A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Editoriais de O Comuneiro(*)
 
 O Comuneiro
 

 

 

 

 

‘O Comuneiro’ sai, neste semestre, com algum atraso, mas temos realmente vivido algumas semanas de cortar a respiração.

 

Vivemos tempos de excepção, em que a pulsação histórica no mundo se acelera enormemente. Estes são os tempos que, por um lado, esperávamos e sentíamos ser inevitáveis; por outro lado, lamentamos não estar ainda preparados para eles, pois que estamos ainda longe de ver formado, a nível global, no plano teórico e no plano organizativo, um bloco político coeso, capaz de forçar de forma consciente e determinada uma ruptura efectiva com o modo de produção capitalista. É essa a via que procuramos servir, com o melhor do nosso esforço, não porque acreditemos na inevitabilidade dos “amanhãs que cantam”, mas, pelo contrário, porque estamos convencidos de que pode mesmo não haver qualquer futuro digno para a civilização humana, se não actuarmos hoje, de forma livre e auto-determinada, tomando colectiva e democraticamente as rédeas do nosso próprio destino histórico. Será então a altura de jogar finalmente no caixote do lixo da história a crença numa providencial “mão invisível” que supostamente resultaria da benigna confluência da cupidez e da ganância individuais. No novo terreno em que se vai travar, doravante, a batalha ideológica, já não terá curso forçado a "teologia do mercado", tão propagada pelos arautos do pensamento único neoliberal. Mas ainda serão necessárias longas e duras batalhas – e não só no campo das ideias, naturalmente - para extirpar de vez essa superstição.

 

As épocas de crise são tempos de risco, de bifurcações sucessivas, de decisões críticas, de oportunidades que se oferecem uma só vez, em exíguas e fugazes janelas. Em nossa apreciação, esta crise em que estamos agora a entrar, vai prolongar-se, provavelmente por umas duas décadas, no mínimo. É essa também a opinião de François Chesnais, de cuja lucidez e penetração analítica nos orgulhamos por poder contar, uma vez mais, no artigo de abertura deste número. O desfecho e sequência histórica desta crise são absolutamente imprevisíveis, tanto podendo ser o pesadelo de uma pós-humanidade, de que Mike Davis nos dá uma antevisão arrepiante (bem plausível e, em muitos sentidos, já actual), como uma sociedade globalmente mais igualitária e participativa, em rumo para a abolição das classes sociais e da propriedade privada.

 

Por todo o tempo de uma geração, provavelmente, assistiremos a nível mundial a uma intensa agudização das lutas de classes, com numerosos episódios de ruptura de equilíbrio, tomada do poder, reordenamento socio-económico, com reversões pontuais e reconquista de posições. Pelo mesmo tempo, teremos agudos conflitos inter-imperialistas, guerras e insurreições, instáveis alianças entre alguns blocos nacionais e/ou regionais burgueses com forças revolucionárias em ascenção, de diversos matizes e configurações.

 

É bem real, no nosso campo, aquilo que na linguagem “diamática” doutros tempos, se dizia o “atraso no factor subjectivo” e que hoje se dirá, simplesmente, défice de projecto e de definição estratégica. Só na América Latina é que podemos ver levantar-se já o esboço coerente e estruturado de um desafio anti-sistémico, que por vezes se designa a si próprio de “socialismo do século XXI”. Em outros azimutes é ainda grande a indefinição reinante. Nos primeiros embates, isso pode ser perigoso, porque, em tempos de anomia social, a direita populista e autoritária está sempre pronta para ocupar todo o terreno que encontrar livre. Essa não precisa de projecto algum: basta-lhe a brutalidade, a demagogia e a falta de escrúpulos, no serviço da classe dominante.

 

É também verdade, porém, que nunca poderíamos estar em posição de prever todos os desafios que teremos pela frente, dando-lhes respostas já estudadas e provadas. No calor da luta, ao sabor dos seus sucessos e revezes, a consciência transformadora irá, sem dúvida, ser moldada e temperada a um ritmo muito acelerado, derrubando pelo caminho muitas e bem espessas lombadas de dogmas “r-r-revolucionários”. É importante sabermos de onde vimos, que temos atrás de nós uma história, uma tradição de lutas e de esperanças. Que temos até, vá lá, alguma sabedoria e malícia histórica acumulada. Mas também é importante a disponibilidade de um novo olhar sobre o mundo. Mais vale errar por ousadia inexperiente do que por tacanhez escolástica. Alea jacta est!

 

setembro de 2008

 

*

 

A crise geral do capitalismo vai cozendo em lume brando. O sistema vai-se sustentando inercialmente a si próprio, deslizando suavemente sobre o caos, porque no mundo não há qualquer exterior a ele. Para usar uma expressão popular portuguesa, o capital não tem onde cair morto. É ele próprio “too big to fail”. Nestas últimas semanas, as bolsas até têm apresentado alguma recuperação e a CNN já apregoa “the way to recovery”. Obama pegou no microfone e concita os seus fiéis ao optimismo. A cimeira do G-20 auto-proclamou-se um sucesso. Vem aí mais do mesmo FMI.

 

Mas não há recuperação possível para este capitalismo, tal como o conhecemos. O que o futuro nos reserva é algo de muito pior, dentro do mesmo declive a que nos conduziu o império do lucro. Ou será algo de radicalmente novo. Algo para o qual temos ainda que inventar o conceito e reunir o sujeito transformador.

 

março de 2009

 

*

 

Com uma imensa melancolia, a imprensa corporativa, que nos desabituamos já de qualificar como burguesa, anuncia-nos que a “recuperação” está a “perder o fulgor”. Infelizmente para eles, as coisas nunca mais serão como se habituaram a concebê-las os senhores do mundo e os turiferários do capital. Provavelmente, eles nunca mais se irão recompor disso. Não vão mudar e não vão perceber. É preciso re-regular a finança, pois claro. Mas primeiro é essencial criar “confiança”. A qual resulta da existência de regras claras. Que todavia não podem ser impostas contra o que é a respiração natural do “mercado”. E assim por diante…

 

As elites dominantes globais e seus medíocres arautos tentam disfarçar o colapso deslizante da “teologia do mercado” atribuindo a crise brutal e profunda a que assistimos à pura “falta de ética” e “aventureirismo” de alguns sectores da finança, causando fenómenos negativos, que o sistema (igual a si próprio) rectificaria com a brevidade possível através de sábias “medidas de regulação”. Todavia, reguladores e regulados são aqui os mesmos e, em última instância, ser-lhes-á impossível negar que, para o capitalismo, a virtude propulsora central é precisamente a ganância ilimitada.

 

setembro de 2009

 

*

 

Com a publicação do n.º 10 de ‘O Comuneiro’, completamos cinco anos de intervenção constante desta revista electrónica, com a qual procuramos abrir um espaço próprio e reconhecível, no mundo da língua portuguesa, onde se discutissem os temas e as ideias que pudessem ajudar a rasgar caminhos que tornem possível um outro mundo, no mundo babélico e em decomposição que é o nosso. Neste momento, a crise nas finanças privadas derrama-se numa crise das finanças públicas europeias, mas essa é apenas uma das muitas horrendas cabeças de dragão que a sobreprodução capitalista é capaz de exibir. Não faz sentido recriminar a cupidez infrene de alguns, quando se continua a considerar a busca do ganho individual como a virtude cívica cardial e o esteio fundamental de toda a vida em sociedade.

 

março de 2010

 

*

 

O aspirador centrípeto da grande finança internacional aperta as suas tenazes sobre os trabalhadores e a “classe média” portuguesa, por intermédio do servil governo de Lisboa. O povo do Maputo saíu à rua contra a fome e o governo da FRELIMO sujou as mãos com o seu sangue, para depois recuar. Enquanto isso, no Brasil vive-se uma hora fugaz de euforia afirmativa do “seu” capitalismo no mundo, pela mão de um ex-operário barbudo que sempre soube “dar um jeito”. A grande roda da história vai girando com seu rangido de fundo monótono, por vezes com lances inesperados e irónicas piruetas, mas sempre amassando impiedosamente a carne viva das multidões laboriosas para dela extrair o suco da riqueza social apropriada por uns quantos, na forma de artefactos civilizacionais, que nestes tempos de decadência capitalista são cada vez mais um miasma de ostentação impudente e presunçosa insignificância.

 

setembro de 2010

 

*

 

O governo português e o consenso geral das forças dirigentes do país aprofundam a sua política de submissão aos ditames da grande finança internacional, com um pedido de resgate que é uma gravíssima e irreversível hipoteca para o destino coletivo deste povo. O PCP e o Bloco de Esquerda tiveram um inédito encontro, mas ainda não foram capazes de, em conjunto ou cada um deles por si próprio, propor ao país, o repúdio de todos os PECs e dos ajustes estruturais impostos, a saída imediata do euro, a suspensão dos pagamentos e a reavaliação devidamente ponderada de toda a dívida externa soberana, o que quererá dizer, sem dúvida, a prazo, o abandono desta União Europeia. Estas medidas “extremistas”, devidamente enquadradas pela nacionalização dos sectores estratégicos, com um rigoroso planeamento económico de emergência e outro de projecção a médio prazo, com novas opções internacionais, são as únicas possíveis de ser encaradas, não diremos já por socialistas, mas por quem queira manter um mínimo de decoro nacional e respeito formal pela virtus republicana. Como o velho Marx gostava de citar do seu Esopo: Hic Rhodus, hic salta!

 

março de 2011

 

*

 

A crise global do capitalismo parece agora acercar-se inexoravelmente de mais um choqe violento, provavelmente a ser despoletado pela crise europeia das dívidas soberanas, com Portugal na primeira fila. Os grandes agentes da agiotagem mostram-se agitados. Marcam-se cerradamente uns aos outros, lançam manobras de diversão, ensaiam correrias futuras. Face ao estrangulamento no processo de valorização do capital, os miasmas putrefatos da finança mundial devoram-se mutuamente, lançam-se em celeradas operações depredadoras, em busca de quaisquer bolhas de oxigénio que lhes permitam manter a cabeça à tona de água. Os perdedores serão os de sempre: os trabalhadores, os desempregados, as mulheres, os camponeses, os precários e informais. Ao menos no mundo ocidental, o ciclo histórico do capitalismo está claramente esgotado, mas não será vencido sem uma mobilização consciente das grandes massas populares, com base num projeto transformador claro e estrategicamente coerente.

