás, Michael Löwy não deixa de tematizar esta mesma questão ao afirmar que «esse comunismo [dos ‘Manuscritos’], de um modo um tanto ou quanto abstracto, está posto como a superação das alienações, e os problemas concretos da praxis revolucionária mal são examinados».

 

Apesar de toda esta carga de insuficiência na inscrição material e económica – com um sentido ponteado pelas lutas de classes – da superação da propriedade privada, apesar de pensar ainda o comunismo em níveis de cognição não assentes em estruturas materiais e concretas, Marx não deixa de prosseguir o seu árduo trabalho de rompimento com a filosofia idealista, como se pode comprovar quase no final deste terceiro caderno:

 

«para suprimir o pensamento da propriedade privada, chega perfeitamente o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada real, é preciso uma acção comunista real».

 

Na “Crítica da dialéctica e da filosofia de Hegel em geral”, assoma um propósito de separação entre o que há a recolher para as malhas do materialismo histórico em fermento, e o que há que expurgar definitivamente.

 

Sobre os resíduos a eliminar de um quadro conceptual que se quer enriquecido por elementos de materialidade acrescida, Marx começa por apontar baterias ao «pensamento especulativo puro (...) ao espírito filosófico ou absoluto que se apreende a si próprio». Para Hegel, o real corresponde a um substracto suspenso sobre os humanos, aos quais caberá tentar alcançá-lo através da realização da Ideia. No período histórico que se interpõe, até ao atingir da autoconsciência, desagua a alienação.

 

Segundo a filosofia hegeliana, o material é: apreendido em mediação com a Ideia, na medida em que só pelo uso da autoconsciência, do pensamento, se consegue recolher dados do universo concreto da vivência humana; compreendido no saber absoluto, porque só nesta esfera se tecem códigos de inteligibilidade do nível mundano; integrado, no sentido em que o material funciona como um suplemento do mundo da Ideia e só tem existência reconhecida no âmbito da consciência humana. Ora, se o material é apreendido, compreendido e integrado na Ideia, a alienação resolve-se, como não poderia deixar de ser, num plano ideal. Aliás, Hegel realiza um fechamento da realidade a um escopo que rejeita e subverte a matéria e a objectividade. O jovem Marx caustica eficazmente o papa da filosofia clássica alemã, dissecando o nervo central da sua insuficiência deste modo:

 

«o objecto alienado, a realidade essencial alienada do homem não é senão consciência, apenas o pensamento da alienação, a sua expressão abstracta e por isso desprovida de conteúdo e irreal, a negação. A supressão do desapossamento não é senão igualmente uma supressão abstracta, desprovida de conteúdo, a negação da negação».

 

Dessa forma, as possibilidades de emancipação humana reduzem-se à percepção subjectiva do mundo e pelo recurso a produtos também eles despidos do seu travejamento material: religião, Estado, filosofia, ciência. Para rematar, ao identificar alienação com o material e não como provindo do material, suprime e omite a praxis imanente ao material onde se desenrolam processos constitutivos das estruturas concretas e constituintes de vectores de ultrapassagem dos redutos de exploração e alienação.

 

Contudo, não se pode deixar passar em claro um ponto essencial do legado de Hegel no pensamento de Marx: a dialéctica. Despojada da sua fatiota transcendental, aquela assume a estrutura material que está na base da sua configuração interna. Ou seja, a radicação da dialéctica num esteio material implica que categorias basilares, como o movimento tese-síntese-antítese ou a permanência da contradição, se estabeleçam no seu seio. E, deste modo, que a negação e a negação da negação (ou supressão) constituam pilares de todo um edifício, agora sim, capaz de aferir as coordenadas práticas e teóricas que fundam o real.

 

Na parte restante dos ‘Manuscritos’, podemos encontrar três pequenos fragmentos com um carácter muito disperso. O primeiro destes fragmentos intitulado “Propriedade privada e necessidades” trata da penetração da propriedade privada na subjectividade operária, na medida em que «cada um procura criar uma força essencial estranha sobre o outro para aí encontrar a satisfação da sua própria necessidade interesseira». Marx diz-nos, portanto, que as necessidades e respectivas demandas de satisfação resumem-se e reduzem-se ao movimento da propriedade privada: produzir um bem por intermédio do trabalho operário e colocá-lo no mercado em ordem a vendê-lo e realizar o respectivo lucro. Assim, Marx está já claramente num caminho teórico-analítico confluente com as suas posteriores (e mais robustas) análises económicas. O significado desta proposição marxiana mais não é do que a vigência do espírito calculista e egoísta do empreendedor que deve passar por cima de tudo e de todos, subjugado pelos interesses do lucro amplo e num curto espaço de tempo.

 

Um outro elemento a ter em linha de conta neste capítulo é o realçar da fraternidade e solidariedade operárias como um colectivo de homens e mulheres em irmandade, núcleo estruturante para a constituição do proletariado como classe organizada, coesa, unida e consciente dos seus objectivos de classe:

 

«a sociedade, a associação, a conversa, que de novo tem a sociedade como fim, basta-lhes; a fraternidade dos homens não é para eles nenhuma frase, mas verdade, e a nobreza da humanidade ilumina-nos a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho».

 

Nos dois últimos fragmentos, encontram-se curtas reflexões acerca da “Divisão do trabalho” e do “Dinheiro”. Na primeira Marx volta a recorrer às citações de autores clássicos da economia política – Adam Smith, Say, Skarbek e John Stuart Mill – sobre o que estes defendem como sendo os benefícios da divisão do trabalho para o progresso social e humano. A parte mais relevante deste fragmento diz respeito à localização da divisão do trabalho como origem da propriedade privada e sua derivação correlativa no campo da produção cultural e científica: a Economia Nacional (ou Política). Corpus teórico este que se consubstancia na omissão constante da relação social profunda que o alimenta e que cabe à comunidade dos explorados subverter. Como diz Marx,

 

«que a divisão do trabalho e a troca repousam sobre a propriedade privada não é senão a afirmação de que o trabalho é a essência da propriedade privada, uma afirmação que o economista nacional não pode demonstrar, e que nós queremos demonstrar-lhe. Precisamente em que divisão do trabalho e troca são figuras da propriedade privada, precisamente aí reside a dupla demonstração, tanto que a vida humana precisou da propriedade privada para a sua realização, como, por outro lado, de que ela precisa agora da supressão da propriedade privada».

 

 

 

 

V

Proletários de todos os países

 

 

O outro evento – posterior à redacção dos ‘Manuscritos’ – que marcou Marx na sua estadia em Paris, foi o seu encontro com Engels, com o qual iria estabelecer uma profunda amizade e uma ligação revolucionária que se prolongaria pela vida de ambos. Marx tivera já ocasião para melhorar substancialmente a impressão com que ficara do primeiro encontro com o jovem Friedrich. Publicou depois disso vária colaboração dele na ‘Rheinische Zeitung’, tendo porém ficado particularmente impressionado com o ensaio ‘Umrisse zur eine Kritik der Nationalökonomie’ que saíu no número único dos ‘Jahrbücher’. Nos finais de Agosto de 1844, depois de uma estadia em Inglaterra de quase dois anos, Engels está de regresso à Alemanha e faz uma visita a Marx em Paris.

 

Seguiram-se dez dias memoráveis, com conversas francas e exaustivas, no decurso das quais se estabeleceu entre ambos, no dizer de Engels, uma “completa concordância em todos os domínios teóricos”. Além da cumplicidade intelectual e política, nasceu também uma amizade pessoal, com momentos de efusiva boa disposição, nem sempre dentro das regras da moderação. Marx introduziu Engels no círculo do ‘Vorvärts!’ e no dos clubes operários e democráticos parisienses. E fizeram desde logo projectos em conjunto.

 

O primeiro destes projectos era um ajuste de contas com alguns antigos companheiros “jovens hegelianos”, cujo idealismo filosófico inconsequente se expressava então sob a palavra de ordem de uma “crítica crítica”.

 


 

 

 

 

 

Cronologia das obras fundamentais de Marx

 

 

Em maiúsculas, os títulos das obras publicadas em vida do autor. Entre parênteses, as traduções portuguesas mais consagradas, nem sempre correctas.

 

 

1840-41: Differenz der demokritischen und epikureischen Naturphilosophie nebst einem Anhange (Diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro, com um apêndice). É a dissertação doutoral de Karl Marx, da qual se perdeu o original existindo apenas uma cópia incompleta com notas à margem do autor. Primeira publicação por Franz Mehring em ‘Aus dem Literischen Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle’ Estugarda, 1902.

