Campinas é uma cidade de dimensão média (para os padrões brasileiros) situada no interior paulista, a cerca de 90 Km dos arredores da grande megapólis S. Paulo. É uma região rica, dentro de um Estado rico. O distrito de Barão Geraldo é uma grande zona residencial de classe média alta. Fiquei hospedado, com inexcedível atenção, num condomínio fechado. Não muito longe dali está o maior centro comercial da América Latina, mandado construir por Belmiro de Azevedo e agora vendido aos norte-americanos da Wal-Mart. É por aqui que se situa a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), um grande campus, com um perímetro de dezenas de quilómetros, com segurança a cargo de uma empresa privada. Largas avenidas, edifícios amplos, magníficas árvores tropicais mergulham suas raízes na terra ocre. Trata-se da segunda mais prestigiada universidade brasileira, sobretudo nas áreas de ciências e tecnologia. Quis visitar o centro da cidade de Campinas num final de tarde mas isso foi-me desaconselhado, com certa veemência, por questões de segurança.
Na “cidade universitária Zeferino Vaz” (homenagem ao burguês esclarecido e progressista que a fundou) situa-se o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFICH – lê-se ifixe), com a sua magnífica biblioteca. E no IFICH há um Centro de Estudos Marxistas (o CEMARX), animado por uma série de companheiros que publicam há dez anos a revista ‘Crítica Marxista’. Esta é possivelmente a melhor revista de estudos marxista que já se publicou em língua portuguesa. E no Brasil presentemente há várias, com destaque para a ‘Outubro’, a ‘Margem Esquerda’, a ‘Lutas Sociais’, etc.. Digamos que o marxismo académico brasileiro está dilacerado por uma série de lutas intestinas, das quais emerge presentemente uma grande linha de confronto entre o bloco trotsko-gramsciano e o bloco lukácso-althusseriano.
O colectivo do CEMARX organiza também, bienalmente, na UNICAMP, o colóquio Marx e Engels. No ano de 2005, o colóquio internacionalizou-se e foi organizado em novos moldes, registando o que a organização considerou ser o salto qualitativo bastante marcado. Com esta sua 4ª edição, realizada de 8 a 11 de Novembro passado, pode dizer-se que o colóquio Marx e Engels de Campinas se afirmou como um evento sem paralelo no mundo de língua portuguesa, marcando ao mesmo tempo um lugar entre os encontros de intelectualidade marxista que se vão realizando um pouco por todo o mundo. Senão entre os maiores, estará certamente entre os mais vivos e animados.
Foram apresentadas ao colóquio 122 comunicações, seleccionadas entre as mais de quatrocentas que se candidataram. Por estranho que isso nos possa parecer, visto deste lado do Atlântico, o marxismo universitário no Brasil é um continente vasto, diverso e em crescimento. As comunicações foram divididas em cinco grandes Grupos Temáticos (A obra teórica de Marx e o marxismo; Marxismo e ciências humanas; Economia e sociedade no capitalismo contemporâneo; Socialismo no século XXI; Marxismo, cultura e educação). Os eventos decorriam, naturalmente, em paralelo, sendo impossível assistir a mais de um quinto do que se disse e discutiu em todas estas animadas sessões, sempre bem guarnecidas de um público jovem e interessado.
Nas sessões a que assisti, impressionou não só a qualidade média muito boa das comunicações, mas sobretudo as interpelações vivas, exigentes e pertinazes da assistência. A integral das comunicações apresentadas está disponível em CD-Rom. Nos corredores estavam expostos algumas dezenas de painéis dos participantes mais jovens, que aí se postavam dispostos a discuti-los com quem os interpelasse. Havia diversas bancas de venda de livros, revistas, discos e áudio-visuais. À boa maneira latino-americana, as discussões animavam depois pela noite dentro, em grupos de convívio mais ou menos boémio que deixavam algumas olheiras bem vincadas na manhã seguinte.
Para além das reuniões dos grupos temáticos (sub-divididos em diversas mesas), dos painéis e das reuniões dos conselhos editoriais da ‘Crítica Marxista’ e da ‘Outubro’, houve por fim as quatro conferências que constituíam de certo modo o prato forte do evento. A primeira conferência esteve a cargo de Jacques Bidet, que agora deixou o lugar de editor principal após vinte anos a animar a revista francesa ‘Actuel Marx’ e os congressos Marx International de Paris. A segunda, bastante mais animada, teve um despique bastante aceso sobre o socialismo do século XXI entre Armando Boito, do CEMARX, e o filósofo italiano neo-estalinista Domenico Losurdo. A terceira conferência, sobre ciências humanas, deu-nos uma dissertação magistral do argentino Atílio Borón e uma outra interessante e esforçada da professora brasileira Miriam Limoeiro. Por fim, na quarta conferência, o economista francês Gérard Duménil expôs com grande aparato as suas (e de Dominique Levy) controversas teses sobre a evolução contemporânea do capitalismo mundial, enquanto o sociólogo Décio Saes dissertou sobre algumas tendências estruturais do capitalismo brasileiro.
A cidade de São Paulo, onde me demorei alguns dias, é uma gigantesca metrópole. É, enfim, a América, a América. Mundo feérico, desbragado e sem regras, onde a miséria extrerma vive lado a lado com a maior sofisticação cultural. A famosa Avenida Paulista, no entanto, em horário nocturno, parece um campo no meio de nenhures, ainda ténuemente urbanizado.
(*) Publicado no nº 103 da revista ‘Política Operária’ (janeiro-fevereiro de 2006).
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