 

setembro de 2011

 

*

 

A crise capitalista mundial adensa-se e aprofunda-se. A aguda asfixia bancária europeia está a ser penosamente paliada com a austeridade imposta aos seus povos (em particular os periféricos, de momento) e maciças injeções de liquidez provindas dos E.U.A., quase que diretamente das impressoras à ordem do Federal Reserve System. Alívio temporário, em esforço, varrendo para o futuro próximo ameaças ainda mais pronunciadas. Generalizam-se as manifestações de revolta e descontentemento, que podem estar a começar a formar uma nova geração de militantes socialistas. Os meios populares não politizados ainda não compareceram à chamada, salvo o caso excecional da Grécia. As opções gémeas da guerra e do fascismo tornam-se novamente racionais, do ponto de vista da classe dirigente.

 

março de 2012

 

*

 

Em Portugal, neste outono de 2012, as grandes massas populares despertaram finalmente para a luta contra o desprezo social e o esbulho austeritário. Mas estamos ainda longe de atingir um ponto de travagem e inflexão na guerra de classes movida pelas elites sociais parasitárias do país. Para aí chegarmos, seria necessário que, pelo menos, toda a cintura mediterrânica europeia entrasse em ebulição simultânea, com os de baixo a já não querer e os de cima a já não poder. Sem uma ruptura total com o garrote da dívida - em grande parte ilegítima - e com os “acordos" impostos pelos funcionários do capital financeiro internacional, não haverá saída digna para os povos do sul da Europa, onde a situação se degrada neste momento a um ritmo muito mais acelerado do que em outros países do velho continente.

 

Esta possível ruptura a sul aproveitará aos trabalhadores do norte, se estes se dispuserem a acompanhá-la e tiverem veículos para isso, antecipando-se a uma “austeridade” que, de outro modo, não deixará de lhes bater também à porta. Esperemos que haja ainda suficientes reservas de rebeldia e energia transformadora nestes povos, escapadas à depauperação antropológica geral do ocidente capitalista. Que, na altura própria, as razões da união entre quem trabalha se sobreponham às “razões” da competição, do preconceito e da incompreensão, dependerá, em grande parte, da existência de instrumentos críticos fortes e de alternativas políticas audazes e radicais, concretamente postas.

 

setembro de 2012

 

*

 

A khatarsis do sistema bancário cipriota veio elevar a um patamar superior a crise das dívidas soberanas europeias. Agora sabemos que o diretório central europeu (Chancelaria-Bundesbak-Comissão Europeia/Banco Central Europeu) arroga-se o direito, não apenas de ditar o nível de vida que acha adequado para os países da periferia, mas também as atividades económicas a que estes podem legitimamente dedicar-se. Declarações recentes do ministro das Finanças Woflgang Schäuble, sobre uma suposta “inveja” de que seriam alvo os alemães, vêm recordar que os demónios do velho continente estão bem vivos. Nada aprenderam e nada esqueceram. Está em curso uma política, agora sem rebuço, de conquista, sujeição e amesquinhamento. É certo que, passado quase exatamente um século sobre o início da última “guerra dos trinta anos”, o domínio da Europa já não é hoje uma questão central no mundo. Mas velhos hábitos de cupidez e hubris custam a morrer. Sob o mesmo chicote material da sede do lucro, nas cabeças decrépitas do “homem branco” ainda se entumescem as mesmas cabeleiras da ira e do desprezo. O fascismo e a guerra não andam longe.

 

março de 2013

 

*

 

Portugal aproxima-se de um novo “resgate” da troika de credores, de um brutal aprofundamento da austeridade em curso e de uma vaga de extrema agudização da luta de classes. Na Europa, nada de novo. Merkel sorri, Hollande baixa os olhos. Aproxima-se uma tempestade perfeita mas não há ainda os atores certos para os papéis que se adivinham, se o desenlace tiver de ser de ruptura. No mundo, vivemos um estranho momento em que a ficção orwelliana se faz hiper-real. Assange, Manning, Greenwald e Snowden, são nomes para a revolta da decência comum contra a demência homicida e o controlismo totalitário da grande propriedade.

 

setembro de 2013

 

*

 

Afinal o governo português, por imposição de Angela Merkel, finge decidir-se por uma “saída limpa” do programa de resgate financeiro tutelado pela troika. Teremos juros altos, transferências financeiras de saque e uma acumulação descontrolada de dívida. A austeridade ficará aí para os próximos trinta anos, com salários e pensões cada vez mais baixos, privatizações, eliminação das prestações sociais e dos serviços públicos. A população portuguesa deverá baixar em um terço. No Brasil, ao que parece, vai ter copa. Mas a cidadania crítica, a ética da inclusão social e a exigência de serviços públicos de qualidade são novos dados que, caso se consolidem, podem vir a redefinir em novos moldes o compromisso republicano. Em Moçambique sopraram novamente os ventos da morte, mas aparentemente foi mais forte o apego a uma democracia ainda embrionária. Na Ucrânia, como já antes na Síria-Líbano-Irão, o imperialismo norte-americano dá mostras de ser forte, como sempre, a fomentar e propagandear a guerra, mobilizando para o efeito, sem qualquer pejo, fanáticos islamistas ou bandos de arruaceiros nazis. Incarateristicamente, mostra-se agora indeciso na hora da passagem a acto. Todavia, a crise aperta e a besta vai espreitando.

 

março de 2014

 

*

 

A Europa será finalmente alemã ou desfar-se-á? Haverá ainda um último fôlego para a social-democracia, reunida em torno do eixo Piketty-Montebourg? O fascismo é cão que ladra mas não morde? O imperialismo norte-americano tem ainda determinação e meios capazes para dar sequência à sua soberba mediática com agressões efetivas e em profundidade, para lá de alguns adversários de cenário e circunstância por si próprio criados? Caminhamos para um mundo multipolar? O livre-cambismo globalista estará à beira da derrocada? Estamos no limiar de uma nova crise “financeira”? Até quando poderá ela ser postergada por extensão da massa monetária e desdobramento do capital fictício? Para onde se dirige a classe operária chinesa? E a grande massa das classes populares e assalariadas nos países do capitalismo clássico, sujeitas ao austeritarismo? O socialismo do século XXI sairá finalmente do seu berço latino-americano? Qual será o impacto demográfico e político da crise alimentar e climática nos países da periferia africana e asiática? Tantas perguntas, tantos anseios...

 

setembro de 2014

 

*

 

A Europa será finalmente alemã ou desfar-se-á? Foi com esta interrogação que abrimos o editorial do último número de O Comuneiro. Um reich alemão grotescamente intumescido até onde nem Hitler sonharia, eis o arrimo comum de todas as burguesias monopolistas europeias. O capital não tem pátria. Encontrá-lo-emos sempre onde se sentir ao abrigo da soberania popular, imperando sobre todos os impérios, ditando a sua lei sobre todas as leis, esmagando a pés juntos a decência, a razão e o senso comum, quantas vezes necessário for ao prosseguimento dos seus fins.

 

março de 2015

 

*

 

O acontecimento político do ano de 2015 vai provavelmente ser a ascenção e derrocada do governo Syriza na Grécia. É uma derrota de tomo, cujos efeitos imediatos não deixarão de ser nefastos para o movimento anticapitalista e para a esquerda em geral. No entanto, podemos também dizer que se trata da nossa primeira derrota na Europa ocidental, há uns quarenta anos. Desde então não tínhamos feito senão recuar continuamente, sem verdadeiramente oferecer batalha. Agora, sim, temos finalmente um evento maior na luta de classes europeia, para ver, rever e estudar ao pormenor. Para que no próximo embate possamos já, pelo menos, perder melhor. Se lutarmos sempre porfiadamente, acumulando e sintetizando as experiências dessa luta, um dia, sem dúvida, poderemos virar por completo a maré. Será então o adversário a recuar, a pedir acordos e tréguas, a desmoralizar, a começar a descrer em si próprio.

 

setembro de 2015

 

*

 

O Brasil vive um momento de extrema agudização na luta de classes. Agora você é petralha ou coxinha, não restando nada no meio. Os juízes do Supremo estão a pontos de chegar a vias de facto, arremessando entre si grossos volumes de Direito. Dessa briga vai resultar o travejamento geral da república brasileira nas próximas décadas, se ela continua sendo democrática e o grau de sua subordinação no sistema imperialista mundial. Não é coisa de somenos, nem batalha a que nos possamos manter alheados. Entretanto, um novo fôlego para o lulismo não pode mais ser a aposta de uma esquerda consciente das suas responsabilidades históricas. É preciso avançar. Mas para avançar é preciso derrotar o golpe em curso e salvar o regime democrático que emergiu do movimento “diretas já!”.

 

Na Europa, o tempo é também de graves incertezas. O envelhecimento demográfico cria vagas laborais mas não concede oportunidades de ascenção social para os “trabalhadores convidados”, nem para os seus descendentes. O ressentimento social daí resultante é instrumentalizado por fanatismos de origem e sustentação obscuras. Uma profunda crise bancária está latente e cada vez mais exposta. A desconfiança nacional provocada pelos efeitos centrípetos da moeda única agudiza-se, ameaçando tornar-se insuportável.