 

1843: Kritik des Hegel’schen Staatsrechts (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel). Manuscrito com extractos da secção sobre o Estado da ‘Filosofia do Direito’ de Hegel, seguidos de comentários críticos pessoais. Perderam-se as quatro primeiras folhas. Publicado pela primeira vez em MEGA1/Vol. I, Moscovo, Frankfurt, Berlim, 1927.

 

1843-4: ZUR JUDENFRAGE (A Questão judaica). Artigo publicado em Paris nos ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’ (Anais Franco-Alemães), 1844.

 

1844: ZUR KRITIK DES HEGEL’SCHEN RECHTSPHILOSOPHIE. EINLEITUNG (Contribuição à crítica da filosofia do Direito de Hegel. Introdução). Igualmente publicado no número único dos ‘Deutsch-Französische Jahrbücher’.

 

1844: Ökonomisch-philosophische manuskripte aus dem jahre 1844 (Manuscritos Económico-Filosóficos). Três cadernos de rascunhos, rasurados, para uma obra de crítica à economia. O segundo caderno está incompleto, tendo-se perdido quase totalmente. Título da responsabilidade dos seus primeiros editores no MEGA1/Vol. III, em 1932.

 

1845: DIE HEILIGE FAMILIE, ODER KRITIK DER KRITISCHEN KRITIK. GEGEN BRUNO BAUER UND CONSORTEN (A Sagrada Família). Em co-autoria com Friedrich Engels. Publicado em Frankfurt-auf-Main, 1845.

 

1845: Thesen über Feuerbach (Teses sobre Feuerbach). Publicadas pela primeira vez (com ligeiras alterações) por Engels, em 1888, no seu livro ‘Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã’.

 

1845-6: Die deutsche ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des deutschen sozialismus in seinem verschiedenen propheten (A Ideologia alemã). Em colaboração com Engels. Apesar de inédito em vida dos autores, foi por estes considerado como pronto para publicação, a qual procuraram obter. Publicado integralmente pela primeira vez em MEGA1/Vol. V, em 1932.

 

1847: MISÈRE DE LA PHILOSOPHIE. RÉPONSE A LA PHILOSOPHIE DE LA MISÈRE DE M. PROUDHON (Miséria da Filosofia). Publicado em Paris e Bruxelas em 1847.

 

1848: MANIFEST DER KOMUNISTISCHEN PARTEI (Manifesto do Partido Comunista). Publicado em Londres em 1848.

 

1848: LOHNARBEIT UND KAPITAL (Trabalho assalariado e capital). Na sua base estiveram conferências proferidas na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas. Publicado na ‘Neue Rheinische Zeitung’ (Nova Gazeta Renana), Colónia Abril de 1849.

 

1850: DIE KLASSENKÄMPFE IN FRANKREICH, 1848-50 (As lutas de classes em França). Publicado pela ‘Neue Rheinische Zeitung - Politisch-ökonomische Revue’, Londres e Hamburgo, 1850.

 

1850: Ansprache der Zentralbehörde an den Bund (Mensagem à direcção central da Liga dos Comunistas). Publicada por Engels em 1885 na 3ª edição das ‘Revelações sobre o processo dos comunistas de Colónia’.

 

1852: DER ACHTZEHNTE BRUMAIRE DES LOUIS BONAPARTE (O Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte). Publicado em ‘Die Revolution’ (A Revolução), a revista de Weydemeyer em Nova Iorque, 1852.

 

1857: Einleitung zue kritik der politischen ökonomie (Introdução à crítica da Economia Política). Publicado pela primeira vez por ‘Die Neue Zeit’ (Os Novos Tempos), Estugarda 1903.

 

1857-8: Grundrisse der kritik der politischen ökonomie (Fundamentos da crítica da Economia Política). Manuscritos com reflexões capitais de apoio à redacção da ‘Contribuição...’ e de ‘O Capital’. Primeira edição em Moscovo, 1939-41.

 

1859: ZUR KRITIK DER POLITISCHEN ÖKONOMIE. I. HEFT (Contribuição à crítica da Economia Política). Publicado em Berlim, 1859.

 

1860: HERR VOGT (O Senhor Vogt). Publicado em Londres em 1860.

 

1861-7: DAS KAPITAL. KRITIK DER POLITISCHEN ÖKONOMIE. ERSTER BAND. BUCH 1: DER PRODUKTIONSPROZESS DES KAPITALS (O Capital, Livro I, O Processo de produção do capital). Publicado em Hamburgo em 1867.

 

1862-3: Theorien über den mehrwert (Teorias sobre a mais-valia). O planeado Livro IV de ‘O Capital’. Publicado por Kautsky em Estugarda, 1905-10.

 

1863-77: Das Kapital. Kritik der Politischen ökonomie. Zweiter Band. Buch II. Der Circulationsprozess des Kapitals (O Capital, Livro II. O processo de circulação do capital). Deixado em estado de esboço desenvolvido, sem polimento final. Publicado por Engels em Hamburgo em 1885.

 

1863-5: Das Kapital. Kritik der Politischen ökonomie. Britter Band. Buch III. Der Gesamtprozess der kapitalistischen produktion.(O Capital, Livro III. O Processo global de produção capitalista). Deixado inacabado pelo autor e com alguns capítulos muito esquemáticos. Publicado por Engels em Hamburgo, 1894.

 

1864: ADDRESS AND PROVISIONAL RULES OF THE INTERNATIONAL WORKING MEN’S ASSOCIATION (Mensagem inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores). Publicado em folheto em Londres, Novembro de 1864.

 

1865: Value, price and profit (Salário, preço e lucro). Um relatório lido em reuniões do Conselho Geral da Internacional em Junho de 1865. Publicado pela primeira vez em Londres em 1898, por Eleanor Marx e Edward Aveling.

 

1865-6: Resultate des unmittelbaren produktionsprozess (Capítulo inédito de ‘O Capital’. Resultados do processo de produção imediato). Este trabalho esteve para constituir um capítulo integrado no Livro I de ‘O Capital’ mas foi deixado de fora pelo autor à última hora. Publicado pela primeira vez no Arkhiv Marksa i Engel’sa de Moscovo em 1933.

 

1870: THE GENERAL COUNCIL OF THE INTERNATIONAL WORKING MEN’S ASSOCIATION ON THE WAR (Primeira mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana). Publicado em forma de folheto em Londres, Julho de 1870.

 

1870: SECOND ADDRESS OF THE INTERNATIONAL WORKING MEN’S ASSOCIATION ON THE FRANCO-PRUSSIAN WAR (Segunda mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana). Publicado em forma de folheto em Londres, Setembro de 1870.

 

1871: ADDRESS OF THE GENERAL COUNCIL OF THE INTERNATIONAL WORKING MEN’S ASSOCIATION ON THE CIVIL WAR IN FRANCE (A Guerra Civil em França). Publicado em Londres, sob a forma de folheto, em Junho de 1871.

 

1872-5: LE CAPITAL (O Capital). A primeira tradução francesa do Livro I de ‘O Capital’, por Joseph Roy, foi inteiramente revista por Marx que lhe fez acrescentos e modificações muito substanciais, de tal modo que ele próprio considerava ter esta obra “um valor científico independente do original”. Publicada em fascículos, em Paris, entre Agosto de 1872 e Maio de 1875.

 

1874-5: Randglossen zu Bakunins “Staatswesen und Anarchie” (Comentários ao livro de Bakunine “Estatalidade e anarquia”). Notas escritas à margem no exemplar pessoal de Marx. Publicado pela primeira vez na revista ‘Lepotisi markszisma’, Moscovo, 1926.

 

1875: Ranglossen zum programm der deutschen Arbeiterpartei (Crítica do Programa de Gotha). Comunicação para uso particular dos dirigentes da ala “marxista” na social-democracia alemã. Primeira publicação (com omissões), a pedido de Engels, na revista ‘Die Neue Zeit’, 1890-91.

 

1881: Projectos de resposta a uma carta de Vera Zassulitch (originais em francês). Marx acabou por decidir-se por uma carta sumária, depois de escrever três longos rascunhos e um mais curto. Primeira publicação no Arkhiv Marksa i Engel’sa, Moscovo, 1924.

 

 

A estes haveria porventura que acrescentar, além de algumas peças capitais da vastíssima correspondência, alguns importantes trabalhos jornalísticos - sobretudo na ‘Rheinische Zeitung’, ‘Neue Rheinische Zeitung’ e ‘New York Tribune’ -, bem como prefácios, artigos enciclopédicos, opúsculos polémicos, sátiras, discursos, circulares, apontamentos, etc.


