A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 A história do P. C. P. na revolução dos cravos (*)
 
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Na história da história portuguesa, este livro ficará, provavelmente, registado como a obra que dissipou difinitivamente um dos mais extraordinários e persistentes equívocos da época contemporânea: o absurdo mito de que o Partido Comunista Português (P.C.P.) visou acaparar-se do poder por intermédio de um golpe de mão, entre o Verão e o Outono de 1975, tendo finalmente tentado a sua sorte, e falhado, no dia 25 de Novembro desse ano. Como acontece com muitos equívocos, este aqui deveu grande parte da sua longevidade a um certo pacto de entendimento tácito entre o caluniador e o caluniado. A direita thermidoriana quis justificar o seu real golpismo anti-operário invocado o papão de um imaginário golpismo comunista e ao P.C.P. interessou manter uma certa aura nebulosa de ortodoxia “leninista”, o que implicava, pelo menos, a disponibilidade para encarar jogar, alguma vez, a cartada da insurreição proletária.

 

De há trinta e cinco anos para cá vive-se este insustentável paradoxo, de que um dos fundadores de fato do atual regime político demo-liberal é oficialmenmte proscrito do mesmo. O partido que manteve viva a chama da resistência ao fascismo durante 48 anos e que emergiu da clandestinidade, em luta, para a luz da liberdade, a 25 de Abril de 1974, repudiou a paternidade desta nova república (que, no entanto, lhe cabe por inteiro) e foi por ela votado a um ostracismo voluntariamente assumido. É certo que não era esta a “democracia” em que o P.C.P. acreditou e pela qual lutou, mas foi esta a que resultou da sua atuação política concreta. O desfasamento entre uma e outra é da sua inteira responsabilidade, como resultado dos seus equívocos teóricos e da sua errónea avaliação da situação histórica mundial então vivida.

 

Seguidor fiel da linha moscovita da “coexistência pacífica”, o P.C.P. de Álvaro Cunhal acreditava numa “revolução democrática e nacional” que derrubaria o fascismo em Portugal, instaurando um regime de democracia progressiva em transição pacífica para o socialismo, com base numa ampla aliança de classes “anti-monopolistas” e “anti-imperialistas”. Esta estratégia seria sustentado, a nível mundial, no avanço imparável do “glorioso campo do socialismo”, ainda que o país se mantivesse formalmente integrado no espaço geo-político atlantista. Não acreditava que Portugal pudesse ver instaurada uma democracia liberal burguesa ao estilo ocidental. Seria ou a ditadura terrorista dos monopólios ou uma democracia - que depois haveria de apelidar de “avançada” – operando uma constante socialização dos meios de produção por intermédio de um esclarecido dirigismo estatal.

 

No Verão de 1975, a revolução portuguesa atingiu o mais elevado paroxismo, pedindo uma resolução qualquer para a extrema agudização do afrontamento de classes. O Movimento das Forças Armadas (M.F.A.), que dirigia todo o processo político, cindiu-se em três fações. A direção do P.C.P. afastou-se então decididamente de toda esquerda revolucionária (aí incluídos os seus aliados militares), acabando depois por pactuar com o golpe militar da normalização constitucional. Mas o “processo democrático” em que o partido embarcou então não foi aquele que esperava. Entre o P.C.P. e o regime foi-se cavando cada vez mais fundo uma espécie de abismo semântico: para a burguesia, o P.C.P. não era uma força “democrática” e não poderia mais aceder à área do poder enquanto se não convertesse em tal; para o P.C.P. era o regime que, devido às continuadas “políticas de direita” prosseguidas pelas sucessivas maiorias governamentais (com as quais se recusava a colaborar), se afastava cada vez mais da sua raíz “democrática”.