 

março de 2016

 

*

 

O esbulho da democracia no Brasil prossegue sem rebuço. Como é habitual nas classes dominantes, a agressão expropriadora acompanha-se com a injúria. O PT de Lula aceitou a passagem de testemunho de exercício do governo numa república burguesa estruturalmente corrupta. A decisão foi correta, porque o movimento popular não tinha então força suficiente para impôr uma reforma constitucional em profundidade. O problema é que a política nova teve assim que se fazer pelos velhos meios... ou não se fazia de todo. E numa virada da maré, o lulismo ficou com o flanco exposto à revanche direitista. A burguesia não tem problema de princípio com a corrupção, que é aliás o seu meio próprio. A corrupção ao serviço da inclusão popular, isso sim, é para ela uma sujeira absolutamente repugnante. Há que dar batalha em defesa da república democrática nascida do “Diretas já!” e da expansão de cidadania operada pelo projeto nacional-desenvolvimentista do PT. Isso posto, a esquerda tem de se recompor e refazer seu projeto, agora com total independência. Por causa da corrupção...

 

A União Europeia, em choque com a defeção do Reino Unido, começa a dar sinais de reação à hegemonia alemã. A periferia mediterrânica organiza-se, dispondo agora de uma minoria de bloqueio no conselho. Angela Merkel não será afinal a chancelerina europeia que sonhou ser durante todo o ano passado. As coisas mudam. A alta burocracia bruxelense coage, chantageia e ameaça com o habitual cinismo, mas de uma forma estranhamente desconexa e inconsequente, sem a mesma coesão implacável de que deu provas contra a Grécia. A panela de pressão do euro começa atingir uma tensão intolerável, sob um pano de fundo de grandes falências bancárias em perspetiva e movimentos populacionais incontroláveis.

 

setembro de 2016

 

*

 

A ascenção de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América, dez anos depois da crise “financeira” de 2007-8, assinala a entrada de uma era de grandes turbulências, perigos extremos e, porventura, rasgadas oportunidades. A ansiedade da classe dirigente, perante a persistente baixa lucratividade, dá lugar a um estado de pânico agressivo. As rivalidades inter-imperialistas vão-se exacerbar. No “Ocidente”, será agora cada um por si e salve-se quem puder. Quanto às potências emergentes, as garantias de “destruição mútua assegurada” vão ser testadas até ao limite. A impulsividade e o erro de cálculo podem, em minutos, ter efeitos catastróficos. Falamos de guerra, sim. Económica, política, diplomática, informática, ecológica, ou, enfim, aquela que se prossegue por outros meios. Perante isto, as forças da humanidade livre, além das bandeiras da razão, da decência e da sustentabilidade, têm agora a importante bandeira da paz. Há aqui um certo déja vu histórico, é certo. Mas esta agora não é a paz garantida pelo aceno benfazejo de Estaline sobre as muralhas do Kremlin. É a nossa paz. É a nossa luta.

 

março de 2017

 

*

 

As placas tectónicas do imperialismo contemporâneo parecem ter entrado numa era de instabilidade. Os Estados Unidos da América, sob a errática presidência do inenarrável Donald Trump, podem bem estar a entrar num plano inclinado em direção a uma decisiva (embora, sem dúvida, cruel e massivamente sangrenta) humilhação militar, a complementar com o colapso financeiro e o ostracismo internacional. Em todo o caso, parecem obstinar-se na via do desenlaçamento completo em relação aos imperialismos concorrentes, até aqui seus cúmplices, em diversos graus, num arranjo ambivalente de colisão e colusão. O “brexit” terá tendencialmente esse mesmo efeito no espaço europeu. Imperialismos desavindos são sempre boas notícias para as massas laboriosas e os povos, aí incluídos os dos próprios países imperialistas, numa altura em que o descontentamento com a agressão neoliberal parece estar, finalmente, a começar a polarizar-se à esquerda.

 

setembro de 2017

 

*

 

Recriar o fascismo como comédia e reality show parece ser o desígnio da atual Casa Branca, mas o exercício tem todos os requisitos para terminar em guerra, que é espetáculo, sim, mas não faz rir. Sob cínica conspiração sionista ou a instâncias da ansiosa Albion, as rubras cabeleiras do horror querem se erguer de novo. Fascismo, supremacismo rácico e guerra são siameses inseparáveis. Guerra é também o resultado quase inevitável de uma crise crónica de lucratividade, como também do deslizamento no equilíbrio relativo e fricção entre potências imperialistas ascendentes e descendentes. Pode acontecer na Síria-Líbano, no Irão, no Iémene, na Venezuela, na Coreia ou nos mares meridionais da China. Está para acontecer, quase que não é crível já que não aconteça.

 

Podemos ter as opiniões mais desencontradas sobre a probidade pessoal de Lula e os méritos históricos do seu projeto político de conciliação e neodesenvolvimentismo. Mas não podemos ficar indiferentes nem decretar neutralidade numa luta pela democracia que envolve também a soberania e a dignidade nacionais. Em circunstâncias em que isso se torne necessário, a democracia burguesa defendemo-la nós, os comunistas, contra a própria burguesia em peso. Como fomos já nós os que estivemos na vanguarda da luta por ela. Só com o pé colocado bem firmemente nessa soleira é que podemos aspirar a outros patamares de emancipação e desenvolvimento humanos.

 

março de 2018

 

*

 

O perigo fascista ronda perigosamente o Brasil, na sequência lógica da agressiva ofensiva mediático-judiciária da oligarquia. A burguesia brasileira não consegue sustentar um projeto democrático para o país. Caiu a máscara. Continua a querer chamar-lhe democracia (até “regenerada”), mas o que ela pretende mesmo é uma fratura social bem exposta e, a partir daí, o genocídio. Cidadania só para os possidentes. Essa é uma opção que vemos claramente desenhar-se também a nível global, nestes tempos de crise crónica de lucratividade do sistema. Não é só um problema brasileiro, embora aqui se revista com todas as agudas especificidades conferidas pelo peso multissecular do atrofiamento histórico desta formação social.

 

O fascismo combate-se pela mobilização popular nas ruas, mas também, e sobretudo, nem que fosse apenas como medida imediata de autodefesa, pelo esclarecimento e sensibilização paciente em direção ao voto. O fascismo no Brasil não se desafia com bravatas inconsequentes. Sabemos bem que – como os ingleses na Índia colonizada ao tempo de Ghandi - o inimigo continua a ter incomparavelmente mais capacidade do que nós para ministrar a violência organizada. Por vezes tivemos de pegar em armas mesmo sabendo que não podíamos vencer. Não é o caso presente. Nossos mártires são-nos demasiado preciosos para os oferecermos em vão. Lembremos e honremos os heróis da luta contra a ditadura militar, defendendo e expandindo, por meios civis e pacíficos, a democracia e a cidadania popular.

 

setembro de 2018

 

*

 

Na agonia da sua revolução socialista, a nação bolivariana conseguiu, ainda assim, produzir um sobressalto cívico patriótico que, de momento, derrotou por completo os planos intervencionistas ao abrigo do novo Plano Condor. Não há memória de uma tão clamorosa derrocada de uma revolução colorida da escola de Gene Sharp. Borrifadas de ridículo ficaram todas as chancelarias ocidentais, mais os seus grandes monopólios de “informação”. Juntamente com os impasses político-militares nas frentes iraniana e coreana, esta aventura pode marcar um declínio acentuado no prestígio e no poder intimidatório do imperialismo norte-americano. Em face, está a colossal articulação continental sino-russa, que marca pontos, vai amealhando ouro discretamente, mas não parece ainda decidida a lançar uma ofensiva concertada contra a hegemonia mundial do US$dólar e as restantes instituições do imperialismo financeiro de Washington. Por entre uma floresta inextricável de sanções, ameaças, chantagem, espionagem e roubo, decisivas conversações comerciais estão ainda em curso. Mas tudo pode se encaminhar subitamente para uma rotura ominosa. Entretanto, para quem tivesse albergado dúvidas, é agora evidente que o Estado profundo norte-americano está perfeitamente reconciliado com os juízos e modos atrabiliários de Donald J. Trump. É definitivamente um dos seus.

 

Rússia e China, é claro, são precisamente os países onde se deram as maiores revoluções socialistas do século XX. Revoluções cujas conquistas ainda travejam, de variadas formas, as estratégias de acumulação capitalista que esses países, cada um à sua maneira, estão agora empenhados em prosseguir. Talvez a tão celebrada queda do muro de Berlim não tenha sido uma viragem de época tão marcante como na altura se quis crer, pelo menos em termos de clivagens geo-estratéticos mundiais. O que se produziu nessa ocasião foi uma importante rotura na frente, numa guerra que prosseguiu essencialmente a mesma, estando ainda muito a tempo de vir a ser perdida pelo “ocidente”, como aliás resulta com grande probabilidade das dinâmicas sociais e demográficas em curso.

 

Não deixaria de ser irónico que estas duas grandes nações-continentes conseguissem agora o entendimento duradouro que não conseguiram quando eram ambas declaradamente socialistas. Agora são ambas formações sociais capitalistas e a dimensão relativa das suas economias inverteu-se dramaticamente. Entretanto, aprenderam a duras penas a defenderem-se das cínicas depredações do imperialismo ocidental, mostrando-se dispostas a ajudar outros a fazer o mesmo. A contenção mútua entre potências rivais e uma alteração progressiva na sua correlação de forças tende a alargar a margem de possibilidade de concretização de projetos originais de emancipação e desenvolvimento. Sendo, pois, auspicioso que novas potências se afirmem como alternativa no xadrez mundial, não é certamente nestas que podem ser colocadas agora esperanças numa futura transformação socialista. Esta deverá emergir, isso sim, nos interstícios abertos pela luta entre os grandes blocos capital-imperialistas. É aproveitando essas falhas tectónicas que uma luta persistente e estrategicamente esclarecida dos trabalhadores e dos povos poderá fazer com que eles se afirmem transnacionalmente como a próxima grande potência, anunciadora de um mundo novo.