 

 

Bibliografia

 

 

a) Obras Completas

 

Não existem. Mas a história do projecto de publicação das obras completas de Marx e Engels (Marx und Engels Gesamtausgabe, MEGA) é, por si pópria, interessante e merecedora de um breve resumo. À morte de Marx, em 1883, o seu espólio de manuscritos ficou à guarda do seu amigo e companheiro intelectual Friedrich Engels. À morte deste, em 1895, o espólio de Marx foi entregue à sua filha mais nova, Eleanor, e ao companheiro desta, Edward Aveling, enquanto os papéis do próprio Engels foram legados ao Partido Social-Democrata Alemão (SPD), representado por August Bebel e Eduard Bernstein. Em 1898 suicidou-se Eleanor Marx, passando o espólio do “mouro” a ficar à guarda de uma outra filha, Laura, a qual residia então perto de Paris com seu marido Paul Lafargue. Em 1911 o casal Lafargue suicidou-se também. Os arquivos de Marx e de Engels seriam então novamente reunidos, em Berlim, na propriedade do SPD.

 

Em 1910, o primeiro projecto de edição das obras completas de Marx e Engels seria discutido entre círculos austro-marxistas. A essa reunião assistiu um emigrado revolucionário russo, David Riazanov, o qual, após o triunfo da revolução soviética - e já como director do Instituto Marx-Engels -, prosseguiria esse mesmo projecto a partir de Moscovo, Frankfurt e Berlim. O SPD inicialmente permitiu que se fotocopiassem os manuscritos. Depois de 1928 as suas relações com o Comintern azedaram e a colaboração neste projecto cessou. Finalmente, Riazanov foi afastado das suas funções e deportado para um campo, falecendo em 1933. Nesse mesmo ano os nazis tomaram o poder na Alemanha. Ao todo foram publicados 13 volumes do MEGA no original alemão. Houve ainda o ciclo dos arquivos Marx-Engels, primeiro em alemão e russo (5 vols.), depois só em russo (5 vols.). A partir de 1935, a publicação do MEGA continuou, em russo, mas de uma forma reduzida em relação ao projecto inicial.

 

Após a chegada de Hitler ao poder, uma grande parte dos arquivos do SPD, incluindo os manuscritos de Marx e Engels, foram levados para fora da Alemanha, em circunstâncias algo rocambolescas. Os papéis foram vendidos a uma companhia de seguros holandesa, a qual os cederia em 1938 ao Instituto Internacional de História Social (Internationaal Instituut voor Sociale Geschiedenis - IISG), em Amsterdão, onde ainda hoje se encontram cerca de 2/3 dos manuscritos de Marx e Engels. O restante 1/3 achou o seu caminho até Moscovo, tanto antes como depois da Grande Guerra, estando hoje a cargo de duas instituições que sucederam ao extinto Instituto de Marxismo-Leninismo.

 

Entre 1956 e 1969, o Instituto do Marxismo-Leninismo da R.D.A. organizou uma extensa colectânea das obras de Marx e Engels, num total de 39 volumes, mais dois volumes suplementares e dois de índices. São os Marx-Engels Werke (MEW), publicados pela Dietz Verlag de Berlim. É, até hoje, a mais completa edição das obras dos fundadores do marxismo, na língua que é a original da maioria dos seus escritos. Em língua inglesa, está prestes a completar-se a publicação dos ‘Marx and Engels Collected Woks’ (MECW), em 50 volumes, iniciada em 1975 pela Editorial Progresso da extinta União Soviética. Esta obra é editada no Reino Unido pela Lawrence & Wishart (99a Wallis Road London E9 5LN; internet - http://www.l-w-bks.co.uk/) e nos Estados Unidos pela International Publishers (239 W. 23rd St. New York, NY 10011; internet - http://www.intpubnyc.com/index.html).

 

A partir do início dos anos 70, uma nova tentativa para publicar as obras completas de Marx e Engels foi feita em conjunto pelos institutos de marxismo-leninismo da U.R.S.S. e da R.D.A., prevendo-se mais de 170 volumes. O IISG facultou acesso aos manuscritos a seu cargo mas dissociou-se por completo da empresa, que passou a ser conhecida como MEGA-2. (O projecto frustrado de Riazanov seria o MEGA-1.) Por altura da queda da República Democrática Alemã haviam sido publicados 43 volumes do MEGA-2, estando 7 mais em preparação. Estes últimos foram entretanto já publicados, em 1993. O projecto foi depois apropriado pelo IISG que, juntamente com a Karl Marx-Haus de Trier, criou a Fundação Internacional Marx-Engels (International Marx-Engels Stiftung - IMES), sediada nos seus escritórios em Amsterdão, com o único objectivo de completar a edição das obras completas. Uma conferência internacional realizada em Aix-en-Provence (1992) concluiu por um novo plano editorial do MEGA-2, reduzindo-se a sua ambição. Prevê-se agora completar a totalidade do projecto em 114 volumes, separados em quatro divisões: Divisão I - todos os trabalhos, artigos e esboços não relacionados com ‘O Capital’ (32 volumes); Divisão II - ‘O Capital’ e trabalhos preparatórios (15 volumes); Divisão III - correspondência (35 volumes); Divisão IV - excertos, notas e marginália (32 volumes). Com esta mudança de direcção, o aparato crítico e as normas editoriais mudaram.

 

O primeiro volume da nova direcção do MEGA-2 foi publicado em 1998, e mais dois se seguiram em 1999. Presentemente, onze equipas - na Alemanha, Dinamarca, França, Japão, Holanda, Rússia e E.U.A. - trabalham em diferentes volumes a ser publicados. Desde 1994, o IMES publica uma revista académica, ‘MEGA-Studien’, sob a direcção de Jürgen Rojahn (Cruquiusweg 31, 1019 AT Amsterdam, The Netherlands; e-mail - jro@iisg.nl). Os volumes do MEGA-2 são publicados pela Akademie Verlag, de Berlim (Muhlenstr. 33-34, Berlin, Germany; e-mail - info@akademie-verlag.de).

 

Cento e dezoito anos após a sua morte, prosseguem os trabalhos de escavação e pesquisa no espólio inédito de Marx, revelando investigações e reflexões originais em campos tão díspares e inesperados como a etnologia, o direito, a física, tecnologia, agricultura, geologia, ciência dos solos, química orgânica e inorgânica, fisiologia, electricidade, matemática e muitos outros.

 

 

b) As melhores edições de obras de Marx em língua portuguesa

 

Depois de um século e tanto de seca quase total, durante a década de 1970, com início ainda antes da revolução, houve uma verdadeira enxurrada de edições de literatura marxista, incluindo obras do próprio Marx, quase sempre traduzidas em segunda mão (do inglês ou do francês). Infelizmente, quase todas essas edições são deficientes, muitas francamente más e algumas absolutamente imprestáveis. Evitarei mencionar as pertencentes a esta última categoria. Nos casos em que há versões alternativas dos mesmos textos, indicarei apenas a que me parece mais aconselhável. Àparte duas excepções muito particulares, refiro-me aqui apenas a edições portuguesas, pois conheço mal as publicadas no Brasil. As datas são, geralmente, as das últimas edições. Em balanço, ressalta uma lacuna fundamental: ‘Grundrisse’. Uma selecção da importantíssima correspondência Marx-Engels também faz imensa falta. A partir da década de 70, só as edições Avante mantiveram actividade regular.

 

 

- Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Obras escolhidas em três tomos’, Editorial Progresso (Moscovo)/Edições Avante, Lisboa 1980-85. Esta excelente colectânea opta deliberadamente por cingir-se ao Marx “maduro”, abrindo com as ‘Teses sobre Feuerbach’ de 1845. Muitas das obras seguintes de Marx de pequeno e médio porte têm aqui incluídas excelentes versões integrais, pelo que, em obediência ao critério acima definido, não vou fazer referência a algumas edições delas (nomeadamente da Centelha e da Avante) que todavia são igualmente recomendáveis.

 

Karl Marx, ‘Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro’, Editorial Presença, Lisboa, 1972. Inclui os cadernos com trabalhos preparatórios sobre a filosofia epicurista, mas sem os largos extractos de citações do original.

 

- Karl Marx, ‘Crítica da Filosofia do Direito de Hegel’, Editorial Presença, Lisboa, s/d. Trata-se dos manuscritos de 1843, não do ensaio publicado nos ‘Anais franco-alemães’ (ver Cronologia). Título inexacto - o melhor seria ‘Crítica do Direito Público hegeliano’ - para uma edição pobre e sem quaisquer referências. Ao menos a tradução é legível, com algumas tropelias pelo meio.

