Durante décadas o reformismo estrutural marxista andou a teorizar a transição para o socialismo. Foi o tempo de Bettelheim, Sweezy, Gorz, Sik, intrépidos exploradores teóricos de novos caminhos marítimos para a sociedade sem exploração, algures a ocidente, envolta ainda num espesso nevoeiro ideológico. Já íamos na quinta ou sexta via quando Althusser, num dos seus rompantes de lucidez atormentada, pronunciou: "O socialismo é a merda". Atravessêmo-lo rapidamente.
A classe trabalhadora e os povos de todo o mundo têm agora oportunidade de assistir, quase em directo, a um processo histórico inédito e imprevisto: a desemerdação dos povos eslavos, a transição para o capitalismo. É um espectáculo fascinante. De que fazer corar de vergonha as sisudas burguesias ocidentais, se elas não tivessem enterrado já na sua mente, sob um espesso estrato geológico de acaciana boa consciência, a memória da sua própria acumulação primitiva (Pode consultar s. f. f., Karl Marx, 'O Capital', Livro I, Capítulo XXIV. Não há nada como boas leituras.). A evidência do crime e do esbulho primordiais, na base do qual se edificou (e através dos quais se vai permanentemente vivificando e reproduzindo) o modo de produção capitalista dominante.
«Um país como os outros»
Primeiro, o inefável Gorbatchov falou-nos de reestruturação. Nada que transpusesse as fronteiras da merda estabelecida. Questão de melhorias técnicas, intensificação dos ritmos, optimização dos resultados. Atenção à experiência dos camaradas húngaros. Depois, passou-se à fase do hibridismo claro, com a introdução dos mecanismos reguladores da economia de mercado, abertura aos investimentos externos, convertibilidade do rublo, etc.. Foi o tempo das doutrinas de Agambegian e dos planos de Leonid Abalkin (5 anos). Gorby começou a fazer a espargata e a forçar os rins para se manter à tona, perante este claro aceleramento da história. Depois, veio o plano de Chataline. 500 dias, 500 mágicos dias, e seremos uma sociedade capitalista pura e simples ("um país como os outros, normal"), assim pelo menos ao nível da Espanha vá lá. Gorbatchov foi dizendo que sim, que não, que talvez, e mergulhou no abismo.
Como foi possível tal cegueira optimista? Ambição política? Certamente. Desespero perante as disfunções e o beco sem saída da "economia de comando central"? Com certeza. Mas sob estes acidentes políticos de superfície, inspirando-os e encorajando-os, jazia um lençol freático de ideologia instilada insistentemente por décadas de guerra fria, propaganda e triunfalismo ocidentais: a concepção do capitalismo como modo natural, quase biologicamente puro, de gerir os recursos de uma sociedade humana. Bastava pois desmantelar as velhas estruturas normativas, libertar as energias reprimidas da "sociedade civil", e a livre empresa começava logo a brotar como cogumelos na primavera. Pois não é verdade que somos europeus e cultos e dinâmicos e imaginativos como os outros povos "desenvolvidos"? Esqueceu-se o carácter e natureza históricos do capitalismo: a sua lenta emergência através de séculos de infiltração e acumulação subreptícia nos interstícios do modo de produção feudal, de lutas e compromissos astuciosos com a velha ordem. O seu carácter histórico, também, e pesem embora as sereias neo-hegelianas do "fim da história", enquanto modo de produção votado ao perecimento e superação.
Finalmente, como Lenine esperou a revolução na Europa, Gorbatchov e Ieltsin esperaram (esperam ainda?) massivas ajudas ocidentais para "cerzir" a Rússia no tecido capitalista mundial. Ninguém demonstrou interesse. Quando houver no terreno implantados meios seguros de pagamento (e houver excesso de liquidez nas metrópoles capitalistas), é possível que comece a fluir algum capital, mas aí será apenas para estrangular a Rússia no círculo vicioso da dependência. É mais um crónico do FMI em perspectiva. Por mais brancos e cultos que sejam (por mais acenos que façam e cumplicidades que prometam), não é possível, em economia aberta, uma nação "partir" (à Rostow) agora e esperar apanhar o pelotão da frente, quando tem já todo o peso deste bem assente no cachaço, a travá-lo e subjugá-lo (veja-se o Brasil). É a miséria num só país, o legado final de José Vissarionovitch.