 

março de 2019

 

*

 

O Irão parece estar com uma mão muito forte no confronto com os imperialistas norte-americanos e seus aliados regionais. Salvo algum imprevisto catastrófico, a vitória estratégica pertencer-lhes-á naturalmente, o que vai redesenhar por completo a paisagem geopolítica no Médio Oriente e, um pouco, no próprio mundo. Isto na hipótese de uma saída pactuada, que é a mais provável. Neste momento, não está sequer excluída a hipótese de uma débâcle militar norte-americana e israelita, que seria, naturalmente, de longe, o desenlace mais interessante para os trabalhadores, os povos, a paz mundial e a própria saúde do ecossistema planetário. A poderosa Casa de Saud, com o terceiro orçamento militar mundial, acaba de desabar fragorosamente no campo de batalha perante tão só as milícias populares Ansurallah Houthi, de um dos países mais pobres do mundo, a viver uma crise humanitária sem precedentes, fruto da agressão de que foi alvo pelos seus vizinhos do norte, sem qualquer mandato da ONU mas copiosa e discricionariamente assistidos pelos arsenais de todo o ocidente.

 

A Amazónia arde descontroladamente e os incendiários levantam triunfalmente as suas tochas em homenagem ao presidente Bolsonaro, que os saúda nem muito discretamente. O descrédito internacional do governo acentua-se. Prossegue a comédia neofascista, mas à esquina espreita a tragédia. Enquanto as traves mestras do Estado demoliberal brasileiro forem capazes de se aguentar, não haveria problema de maior em ter um fascista histérico e soez (obsessivamente enlevado com torturadores) a vociferar no Planalto, em lugar de um cortesão como FHC, com o seu sorriso melífluo e altaneiro. O problema é quando começarmos a ver uma escalada de agressões impunes e as liberdades em constante erosão. Aí teremos um dilema. Organizamos uma autêntica autodefesa popular (não armada), com o risco de assustar ainda mais a burguesia, empurrando uma grande parte dela para o campo do fascismo. Ou vamos tentar "sensibilizar" a burguesia para a necessidade de defender (ou restaurar) o Estado de Direito democrático. O PT escolherá sempre esta última via, partindo do pressuposto apodítico de que a burguesia é e será sempre dona do Estado. Em nosso entender, devemos ensaiar a primeira via, mantendo embora sempre algumas vias de diálogo com a intelectualidade humanista e setores da burguesia prejudicados pela atual politica externa de subalternidade e entreguismo ao imperialismo norte-americano. Entretanto, a base de apoio do bolsonarismo está em franca erosão e parece mais remota a hipótese de poder vir a reunir força para uma golpada interna de “regime change”.

 

Há um novo miúdo na rua. Na verdade, é uma miúda, com umas belas tranças louras. Tem olhos doces, mas transporta em si uma fúria bem articulada e fulminante. A questão das alterações climáticas atingiu finalmente um “tipping point” decisivo na paciência da juventude. A partir deste verão, nada mais será como dantes. Há um frémito de pânico a percorrer as hostes do neofascismo e da ortodoxia neoliberal, que não recua perante o insulto, a ameaça velada e os impropérios mais grosseiros. Oh, que belo espetáculo dais, meus senhores! Sobretudo porque essas agressões e despautérios deslizam pelos delgados ombros da menina abaixo, sem fazer a mínima mossa, sem que ela bem se aperceba (tem coisas mais sérias em que pensar), enquanto os perpetradores se enterram desesperadamente no seu próprio lodaçal, com um esgar de horror. O maior perigo vem dos falsos amiguinhos hipócritas e bem-falantes (como Barack Obama), com as suas promessas vazias de sempre.

 

setembro de 2019

 

*

 

O mundo está em guerra. Com base na informação científica de que dispõe, a classe dirigente chinesa está aparentemente convicta de que foi alvo de um ataque biológico em Wuhan, de que resultou a atual pandemia mundial de covid-19. E não faz qualquer esforço para o ocultar. Não lançando abertamente a acusação (que seria, obviamente, um casus belli irreversível e inadiável) multiplica os sinais para evidenciar que tomou a devida nota e está alerta. Agora já nada mais será como dantes, mesmo que voltemos a ver cimeiras sorridentes sino-americanas. Prosseguirá a dissociação e a implacável disputa no terreno, palmo a palmo. Entretanto, seja por sua inépcia criminosa e irresponsável, ou pelo que quer que fosse, o fedor da peste lançada aos ventos virou de rumo espetacularmente, em perseguição dos senhores do mundo. As paisagens sociais devastadas pelo neoliberalismo são as mais vulneráveis. Wall Street está em queda livre, com algumas sacudidelas esporádicas. A recessão é certa, uma depressão possível. É preciso imprimir mais uns tantos biliões de dólares e euros para poder continuar manter a economia a flutuar sobre os abismos insondáveis da dívida. Lá se vai o Green New Deal! Muito mais urgente agora é, certamente, socorrer as companhias aéreas, os cruzeiros turísticos, os hotéis, as petrolíferas do “fracking”, a Boeing, a banca ultracorrupta. A integridade do planeta não consta entre os objetivos das forças políticas “sérias” em nenhuma parte do mundo ocidental. Assim vamos.

 

Avançando para além da controvérsia científica e geopolítica sobre as causas, é fascinante observar as posições que se manifestaram quanto à resposta a dar à pandemia. Do lado dos neofascistas e dos neoliberais (aliás, de forma cada vez mais patente, a mesmíssima gente), foi indisfarçável a tentação de sacrificar as pessoas aos lucros, imediatamente, de uma forma flagrantemente literal. Enquanto se faz a contabilidade mórbida diária e se projetam as competentes simulações matemáticas. Tanto mais que, na sua perspetiva, as pessoas em causa constituíam já um peso orçamental excessivo. O problema é mesmo esse estorvo absurdo da democracia. Até quando é que o “são” (malthusiano) funcionamento dos mercados vai continuar a ser obstruído por políticos demagogos? Assim se interrogam Bolsonaro, Trump, Johnson e muitos outros em surdina. Essa é, na verdade, a questão do dia para a política burguesa. Do outro lado, quem se pronuncia pelo cuidado estatal pela saúde pública, apegando-se à democracia, vai logicamente tender a afastar-se do consenso neoliberal imposto pelo meridiano de Washington. Um cisma em perspetiva? A seguir.

 

março de 2020

 

*

 

Por estranho que isso possa parecer, uma boa parte do nosso futuro histórico imediato está na dependência das ainda muito mal conhecidas caraterísticas de transmissibilidade, taxa de letalidade, imunização de grupo e recidiva de um vírus. Nunca tantos dependeram tanto de algo tão minúsculo. Temos ainda as incógnitas científicas, geoestratégicas e logísticas sobre a vacinação. Depois temos de saber como vão atuar os governos a nível sanitário, para finalmente tentar prever como irão reagir, primeiro a economia “real”, depois as manadas enlouquecidas do dinheiro. Uma guerra mundial híbrida está em movimento, com a maioria dos lances a passar-se na sombra. Mas os conflitos armados reais podem estalar, a qualquer altura, em vários teatros possíveis. É muita incógnita junta. Mas a impressão geral que temos é que o gigante Titanic do imperialismo norte-americano (e suas adjacências ocidentais), mantendo embora, para já, todo o seu aprumo majestático, acaba de sofrer um extenso e profundo rombo no seu casco.

 

Talvez Donald J. Trump seja mesmo um homem ungido pelo destino, embora não certamente da forma que ele imagina. De todo o modo, o seu lugar na história está já assegurado e obedece a uma lógica irrepreensível. Ele é a personificação perfeita e fidelíssima do sistema capitalista ocidental. Quando este começou a chocar com alguns problemas estruturais insanáveis, resolveu despedir sem cerimónia os seus serventuários políticos habituais - de mais do que provada inutilidade - e tomar o freio nos dentes. O que é preciso é capitalismo puro, nada de composições e de maquilhagens. Ora, o certo é que, com isso, os problemas agravaram-se e acumularam-se catastroficamente. O Estado profundo norte-americano já teria encontrado maneiras de eliminar este desastroso “homem do leme”, se ele fosse vagamente esquerdista (“liberal” na sua linguagem), como Kennedy. Não o faz porque está paralisado pela hesitação, a luta e vigilância mútua entre fações e, no fundo, por uma boa dose de fascínio pelo personagem. E este lá vai conduzindo o império direito ao abismo, com uma fúria aparentemente irresistível.

 

setembro de 2020

 

*

 

O mundo ocidental está em declive acentuado, que se afigura já irreversível. É uma mutação histórica de alcance extraordinário, que muitos de nós não esperavam ver acontecer em suas vidas. E no entanto, está aí perante nós. Uma era de seiscentos anos de agressão e genocídio, de predação implacável, de infrene exploração, vai enfim chegar ao fim, por entre hipócritas lamúrias, trafulhices gargantuescas, ameaças impotentes, dissídios surdos, arremedos neofascistas e juramentos compungidos de fidelidade eterna aos sagrados princípios demoliberais. O império vai estar estregue a cuidados rotineiros e senescentes, enquanto que Donald J. Trump, impune e impante, espreita um regresso em força, ou, alternativamente, a oportunidade para atear fogo à América profunda, irremissivelmente racista. No velho continente, acentua-se a estagnação e a desorientação estratégica entre as tradicionais potências imperialistas. A pérfida Albion evadiu-se do lar comum, sem tomar rumo certo. O eixo franco-germânico vive entre o medo e a ilusão, o ocasional rasgo visionário e a sórdida mesquinhez de sempre.

 

O naufrágio do mundo ocidental – enquanto projeto e prática de senhorio universal de uma raça eleita - pode ser uma imensa oportunidade para a humanidade, na vigésima quinta hora para a salvaguarda da integridade do seu habitat terrestre. Será o fim da monstruosa teia mundial de coação, extorsão e rentismo parasitário institucionalmente sediada na costa leste norte-americana (o sistema Casa Branca-Pentágono-US$dólar-Wall Street-FMI). Uma tremenda sacudidela no domínio globalizado da oligarquia financeira, das cadeias mercantis de subcontratação, da traficância laboral, da vigilância e controlo total. Povos da Ásia, de África e da América Latina poderão retomar margens acrescidas de soberania política e económica, rasgando vias autónomas de organização e valorização dos seus recursos. E, sim, será possível pensar em superar historicamente o modo de produção capitalista. Em cem flores que desabrochem, cem escolas que rivalizem, no desenvolvimento humano e no enriquecimento da vida coletiva, uma delas poderá achar a combinação ótima, triunfantemente reproduzida, entre os meios produtivos disponíveis e novas relações de produção, paritárias e livres, em equilíbrio metabólico estável com o nosso ambiente natural.