 

- Karl Marx, ‘Para a questão judaica’, Edições Avante, Lisboa, 1997. Excelente edição, com uma extensa introdução e profusas notas a cargo de José Barata-Moura, que faz um magnífico trabalho de enquadramento histórico e filosófico desta obra de juventude de Marx.

 

- Karl Marx, ‘Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844’, Edições Avante, Lisboa, 1993. De entre várias disponíveis, esta é a melhor edição portuguesa dos famosos e discutidos manuscritos de Paris, com tradução a partir do original alemão baseada na sua edição em MEGA2.

 

- Karl Marx, ‘Manuscritos Económico-Filosóficos’, Edições 70, Lisboa, 1993. Apesar do título, trata-se de uma tradução de Artur Morão dos ‘Early Writtings’ editados por Tom Bottomore em Inglaterra, com um prefácio de Erich Fromm. Além dos manuscritos de 1844, incluem-se ‘A Questão Judaica’ e ‘Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução’. A anterior edição, de 1975, tinha o título mais exacto de ‘Escritos de Juventude’.

 

- Karl Marx e F. Engels, ‘Textos Inéditos - 1845’, Ulmeiro, Lisboa, 1976. Trata-se de dois textos dos fundadores do marxismo (no período inicial da sua colaboração) de crítica ao ideólogo do nacionalismo económico alemão Friedrich List. O de Marx manteve-se de facto inédito, sob a forma de rascunho, até 1971. É seguida a edição francesa, com um útil prefácio de Jean-Marie Brohm.

 

- Marx e Engels, ‘A Sagrada Família’, Editorial Presença, Lisboa, 1974. Nenhuma nota editorial explicativa. Só o texto da tradução.

 

- Marx e Engels, ‘A Ideologia Alemã’ (2 vols.), Editorial Presença, Lisboa 1975-80. Também nenhuma explicação sobre esta tradução de quase 800 páginas de um texto em alemão deixado pelos autores como manuscrito inacabado.

 

- Karl Marx, ‘Miséria da Filosofia’, Edições Avante, Lisboa, 1991. Tradução de Zeferino Coelho a partir da edição da Editions Sociales, Paris, 1961. Incluem-se ainda duas extensas cartas de Marx a Annenkov e Schweitzer sobre Proudhon, o discurso sobre o livre-câmbio de Bruxelas (1848) e um excerto de ‘Contribuição para a Crítica da Economia Política’ (crítica a Gray).

 

- K. Marx - F. Engels, ‘Manifesto do Partido Comunista’, Edições Avante, Lisboa, 1975. A clássica e imprescindível edição do ‘Manifesto’, com organização e extensas notas de Vasco de Magalhães-Vilhena.

 

- K. Marx / F. Engels, ‘A Revolução em Espanha’, Sementes, Porto, s/d. Textos variados sobre temática hispânica, com destaque para as peças jornalísticas de Marx sobre a sublevação liberal em Madrid de 1856, comandada pelo general O’Donnell.

 

- Karl Marx, ‘O Método na economia política’, Manuel Rodrigues Xavier Ltda., Amadora, 1974. Uma selecção de diversos capítulos dos ‘Grundrisse’, traduzidos a partir de uma edição cubana.

 

- Karl Marx, ‘Contribuição para a Crítica da Economia Política’, Editorial Estampa, Lisboa, 1975. Tradução da edição francesa das ‘Éditions Sociales’, que inclui a ‘Einleitung’ de 1857 e uns manuscritos de 1858 conhecidos como “versão primitiva” da ‘Contribuição’. Ambos estes textos incluem-se geralmente nos ‘Grundrisse’. O luminoso prefácio assinado E. B. é certamente de Émile Bottigelli.

 

- Karl Marx, ‘Sr. Vogt’ (2 vols.), Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1976. O supra-sumo da arte do vitupério, disponível também em português.

 

- Karl Marx, ‘O Capital’ (6 vols.), Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1991 (última data). Esta é a edição completa de ‘O Capital’ - Livros I, II e III - que existe em língua portuguesa, da responsabilidade de Reginaldo Sant’Anna. Segue a versão alemã fixada por Engels em 1890. A tradução é de boa qualidade, embora mais forte nos conceitos económicos do que nas subtilezas filosóficas.

 

- Karl Marx, ‘O Capital’ (3 vols.), Edições Avante, Lisboa 1990-97. Com a publicação destes três tomos fica pela primeira vez completa em Portugal a edição do Livro I de ‘O Capital’, numa edição digna e com um bom aparato crítico, a partir do original alemão. A equipa de tradutores, dirigida por José Barata Moura e Francisco Melo, tem por vezes opções algo desconcertantes. Aguarda-se a sequência do projecto, com os Livros II e III.

 

- Karl Marx, ‘O Capital, Livro I, Vol. I’, Centelha, Coimbra 1974. Uma tentativa promissora com base na versão francesa de Roy, integralmente revista e reformulada pelo próprio Marx. Da responsabilidade de Vital Moreira e Teixeira Martins, o trabalho não teve infelizmente sequência. Inclui apenas as duas primeiras secções (‘Mercadoria e dinheiro’ e ‘A Transformação do dinheiro em capital’), ou seja, cerca de 1/5 do Livro I.

 

Karl Marx, ‘O Capital’, Guimarães Editores, Lisboa, 1975. O resumo do Livro I da autoria de Gabriel Deville, já publicado pela mesma editora em 1912, agora em nova tradução de Alfredo Margarido que lhe acrescenta um estudo introdutório.

 

- Karl Marx, ‘O Capital, edição popular’, Edições 70, Lisboa, 1978. Trata-se de uma tradução da edição abreviada de todo ‘O Capital’, organizada por Julian Borchardt.

 

- Karl Marx, ‘O Capital I, Braille’ (2ª edição), Edições Braille, 1974. Cego é só quem não quer ler.

 

- Karl Marx, ‘Capítulo Inédito d’O Capital. Resultados do processo de produção imediato’, Publicações Escorpião, Porto, 1975. Tradução baseada na edição italiana (em confronto com outras), com o correspondente prefácio de Bruno Maffi.

 

- Karl Marx, ‘Teorias da Mais-Valia’ (3 vols.), Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1988.

 

Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Crítica da educação e do ensino’, Moraes, Lisboa, 1978. Excelente edição de uma antologia sobre temas de educação, organizada, prefaciada e anotada por Roger Dangeville. Abre com a dissertação liceal de Marx de 1833.

 

- Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Sobre a religião’, Edições 70, Lisboa, 1975. Tradução do volume ‘Sur la réligion’ das Éditions Sociales, organizada e anotada por G. Badia, P. Barge e E. Bottigelli. Tradução muito má.

 

- Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Sobre o Colonialismo’ (2 vols.), Editorial Estampa, Lisboa, 1978. Tradução da compilação em língua inglesa ‘On Colonialism’, organizada em Moscovo com base sobretudo em artigos publicados no ‘New York Daily Tribune’.

 

Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Sobre a literatura e a arte’, Editorial Estampa, Lisboa, 1975. Nenhuma referência sobre a origem desta excelente antologia, reconhecendo-se contudo a “marca” das Éditions Sociales.

 

- Karl Marx / Friedrich Engels, ‘Sobre a China’, Publicações Escorpião, Porto, 1974. Textos jornalísticos sobre as relações entre as potências europeias e o império celeste, de 1853 a 1861. Organização e notas de Roger Dangeville.

 

- Karl Marx e Friedrich Engels, ‘O Partido de classe’ (2 vols.), Publicações Escorpião, Porto, 1975. Tradução (incompleta) da antologia francesa organizada e anotada por Roger Dangeville.

 

- Karl Marx e Friedrich Engels, ‘O Sindicalismo’ (2 vols.), Publicações Escorpião, Porto, 1975. Outro trabalho de Roger Dangeville, do qual se traduz também a introdução e as notas.

 

- Marx, Engels e Lenine, ‘Sobre as sociedades pré-capitalistas’ (Vol. 2), Seara Nova, Lisboa, 1976. Este volume, que é parte da tradução de um trabalho mais vasto da responsabilidade do Centre d’Études et Recherches Marxistes, inclui textos fundamentais de Marx - rascunhos da carta a Vera Zassoulitch, trechos dos ‘Grundrisse’ e de ‘Theorien über den mehrwert’, bem como algumas cartas a Engels - na sua única versão portuguesa disponível.

 

- ‘Cartas de Marx a Kugelmann’, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1975. As cartas de Marx ao ginecologista de Hamburgo seu amigo e confidente durante as décadas 60 e 70. Em apêndice, as interessantes memórias da filha, Franziska Kugelmann. Introdução de E. Czobel.

