A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Cuba vive (*)
 
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Quer se percorra a quinta avenida no bairro de Miramar, ou El Vedado, ou, passado o Malecón, se inicie um passeio a pé pelo elegante Prado, a impressão mantém-se: La Habana é uma cidade de escravos libertos. É uma cidade onde a revolta dos oprimidos, velha de três gerações, se cristalizou entretanto em rotinas, insuficiências várias e mesmo em desencanto e melancolia para muitos. É preciso talvez vir de fora para nos apercebermos do que há de mágico e extraordinário neste país. Afinal, as rebeliões de escravos foram sempre afogadas em sangue a muito curto prazo. Por todo o lado, sempre eles pagaram caro o atrevimento da revolta contra essa "ordem natural das coisas" que é o privilégio e a opressão de classe. Aqui não.

 

Há quase quarenta anos que a burguesia clama por vingança e vai consumindo a sua raiva impotente do outro lado do estreito da Florida, sempre em novas e mais miseráveis conspirações e tramóias. Em La Habana não há primores urbanísticos, abunda a sujidade e as casas estão em mau estado. Mas o povo é o senhor absoluto nas ruas e não há aqui outra cidadania que não a proletária, temperada pela alegre fraternidade e tocante sentimentalismo desta gente inigualável. Mesmo para um comunista a sensação é estranha. É como sentir a lava arrefecida de todas as grandes erupções revolucionárias: a Comuna de Paris, Outubro vermelho, Barcelona revolucionária. Como que a radiação fóssil de todas essas grandes convulsões de alegria fraternal, com os seus juramentos eternos de liberdade e igualdade para todos.

 

Talvez por isso, Cuba é agora o destino turístico da moda. A um preço acessível: boas praias, clima excelente e a expectativa mal disfarçada de entrever o estertor final de uma utopia (para o ano pode já lá não estar). A boçal arrogância do homo turisticus lá vai sendo habilmente lidada pelos proficientes guias na redoma motorizada dos circuitos. Em Cuba o turismo é uma indústria mesmo, com empacotamento e processamento em série, tudo a cargo de pessoal altamente qualificado. Em roda volteiam as prostitutas e negociantes de toda a espécie (os jineteros). Para se conhecer e sentir o pulsar da vida real do país é preciso sair o mais rapidamente possível deste ambiente infecto e climatizado. E até é fácil fazê-lo porque em Cuba qualquer transeunte é um potencial companheiro e pode-se fazer amizades como quem apanha pêssegos maduros.

 

Das inúmeras conversas políticas tidas com todo o tipo de gente e do acompanhamento que fiz dos escassos meios de informação disponíveis, a imagem que resulta é muito diversa da que os nossos comentadores nos transmitem. Após os anos terríveis de 1993-94, a vida está a melhorar sensivelmente para toda a população. As reformas económicas (dolorosas do ponto de vista ideológico) têm tido resultados rápidos e efectivos. Foram abertas mais portas ao investimento externo. Alguma liberalização nos circuitos comerciais ajudou a abastecer o mercado, nomeadamente em produtos agrícolas. Quando se decidiu a liberalização do curso de moedas estrangeiras, a cotação do dólar no mercado oficioso era de 1 para 150 pesos cubanos. Está agora a 1 para 30, após uma bem sucedida política de absorção do excesso de moeda em circulação. O dólar é agora procurado tipicamente apenas para garantir o acesso a mercadorias exóticas ou luxuosas. Os bens de maior necessidade são acessíveis (com oscilações) e a população tem confiança na moeda nacional.

 

Parece claro que o choque mais violento do "período especial" já foi absorvido e a situação económica tende para um certo equilíbrio, a um nível naturalmente modesto que é, no sistema mundial capitalista, o próprio de uma economia terceiro-mundista ainda largamente dependente da monocultura açucareira. O sistema começa a funcionar e o regime está muito mais sólido e confiante do que a imprensa ocidental faz supor. Há filas de cem metros ou mais para comprar os escassos e magríssimos jornais. As livrarias e a edição estão em estado lastimável. Mas nem um só hospital ou escola foi encerrado, e aí se incluem institutos transcontinentais e de solidariedade internacionalista, ou escolas de cinema vanguardistas conhecidas pelo seu inconformismo político e estético.

 

O tema político dominante é, naturalmente, o bloqueio. Nenhuma empresa norte-americana pode comerciar com Cuba e quem o fizer não pode fazer escala em portos norte-americanos. Isto significa despesas acrescidas em fretes mais longínquos, créditos comerciais mais caros, etc.. Além, naturalmente, das despesas acrescidas por impossibilidade de fazer a escolha mais económica quando ela seria o produto norte-americano. Tudo somado, são despesas significativas mas não absolutamente paralisantes. Vêm é, neste momento, dificultar o sucesso das medidas de reforma económica empreendidas e agravar os efeitos do outro "bloqueio" que é o burocratismo, o laxismo e a incúria.

 

O problema de fundo da economia cubana é, porém, a contínua degradação dos termos de troca dos seus produtos. No seio do COMECON, chegou a trocar 1 tonelada de açúcar por 7 ou 8 de petróleo. Presentemente, a razão é de 1 para 1,4. Quase a par. Com a perda dos seus parceiros da Europa de Leste, Cuba perdeu 70% das suas importações e ficou subitamente com apenas 40% do combustível que recebia. Tudo o que compra ao estrangeiro é agora pago a pronto, em dólares, claro. E a pesada herança monocultural vai arrastando o país para os abismos da troca desigual e da sobre-exploração no mercado mundial. O turismo pode aliviar um pouco a tesouraria mas não resolve problema nenhum. E o resto são trocos: tabaco, rum, alguns serviços médicos especializados.