 

março de 2021

 

*

 

Os E.U.A. e todas as trinta e quatro potências a eles coligadas receberam um tremendo pontapé nos dentes desferido pelo povo afegão. É o golpe de misericórdia na “guerra ao terrorismo” proclamada por George W. Bush, na sequência dos enigmáticos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. A partir de agora, a iniciativa no Médio Oriente passará para a “frente da resistência”, sendo previsível que, mediante uma constante guerra posicional, de paciência e fricção, acabemos por assistir à queda conjunta de Israel e das corruptas monarquias árabes da região. Isso será, enfim, o dobre de finados pelo domínio global do ocidente. O fim do mundo que conhecemos, em auspiciosa antecipação do fim do mundo tout court. Perante as mutações climáticas catastróficas em curso, aquilo a que assistimos, da parte das elites dirigentes ocidentais, é muito, muito pior do que a indiferença hipócrita a que já nos habituaram. Não. O que se passa é nada menos que uma ativa e efetiva conspiração destruidora, cinicamente camuflada com palavras de ordem calculada e estudiosamente fraudulentas, como “neutralidade climática” ou “balanço carbónico zero”. É por aí que estamos seguindo. Estes senhores defenderão encarniçadamente o seu mundo, qualquer que seja o mundo que daí sobeje, ou não. O confronto é inevitável, vital, sem limites, sem quartel. Qualquer aliado será bem-vindo nesta luta existencial para a humanidade.

 

Uma parte muito importante da luta pelo derrube do sistema imperialista ocidental vai decorrer na América Latina e no mundo muçulmano. Em ambos estes ambientes, desempenham importante papel as clivagens ditadas por diferentes tradições culturais. Neste particular, é importante que ninguém se deixe seduzir (ou intimidar moralmente) pelo engodo do falso “progressismo” filo-imperialista. Os exploradores nunca trouxeram libertação a ninguém, menos que todos às mulheres (das quais só reconhecem existência e direitos a uma ínfima minoria) e ao povo em geral. A libertação dos oprimidos nunca caiu do céu. É uma tarefa a prosseguir pelos próprios oprimidos, dentro do seu particular universo cultural. As luzes emancipadoras não irradiam de Paris, Londres ou Nova Iorque, velhos centros de acumulação de pilhagem imperialista. Irrompem de todo o lado para todo o lado, por obediência a uma universal aspiração humana. O imperativo da libertação nacional dita que os povos tomem em mãos o seu próprio destino, não que o entreguem a tutelas externas, com benefício exclusivo para pequenas castas corruptas e traidoras. Luz e treva são um. Entre elas teremos hoje que achar o caminho da sobrevivência, antes do da liberdade.

 

setembro de 2021

 

*

 

A guerra em curso entre a Rússia e a Ucrânia deu início simultâneo a dois processos históricos aparentemente irreversíveis. Por um lado, dar-se-á uma transformação completa da arquitetura de segurança europeia (e não só), com uma inversão de sentido na perceção pública da projeção de força militar, com base numa nova avaliação das suas magnitude e prontidão relativas. Por outro lado, começou a insularização económica, política e cultural do mundo ocidental. Terminou a globalização liberal e ocidentalocêntrica, vítima do medo, da arrogância cega e da cultura do “cancelamento”. O dólar norte-americano vai provavelmente perder o seu estatuto privilegiado de moeda de curso mundial. As metrópoles ocidentais vão deixar de funcionar como abrigo para os capitais oligárquicos de todo o mundo, mesmo os das suas clientelas aparentemente mais fiéis. Como subproduto menor, teremos que a própria Federação Russa se verá obrigada a fazer um corte radical e definitivo com o modelo de desenvolvimento neoliberal e oligárquico com que esteve comprometida nas últimas décadas, aproximando-se mais do figurino estatizante que se tornará padrão no bloco euro-asiático.

 

Nesta hora de grandes perigos, O Comuneiro não esconde, nem por um segundo, que os seus anseios mais profundos são por um triunfo claro das armas da Velha (que nem sempre Santa) Rússia. Por um lado, porque esta está investida de um indiscutível e mesmo tríplice casus belli (ameaças imediatas de agressão irredentista e de guerra biológica, com a nuclear ainda na forja, mas já muito claramente definida). Por outro, porque somos pela tradição contra a “modernidade”, seguindo a lição do nosso amado Pier Paolo Pasolini. Abominamos a dissipação cultural, a depredação ecológica e a destruição antropológica em curso, pela via da chamada “sociedade aberta” (Popper, Soros), à qual se acede, sob mediação mercantil, por uma espécie de euforia da “libertação” libidinal individualista. Aí reside, precisamente, o inimigo número um da humanidade, nesta hora da mais extrema gravidade. Visto de uma forma mais focada e imediatista, degradar o poder imperial dos E. U. A., o grande gestor e garante do sistema de capital fóssil, é uma questão de sobrevivência.

 

É certo que Vladimir Putin começou por errar o alvo clamorosamente, negando o direito à autodeterminação dos ucranianos. Quase deitou tudo a perder com isso. Lenine esteve aqui bem melhor que este seu crítico contemporâneo. Feitas as devidas correções, os acertos da iniciativa bélica russo podem, ainda assim, vir a revelar-se muitíssimo mais importantes. Resumindo: 1) Seria bom que se desiludissem aqueles que, um dia, por cobiça ou presunção, aspiraram ardentemente a aderir ao mundo ocidental (o do privilégio fundado na exploração), com exclusão desdenhosa e agressiva dos outros; 2) Muito melhor ainda do que isso, seria ver o próprio mundo ocidental desmoronar-se por completo, esmagado pela sua pomposa mediocridade e pelo abjeto espetáculo da sua afetação humanitarista. Neste capítulo, tudo se faz ao compasso das habituais manobras da contrainformação anti-russa dos serviços secretos britânicos. Fundadas, embora, em consabidas (nas mais altas esferas) falsidades e manipulações, estas manobras fixam o "cânone" sagrado e indiscutível para o homem de respeito e civilizado. Mesmo desconfiando, é prudente genufletir com expressão grave, sob pena de excomunhão. António Guterres não deixará de ser dos primeiros, muito compungido. A manada branca bem nutrida está agora toda bem encerrada, para sempre, no redil anglo-saxónico. Ainda se toma a si própria por o único mundo que conta, a "comunidade internacional". Que despertar ingrato lhe está reservado!

 

março de 2022

 

*

 

Durante os últimos cento e vinte anos (mas com raízes muito claras no pensamento do Marx tardio), uma luta encarniçada contra o imperialismo tem sido o objetivo e a caraterística central do movimento socialista internacional. Essa tradição manteve-se mais ou menos intacta, ao nível retórico. Eis que, à nossa geração, é dado o absoluto privilégio de assistir finalmente a um espetáculo único: a besta imunda está de joelhos, tateando em volta à procura dos óculos perdidos no chão. Pois bem, larguíssimas secções da auto-intitulada esquerda revolucionária ocidental reagem com choque e indisfarçável repulsa. A seu ver, mais (ou piores) imperialistas são afinal os outros, os remotos herdeiros das revoluções soviética e chinesa, obliterando-se assim por completo o conteúdo preciso que tem o conceito de imperialismo na teoria marxista. Para toda esta gente, Marx, Engels, Lenine, Trotsky, Rosa Luxemburgo, são, afinal, apenas marcas de água intelectuais, sobre as quais se edificaram proveitosas - senão mesmo razoavelmente proventosas - carreiras neste oh tão liberal, tolerante e panglossiano mundo ocidental. Tudo isso vai acabar, infelizmente para eles.

 

A cisão geopolítica em curso é irremissível. Quem optou agora pela defesa do mundo ocidental, de colisão em colisão, vai em breve descobrir que não terá nele, nunca mais, opções políticas disponíveis para além do bem emasculado consenso geral da confluência neoliberal-neofascista. Estes dois neos, cada vez mais intimamente entrelaçados, constituem a vanguarda do círculo vicioso que, movido pela ânsia de sempre mais “liberdade” (para quem pode mais), vai socavando e destruindo todos os esteios estruturadores da sociedade (que, para Thatcher, nunca existiu), mergulhando-a, por fim, na anomia e no caos. Nesse sentido, o atual regime ucraniano é um bom espelho do futuro do ocidente. Hoje apela-se à guerra contra o “brutal” Putin (elidindo, por completo, as brutalidades inaugurais desta história), amanhã erguer-se-á o braço em saudação romana (“levantar a pata” como se dizia, muito bem, nos meios antissalazaristas em Portugal), em defesa do espaço tradicional próprio e exclusivo da civilização branca – o das liberdades como e enquanto privilégios, aliás cada vez mais restringidas no que toca às classes populares e à dissidência ideológica. Pregar-se-á sem descanso o sagrado evangelho do amor aos ricos. Não faltará a criminalização infamante da mínima expressão apoio à luta do povo palestiniano. A grande humanista Ursula von der Leyen continuará a subsidiar generosamente os “push-backs” com que a polícia grega envia regularmente para o fundo do Mediterrâneo os candidatos à emigração de tez e devoção pouco confortáveis.