 

- Karl Marx, ‘Textos escolhidos e anotados’ (2 vols.), Editorial Notícias, Lisboa, 1978. Tradução de uma compilação e montagem de textos francesa (tipo Marx de bolso), organizada e anotada por Jean Kanapa. Inclui uma pequena biografia.

 

- Karl Marx, ‘Sociedade e mudanças sociais’, Edições 70, Lisboa 1976. Outra compilação e montagem de textos de Marx (e também de Engels), da responsabilidade do sociólogo funcionalista norte-americano Neil Smelser, que se explica em prefácio.

 

 

c) Algumas obras sobre Marx em língua portuguesa

 

Embora a fronteira não seja sempre fácil de traçar, nesta alínea e na próxima consideramos apenas estudos sobre a obra ou a vida de Marx, não obras que sejam fundamentalmente desenvolvimentos teóricos originais (por muito “marxistas” que se reclamem) ou resenhas históricas dos diversos “marxismos”. Com uma excepção - que é pouco mais que uma curiosidade - as abordagens portuguesas a Marx e ao marxismo anteriores à década de 1960 são de tal modo fortuitas, crípticas ou canhestras que não serão referidas. Sobre isso ler-se-á com proveito Alfredo Margarido, ‘A Introdução do marxismo em Portugal (1850-1930)’, Guimarães Editores, Lisboa, 1975, bem como Armando Castro, ‘Para a história do pensamento marxista em Portugal’ in ‘O Marxismo no limiar do ano 2000’, Caminho, Lisboa, 1985 e a bibliografia aí indicada. Nas traduções de obras originárias de outras línguas, indicam-se prioritariamente as editadas em Portugal. Assinalo a negrito as obras que poderão constituir o roteiro inicial para uma abordagem global e esclarecedora à vida e obra de Marx.

 

 

- Miguel Abensour, ‘A Democracia contra o estado - Marx e o momento maquiaveliano’, UFMG, Belo Horizonte, 1998. Procura averiguar qual o estatuto da política na obra de Marx. Obra anarquista traduzida do original francês.

 

- H. B. Acton, ‘Conhecer Marx e o que ele realmente disse’, Ática, Lisboa, 1977. Uma pequena introdução a Marx, no espírito do liberalismo anglo-saxónico. Péssima tradução.

 

- Louis Althusser, ‘Posições’, Livros Horizonte, Lisboa, 1977. Uma colectânea de ensaios de dimensão e interesse desiguais, destacando-se ‘Como ler «o Capital»’, ‘Ideologia e Aparelho ideológicos do Estado’ e ‘Defesa da tese de Amiens’.

 

- Louis Althusser, ‘Elementos de auto-crítica’, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1976. Inclui revisões de posições teóricas anteriores e ‘Sobre a evolução do jovem Marx’.

 

- Louis Althusser e outros, ‘A Polémica sobre o humanismo’, Editorial Presença, Lisboa, s/ data. Parte do debate suscitado por Althusser sobre se Marx era ou não “anti-humanista teórico” e sobre o lugar dos Manuscritos de 1844 na sua obra.

 

- José Lopes Alves, ‘Rousseau, Hegel e Marx’, Livros Horizonte, Lisboa, 1983.

 

- Samir Amin, ‘A Lei do valor e o materialismo histórico’, Edições 70, Lisboa, 1978. Contra o economicismo, primado à luta de classes.

 

- Raymond Aron, ‘Novos temas de sociologia contemporânea. Luta de classes’, Editorial Presença, Lisboa, 1964.

 

- Raymond Aron, ‘O Marxismo de Marx’, Editora Arx, São Paulo, 2005.

 

- Shlomo Avineri, ‘O Pensamento político e social de Karl Marx’, Coimbra Editora, Coimbra, 1978. Importante trabalho de introdução problematizante ao projecto marxiano - nas suas vertentes filosófica e política - com uma admirável clareza de exposição. Infelizmente, participa do preconceito anti-engelsiano, enfileira na epistemologia do “marxismo ocidental” e esforça-se, em geral, por adocicar as arestas mais cortantes do pensamento revolucionário de Marx.

 

- Jean Baby, ‘Leis fundamentais da economia política’, Publicações Escorpião, Porto, 1974.

 

- Mikhail Bakhtin (Valentin Voloshinov), ‘Marxismo e filosofia da linguagem’, Hucitec, São Paulo, 1979.

 

- Étienne Balibar, ‘Cinco estudos do materialismo histórico’ (2 vols.), Editorial Presença, Lisboa, 1975.

 

- Étienne Balibar, ‘A Filosofia de Marx’, Zahar, Rio de Janeiro, 1995.

 

- Vânia Bambirra, ‘A Teoria marxista da transição e a prática socialista’, Editora da UNB, Brasília, 1998. Uma contribuição para a compreensão do fenómeno socialista contemporâneo através de uma sistematização do pensamento marxista-leninista.

 

- José Barata-Moura, ‘Totalidade e contradição. Àcerca da dialéctica’, Livros Horizonte, Lisboa, 1977.

 

- José Barata-Moura, ‘Marx e a crítica da Escola Histórica do Direito’, Caminho, Lisboa, 1994. Excelente estudo sobre o desenvolvimento das ideias do jovem Marx, na época histórica do Vormärz, particularmente centrado no seu confronto com a reacção romântica liderada por Savigny.

 

- José Barata-Moura, ‘Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx’, Edições Avante, Lisboa, 1998. Obra de uma abrangência, erudição e intensidade verdadeiramente invulgares no marxismo português. É pena que este autor não use aqui uma linguagem mais amiga do leitor.

 

- Giuseppe Bedeschi, ‘Marx’, Edições 70, Lisboa, 1989. Trabalho escrupuloso de síntese e problematização do itinerário intelectual de Marx, numa perspectiva crítica e liberal. Tradução e revisão muito deficientes.

 

- Carlo Benetti, ‘Valor e repartição’, Centelha, Coimbra, 1978. Uma defesa dos conceitos económicos fundamentais de Marx em confronto com clássicos e neo-clássicos.

 

- Daniel Bensaïd, ‘Marx, o intempestivo’, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999. Procura resgatar Marx de uma certa tradição marxista determinista e teleológica.

 

- João Bernardo, ‘Marx crítico de Marx’ (3 vols.), Afrontamento, Porto, 1977.

 

- Frei Betto, ‘Cristianismo e Marxismo’, Vozes, Petropólis, 1988.

 

- Marina Bianchi, ‘A Teoria do valor (dos clássicos a Marx)’, Edições 70, Lisboa, 1981. Um estudo muito esclarecedor sobre o trabalho efectuado por Marx na teoria do valor herdada de Smith e Ricardo.

 

- Luiz Bicca, ‘Marxismo e liberdade’, Loyola, São Paulo, 1991.

 

- Armando Boito Jr. (org.), ‘A obra teórica de Marx’, Xamã, S. Paulo, 2001.

 

- Émile Bottigelli, ‘A Génese do socialismo científico’, Editorial Estampa, Lisboa, 1974. Todo o percurso do desenvolvimento intelectual de Marx até ao ‘Manifesto’, numa exposição tão clara, detalhada e contextualisada quanto é possível desejar. Excelente tradução de Mário de Carvalho.

 

- Tom Bottomore (ed.), ‘Dicionário do pensamento marxista’, Zahar, Rio de Janeiro, 1988. Um guia dos conceitos clássicos do marxismo e dos pensadores e escolas que contribuíram para a sua evolução.

 

- João Maria de Freitas Branco, ‘Dialéctica, ciência e natureza’, Caminho, Lisboa, 1989. Diz respeito, mais directamente, ao projecto engelsiano de uma ‘Dialéctica da Natureza’ e suas projecções contemporâneas. Toma partido (pela afirmativa) sobre a muito discutida questão de saber se Marx participou ou não nesse projecto.

 

- Gian Mario Bravo, ‘História do Socialismo’ (3 vols.), Publicações Europa-América, Lisboa, 1977. Obra bastante informativa que cobre o desenvolvimento das ideias socialistas no período 1789-1848, em diversos países, e a sua influência na formação do marxismo.

 

- Jean Bruhat, ‘Marx /Engels’, Seara Nova, Lisboa, 1973. Uma biografia em paralelo dos dois fundadores do marxismo. Trabalho honesto e mediano, sem grandes novidades.

 

- Suzanne de Brunhoff, ‘A Moeda em Marx’, Edições Rés, Porto, 1975.

 

- N. Bukharin, ‘Tratado de materialismo histórico’, Centro do Livro Brasileiro, s/data. É o “manual popular de sociologia marxista” publicado em Moscovo em 1921, criticado por Gramsci e por Lukács, sendo que o próprio Lenine o considerava como “não-dialéctico”.