 

O mito fundador do regime – a tentativa de “golpe comunista” – selava retrospetivamente este desentendimento, mas era um rei que se passeava demasiado obviamente nu. Passada uma geração, as máscaras caíram definitivamente. Fosse só isto e já seria um serviço inestimável que ficaríamos a dever a esta jovem investigadora (nascida alguns anos após estes fatos), independentemente dos méritos intrínsecos da sua demonstração. Devemos-lhe esse reconhecimento, até porque ela terá que arrostar - começou já a arrostar - com as consequências da sua ousadia. Mas este livro de Raquel Varela, versão editada da sua tese de doutoramento em História Política e Institucional, tem muito mais no seu ativo.

 

Esta obra oferece uma investigação extensa e sistemática entre a documentação política e a imprensa da época, dando-nos um registo vivo da sua pulsação política e social. Para além disso, são consultados arquivos estrangeiros, como os do Foreign Office britânico, onde se colheu a preciosa informação de que, em inícios de Maio de 1974, Mário Soares, secretário-geral do Partido Socialista (P.S.), fez campanha por várias chancelarias europeias a favor da entrada do P.C.P. para o governo provisório. O objectivo era corresponsabilizá-lo pelo controlo da situação social no país, para além de evitar a realização imediata de eleições. Muito interessante é também o registo da mutação da perspectiva histórica que o P.C.P. foi tendo sobre o golpe de 25 de Novembro, de cuja verdadeira profundidade reacionária só se apercebeu (ou só reconheceu) muito mais tarde. Arriscaríamos dizer que foi a queda do muro de Berlim que despertou em Álvaro Cunhal a consciência da derrota sofrida em 25 de Novembro de 1975.

 

Ao nível do enquadramento teórico e das analogias empregues, faz-se sentir neste livro a influência da tradição historiográfica fundada por Léon Trotsky. Pela nossa parte, não cremos que seja possível dissecar comparativamente revoluções – para mais histórica, social e geograficamente tão distantes, tais a russa e a portuguesa - como se fossem organismos anatomicamente sobreponíveis. Daí resultarão muito mais numerosos os equívocos e a objurgatória política fácil do que um real efeito de conhecimento. Neste particular, revela-se em especial problemática a equiparação do P.C.P. aos mencheviques, para lá de um imediato efeito literário de inegável eficácia.

 

Não chegamos a perceber porque a autora considera que o general Vasco Gonçalves e a “esquerda militar” constituíram uma “ameaça bonapartista” para Portugal em 1975. Não há aqui espaço para debater a questão, mas cremos que se está bastante longe do conceito marxista de bonapartismo. A título de curiosidade, verificamos que, para o trotskista argentino Nahuel Moreno - ‘Revolución y contrarrevolución en Portugal’, disponível no Marxists Internet Archive - os governos provisórios do “bloco M.F.A.-P.C.-P.S.” formaram um regime “kerenskista”, do qual se destacou, por fim, a tendência contrarrevolucionária... “bonapartista” dirigida por Vasco Gonçalves.

 

Enfim, uma outra questão sobre a qual a obra de Raquel Varela revela um comprometimento teórico prévio é a da dualidade de poder. Não nos parece que a emergência e desenvolvimento de formas institucionalmente autónomas e geneticamente puras de poder proletário possa servir de critério absoluto e requisito indispensável para avaliar sobre o caráter socialista de uma revolução. Dependendo em muito da concreta configuração histórica do aparelho de Estado em causa e da dinâmica da luta de classes, o assalto ao poder pelas classes produtoras pode tomar a via da ocupação das instituições burguesas, para as subverter por dentro, ou pode seguir um amplo e imprevisível leque de processos híbridos, nos quais órgãos e instituições “velhos” se imbricam com “novos”, para formar um aparelho de poder fundamentalmente novo, ao serviço de uma nova dominação social.

 

Vigorosa e bem sustentada do ponto de vista académico, com dois ou três apontamentos discutíveis entre marxistas, esta obra de Raquel Varela passará a constituir importante património e referência para quem quiser estudar este período na história recente portuguesa e preparar as suas possíveis sequelas.

 

 

 

(*) Raquel Varela, ‘A história do P.C.P. na revolução dos cravos’, Bertrand Editora, Lisboa, 2011.

 

 

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