 

Quando as ditas “autocracias” estiverem na mó de cima, no confronto geopolítico mundial, como é a tendência atual, haverá nelas, certamente, muito mais liberdades públicas e autodeterminação democrática do que nas metrópoles capitalistas clássicas, uma vez que sejam estas a ser remetidas à crispação defensiva a que obrigaram anteriormente os seus adversários. Edward Snowden e Julian Assange (entre muitos outros) estão aí para dar um testemunho antecipatório disso mesmo. Na falta de perspetivas de auto-transcendência revolucionária, tudo o que o ocidente tem a oferecer ao mundo são os planos distópicos mais ou menos abertamente genocidas de Bill Gates, Yuval Harari e Klaus Schwab, o dono do Foro Económico Mundial de Davos. Aqueles que apostam, ainda hoje, na preservação da hegemonia global deste mundo ocidental para, com base nela, projetando-a ainda mais, abrir horizontes alargados de emancipação para a humanidade inteira, vivem num mundo ideal de esquematismos teleológicos unilineares, incrivelmente equivocado, dificilmente sustentável em plena boa-fé. Entretanto, O Comuneiro vai continuar a publicar autores notoriamente russófobos e/ou sinófobos, em tudo quanto entender que as suas reflexões possam ser, ainda assim, úteis e relevantes às nossas causas editoriais. Não estamos a coligir nenhum índex.

 

A velha ordem colonial resultante da expansão europeia foi substituída, a partir do final da II Guerra Mundial, por um arranjo neocolonial, em que os E.U.A. assumiram o encargo de garantir, em última instância manu militari, uma ordem global (a que eles hoje chamam de “sociedade internacional baseada em regras”) propiciadora de afluxos regulares de valor em benefício de todo o mundo imperialista ocidental. Isso inclui encargos globais como garantir a segurança de todas as rotas mercantis, proteger o investimento externo, impor termos de troca desiguais, gerir uma moeda de curso internacional, manter uma rede de intimidação e extorsão financeira, impor e manter regimes políticos submissos nos países periféricos, etc.. Não tendo recursos para criar a sua própria, nenhuma potência ocidental pode hoje dispensar os benefícios da adesão subalterna à rede norte-americana de poder global e muito menos arriscar-se a ser dela excluída à força. Permanecem, naturalmente, visíveis contradições inter-imperialistas neste ocidente (que inclui o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan e a Austrália/NZ, mas exclui toda a América a sul do Rio Bravo), mas, sob os testes de stress mais exigentes, elas não conduziram à rotura do bloco, como uma vez mais agora se provou. É mais forte o que os une. Esta situação pode agora dizer-se ser uma caraterística estabilizada do sistema imperialista contemporâneo.

 

Os bons dos humanistas universalistas ocidentais (que os há) não vêm isto, naturalmente, e não conseguem compreender certas coisas. Certas verdades, se as pudessem entrever, gelar-lhes-iam o coração. Os povos ex-coloniais e semicoloniais (aí incluídas todas as suas elites com alguma ponta de brio, mesmo que insistentemente vendidas e revendidas, por grosso e atacado), não querem aprender absolutamente nada deles. Na verdade, querem apenas vê-los pelas costas e esquecê-los, para sempre, o mais depressa possível. Tudo o que necessitam ainda de aprender é-lhes acessível por outros meios. Os modos e termos negociais do ocidente causam-lhes permanente escândalo e revolta. A sua sentenciosidade moralista e zelo disciplinador, isso aí, então, gera-lhes tremendíssimos apertos de agonia e vómito. Os estadistas e diplomatas ocidentais não fazem a mínima ideia do esforço titânico que custa sorrir para um brinde de circunstância com eles. Quando tentam promover a causa ucraniana nestas latitudes “terceiro-mundistas”, escapa-se-lhes, por completo, como, por essas ruas, onde se fazem saudar, se anseia, de coração apertado, mas vigilante, a fremir por todas as carótidas, ofegantemente, pronto a estourar de alegria, à notícia confirmada de que o homem branco, supremacista e intrinsecamente neocolonialista, foi finalmente espancado, como tanto merece, há tanto tempo, e que estourou de vez, deixando de mandar neste nosso globo terrestre. A quem acha que isto é o “fim do mundo”, a nossa a resposta é: sim, é esse mesmo o mundo ao qual buscamos dar fim, antes que seja tarde de mais.

 

setembro de 2022

 

*

 

O mundo já mudou, embora não se saiba ainda em que exata extensão. De todo o modo, o homem branco - mestre insuperável da cobiça, da agressão nua, da conquista, da opressão, da espoliação da natureza e do seu próximo, da dissimulação e da hipocrisia - já deixou, finalmente, de ser o seu senhor absoluto. A guerra pôs a nu, de uma forma caricata, o gigantesco descompasso entre a força real do mundo ocidental – a nível de pujança demográfica, coesão social, disciplina, capacidade de sacrifício, produção industrial – e a sua ilimitada arrogância política, diplomática e mediática. É a sociedade do espetáculo em todo o seu esplendor e miséria. A catástrofe financeira está ao virar da esquina. A palavra a pesquisar é: derivativos. A fé no deus mercado está muito próximo de precipitar o ocidente coletivo pelo barranco dos cegos. Mas precisamente neste abismo existente entre as expetativas loucas de mando e o poder efetivo da tríade imperialista, que encolhe como a pele de Chagrin do romance de Balzac, residem ainda, seguramente, enormíssimos perigos para a paz mundial. É muito cedo para celebrar.

 

No final, se o pior puder ser evitado, teremos um mundo multipolar, potenciador da cooperação livre e de trocas mais equilibradas, em lugar do atual condomínio fechado ocidental, pirâmide implacável de exploração e asfixia para os povos, bem como de ruína para o conjunto da ecosfera terrestre. Deixaremos de ter jardim de um lado e selva do outro, para desgosto do inefável Sr. Borrell. O imperialismo pode ter a sua espinha quebrada, sim. Foi um longo processo histórico, que levou um pouco mais de um século a cumprir-se, com alguns retrocessos a meio do percurso. Por fim (e não conseguimos dizê-lo sem uma ponta de emoção), a visão de Lenine pode estar em vias de triunfar. Por uma dessas férteis e fecundas ironias da história, fá-lo-á pela mão de um seu sucessor menor, em grande parte inconsciente, que se limitou a ser um estadista competente e arrojado, no que excedeu, é certo, largamente, os seus adversários.

 

A derrocada do sistema imperialista de dominação anglo-americana (e sionista) será um desfecho histórico de alcance extraordinário. Devemos regozijar-nos com ela, com uma alegria incontida e esfusiante que atravessa os cinco continentes. Para um socialista revolucionário, manter equidistância e indiferença neste confronto, é sinal seguro de inconsciência, má-fé ou diletantismo. O movimento socialista mundial, a internacional dos trabalhadores e dos povos oprimidos, não teria força, neste momento, para semelhante cometimento. Terá contribuído alguma coisa, em especial pela resistência de povos latino-americanos teimosamente empenhados na prossecução de projetos socialistas. Quem o pode conseguir, em embate frontal, é uma aliança ou alinhamento muito sólido de potências semiperiféricas, que viraram as costas à globalização financeira para melhor garantia da prossecução dos seus objetivos nacionais e soberanistas.

 

Não é indiferente nem coincidência que estas potências ascendentes tenham tido grandes revoluções socialistas. Foram ambas inimigas juradas do imperialismo que, quando, vencidas, quiseram (re)ingressar no seio do sistema mundial capitalista, descobriram que só o poderiam fazer em condições de humilhação e espoliação nacional. Foram relembradas do que é a essência do imperialismo. Recusaram esses termos, mantendo sistemas, entre si diversos, de extensa propriedade pública, bem como de controlo e planeamento estatal sobre o processo nacional de acumulação capitalista, a fim de lhe dar coerência e garantir a autonomia. A China Popular mantém formalmente o desígnio de rumar ao socialismo, após um gigantesco percurso de NEP. A própria Federação Rússia poderá ver-se forçada, face à pressão exterior, a buscar rumos mais socializantes. Estamos prestes a ver para que lado cairá, desta feita, o Muro de Berlim.

 

Não caraterizamos estas potências ascendentes como imperialistas. Quem o faz, não se refere, certamente, o conceito marxista de imperialismo. Não surpreende. Muitos deles sustentaram já que esse mesmo conceito marxista de imperialismo tinha “perdido operacionalidade”, para concluírem que deixou de se aplicar aos E.U.A. e seus satélites. De onde resulta que os inimigos do império são imperialistas, da mesma forma que os seus súbditos constituem o “mundo livre”. O Mecanismo Europeu de Apoio à Paz financia, naturalmente, a guerra. Orwell viu bem, premonitoriamente. Derrubado o imperialismo (ou o “império”, para quem prefira), a libertação do jugo do capital estará mais próxima, mas ainda assim muito distante. Só é possível com a luta firme, organizada, constante, confluente, doutrinada, estrategicamente orientada, do proletariado internacional, da inteligência livre, dos zeladores do bem público e do bem comum, das mulheres trabalhadoras e cuidadoras, dos povos laboriosos (com destaque para camponeses e indígenas) e das grandes massas marginalizadas e oprimidas de todo o mundo.

 

março de 2023

 

*

 

Quem viver verá, mas tudo indica que estamos no limiar de uma nova idade histórica. Não é apenas o fim do pós-guerra fria como arriscou timidamente António Guterres, para logo ser prontamente endossado pelo seu amo Anthony Blinken. Aquilo a que estamos a assistir é, na verdade, ao fim do mundo de dominância ocidental. Trata-se do encerramento de um ciclo pentassecular, que está geneticamente associado à ascensão do modo de produção capital-imperialista. A expansão europeia conclui-se, iniciando-se a sua reversão. A fadiga demográfica do continente branco (incluídas as suas colónias de povoamento) era visível há algum tempo. A obstinação classista pelo modelo de acumulação neoliberal e pela financeirização socavou ainda mais a sua unidade e acelerou o seu declínio. Com uma derrota inapelável do império na sua marca ucraniana, o dique vai finalmente ceder. As etnias outrora submetidas sacodem o jugo neocolonial e ganham a iniciativa. Mas a questão étnica está aqui indissoluvelmente imbricada com a multilinearidade nos processos regionais de desenvolvimento do materialismo histórico.