 

- Jean-Yves Calvez, ‘O Pensamento de Karl Marx’ (2 vols.), Livraria Tavares Martins, Porto, 1975 (3ª edição). Da autoria de um padre católico francês, aquela que será “a crítica definitiva aos pontos de vista marxistas”, no entendimento do seu tradutor Agostinho Veloso, S. J.. Tem nihil obstat e o imprimatur final de 6 de Janeiro de 1959 do “Card. Patriarcha” (Cerejeira). Calvez, que é hoje um alto responsável da Companhia de Jesus, não é certamente marxista, mas este seu livro dos anos 50 - obra de referência internacional - é um estudo honesto e por vezes penetrante, no campo filosófico. Tradução e revisão com deficiências.

 

- Centre d’Études et Recherches Marxistes (C.E.R.M.), ‘O Modo de produção asiático’, Seara Nova, Lisboa, 1974. Artigos de vários autores reabilitando um conceito marxista cuja operatividade se revela vital para o estudo das sociedades pré-capitalistas não europeias.

 

- Eduardo Chitas (coord.), ‘150 Anos do Manifesto do Partido Comunista’, Edições Colibri, Lisboa, 2000. Comunicações ao colóquio comemorativo realizado na Universidade de Lisboa em Novembro de 1998.

 

- Osvaldo Coggiola, ‘Introdução à teoria econômica marxista’, Boitempo Editorial, São Paulo, 1996.

 

- Denis Collin, ‘Compreender Marx’, Ed. Vozes, Petrópolis, 2008.

 

- Emílio Costa, ‘Karl Marx’, Livraria Peninsular Editora, Lisboa, 1930. Obra biográfica e de discussão doutrinal, por um militante anarco-sindicalista, chefe dos serviços escolares da ‘Voz do Operário’. Inclui trechos escolhidos de Marx. Revela uma compreensão muito incompleta e deficiente do marxismo.

 

- Carlos K. Debrito, ‘Marx, um elogio crítico’, Antígona, Lisboa, 1985. Novamente um anarquista a ocupar-se de Marx num pequeno ensaio biográfico, desta vez simpático, mas profusamente equivocado.

 

- Galvano Della Volpe, ‘Rousseau e Marx’, Edições 70, Lisboa, 1982.

 

- Henri Denis, ‘História do pensamento económico’, Círculo de Leitores, Lisboa, 1978. Contém um capítulo desenvolvido sobre Marx, sendo aliás toda esta excelente obra também uma introdução à ciência económica de um ponto de vista marxista.

 

- Jacques Derrida, ‘Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional’, Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994. Pelo filósofo do desconstrucionismo, uma leitura profundamente equivocada elogiando o “messianismo” de Marx.

 

- Jacques D’Hondt (org.), ‘A Lógica em Marx’, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1978. Um conjunto de comunicações a uma sessão de estudo realizada em 1972, com contribuições de John O’Neill, Eugene Fleischmann, Michel Vadée, André Doz e François Ricci.

 

- Maurice Dobb, ‘Teorias do valor e distribuição desde Adam Smith’, Editorial Presença, Lisboa, 1977. Sendo um estudo de carácter mais amplo, acaba por ser também uma excelente abordagem de conceitos económicos essenciais de Marx, seus antecedentes e desenvolvimentos posteriores.

 

- Jacques Droz (direcção), ‘História geral do Socialismo’ (Vols. 2 e 3), Livros Horizonte, Lisboa, 1977. O vol. 2 tem um esclarecedor artigo do organizador sobre o socialismo alemão no período do Vormärz, incluindo a formação intelectual de Marx e Engels. O vol. 3 inclui artigos sobre as origens da social-democracia alemã, o lugar de ‘O Capital’ no movimento socialista e a I Internacional.

 

- Rodrigo A. de Paiva Duarte, ‘Marx e a natureza em O Capital’, Edições Loyola, São Paulo, 1986.

 

- Engels, ‘Anti-Dühring’, Edições Progresso, Moscovo, 1990. A primeira exposição de conjunto do marxismo, com a autoridade (que para alguns não basta) de ter tido a colaboração e o acompanhamento do próprio Marx. De Engels deve ainda ler-se, nas ‘Obras escolhidas em três tomos’ (supra), ‘Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã’ (1886), clássico dos clássicos sobre a formação do marxismo.

 

- Engels, ‘Sobre «O Capital» de Marx’, Edições Progresso, Moscovo, 1990. Algumas das suas recensões - ao todo foram nove! - e um resumo feito por Engels do Livro I, bem como o seu suplemento ao Livro III de ‘O Capital’.

 

- Estáline, ‘Sobre o materialismo dialéctico e histórico’, Editorial Estampa, Lisboa, 1975. O pequeno manual do “genial pai dos povos” que fixou durante décadas a interpretação canónica do marxismo.

 

- Ruy Fausto, ‘Marx: lógica e política’ (3 vols.), Editora 34, S. Paulo, 2002.

 

- Pierre Fougeyrollas, ‘Marx’, Ática, São Paulo, 1989. Tradução do original francês.

 

- Celso Frederico, ‘Jovem Marx: 1843-44 - As Origens da ontologia do ser social’, Cortez, São Paulo, 1995.

 

- Erich Fromm, ‘Conceito marxista do homem’, Zahar, Rio de Janeiro, 1979. Retrata Marx como pensador humanista e existencialista, apresentando selecções dos ‘Manuscritos Económico-Filosóficos’.

 

- François Furet, ‘Marx e a revolução francesa’, Zahar, Rio de Janeiro, 1989.

 

- José Arthur Giannoti, ‘Origens da Dialética do Trabalho’, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1966.

 

- José Arthur Giannoti, ‘Karl Marx, vida e obra’, L&PM Editores, Porto Alegre, 1992. Biografia, com a apresentação das linhas mestras do pensamento de Marx, voltado para estudantes, estudiosos e aficcionados da filosofia.

 

- José Arthur Giannoti, ‘Certa herança marxista’, Companhia das Letras, São Paulo, 1993. O marxismo continua insuperado como crítica ao capitalismo, mas não se deve pensar em reconstruir uma estratégia emancipatória com base nele.

 

- Françoise Giroud, ‘Jenny, a mulher de Karl Marx’, Livros do Brasil, 1992. Uma biografiazinha de Jenny Marx - “la femme du diable” - da autoria de uma coscuvilheira atrevida, especialista em vidas de mulheres célebres.

 

- Maurice Godelier, ‘Sobre as sociedades pré-capitalistas’ (Vol. 1), Seara Nova, Lisboa, 1976. Um estudo detalhado das concepções desenvolvidas por Marx e Engels sobre a passagem histórica às sociedades de classes e da sua presente operatividade.

 

- Lucien Goldman, ‘Dialéctica e ciências humanas’ (Vol. I), Presença, Lisboa, 1972. Inclui o luminoso ensaio ‘Filosofia e sociologia na obra do jovem Marx’.

 

- Horácio Gonzalez, ‘Karl Marx, o apanhador de sinais’, Brasiliense, S. Paulo, 1987.

 

- Humberto Pérez González, ‘Economia Política do Capitalismo’ (2 vols.), Seara Nova, Lisboa, 1977. Um manual de divulgação das concepções de Marx nesta matéria.

 

- Juan Goytisolo, ‘A Saga dos Marx’, Companhia das Letras, . Obra de ficção do consagrado escritor catalão. Morando em Londres com a família, nos anos 1990, um Marx redivivo assiste ao esfacelamento de sua doutrina.

 

- António Gramsci, ‘Obras escolhidas’ (2 vols.), Editorial Estampa, Lisboa, 1974. Uma selecção preparada pelo Instituto Gramsci de Roma para a edição francesa, forte em filosofia e temas culturais. Tradução deficiente.

 

- Georges Gurvitch, ‘Proudhon e Marx’, Editorial Presença, Lisboa, 1980. Gurvitch vinga Proudhon das afrontas sofridas por este às mãos de Marx.

 

- Élie Halévy, ‘História do socialismo europeu’, Livraria Bertrand, Lisboa, 1975.

 

- Marta Harnecker, ‘Conceitos elementares do materialismo histórico’ (2 vols.), Editorial Presença, Lisboa, 1976. Para quem gosta de arrumar bem os conceitos, ao preço de alguma rigidez e simplificação.

 

- Eric J. Hobsbawn (org.), ‘História do marxismo’ (Vol. 1 - ‘O marxismo no tempo de Marx’), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1983.