Uma sociedade em movimento
Na parede de honra da vulgar repartição pública da ex-pátria dos sovietes, o retrato de Lenine cedeu o lugar a um calendário com starlettes da pornografia. O funcionário é pago em rublos. É um agente superior da polícia e recebe por mês, como paga de arriscar o pescoço no combate às mafias que dominam o país, o preço de um modesto par de sapatos. As prostitutas de Leninegrado, aliás São Petersburgo, exigem pagamento em dólares ou, à falta de melhor, com os celebrados cupões ("vouchers") com que Ieltsin sonha promover a privatização do colossal património público. O apparatchik médio já se foi apropriando patrioticamente de muitas empresas que geriu durante décadas, no devotado serviço do partido e do povo. É a reconversão da velha nomenklatura. A apoiá-la, a demagogia, incompetência e corrupção inimagináveis da nova classe política "democrática". As cidades russas, entretanto, divididas em "territórios" de influência, pululam de intermediários, especuladores, ladrões, contrabandistas, extorsionistas, "protectores", traficantes, chulos. E esta é toda uma novíssima classe empresarial em ascensão, na área do comércio e serviços, a anunciar já claramente uma "terciarização" pós-modernista. Os russos desdenham a literatura ex-refusenik ou os importados manuais de administração de empresas mas lêm avidamente: astrologia, artes marciais, ovniologia, segredos místicos, receitas Dale Carnegie para o sucesso. A sociedade está em movimento.
O sobressalto das forças vivas
E, todavia, lá como cá, há umas estranhas "forças do bloqueio" em acção. O aparelho militar-industrial, organizado na plataforma moderada União Cívica, depois de meses de refregas com a presidência (assim a modos de sobressalto moral das "forças vivas da nação"), obtém uma vitória importante com a nomeação de um quadro típico da "época de estagnação", Viktor Tchernomirdine, para o cargo de primeiro-ministro, além de importantes cedências constitucionais. Fim das reformas? De maneira nenhuma, diz este. Prosseguimento delas a um ritmo mais reflectido, paragem na dinâmica liquidacionista, apoio à estrutura produtiva do país. Tradução: os velhos apparatchiks brejnevistas não se sentem com unhas para se apropriarem pura e simplesmente (como "privados") da espinha dorsal da mastodôntica indústria soviética. Não encontraram investidores estrangeiros interessados nas sagradas joint-ventures, para capitalizar e dirigir a reconversão. Temem o colapso completo. Prudência, pois. Mais vale uns anos mais de socialismo, para alegrar melancolicamente a velhice de Cunhal, do que a perda imediata das prebendas e privilégios na voragem liberalizante. Tanto mais que a coexistência e pragmática colaboração entre esta respeitável classe de gestores e a alegre mafia comerciante se processa sem problemas de maior, segundo as regras do livre contratualismo. É a depredação consentida, assistida liberalmente pelo orçamento do Estado.
Resta saber que parte (certamente ínfima) das fortunas ganhas pelos especuladores e pela mafia se vai converter em investimento produtivo novo e que parte se vai evadir ou dissipar na espiral de sempre renovadas vigarices. E o que é que (certamente pouco) ficará de pé da velha indústria "soviética". Onde é que o investimento externo vai "pegar"? E quantos anos de miséria absoluta, até que extremos de aviltamento e degradação, é que a classe trabalhadora e o povo russos estão dispostos a ir e a suportar, para viverem finalmente num país "normal", com uma burguesia exploradora e uma elite política "normais" às suas costas?
A burguesia ocidental sempre olhou com certa reserva, temor e secreto fascínio o colosso russo. É uma nação que preenche um extenso bloco continental, com propensão expansiva, povoada por uma gente alegre e rude, capaz de se abismar voluptuosamente na humilhação extrema, mas também de explodir colericamente e sacudir o opressor com uma brutal decisão.
(*) Publicado no nº 38 da revista Política Operária (Janeiro-Fevereiro de 1993).
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