 

O capitalismo que temos conhecido como dominante é uma invenção ocidental, ou até, mais especificamente, anglo-saxónica. O capitalismo chinês tem as suas caraterísticas próprias, em parte herdadas da sua história antiga, em parte produto de estratégias de emulação com que procurou responder ao assédio por potências externas. Outros capitalismos autocentrados não ocidentais têm as suas caraterísticas próprias, resultantes de processos históricos de enxerto e sincretismo. Alguns, entre os mais importantes, exibem marcas deixadas por revoluções socialistas recentes. Nenhum deles adotou ou é sequer permeável à superstição liberal da “mão invisível”, ao dogma da “sociedade aberta”, que consiste em entregar, por inteiro, o desenvolvimento social à livre expansão centrífuga e infinita da ganância individualista. Em confiar toda a delicada tessitura social ao “moinho satânico” da girândola mercantil em roda livre. Este tenaz ideologema sociopata, dissocietário ou sociocida é um exclusivo ocidental, cujos resultados estão hoje bem à vista, por exemplo nas ruas de Nova Iorque. A sua derrocada histórica pode, porventura, dar-se ainda a tempo de salvar sobre a linha, na 25.ª hora, a habitabilidade humana deste planeta.

 

Destroçar o neocolonialismo e assegurar o primado do bem público no governo das coletividades humanas é apenas um primeiro passo, indispensável, mas em si próprio insuficiente para virar a página negra do capitalismo na história universal. É bem disto que se trata, num movimento que teve o seu início há um pouco mais de cem anos. A Rússia czarista tinha contatos anticolonialistas em África e na Ásia, mas sempre dentro de um cálculo estratégico de rivalidade inter-imperialista. Nunca foi missão “profética” da Santa Rússia eslavófila libertar todos os povos oprimidos do mundo. Se essa missão se põe objetivamente, nos dias de hoje, à Federação Russa, é na medida em que ela carrega em si (queiram-no o não os seus dirigentes atuais) o estigma histórico da grande revolução soviética. O mesmo se diga, aliás, mutatis mutandis, para a República Popular da China. Estas duas potências podem, entre si, agregando à sua volta alguns aliados importantes, criar as condições necessárias para a derrocada do sistema imperialista ocidental, abrindo uma era de paridade nas relações políticas e económicas internacionais. Será o encerramento definitivo de um mundo de conquistadores e vencidos, de senhores e servos, que agora se procura cobrir com yottabytes de cosméticos mediáticos demoliberais. A luta está acesa. Trata-se de um confronto duríssimo, de forma alguma de desfecho já assegurado. De armas na mão trava-se na Europa de Leste, no Médio Oriente, nas Caraíbas, em África, nos mares da China. Na frente económica estão também em curso batalhas decisivas. É convocada toda a nossa atenção solidária.

 

Cada uma à sua maneira, a Rússia pós-socialista e a China persistentemente empenhada em construir um modelo socialista com as suas caraterísticas próprias, estão ainda a seguir, na sua fase de esgotamento, a vaga revolucionária mundial despoletada pelas palavras de ordem lançadas por Lenine. Em especial, a relativa ao direito das nações à autodeterminação. Um estado central planificador, com forte presença nas finanças e nos setores industriais estratégicos, é a caraterística comum a quem hoje resiste ao imperialismo ocidental. No limite das nossas forças, vamos assegurar-nos do seu triunfo. Depois, será necessário algo mais do que isso. Algo para o que Rússia e China não estão, por si sós, em condições de prover a necessária direção. Só o movimento de massas internacional, com acentuação no sul global, devidamente armado, doutrinal e estrategicamente, poderá abrir caminho para a superação histórico-mundial do modo de produção capitalista, em direção a uma verdadeira civilização da comunhão. Será indispensável, pois, uma segunda vaga da revolução mundial socialista. É essa a exigência que nos traz estarmos vivos no mundo de hoje para o transmitirmos às gerações futuras. Sem que isso nos distraia nem disperse em relação às decisivas lutas neste momento ainda em curso, temos de encarar a tarefa da construção desse novo sujeito político global, capaz de resgatar da dissolução mercantil a experiência socializadora verdadeiramente humana.

 

Setembro de 2023

 

*

 

Há um pouco mais de um século, Oswald Spengler publicou o seu célebre ensaio intitulado O declínio do Ocidente. Hoje, Emmanuel Todd afirma que estamos a assistir em direto à sua derrocada final. Por vezes é proveitosa a leitura de autores não marxistas, que os há muito argutos e penetrantes, embora dentro de uma mundivisão histórica limitada ou distorcida. Um dos colaboradores deste número coloca mesmo em epígrafe Samuel P. Huntington. Como que por sinédoque, esta derrocada do Ocidente é hoje representada à cabeça pela queda da supremacista e mitomaníaca colónia de povoamento denominada Israel. Mas a parte e o todo representam-se mutuamente com grande fidelidade, num inolvidável espetáculo político, diplomático, mediático e, finalmente, militar, de arrogância, inépcia, cobardia e desumanidade. Tudo com a habitual cobertura gelatinosa de hipocrisia. Exterminem todas as bestas, ordena Tel Aviv aos seus. Da forma o mais humanitária possível, insistem publicamente Washington, Londres e Bruxelas, afanosamente municiando as munições. À medida que cresce o desespero, abrem-se de par em par as goelas do horror sem medida e sem sentido.

 

Auschwitz é um nome ocidental, como é bem sabido. Enquanto houver império racializado, oficiando livremente nas catedrais do desprezo humano, nunca mais é, na verdade, inevitavelmente, sempre mais. Todo o escândalo ocidental com o nazismo foi, afinal, por este ter virado esse desprezo (sobejamente conhecido alhures, há muito) contra o próprio homem branco. Externalizar a expiação (senão mesmo a culpa) pelo holocausto dos europeus de fé judaica, com desprezo acrescido por outros povos e outras crenças, serve apenas para reproduzir o crime, em repetição fractal infinita. Por esse vasto mundo afora. Esse mundo inesgotável, de uma profundidade estratégica para sempre inexpugnável. O problema é que, nos dias de hoje, qualquer ser humano neste planeta é potencialmente um cidadão consciente, bem capaz de ver, julgar e atuar. Ocidental, cuidado, estás a ser visto. E não só pelo mundo que achas que conta. Todo o mundo agora conta! E o teu pulso, tão fraco já, para toda a escalada de crimes que ainda projetas…

 

A civilização ocidental conduziu a humanidade ao limiar da sua extinção, por ganância e hubris das suas classes dirigentes. Não se trata apenas das alterações climáticas, que continuam a gerar ceticismo em certos espíritos, apesar das provas científicas esmagadoras, que extravasam cada vez mais flagrantemente para a experiência comum dos sentidos de toda a gente. Quanto a este problema, os atuais senhores do mundo já decidiram: nada será feito. Pelo menos por iniciativa pública. Para eles, esta questão ou é inexistente ou será remediada por uma qualquer solução que inevitavelmente aparecerá, por infalibilidade do mercado. Fim da humanidade? Todas as previsões até hoje feitas nesse sentido se revelaram falsas. Ergo, é uma impossibilidade. É preciso ter calma. As cimeiras COP foram desterradas para o Médio Oriente petrolífero e remetidas à insignificância. Ora, o que é impossível é pedir a um porco que se suicide para salvar o chiqueiro onde ele se habituou a refocilar completamente à sua vontade. Com a devida vénia à espécie porcina, que, pela sua parte, sempre deu mostras de honradez e responsabilidade.

 

A crise geral do Sistema Terrestre é evidenciada por muitos outros fenómenos, como a acidificação dos oceanos, a destruição recorrente da camada de ozono, a extinção maciça de espécies animais e vegetais (30% em perigo, com um verdadeira dizimação em curso nos insetos e nos corais), a perturbação dos ciclos do azoto e do fósforo (ameaça direta para a agricultura), a perda de coberto vegetal (incluindo florestas), o esgotamento da água doce, a saturação de aerossóis, a proliferação de lixos químicos sintéticos, a radiação nuclear ou os organismos geneticamente modificados. A lista podia continuar. Cada um por si só ou em conjugação, todos estes fenómenos – e outros que se desencadeiam a partir deles por reação em cadeia -, a não serem, também eles, produto da nossa imaginação apocalíptica, são potencialmente devastadores para a habitabilidade humana do planeta, ainda no corrente século, a manterem a sua atual progressão.

 

Desafiadas no seu poder universal, as classes dirigentes ocidentais têm, porém, meios ao seu dispor capazes de antecipar o fim ao qual já nos destinaram inevitavelmente de qualquer forma. Este mundo tem de ser delas, ou não será. É inconcebível de outro modo. O imperialismo ocidental é uma ameaça terrível à paz mundial, porque vai insistir sempre em manter relações assimétricas, de supremacia e exploração, que nenhum povo já aceita nos dias de hoje. Na incerteza, no declive para a derrota, porque não acabar com tudo imediatamente, à bomba? As armas nucleares existem para ser usadas, de tática a estrategicamente. É precisamente no Ocidente, em exclusivo, que existe uma criminosa doutrina militar que prevê o seu emprego em primeira instância. Segundo os estudos mais credíveis, não é preciso um grande número de deflagrações para provocar um inverno nuclear catastrófico para toda a humanidade. Pode ser um psicopata fanático da Torá, como Benjamim Netanyahu, a dar esse passo. Pode ser Trump. Mas pode também, perfeitamente, ser um político convencionalíssimo, como Joseph Biden ou Emmanuel Macron. Todos eles, juntamente com a sua envolvente decisória, têm a (de)formação moral, o treino de caráter e a motivação ideológica para o fazer, em determinadas circunstâncias, que não são de todo inconcebíveis. Podem até estar bem próximas.

 

Tudo isto são boas razões para fazer meditar um pouco mais aqueles que, inclusive à esquerda da esquerda, insistem em apostar o futuro da humanidade na carta civilizacional do Ocidente. Tem essa esquerda um desafio credível a apresentar, capaz de fazer apear as classes dirigentes ocidentais que têm conduzido o mundo ao abismo que temos perante nós? Se tem, que o apresente muito rapidamente.