 

- Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao C.C. do P.C.U.S., ‘Karl Marx, Biografia’, Edições Progresso (Moscovo)/Edições Avante, Lisboa, 1983. Pouca gente se lançará na leitura deste calhamaço de 800 páginas da era brejnevista. Todavia a obra é magníficamente detalhada em matéria factual (criteriosamente seleccionada, para evitar inconveniências) sobretudo a partir da maturidade.

 

- Nikolai Ivanov, ‘Karl Marx, pequena biografia’, Agência de Imprensa Nóvosti, Moscovo, 1976.

 

- Pierre Jalée, ‘A Exploração capitalista. Iniciação ao marxismo’, Centelha, Coimbra, 1977. Um pequeno manual, muito acessível, de divulgação da economia marxista.

 

- Karl Kautsky, ‘As Três fontes do marxismo’, Assírio & Alvim, Lisboa, 1975. Uma conferência proferida em 1907 pelo grande teórico da II Internacional.

 

- Leandro Konder, ‘Marx, vida e obra’, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1983. Pequena biografia, útil como primeira abordagem.

 

- Karl Korsch, ‘Marxismo e filosofia’, Afrontamento, Porto, 1977. A obra clássica de Korsch que, juntamante com ‘História e consciência de classe’ de Lukács, ambas publicadas em 1923, fundaram o “marxismo ocidental”, procurando re-filiar Marx na tradição idealista alemã.

 

- Karel Kosik, ‘Dialéctica do concreto’, Dinalivro, Lisboa, 1977. Um pequeno manual de filosofia.

 

- Georges Labica, ‘As Teses sobre Feuerbach de Karl Marx’, Zahar, Rio de Janeiro, 1990.

 

- Jean Lacroix, ‘Marxismo, existencialismo, personalismo’, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1964.

 

- Nicolai Lapine, ‘O Jovem Marx’, Caminho, Lisboa, 1983. Este académico soviético, trabalhando sobre cópias dos manuscritos originais, traça com proficiência e minuciosa argúcia, embora numa perspectiva muito “canónica”, o percurso intelectual de Marx até à sua maturidade.

 

- Alexis Lecaye, ‘Sherlock Holmes & Marx’, Dom Quixote, Lisboa, 1982. Um policial em que Marx, perseguido por um assassino a soldo de Thiers e Bismarck, recorre em Londres aos serviços do jovem Sherlock Holmes, que persegue depois o seu homem até Paris, nos tempos da Comuna.

 

- Henri Lefebvre, ‘Marx, com uma antologia de textos de Marx’, Dom Quixote, Lisboa, 1974. Uma primeira abordagem sucinta e legível.

 

- Henri Lefebvre, ‘Para compreender o pensamento de Karl Marx’, Edições 70, Lisboa, 1975. Uma das melhores introduções gerais alguma vez feitas ao pensamento político-filosófico de Marx, analisando as diversas etapas da sua formação e desenvolvimento. Indispensável, apesar das irregularidades da tradução.

 

- Vladimir I. Lenine, ‘Karl Marx e o desenvolvimento histórico do marxismo’, Edições Avante, Lisboa. 1975. Recolha anotada de alguns artigos famosos de Lenine, com destaque para o ‘Karl Marx’ escrito em 1914 para o Dicionário Enciclopédico Granat.

 

- Vladimir I. Lenine, ‘Materialismo e Empiriocriticismo’, Editorial Estampa, Lisboa, 1975.

 

- Vladimir I. Lenine, ‘Obras Escolhidas em 6 Tomos’ (Tomo 6: “cadernos filosóficos”), Edições Avante, Lisboa,1989.

 

- Vladimir I. Lenine, ‘O Estado e a revolução’, Edições Avante, Lisboa. 1983. O famoso livro em que Lenine analisa a teoria marxista do Estado e seu deperecimento na transição para o comunismo. Deixado inacabado devido... à revolução russa de Outubro.

 

- (Solomon) A. Losovski, ‘Marx e os sindicatos’, Edições Maria da Fonte, Lisboa, 1975. Um estudo dos anos 30, do então secretário da Internacional Sindical Vermelha. Inclui uma antologia de Marx e Engels sobre os sindicatos. Tradução, prefácio e notas execráveis, ao estilo tardo-maoista.

 

- Michael Löwy, ‘As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen’, Cortez Editora, São Paulo, 1994.

 

- Michael Löwy, ‘A Teoria da revolução no jovem Marx’, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2002. Primeira edição em português de um ensaio de 1970.

 

- Georg Lukács, ‘História e consciência de classe’, Publicações Escorpião, Porto, 1974. A obra clássica do grande filósofo húngaro, com a sua discutível interpretação hegeliana e voluntarista do pensamento de Marx, bem como a condenação do materialismo dialéctico.

 

- Georg Lukács, ‘Marx e Engels como historiadores da literatura’, Editora Nova Crítica, Porto, 1979. Dois estudos de Lucáks dos anos 30, um centrado na reacção de Marx e Engels ao drama “Sickingen” de Lassalle, outro sobre Engels como crítico literário.

 

- Rosa Luxemburgo, ‘Introdução à Economia Política’, Publicações Escorpião, Porto, 1975. As lições que Rosa deu na Escola central do Partido Social-Democrata Alemão em 1907-8.

 

- Rosa Luxemburgo e Nikolai Bukharine, ‘Imperialismo e acumulação de capital’, Edições 70, Lisboa, 1976. Trata-se da famosa polémica entre Luxemburgo e Bukharine sobre o livro da primeira ‘A Acumulação do capital’. Embora a polémica pertença ao campo da teoria do imperialismo, faz também parte da história da discussão de ‘O Capital’, nomeadamente do Livro II (esquemas da reprodução simples e alargada).

 

- Vasco de Magalhães-Vilhena (organização e selecção), ‘Práxis. A categoria materialista da prática social’ (2 vols.), Livros Horizonte, Lisboa, 1980.

 

- Vasco de Magalhães-Vilhena (organização e selecção), ‘Raízes teóricas da formação doutrinal de Marx e Engels (1842-1846)’, Livros Horizonte, Lisboa, 1981. Estudos de vários autores - de ambos os lados da “cortina de ferro” - sobre a formação intelectual dos fundadores do marxismo.

 

- Vasco de Magalhães-Vilhena (organização e selecção), ‘Marx e Hegel (Marx e o “caso” Hegel)’, Livros Horizonte, Lisboa, 1985. Estudos sobre a transformação da dialéctica hegeliana operada por Marx, também por autores de Leste e Oeste.

 

- Vasco de Magalhães-Vilhena, ‘Antigos e modernos. Estudos de história social das ideias’, Livros Horizonte, Lisboa, 1985. De Anaxágoras a António Sérgio, passando por dois importantes ensaios de epistemologia marxista.

 

- Ernest Mandel, ‘A Formação do pensamento económico de Marx’ (um erro na capa e na lombada dá-nos um título disparatado, corrigido no interior), Centelha, Coimbra, 1978. Passo a passo, a evolução do pensamento económico de Marx e a sua superação da economia clássica inglesa.

 

- Ernest Mandel, ‘Tratado de Economia Marxista’ (4 vols.), Livraria Bertrand, Lisboa, 1978. Sendo embora uma obra de ambição mais vasta e original, não deixa de ser uma boa introdução aos conceitos fundamentais do marxismo.

 

- Ernest Mandel, ‘Introdução ao Marxismo’, Antídoto, Lisboa, 1978. Uma excelente introdução global, alinhada naturalmente pelas posições políticas do trotskismo ortodoxo.

 

- Mao Tsetung, ‘Obras Escolhidas’ (tomo I), Edições em Línguas Estrangeiras, Pequim, 1971. São de especial interesse os ensaios ‘Sobre a prática’ e ‘Sobre a contradição’, ambos de 1937.

 

- Pierre Masset, ‘Pequeno dicionário do marxismo’, Editorial Inova, Porto, 1974. Uma pequena obra de divulgação do marxismo em torno de 50 conceitos fundamentais.

 

- David McLellan, ‘Karl Marx, vida e pensamento’, Vozes, Petrópolis (Brasil), 1990. Para o gosto ocidental, a mais completa e escrupulosa biografia moderna de Marx, num estilo didáctico que resulta altamente legível. Tradução com irregularidades.

 

- David McLellan, ‘O Pensamento de Karl Marx’, Coimbra Editora, Coimbra, 1974. Uma obra de divulgação de grande clareza e limpidez de exposição. Na primeira parte, notas biográficas e comentários às obras principais de Marx; numa segunda parte, exposição dos seus conceitos fundamentais ilustrados com largas citações. Tradução medíocre.