 

O levantamento do bloqueio norte-americano estava até aqui dependente da aceitação de um pedido de indemnizações de entre 5 a 6 mil milhões de dólares, por propriedades norte-americanas nacionalizadas após a revolução. A posição cubana é de que está de acordo com o princípio da indemnização (não com os números avançados) mas que então será preciso fazer a compensação com as dezenas de milhares de milhões de dólares de prejuízos com a invasão de Playa Girón, sabotagens várias e o bloqueio económico.

 

As posições não pareciam de todo irreconciliáveis. Mas o novo Congresso norte-americano (pressionado pelos gusanos de Miami) aprovou a emenda Helms-Burton que reduz ao absurdo qualquer tentativa de aproximação, para além de agredir os mais sólidos princípios do direito internacional. Exigidas são agora indemnizações por toda a propriedade expropriada, incluindo a de cidadãos cubanos à altura da revolução e que são agora norte-americanos. Círculos da administração Clinton calculam que a fasquia estará agora por volta dos 100 mil milhões de dólares. Todas as cooperativas e unidades produtivas agrícolas, bem como a esmagadora maioria dos proprietários particulares perderiam as suas terras. 85% das famílias cubanas perderiam a propriedade das suas vivendas, quase todas autoconstruídas. Não ficaria de pé um hospital, uma escola, um posto de atendimento médico. É tão estúpida, cega e brutal a sanha revanchista dos imperialistas que a resistência do povo é unânime e o seu heroísmo resulta natural e de uma impressionante tranquilidade.

 

Uma antiga humilhação

 

Para se compreender a execração universal que aqui merecem os yankees é preciso recuar no tempo. John Quincy Adams, no princípio do século XIX, definia já Cuba como uma maçã que, separada de Espanha, cairia inevitavelmente nas mãos do tio Sam. Assim se anunciou uma constante da política norte-americana até aos dias de hoje.

 

Fundada sobre o esclavagismo e dependente do infame comércio triangular (1), a formação social cubana era atrasada e imatura para a independência aquando da gesta bolivariana. Foi já na segunda metade do século XIX que um verdadeiro movimento nacionalista surgiu e a segunda guerra independentista (1895-98) levou a um sangrento e ruinoso impasse militar com os colonialistas espanhóis. Foi nestas circunstâncias que os E. U. A. resolveram oportunisticamente intervir, desencadeando a guerra hispano-estadunidense que se saldou pela completa derrota da velha potência europeia.

 

Os cubanos não foram sequer admitidos às negociações de paz. Pelo Tratado de Paris (10 de Dezembro de 1898), a Espanha entregou pura e simplesmente Cuba aos E. U. A., juntamente com Porto Rico e as Filipinas. O poder foi solenemente transmitido ao general yankee John Brooke, governador militar. Na convocatória para a Assembleia Constituinte de 1901, era expresso que a mesma deveria aprovar em apêndice a famosa emenda Platt, que consagrava o direito dos E. U. A. intervirem na vida interna da república cubana sempre que o julgassem necessário. Na verdade, até à revolução de 1959, a soberania cubana foi uma mera tecnicalidade jurídica sem real conteúdo substancial. E na própria burguesia cubana o anexionismo era uma importante corrente de opinião desde pelo menos o segundo quartel do século passado (2).

 

É, pois, com naturalidade que a actual "comunidade" exilada de Miami é identificada com esta burguesia rendeira, parasita e entreguista de sempre, enquanto o nacionalismo cubano de Carlos Manuel Céspedes, José Martí e dos generais Máximo Gomez e Antonio Maceo, se encarna naturalmente na revolução de Fidel Castro e seus pares. A "questão" cubana não pode ser percebida fora deste contexto histórico de afirmação nacionalista frustrada pela vergonhosa e cobarde traição da burguesia ao projecto nacional-popular. Por isso, o conteúdo da revolução é socialista, sem dúvida (tanto quanto o pode permitir o atraso das suas forças produtivas), mas a sua argamassa ideológica é, insistentemente, nacionalista e patrioteira. E não está posta fora de causa a hipótese de se ultrapassar o actual impasse por um projecto mais ou menos digno de acumulação capitalista autóctone.

 

Quando cheguei a Cuba, tinha-se dado há uns dias uma manobra naval e aérea provocatória da Fundação Cubano-Americana junto a La Habana. Essa "flotilha da paz" foi reeditada novamente este mês mas, lamentavelmente, uma das embarcações naufragou ao largo de Key West e registou-se uma baixa por ataque cardíaco. O “heróico” empreendimento teve de ser cancelado. Os provocadores apostam na acção directa e têm visivelmente uma boa rede de contactos e de informações na ilha. Mas a base social da contra-revolução na frente interior é praticamente nula. E nem mesmo a imprensa burguesa internacional os leva a sério, como eles não se cansam de queixar-se. Há alguns sinais de que mesmo a Administração norte-americana pode a longo prazo vir enfim a livrar-se desta fétida clientela e, eventualmente, entrar nalgum tipo de entendimento com os cubanos. Uma pedra sobre o passado e um arranjo para a liquidação suave e a prestações da revolução. Não é esta afinal a receita de toda a burguesia civilizada? Não tendo ela própria sido ainda seriamente posta em causa, custa-lhe a compreender esta patética iracúndia dos "exilados".

 

 

 

(*) Publicado no nº 51 da revista ‘Política Operária’ (setembro-outubro de 1995).

 

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NOTAS:

 

(1) Por comércio triangular, especialidade das ilhas caribenhas, entendia-se o seguinte circuito: a colónia exporta açúcar para a metrópole; esta exporta aguardente para África, onde embarca escravos novamente para a colónia.

 

(2) V Julio Le Riverend, Breve Historia de Cuba, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1992.

 

 

 

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