 

março de 2024

 

*

 

O genocídio não é uma afeção de Israel, mas de todo o império ocidental, de que Benjamin Netaniahu é, verdadeiramente, nesta hora, herói e paladino supremo. Ao longo de toda a sua história, Ocidente e genocídio sempre foram inseparáveis. A “ordem baseada em regras”, da NATO e do Consenso de Washington, é absolutamente inviável, impensável mesmo, sem o genocídio, que lhe é absolutamente constitucional. As vítimas, essas, não se contarão já apenas em algumas dezenas de milhares, senão em milhares de milhões. O horror está ainda nas suas primícias, com uma sanha sanguinário quase inocente. O que aí vem, na sua sequência, será o inimaginável. Quem insiste em apoiar o Ocidente na sua luta existencial pela manutenção do seu atual estatuto de raça senhorial branca (com cooptação de alguns aculturados coloridos para melhor “branquear” a sua imagem), com o inerente aprofundamento da rotura metabólica no presente equilíbrio sistémico integrado do planeta, deve saber, desde esta hora, que está a apoiar a guerra permanente, o fascismo, o genocídio e, em última instância, a extinção da humanidade. Não é uma parca responsabilidade, pelo proveito equívoco de participar até ao fim na espetacular feira das vaidades e da hipocrisia demo-humanitarista do capitalismo finalmente moribundo.

 

O capitalismo estará moribundo, mas não morreu ainda, nem é seguro que possamos sobreviver-lhe. O primeiro requisito para o conseguir é colocar o destino das sociedades humanas em mãos capazes de uma ação coletiva consciente e direcionada, resgatando-o do livre jogo entre fúrias compulsivas digladiantes, que o tem regido sob o capitalismo, com submissão ao imperativo último da acumulação privada. Como é sabido, o império irrestrito do capital denomina-se a si próprio de liberdade e democracia, taxando de autocracias às sociedades capazes de direção consciente, seja esta passível ou não de escrutínio democrático. Antes do mais, é imprescindível interromper já o caminho do barranco dos cegos. Uma vez que sejam irremissivelmente derrotados o imperialismo ocidental e todas as potências irracionais da mentira e do caos que ele expele por todos os poros, já não nos bastará somente esse resultado. A luta anticapitalista prosseguirá, com vista a erradicar em todos os azimutes a lógica do lucro e da acumulação privada. Do capitalismo politicamente regulado, passar-se-á então ao socialismo e ao comunismo, que é o horizonte que permitirá, enfim, restaurar os equilíbrios metabólicos rompidos e garantir a manutenção sustentável da vida humana neste planeta. Trabalhadores e comunidades de vizinhança devem organizar-se para tomar em mãos a gestão de todos os seus espaços de vida, labor e de residência, participando de todas as decisões relevantes ao nível nacional, regional e mundial.

 

Há quem faça o raciocínio inverso: que será preciso salvar o Ocidente e a sua “democracia” liberal maravilhosamente culta, transparente e esclarecida, para, sobre ela, erguer, enfim, o poder dos trabalhadores associados, que irá prontamente em socorro e assistência aos povos desvalidos do Sul global. Essa perspetiva tem uma longa história no movimento socialista. Foi sempre própria da ala mais próxima da traição. Traição ao ideal da comunidade humana universal, que acaba por ser também, inevitavelmente, traição às próprias classes populares das metrópoles imperialistas. O seu prestígio e plausibilidade tem vindo a declinar constantemente. Não cremos já que alguém com um mínimo de informação e lucidez ainda a possa defender hoje de boa fé. Mas enfim, estamos sempre prontos ao diálogo. Até que as linhas do combate se formem definitivamente e o campo do Ocidente mande cerrar fileiras, baixando, enfim, com estrépito, a viseira do seu luzidio elmo neofascista.

 

O Ocidente perdeu a guerra na Ucrânia e está a perder, se é que não perdeu já, a guerra na Palestina. É muito provável que, movido por uma compulsão irresistível, como um ébrio irado olhando em volta com uma navalha na mão, provoque de seguida uma guerra com Cuba, a Venezuela ou mesmo com a República Popular da China. Não o espera aí melhor sorte. Sic transit gloria mundi. Porque todo o sistema imperialista é baseado na intimidação e na extorsão, em resultado destes sucessivos reveses militares, o dólar norte-americano e o sistema financeiro doentiamente especulativo que nele se baseia vão inevitavelmente sofrer uma marcada degradação. Tudo, aliás, se pode precipitar de uma forma súbita e catastrófica, a qualquer momento, neste ano ainda ou no próximo. Enquanto isso, a mediosfera ocidental continua, de forma sonâmbula, a evidenciar a mesma autoconfiança omnipotente. Mas os atores políticos reais, em todo o mundo, não vêm muito a televisão dos brancos. Fazem outras contas e, sobretudo, ultimam outros planos.

 

setembro de 2024

 

*

 

Prossegue a derrocada da Casa Grande do Ocidente. Batida na Ucrânia, cindiu-se a meio com a espinha dorsal quebrada. Os E. U. A. abandonam a ilusão de comandar uma ordem liberal universal neo-vestfaliana, procurando usar o que resta do seu poder de intimidação militar e financeira ao serviço de uma estratégia solitária e unilateral. A Europa mergulha na irrelevância, estremecida por uma risível febre de rearmamento, que só merece ser levada a sério enquanto prenúncio do descalabro final do seu Estado Social. Tudo isto é ainda apenas o início de um interminável pesadelo para os atuais senhores do mundo. O soçobro final vislumbra-se no Médio Oriente, com a expulsão dos norte-americanos da região e o desmantelamento de Israel (quintessência do ocidentalismo), o mais odioso projeto racista e supremacista desde o III Reich nazi, do qual é um transbordamento. O grande desafio da nossa época é completar este processo desmetropolizante, desarmadilhando cuidadosamente a ameaça de uma guerra e consequente inverno nuclear. Isso cumprido, deixaremos enfim de viver num mundo dividido entre nações senhoriais e servis, exploradoras e submetidas. Poderemos, então, remeter a luta anti-imperialista para o modo preventivo e reativar, agora globalmente, a palavra de ordem “Proletários de todos os países, uni-vos!”, ao serviço do desenvolvimento humano universal e do equilíbrio ecológico no planeta.

 

O Ocidente é um acidente. Um acidente infeliz, uma intumescência neoplásica ocorrida no processo de desenvolvimento histórico-material da humanidade. Há quem o pretenda essencializar e sacralizar, inventando para ele as mais absurdas e mí(s)ticas genealogias. Na verdade, esta ideia de Ocidente é uma invenção do século XIX, projetada retrospetivamente de forma eletiva e arbitrária. Como está bem estabelecido (recentemente, por Josephine Quinn, uma autora em nada subversiva nem marxizante), o atual Ocidente é resultado de um processo multimilenar de contínuas trocas, pastiches e reelaborações culturais, envolvendo, entre outros, levantinos, persas, chineses, indianos, árabes e africanos. Juntemos-lhes americanos e polinésios para termos praticamente a humanidade inteira. Com início no século XV (excluídos episódios precursores como Alexandre, Roma ou as Cruzadas), a violência e a coação entraram no quadro, desequilibrando as coisas a favor dos mais experientes guerreiros europeus. Foi do saque gargantuesco dos povos submetidos que se amassaram as riquezas que permitiriam a revolução industrial. O modo de produção capitalista é, ele próprio, dialeticamente, resultado e fator do processo expansionista que criou o Ocidente. É este o tumor que tem agora de ser extirpado, se a humanidade houver de ter uma oportunidade de sobreviver e progredir.

 

Nem tudo é mau na herança ocidental. Os subscritores destas linhas procurarão em vão cavar distância em relação a ela, porque se filiam numa das suas tradições intelectuais. A humanidade, no seu conjunto, aprendeu e amadureceu muito com a via ocidental, que agora se tornou obviamente inviável e catastrófica. Nos campos cultural, científico e político-económico. Neste último, aprendeu, entenda-se, não com as classes dominantes, com os possuídos pela sede de domínio e promotores do expansionismo desenfreado, mas precisamente com aqueles que procuraram estabelecer-lhes limites e regras, vislumbrando a superação da ordem vigente. Com aqueles que, em contracorrente e contrapoder, criaram civilização a partir dos destroços acumulados pelo “progresso”, amassados estes sempre sobre o sangue, os gritos aterrados, o suor e as lágrimas dos vencidos. O constitucionalismo, os direitos humanos, a democracia representativa, a liberdade de expressão e de associação, os direitos e garantias do trabalhador, o cuidado e solidariedade social, o planeamento participado, a igualdade entre homens e mulheres, a nada disto renunciamos, salvo em estado de emergência e necessidade. Mas estas conquistas não são exportáveis no seu exato molde ocidental. Têm de provar a sua verdadeira universalidade por meio da sua recriação ou transliteração no contexto local, crescendo naturalmente a partir de bases endógenas. Os tempos da expansão colonial e da assimilação hegemónica já passaram há muito. Enquanto decorreram, nunca os conquistadores mostraram qualquer predisposição para criar uma cidade mundial de acordo com estes seus tão virtuosos preceitos.

 

março de 2025

 

 

 

 

 

(*) Os editoriais da revista eletrónica semestral O Comuneiro iniciaram-se com a crise de 2008 e abriram sempre com uma pequena nota de atualidade, passando depois à apresentação dos artigos selecionados para a edição em causa. Coligimos aqui apenas essa parte inicial, formando assim uma espécie de registo de bordo da passagem do nosso tempo histórico. Este introito editorial foi variando, na sua extensão, entre um apenas ou vários parágrafos, por vezes de alguma densidade. O estilo e a própria ortografia foram-se alterando. Todos os textos são também da responsabilidade conjunta do coeditor Ronaldo Fonseca.

 

 

 

 

Voltar à página principal

 

© 1997-2010 angelonovo@sapo.pt