 

- Franz Mehring, ‘Karl Marx, vida e obra’ (2 vols.), Editorial Presença, Lisboa, 1976. A biografia clássica de Marx, publicada em 1918 por um homem da II Internacional que o conheceu pessoalmente. É hoje uma obra datada e pouco confiável em muitos detalhes, mantendo-se contudo como referência incontornável e documento histórico por direito próprio. Má tradução.

 

- Franz Mehring, ‘O Materialismo Histórico’, Antídoto, Lisboa, 1977. Um pequeno ensaio de divulgação da teoria marxista da história e polémica com alguns adversários.

 

- Alex Fiúza de Mello, ‘Capitalismo e mundialização em Marx’, Ed. Perspectivas, São Paulo, 2000.

 

- Henrique da Silva Seixas Meireles, ‘Marx e o Direito Civil. Para uma crítica histórica do «paradigma civilístico»’. Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990.

 

- István Mészáros, ‘Marx: a Teoria da Alienação’, Zahar, Rio de Janeiro, 1981. Esta obra de 1970, do filósofo húngaro (actualmente professor em Sussex) discípulo de Lukács é ainda acessível em versão inglesa, na internet: http://www.marxists.org/archive/meszaros/works/alien/index.htm.

 

- Ralph Miliband, ‘O Estado na sociedade capitalista’ (2 vols.), Presença, Lisboa, 1977.

 

- Vital Moreira, ‘O Renovamento de Marx’, Centelha, Coimbra, 1979. Colectânia de artigos e pequenos ensaios dos tempos em que o autor era um jovem estudioso marxista.

 

- Jofre Amaral Nogueira, ‘Um Humanismo à nossa medida’, Editorial Inova, Porto, 1971. Contém uma discussão detalhada das teses de Althusser conforntadas com o texto e contexto de Marx. Também Marcuse está em causa. Por esta brecha aberta na “primavera” marcelista, pode-se constatar como o estado de informação e lucidez crítica de alguns cripto-marxistas portugueses no tempo do fascismo era apreciável. Faltaram as obras. 

 

- E. Pachukanis, ‘A Teoria Geral do Direito e o marxismo’, Centelha, Coimbra, 1977. A obra clássica na crítica marxista do Direito. Esta edição tem uma introdução de Karl Korsch e um posfácio alargado de Vital Moreira.

 

- Heinz F. Peters, ‘Jenny - Uma vida com Karl Marx’, Inquérito, Lisboa, 1993. Uma pequena biografia da mulher de Marx, legível apesar do seu anti-comunismo grosseiro.

 

- Francisco Videira Pires, ‘O Materialismo de Marx’, Presença, Rio de Janeiro, 1982.

 

- Francisco Videira Pires, ‘Marx e o Estado’, Lello & Irmão, Porto, 1983. Uma obra hostil - de um ponto de vista católico e hegeliano - mas sustentada com bastante erudição e “panache”, embora de forma um tanto prolixa. Este autor é, no mundo de expressão portuguesa, o único anti-marxista que vale a pena ler sobre Marx.

 

- Georges Plekhanov, ‘O Materialismo militante / Questões fundamentais do marxismo’, Moraes, Lisboa, 1976. O segundo ensaio (estranhamente subalternizado no título desta edição) é um clássico da filosofia marxista, escrito em 1908.

 

- Georges Plekhanov, ‘Ensaio sobre o desenvolvimento da concepção monista da história’, Livros Horizonte, Lisboa, 1976. Outro clássico, onde apareceu pela primeira vez o conceito de “materialismo dialéctico”.

 

- Georges Politzer, ‘Princípios elementares de filosofia’ (6ª edição), Prelo, Lisboa, 1977. Um curso básico de filosofia marxista que é já um clássico.

 

- Karl Popper, ‘A Sociedade aberta e os seus inimigos’ (2 vols.), Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993. Inclui um dos mais populares ataques a Marx, acusado de pensador totalitário.

 

- Nicos Poulantzas, ‘Poder político e as classes sociais’, Dinalivro, Lisboa, 1977.

 

- Jesus Ranieri, ‘A Câmara Escura – alienação e estranhamento em Marx’, Boitempo, S. Paulo, 2001. Um traçado do percurso intelectual de Marx dos Manuscritos de 1844 até à Ideologia Alemã.

 

- (David) Riazanof(v), ‘Biografia do Manifesto Comunista’, 17 de Outubro Editora, Barreiro, 1976. Um aturado estudo arqueológico das ideias que enformam o famoso manifesto.

 

- Rius, ‘Conheça Karl Marx’, Editorial Comunicação, Lisboa, 1976. Introdução às ideias de Marx em banda desenhada no estilo inconfundível deste autor mexicano.

 

- Joan Robinson, ‘Um Estudo de economia marxiana’, Dinalivro, Lisboa, 1977. De um ponto de vista keynesiano de esquerda, uma defesa parcial das teses económicas de Marx, rejeitando porém... a sua teoria do valor.

 

- Christian Roche e Alain Richard, ‘O Marxismo para principiantes’, Dom Quixote, Lisboa, 1984. Obra em texto e banda desenhada, útil e agradável mas sem o génio de Rius.

 

- Francisco Martins Rodrigues (selecção de textos), ‘Marx no seu tempo’, Dinossauro, Lisboa, 2001. Uma compilação de textos diversos (cartas, memórias, entrevistas, etc.) que nos traçam um retrato de Marx feito por contemporâneos seus que privaram pessoalmente com ele.

 

- Roman Rosdolsky, ‘Génese e estrutura de «O Capital» de Karl Marx’, Contraponto, Rio de Janeiro, 2001. Um estudo importantíssimo e muito detalhado sobre os trabalhos económicos de Marx, pioneiro na atribuição de um lugar central na sua obra aos ‘Grundrisse’.

 

- Eder Sader, ‘Marxismo e teoria da revolução proletária’, Ática, São Paulo, 1983.

 

- Emir Sader, ‘Estado e política em Marx’, Cortez, São Paulo, 1993. De um grande resistente anti-fascista brasileiro, uma visão original da obra marxista procurando expurgar a sua herança de todo o mecanicismo.

 

- Lucien Sebag, ‘Marxismo e estruturalismo’, Editorial Pórtico, Lisboa, s/ data. A leitura estruturalista do pensamento de Marx, por um jovem antropólogo que se suicidou aos 31 anos.

 

- Jorge de Sena, ‘Maquiavel, Marx e outros estudos’, Cotovia, Lisboa, 1991. Contém o pequeno e belíssimo ensaio ‘Marx e O Capital’ (escrito no Brasil, em 1962) que revela um nível de compreensão do marxismo pouco comum entre intelectuais portugueses da altura.

 

- Lucien Sève, ‘Análises marxistas da alienação’, Editorial Estampa, Lisboa, 1975. O lugar ocupado pelos conceitos de alienação, reificação e fetichismo ao longo da obra de Marx, dos Manuscritos de 1844 a ‘O Capital’. Tradução medíocre e desleixada.

 

- Lucien Sève, ‘Marxismo e a teoria da personalidade’ (3 vols.), Livros Horizonte, Lisboa, 1979.

 

- João Esteves da Silva, ‘Para uma teoria da História. De Althusser a Marx’ (2 vols.), Diabril, Lisboa, 1976.

 

- Gianni Sofri, ‘O modo de produção asiático – história de uma controvérsia marxista’, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

 

- Arnaud Spire, ‘Marx, esse desconhecido’, Instituto Piaget, Lisboa, 2004.

 

- Evguénia Stepánova, ‘Karl Marx. pequena biografia’, Edições Avante, Lisboa, 1976. Uma obrazinha tardo-soviética de estilo hagiográfico.

 

- Paul Strathern, ‘Marx em 90 minutos’, Inquérito, Lisboa, 2002.

 

- Paul Sweezy, ‘Teoria do Desenvolvimento Capitalista’, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976. Esta obra de 1942 é porventura ainda o melhor guia para ‘O Capital’ e para a economia política marxista em geral.

 

- Caio Navarro de Toledo (org.), ‘Ensaios sobre o Manifesto Comunista’, S. Paulo, Xamã, 1998. 

 

 

- ‘Vértice’, nº 453, Coimbra, Março-Abril de 1983. Número comemorativo do centenário da morte de Marx.

 

- ‘Vértice’, nº 85 (II Série), Lisboa, Julho-Agosto de 1998. Sobre o tema ‘Do Manifesto a O Capital’.

 

- ‘Revista Portuguesa de Filosofia’, Braga, Tomo XL, fascs. 1-2, Janeiro-Junho de 1984. Marxismo-III. Com ensaios de Francisco Videira Pires, Artur Morão, António Reis e outros.

 

 

 

 

 

 

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